1 de junho de 2010

Poética da desaparição

Retratos cinematográficos da vertiginosa transformação social e econômica da China, vistos do nível da rua em suas margens provinciais. Zhang Xudong sobre os motivos de desaparecimento, demolição e mobilidade nos filmes de Jia Zhangke.

Zhang Xudong



Tradução / O cinema chinês entrou no mercado da cultura global no final dos anos 1980, quando diretores como Zhang Yimou e Chen Kaige ganharam prêmios internacionais e reconhecimento da crítica por filmes como Hong gao liang [O sorgo vermelho] e Hai Zi Wang [O rei das crianças] (ambos de 1987)1. Integrantes de uma turma de cineastas formados pela Escola de Cinema de Pequim por volta de 1982, conhecida na República Popular da China (RPC) como a "Quinta Geração", Zhang e Chen basearam seu sucesso no repúdio da tradição realista-socialista do cinema de estúdio antes vigente, em favor da reapropriação de um passado mitificado e da evocação de majestosas paisagens esvaziadas de história. Em retrospecto, suas obras se distinguem não tanto pela linguagem cinematográfica ou por inovações estilísticas, mas pela distância que tomaram dos referenciais da China de Mao - sua estética, sistema de valores, condições materiais e vida cotidiana -, os quais foram declarados obsoletos. Nesse sentido, o modernismo cinematográfico da Quinta Geração atuou como confirmação do tempo universal, tal como definido pelo mercado global.

A tradição realista-socialista nunca chegou a opor nenhuma resistência eficaz e coerente a essa tendência, visto que à época dos debates político-estéticos do período pós-Mao ela se diluíra na irrelevância. Mais propriamente, a crítica da Quinta Geração se centrou desde o início na sua insistência em narrativas grandiosas e abrangentes, e na sua relutância em "narrar uma história" [jiang gushi] de forma direta. O estilo elevado desses filmes, ao transfigurar o objeto da representação em algo "atemporal", parecia distante da experiência concreta de seu próprio tempo, não tendo logrado representar ou narrar o processo épico de transformação social em curso no país durante a era das reformas econômicas de Deng Xiaoping. A ausência de histórias nos filmes da Quinta Geração revelava, no plano formal, uma pobreza de experiência que contrastava de modo flagrante com o turbilhão de fatos desconcertantes que ocorriam à sua volta.

Ao longo dos anos 1990, a posição da Quinta Geração na cena cultural nacional - e, com ela, a posição do modernismo cinematográfico na arena das transformações sociais e ideológicas - tornou-se mais precária. Os protestos de Tiananmen e seus desdobramentos tornaram qualquer coisa que tivesse um caráter vagamente crítico ou anticonformista numa instância potencial ou real de dissidência, que precisava ser abafada ou mesmo sumariamente suprimida pela censura estatal. No início dos anos 1990, os filmes da Quinta Geração eram recebidos no exterior como alegorias políticas de um regime repressivo, o que acarretou sua interdição no mercado interno - embora seu acesso aos festivais internacionais de cinema tivesse sido viabilizado pelo próprio Estado. Mas essas medidas administrativas drásticas pareciam anódinas perto do avanço superacelerado do país, na segunda metade dos anos 1990, rumo à globalização e à economia de mercado. Sob tais pressões, o ímpeto do alto modernismo chinês se dissolveu numa miscelânea de variações pós-modernas em torno de gêneros locais ou globais, dos filmes de kung-fu e sitcoms televisivas a espetáculos visuais de caráter eminentemente chinês, como a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim - concebida e supervisionada pelo próprio Zhang Yimou. Seu consentimento com a instrumentalização de sua "consciência escultórica" cinematográfica por parte do Estado representa um dos polos da dicotomia na qual os cineastas da Quinta Geração tinham se encerrado; o outro era constituído por um olhar nostálgico sobre sua identidade anterior, como em Mei Lan Fang [Feitiço eterno] (2008), de Chen Kaige, versão inferior de Adeus, minha concubina, com o qual ganhara a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1994.

ORIGENS E FORMAÇÃO

A chegada de Jia Zhangke e seus companheiros da "Sexta Geração" em meados dos anos 1990 foi, em todos os sentidos, uma resposta a essa situação. Em lugar de uma unidade simbólica fantástica, ideológica, seus filmes apresentavam fragmentos alegóricos de uma realidade partida e desorientada. Enquanto os cineastas da Quinta Geração compunham uma totalidade mitológica - em tomadas amplas e vazias de uma paisagem imaculada e a-histórica, do planalto de loesse do Shaanxi em Huang tu di [Terra amarela] (1984), de Chen Kaige, e O sorgo vermelho, de Zhang Yimou, às cordilheiras geladas do Tibete -, os da sexta almejavam retratar a textura esquálida e amorfa da vida cotidiana das cidades, onde o subdesenvolvimento socialista encontra a investida das forças de mercado. O resultado desse choque é um cenário repleto de almas errantes e sonhos arruinados, cheio de revolta reprimida, desilusão e desespero tão profundos que, como uma doença crônica, tornam-se parte do cotidiano.

Revolta e desespero juvenis à margem da modernização chinesa muito distantes do glamour de Xangai, Pequim ou Shenzhen - são temas dominantes nos primeiros filmes de Jia Zhangke. Seu primeiro longa-metragem, Xiaowu (1997), enfoca um ladrão pé de chinelo de Fenyang abandonado à própria sorte e compelido ao crime para sobreviver, enquanto todos os seus amigos tomaram o bom caminho e se dedicam ao comércio. Plataforma (2000), segundo filme da "trilogia da cidade natal" de Jia, segue as peripécias de uma trupe de animadores culturais de Fenyang, cujas excursões ao campo pontuam a história da desintegração gradual da cultura socialista, à medida que as peças de agitprop maoístas dão lugar a números incoerentes de go-go dancing de beira de estrada. A terceira parte da trilogia, Ren Xiao Yao [Prazeres desconhecidos] (2002), conta a história de dois adolescentes, filhos de operários desempregados, cuja tentativa de assaltar um banco termina em desastre cômico; embora o cenário do filme tenha se transferido para Datong, seu enredo se aparta bastante do mainstream da economia de mercado da China de hoje.

Com Shijie [O mundo] (2004), ambientado no Parque Mundial de Pequim, um parque temático que reproduz atrações turísticas globais em escala reduzida, Jia deixou para trás o ambiente provinciano de seus primeiros filmes para retratar a vida dos trabalhadores migrantes na capital. Em busca da vida (2006) registra a destruição do meio ecológico e social pelo projeto da represa de Três Gargantas, enquanto o leitmotiv de Er Shi Si Cheng Ji [Cidade 24] (2008) é a desagregação de famílias e a demolição de bairros inteiros, provocadas pela desativação de um vasto complexo industrial em Chengdu, a fim de dar lugar a projetos imobiliários. De fato, os filmes de Jia parecem adotar um enfoque sociológico quase sistemático para retratar os problemas do desenvolvimento chinês contemporâneo, seja confrontando seus custos sociais e humanos, caso da juventude alienada de Xiaowu e Prazeres desconhecidos, dos trabalhadores migrantes e das populações deslocadas de Em busca da vida, O mundo e Cidade 24, ou seus danos ambientais de Em busca da vida.

Nascido em 1970 na cidade de Fenyang, província de Shanxi, Jia Zhangke se tornou cineasta por acaso e um tanto tardiamente. Filho de um professor de ensino médio e de uma vendedora de mercearia, cresceu num ambiente semirrural, semiurbano, bastante isolado das atrações do mundo exterior. Ao explicar para seus entrevistadores por que a música pop tem tanto destaque nos seus filmes, ele menciona a carência absoluta de qualquer forma de cultura ou entretenimento durante sua infância e adolescência: "Após o jantar, nós quatro [os pais, a irmã e ele] simplesmente nos sentávamos na sala, sem ter o que fazer ou conversar, até a hora de dormir". A chegada das canções pop de Taiwan, Hong Kong e Japão, bem como dos filmes de Hollywood, teve, pois, algo como um efeito liberador. Jia também se tornou um exímio dançarino de break, após ter assistido Breakdance: The Movie (1984) mais de uma dúzia de vezes.

Mas foi em 1990, quando estudava design gráfico em Taiyuan, capital da província de Shanxi, que Jia decidiu se tornar cineasta, após ter visto Terra amarela, de Chen Kaige, por acaso. Ele tentou duas vezes, em vão, entrar para a Escola de Cinema de Pequim, que finalmente o aceitou como aluno de seu Departamento de Literatura, em 1993. A decisão de estudar teoria do cinema, e não direção, baseou-se, segundo Jia, na suposição de que assim seria mais fácil ser admitido. Ele próprio conjecturou que, se não tivesse se tornado cineasta, teria sido escritor - publicou ensaios e contos nas revistas literárias de Shanxi e chegou a ser convidado para fazer parte da Associação dos Escritores provincial - ou, então, pintor. Como parte de sua aprendizagem em Taiyuan, ele morou com outros aspirantes a artista nos subúrbios da cidade, vivenciando em primeira mão a vida marginalizada de um "vagabundo sem destino" [mangliu], convivendo nas ruas com trabalhadores migrantes e, como eles, sendo submetido a revistas policiais no meio da noite. Jia insinuou também que poderia ter sido proprietário de uma mina de carvão privada na região das jazidas de Shanxi, plenamente consciente de que essa atividade, mais que qualquer outra na China de hoje, passou a simbolizar a exploração predatória e ilegal do homem e da natureza.

Para a geração que veio após Chen Kaige e Zhang Yimou, a tarefa consistia em alcançar uma percepção da realidade concreta e irredutível, de modo a definir e dar forma a uma nova linguagem cinematográfica. Essa realidade, intuíam, havia desaparecido por completo do cinema chinês. De todos os lançamentos nacionais a que assistia nas sessões duplas de quarta-feira na Escola de Cinema de Pequim, Jia chegou à conclusão de que "nenhum, em absoluto, tinha a ver comigo ou com as experiências e situações reais vividas pelos chineses e chinesas". Isso o levou a "agir por si mesmo", isto é, a "lutar pelo direito de um discurso" [zhengduo huayuquan] capaz de "representar a vida escondida atrás da tela prateada"2. Na década seguinte, Jia estaria "sempre disposto a correr para a rua com uma câmera" em busca da realidade. Nisso é possível ver a influência marcante que a descoberta do neorrealismo italiano teve sobre ele3. Outras influências importantes foram as de Ozu e Hou Hsia-Hsien; a marca desse último é visível no estilo espontâneo e ágil da "trilogia da cidade natal", que Jia realizou não a partir de um roteiro acabado, mas de algumas anotações. De fato, ele é conhecido por jamais ter concluído um roteiro antes que o próprio filme estivesse terminado.

Em 1995, ainda na Escola de Cinema de Pequim, Jia realizou Xiao Shan Jia Hui [Xiaoshan volta para casa], que conta a história de um trabalhador migrante da província de Henan empregado num restaurante de Pequim; despedido pelo patrão às vésperas do Ano-novo chinês, Wang Xiaoshan vaga pela capital à procura de conterrâneos que possam lhe fazer companhia durante a viagem de regresso a Anyang, sua cidade natal. Embora encontre um punhado deles entre operários da construção, universitários, garçons e prostitutas, nenhum se dispõe a acompanhá-lo. Com duração de pouco menos de uma hora, o filme deu o tom da obra posterior de Jia, cuja linguagem cinematográfica já de início tomou claramente uma feição própria. Isso vale não somente em termos visuais, na preferência pelas ruas como cenário e na mobilidade proporcionada pela câmera na mão, mas também para o modo como utiliza o som: canções pop, trechos de pregões emitidos por alto-falantes e ruídos urbanos em geral intervêm constantemente, enquanto os atores não profissionais de Jia - uma ressonância do neorrealismo italiano - tendem a falar em dialetos regionais; uma escolha ousada, visto que a maioria dos filmes chineses é dublada em mandarim.

Não foi mera casualidade, tampouco, o fato de que a formação de Jia se deu concomitantemente com a ascensão do movimento do Novo Documentário chinês: ambos retornaram à rua, renunciando às alturas estéticas do "cinema mundial moderno" e da nova mitologia nacional; ambos recorreram à fragmentação como processo de estruturação cinematográfica e narrativa, a fim de permanecer em contato com a realidade bruta que existe à revelia dos esquemas formais modernistas. De fato, a rejeição pela Sexta Geração da imagem metafísica da China de seus predecessores não foi apenas produto, como também reflexo de uma sociedade mais desigual e polarizada. Isso exigia uma transformação paradigmática do modo pelo qual a câmera confronta a realidade - uma realidade cuja multiplicidade e cujas contradições devem ser apreendidas.

MAPEANDO AS ZONAS DE ESTAGNAÇÃO

Os filmes de Jia são mais bem compreendidos como uma tentativa de mapeamento cognitivo dessa realidade. Eles representam uma topologia específica no interior da esfera social fragmentada da China: o xiancheng, ou município abrangido na divisão administrativa do condado. Não se trata de mero rótulo técnico-administrativo para designar o cenário dos filmes, mas sim de uma noção plenamente depurada que embasa seu impacto político-visual. O termo designa a "sede de um condado", municipalidades que tanto exercem jurisdição umas sobre as outras, como também se acham sob a jurisdição das cidades abrangidas no distrito; ele abarca tanto municípios de condado, como Fenyang - cenário de Xiaowu e Plataforma -, quanto centros industriais maiores, de nível distrital, como Datong - cenário de Prazeres desconhecidos. Elevada a municipalidade no início dos anos 1990, Fenyang tinha em 2005 uma população de 400 mil habitantes, enquanto Datong tinha 3,2 milhões; em comparação, a população de Xangai era de aproximadamente 18 milhões. Existem grandes disparidades de renda per capita entre essas cidades: 1.500 dólares para Fenyang e 2.500 para Datong, em comparação com 11 mil para Xangai; isto é, a renda anual média dos habitantes de Fenyang é 15% da renda dos habitantes de Xangai.

A peculiaridade do xiancheng como tipo de paisagem social reside não somente na sua onipresença socioeconômica e geográfica - existem mais de 2.400 condados, ou cidades no nível de condado, na RPC, e a população de Fenyang está dentro da média -, como também na sua escassa representação pelo cinema e pela literatura. Enfocar o xiancheng é, conscientemente ou não, dirigir a atenção para o avesso da modernidade socialista chinesa e sua Era das Reformas. Nominalmente englobado na "China urbana", xiancheng se aparta da fantasia de um mundo rural imaculado e autêntico, regido pela tradição e dotado de uma estrutura social e ética estável, centrada na aldeia (mundo esse que não tardaria a ser despedaçado pela expansão das forças de mercado, resultando na perda maciça de terras aráveis e no êxodo da população rural para centros urbanos em rápido crescimento). Por outro lado, xiancheng não é em definitivo uma área metropolitana; no máximo, oferece o oposto da sofisticação urbana, dos empregos de colarinho-branco, do acesso ao poder político e cultural nacional, bem como às ideias vindas do estrangeiro, realidades verificadas em Pequim, Xangai, nas capitais provinciais costeiras e nos grandes centros industriais: Nanjing, Hangzhou, Xi'an, Cantão ou Chengdu nos vêm imediatamente à lembrança.

Em termos de capital material ou simbólico, portanto, xiancheng é a China proletária par excellence. Em termos das formas urbanas e de sua representação visual, xiancheng é geralmente visto como algo disforme e desinteressante. Com base nas suas observações de Fenyang, vista pela ótica dos filmes de Jia, um crítico enumerou as "propriedades espaciais objetivas de xiancheng" do seguinte modo:

Ruínas e escombros de demolições, ao lado de ruas e prédios destituídos de caráter; minas de carvão e rodovias desertas; amplos espaços sem utilidade; espetáculos de dança moderna sobre caçambas de caminhão, concorrendo com óperas populares e música frenética de discoteca; salões de bilhar sonolentos e uma estação de estrada de ferro decadente e vazia; o barulho de vendedores de bilhetes de loteria por toda a parte - impessoal, monótono e, no entanto, vibrante e mesmo demagógico -, o som típico de uma era de lassidão e inquietude; transeuntes solitários e abatidos caminhando em meio ao ar carregado de poeira; cheiro de comida e outros cheiros inomináveis. Essa cidade não possui atrações arquitetônicas notáveis, nem prédios kitsch modernos4.

Em outras palavras, trata-se da área intermediária, genérica, onde a realidade cotidiana da China contemporânea se revela. Sem limites precisos ou distinções nítidas entre rural e urbano, industrial e agrário, alta e baixa cultura, xiancheng se tornou o lugar de encontro de toda espécie de forças e correntes, contemporâneas ou anacrônicas. As locações dos filmes de Jia tanto podem estar numa zona industrialmente superdesenvolvida - como as gigantescas minas de carvão estatais de Datong, que compõem o indistinto pano de fundo de Prazeres desconhecidos, sob a forma do esquálido alojamento operário onde o protagonista vive com a mãe -, quanto subdesenvolvida, apresentando aos espectadores o rudimentar setor de serviços que eclodiu por toda a parte na China durante os anos 1990: pequenos restaurantes e casas de chá, banhos públicos, salões de cabeleireiro, clubes de karaokê, salões de bilhar e bordéis. Os diferentes modos de produção e consumo que aparecem diante da câmera encontram no xiancheng não uma vitrine para suas realizações materiais ou seu apelo ideológico, mas seu túmulo.

Para os forçados a examinar de perto sua estrutura social, xiancheng é uma penosa lembrança dos fracassos e concessões da industrialização socialista, das reformas da era pós-socialista e mesmo da arremetida das forças de mercado, cujos efeitos brutais no campo e nas grandes cidades, como Pequim e Xangai, se mostraram paliativos quando confrontados com essa realidade opaca e irredutível. Mas os filmes de Jia não são nem condenações morais da desoladora pobreza material e espiritual do xiancheng, nem justificações nostálgicas de uma história pessoal que carrega suas marcas. Se há neles algum traço de sentimentalismo, é antes um resquício afetivo das lembranças do próprio Jia, perdidas no tempo e ora recuperadas mediante uma forma cinematográfica cuja aptidão para a rememoração proustiana reside precisamente na sua capacidade de registrar o presente.

Ao ser questionado se achava que seus filmes representavam a realidade chinesa, Jia respondeu que eles representavam uma das realidades da China, e que sua experiência de dez anos como cineasta lhe ensinara que a realidade de seu país parece cada vez mais multifacetada. Em vez de tentar apreendê-la na sua totalidade, ou "completude" [wanzhengxing], Jia procura "quebrar seu silêncio" e mostrar as "expressões faciais" desta "gigantesca entidade econômica" - não raro, tornando visível e audível aquilo que se encontrava obscurecido, abafado ou mesmo inteiramente esquecido5. Isso não implica assimilar sua prática cinematográfica a uma nova classe ou conjunto de agentes sociologicamente tipificados, tais como o "zé-povinho" [xiaorenwu], os "marginalizados" [bianyuan], o "grupo dos desfavorecidos" [ruoshi qunti] ou as "camadas subalternas" [diceng]. Mais propriamente, Jia se empenha em buscar uma perspectiva legítima que lhe permita apreender uma realidade que se subtrai à experiência ao mesmo tempo que retorna para assediá-la e sujeitá-la em um plano abstrato e mitológico.

Os filmes não se atêm, política ou esteticamente, a uma posição fixa; antes, seu efeito está ligado a uma mobilidade e uma reflexividade deliberadas - em termos de locações e assuntos, em relação aos discursos intelectuais e críticos prevalecentes e em face do Estado e do capital (sob a forma de investidores, distribuidores e censores). Não raro, a obra de Jia dá a impressão de ter sido dedicada aos excluídos e imobilizados pelas forças sociais, econômicas e ideológicas dominantes. No final de Xiaowu, por exemplo, vemos o homônimo batedor de carteiras algemado a um poste, como um vira-lata surpreendido pelos homens da carrocinha, devolvendo com expressão alheada os olhares dos transeuntes que se juntam à sua volta. No entanto, o que esse instantâneo memorável revela é precisamente a mobilidade de Xiaowu, como trabalhador migrante que sobrevive de pequenos furtos no xiancheng; mobilidade que as pessoas ignoram por conveniência e rejeitam sem hesitação, quando lhes parece necessário.

Xiaowu foi amplamente elogiado pelos críticos por sua "descoberta" do xiancheng, mas, em certo sentido, o verdadeiro ponto de partida da obra de Jia se situa em Plataforma, que retrata a vida dos "trabalhadores itinerantes" do setor cultural numa ambiência de xiancheng. Na verdade, Jia havia escrito o roteiro de Plataforma, em 1995, como um relato de sua Bildung - é seu único filme ambientado nos anos 1980 -, mas precisou esperar a conclusão de Xiaowu para começar a trabalhar nele. Embora a "trilogia da cidade natal" tivesse assegurado a Jia um lugar central no cinema chinês contemporâneo como o cineasta do xiancheng, cujas imagens e sensações definem de modo lapidar sua obra cinematográfica, posteriormente ele se sentiu compelido a superá-la, com O mundo. Mas, no fundo, o cenário desse filme é um xiancheng situado na capital do país, cidade de trabalhadores migrantes e idealização do mundo globalizado visto pela ótica do xiancheng. De fato, a suprema ironia do filme tem como alvo não o parque temático ao estilo Disney, mas Pequim, ou mesmo a própria China: um gigantesco xiancheng, cuja realidade concreta e contraditória coexiste com uma unidade virtual e ilusória.

UM IMPULSO DOCUMENTAL

Apesar de sua aparência modesta, é no xiancheng que estão sendo travadas as batalhas mais brutais de uma transformação histórica na China, de forma silenciosa e invisível. Para Jia, o que conferiu visibilidade às percepções do xiancheng foi a obra de demolição [chai], o que faz dele não somente um cenário ou pano de fundo cinematográfico, como também um evento em andamento que determina a estratégia visual de seu cinema. O impulso subjacente a esse consiste na vontade de documentar, realizada mediante o "retorno à cena" [huidao xianchang]. "Cena", aqui, não possui apenas o sentido explícito de cenas cotidianas de demolição e construção nos centros urbanos, bem como nas áreas adjacentes entre cidade e campo [chengxiang jiehebu], mas também alude às cenas de crime e violência dos anos 1990, cujas origens poderiam remontar a 1989 e aos protestos da praça Tiananmen. Nesse sentido, ao retornar à cena, o cineasta procura não somente recuperar memórias pessoais e coletivas perdidas, como também provar que o momento do trauma, não assimilado pela memória e pela consciência, constitui um evento em andamento que, ainda que insuportável, pode ser mais uma vez confrontado e apreendido mediante uma versão cinematográfica do "grau zero da escrita".

Ainda que a idade de Jia e sua formação numa cidadezinha de condado forneçam pistas biográficas para seu desejo de retornar à "cena", elas não podem ter proporcionado os meios formais e discursivos de que ele se serve para encetar a tarefa. Uma de suas fontes cruciais foi a concepção de documentário que afinava com a do movimento do Novo Documentário [xin jilupian yundong] e dele se alimentava. Embora tivesse alcançado projeção no início dos anos 1990, as origens do movimento remontam ao período transitório de liberdade intelectual vivido pela China entre a metade e o final da década de 1980, quando a "juventude educada" do país, em sua maioria poetas e pintores, desfrutou de liberdade para adotar estilos de vida e ideais que transcendiam a esfera do Estado e das instituições de mercado emergentes. Os primeiros documentaristas independentes foram os chamados "vagabundos sem destino", que se reuniam em alojamentos universitários e pensões modestas de províncias longínquas. Liulang Beijing: Zuihou de mengxiangzhe [Vagando por Pequim: os últimos sonhadores] (1990), de Wu Wenguang, foi um de seus primeiros manifestos. Mas essa utopia extrema foi rapidamente liquidada pela extensão do comércio e da tecnologia a praticamente todos os setores da sociedade chinesa nos anos 1990, o que fez os sonhadores sobreviventes voltarem sua atenção para as "camadas inferiores", a fim de elaborar uma vérité visual e perceptiva na contracorrente dos estereótipos vazios do burocratismo e do bombardeio insano da mídia publicitária. Nesse sentido, o movimento do Novo Documentário não era uma profissão de fé em um gênero ou formato, embora fosse ardorosamente defendido como o último baluarte da verdade, do pensamento e da crítica: como notou acertadamente Lü Xinyu, isso traía suas origens intelectuais na década de 19806.

Os cenários dos filmes de Jia se distinguem das locações marcadamente rurais ou radicalmente urbanas vistas com frequência nos filmes do Novo Documentário. No entanto, ele compartilha com os documentaristas independentes seu fervor pela redescoberta da realidade nas suas manifestações mais concretas e profanas, bem como sua propensão a "retornar à cena" e muitos de seus traços formais: ângulos e movimentos de câmera característicos do cinema documentário, tomadas longas, som direto e uso sistemático de entrevistas, recurso que Jia passou a privilegiar um tanto tardiamente, com Cidade 24. Por fim, os personagens dos filmes de Jia pertencem quase todos aos mesmos grupos e subgrupos sociais daqueles retratados nos documentários independentes: jovens desempregados e vagabundos das cidades, trabalhadores migrantes, artistas de rua, funcionários de empresas estatais demitidos. Na fase inicial de sua carreira, Jia se definiu como um "trabalhador migrante do cinema" [dianying mingong], postura refletida no posicionamento de câmera adotado por ele: sempre na altura dos olhos de seus personagens, mesmo estando de cócoras, como Xiaowu. Seguindo ou rodeando os personagens, a câmera ora se aproxima, ora recua, quando não permanece estática no meio deles, como um acessório de seu mundo cotidiano, na expectativa de passar desapercebida ou, melhor ainda, de ser aceita como testemunha. Isso instaura uma relação mais equilibrada entre quem olha e o que é olhado, os quais poderão estabelecer um pacto pelo "direito de discurso" diante de uma realidade fragmentada e multifacetada, de uma elite intelectual cada vez mais afeita ao kitsch e das implacáveis forças do Estado e do mercado.

Os filmes de Jia e os documentários independentes compartilham um mesmo veio contracultural. Contudo, se essa inclinação lhes permite uma visão privilegiada do terreno não mapeado pelo cinema dos anos 1980, existe também uma contrapartida, em termos de comunicação com o público. Certo isolamento autoimposto resulta da postura crítica e anticonformista de Jia, e isso, a par da crescente frustração com seu próprio meio e da distância que toma dele, confere a seus filmes um toque acentuado de estranhamento visual. A impressão de que são representações da vida operária que somente plateias cultas podem entender, se não lamentos pela demolição das cidades financiados pelos próprios demolidores - Cidade 24, por exemplo, foi financiado pelos próprios empreendedores imobiliários responsáveis pelo projeto documentado no filme -, são ironias que não escapam nem mesmo aos defensores de Jia.

MUNDOS DIGITAIS

Outro recurso fundamental para o desenvolvimento da obra de Jia foi a nova tecnologia das câmeras digitais, ou DV. Baratas e fáceis de manejar, elas são uma alternativa liberadora ao aluguel de câmeras cinematográficas profissionais, tendo possibilitado um grau sem precedentes de popularização da tecnologia visual - e, em consequência, a multiplicação de enfoques, ângulos e expressividade individuais. Wu Wenguang afirma ter sido "resgatado [zhengqiu] pelo vídeo digital", acrescentando que, "a partir de 1998, ele me conduziu a um espírito de total liberdade; melhor dizendo, talvez, explorei suas possibilidades a tal ponto, que posso fazer qualquer coisa que minha mente ou meu coração ditarem"7.

O primeiro filme rodado por Jia em vídeo digital foi um documentário de meia hora chamado Gonggong Changsuo [Em público], de 2001. Ele descreve a experiência em termos semelhantes aos de Wu: "Filmei tudo o que via pela frente, sem preparação, totalmente solto. Parecia uma aventura, um passeio sem roteiro". Filmando em Datong, empedernido centro industrial às margens do deserto de Gobi, Jia registrou "todo tipo de espaço: a estação de trens, a rodoviária, salas de espera, salões de baile, de karaokê e de bilhar, um rinque de patinação, casas de chá"8. A escolha de Datong como locação se deveu a um boato que circulava na época, segundo o qual toda a população da cidade seria removida para o Xinjiang e trabalhar na extração de petróleo, pois as jazidas de carvão estavam se esgotando. Jia foi atraído pela ideia de que "todo o mundo, em Datong, queria aproveitar seus dias para se divertir", às vésperas de uma tremenda convulsão social.

Embora esse deslocamento maciço não tenha ocorrido, a mesma atmosfera de desejos frustrados e existência precária à margem das transformações em curso no país domina seu filme seguinte, Prazeres desconhecidos, também ambientado em Datong e inteiramente filmado em vídeo. Considerado o "mais raivoso dos filmes de Jia", uma fúria mal contida o permeia, enraizada nas limitações estruturais da vida no xiancheng e nos projetos de vida fracassados dos personagens. Contudo, teria sido difícil recriar a sufocante atmosfera de repressão, humilhação e falta de horizontes que desfilam na tela, não fosse o senso de liberdade proporcionado pelo vídeo. Arrastada, fragmentada e obscura, por vezes beirando a incongruência, a narrativa visual de Prazeres desconhecidos parece ter sido tramada por um intruso em um mundo imaginário que não tem receio de ser surpreendido.

O vídeo digital se revelou um instrumento adequado não apenas para captar em imagens a realidade bruta de Datong, para satisfação de Jia, mas também ideal para "filmar coisas abstratas", tal como explica:

A maioria das pessoas parece se deslocar segundo uma ordem predeterminada, como se caminhassem ao longo de um rio. Mas a vantagem do vídeo digital é que ele permite intervir na cena e ao mesmo tempo guardar uma distância objetiva; permite captar o ritmo e a pulsação de um movimento que se insinua, observá-lo detidamente, acompanhá-lo e ao mesmo tempo realizar uma observação racional... Isso me permitiu acrescentar uma camada surrealista sobre a base super-realista de meu trabalho anterior. Com a câmera digital, me sentia mais um ensaísta do que um cineasta9.

As observações de Jia sobre concretude e abstração, envolvimento emocional e reflexão "racional" são importantes, visto que a ambição estética e política de seus filmes, bem como os do Novo Documentário, é precisamente forjar uma nova aliança entre objetividade e pensamento, esferas violentamente cindidas pela transformação radical da sociedade chinesa. Não seria exagero afirmar que o vídeo digital permitiu à nova geração de cineastas dissecar o organismo da vida social e vagar por entre seus órgãos internos. Walter Benjamin atribuiu essa capacidade ao cinema, ao compará-lo com a pintura; uma comparação que nos permite apreciar as implicações revolucionárias dessa nova tecnologia10. Como o vídeo digital permite esquadrinhar a realidade em seus mínimos componentes concretos, o ensaísta cinematográfico pode segurar a câmera com uma das mãos e com a outra, por assim dizer, anotar aquilo que vê e pensa, mantendo uma distância e uma autonomia crítica decisivas, sem ser tolhido pela parafernália do equipamento de filmagem convencional.

Instaura-se assim um espaço mais prosaico - no sentido hegeliano de "mundo da prosa" - entre a iminência material e o socialmente dado, por um lado, e sua negação na consciência reflexiva, por outro. É aí que uma estética rudimentar, com formas fragmentárias e mutantes, se configura, a par das experiências históricas e humanas que seu olhar ativa e capta. Eis por que os rudes contornos de Datong, com sua energia e inquietude, suas multidões sem rosto e a rebeldia de sua juventude, excitaram vivamente Jia. Se o título chinês do filme, Ren Xiao Yao, sugere uma espécie de indomável liberdade taoísta - numa referência explícita à poesia e à filosofia de Zhuangzi -, a excitação bem pode ter derivado da tecnologia digital recém-desenvolvida e da incipiente promessa que ela encerra, de que uma vitória cognitiva pode ser arrancada a uma sonambúlica dérive pelo território da indiferença e da reificação.

DESAPARIÇÕES

Enquanto os filmes da Quinta Geração, como espécimes do período heroico ou mitológico do cinema chinês, se centravam na emergência e no vir-a-ser, os filmes de Jia retornam insistentemente ao tema da desaparição. Em suas próprias palavras: "Coisas belas estão desaparecendo rapidamente de nossas vidas"11. Em Cidade 24, uma comunidade inteira desaparece com a Fábrica 420, uma gigantesca indústria de armamentos implantada em 1958, no auge do Grande Salto Adiante, com 30 mil empregados. No filme Em busca da vida, é a antiga cidade de Fengjie que está condenada a desaparecer, e com ela o mito das Três Gargantas como referência cultural coletiva, representado por formas que vão da poesia clássica à moeda chinesa. Camadas e subgrupos sociais também se extinguem, como os animadores culturais socialistas de Plataforma; sua sorte é simbolizada pelo líder da trupe, interpretado pelo poeta pequinês Xi Chuan, que simplesmente desaparece de vista após a "privatização" da companhia. Em outros casos, é algo mais intangível que está em vias de desaparecer: o idealismo, os sonhos, o sentimento de segurança e pertença, o sentido de finalidade, "princípios ou normas" [zhunze]. Se o cinema dos anos 1980 almejava estabelecer normas, então Jia pode ser visto como um poeta-cineasta da demolição das normas, da impossibilidade de manter qualquer coisa intacta e da violência silenciosa entranhada numa população abandonada à própria sorte.

Não obstante tudo o que está desaparecendo diante de nossos olhos, nada é tão alarmante quanto o esquecimento da cidade natal. Xiaowu ainda possui uma casa na aldeia, a que pode retornar, e, embora tenham sido os trabalhos de demolição em Fenyang que animaram Jia a documentar o mundo de sua cidade natal, as ruas mostradas em Plataforma - com suas bicicletas, tratores e esquálidos sobrados - ainda parecem movimentadas e cheias de gente, como as de qualquer cidade onde as pessoas estão entregues aos seus afazeres cotidianos. Em Prazeres desconhecidos, no entanto, os alojamentos dos trabalhadores socialistas e outros espaços públicos dão a impressão de um anacrônico e fantasmagórico isolamento; amplos espaços abertos surgiram, não raro sob a forma de bairros arrasados, canteiros de obra empoeirados, largas e reluzentes rodovias. Em Plataforma, os processos mais amplos em jogo - desintegração da organização socialista do trabalho, privatização da propriedade coletiva e marketing agressivo - ainda estavam contidos na esfera individual do "crescimento" e da "experiência"; rapidamente, no entanto, eles romperam o arcabouço fenomenológico desse Bildungsroman dos anos 1980, exigindo um enfoque mais concreto e histórico. Contudo, é só com a implacável eficiência administrativa que determinou a demolição e a relocação de cidades inteiras, em Cidade 24 e Em busca da vida - e a criação de um "mundo" inteiramente fantasmagórico em O mundo -, que a consciência individual e coletiva alcança em toda sua dimensão o real significado do desaparecimento da cidade natal.

NATUREZAS MORTAS

O título original de Em busca da vida em chinês é Sanxia haoren, que significa "a boa gente das Três Gargantas". Sua curiosa tradução para o inglês [Still Life, ou "natureza morta"] sugere a interpretação literária que o próprio Jia fez de seu filme:

Um dia, me encontrei casualmente num quarto desabitado e vi os objetos pessoais do antigo inquilino sobre uma escrivaninha cobertos de pó. De repente, o segredo da natureza-morta se revelou para mim. Aquele cômodo permanecera intacto por anos a fio; tudo estava coberto de pó; uma garrafa de vinho vazia perto da janela, os enfeites nas paredes - subitamente, tudo assumiu um ar de melancolia poética. A natureza-morta representa uma realidade negligenciada por nós. Embora preserve as marcas profundas do tempo, ela permanece em silêncio e, desse modo, guarda o segredo da vida12.

O filme se inicia com a viagem do trabalhador migrante Han Sanming à região das Três Gargantas - na época, local de construção da maior usina hidroelétrica do mundo -, em busca de sua mulher. A câmera penetra no cenário como um estranho num quarto vazio, recém-desocupado por seus inquilinos. Fengjie, uma cidade de 2 mil anos, nos é apresentada no momento de sua desaparição: desmantelada, dinamitada e arrasada, em meio a nuvens de poeira e um barulho ensurdecedor. Enquanto mais de um milhão de moradores são obrigados a deixar suas casas, a câmera divaga de um lado para outro, como se procurasse sinais de vida num sítio arqueológico - mas um sítio em que é o nosso próprio mundo da vida que é desenterrado. O caractere chai - "a demolir" - é visível por toda a parte, pintado em vermelho nos muros, ao lado das marcas indicadoras do futuro nível das águas. Isso serve como um reiterado e melancólico aviso, um pedido de socorro transmitido da cena de desastre social que se desenrola inexoravelmente, e que só pode ser medida numa escala natural-histórica (Chernobyl nos vem à lembrança, ominosamente).

O lastro documental dos primeiros filmes de Jia é enfim realçado no seu longa-metragem mais recente, Cidade 24, no qual a melancolia que permeava Em busca da vida dá lugar à fala e à escuta sinceras. Aqui, o tema da "natureza-morta" é a Fábrica 420 em Chengdu, cujas instalações foram vendidas a um empreendedor imobiliário em 2008 e demolidas para a construção de condomínios residenciais de luxo (a fábrica seria relocada na periferia da cidade). "O socialismo chinês acabou, como experimento no plano econômico", conclui Jia; e acrescenta: "no filme, trato da memória desse experimento, e de como as experiências e o modo de vida dos trabalhadores foram afetados por esse sistema"13. Com base em mais de 130 entrevistas com 420 empregados e aposentados da fábrica, Cidade 24 acaba sendo mais "ficcional" do que a maioria dos outros filmes de Jia, na medida em que uma história institucional coletiva se cristaliza sobretudo em torno dos depoimentos de três trabalhadoras, duas delas interpretadas por atrizes famosas, Joan Chen e Lü Liping, e a terceira por Zhao Tao, que trabalhou em todos os filmes de Jia desde Plataforma.

Essa "concentração ficcional", que pareceu necessária ao cineasta, produz certo efeito de estranhamento; mas desempenha sobretudo a função de voice-over discursivo, que ancora e centra o olhar documentário da câmera, o qual procura mixar dois rolos de imagens de "natureza-morta", extraídas de dois setores da sociedade chinesa contemporânea. Primeiro, o das instituições amparadas pelo Estado, logo destinadas a cair em completo esquecimento, como salões de reunião, ônibus, recintos de fábrica e as áreas comuns dos conjuntos residenciais comunais; segundo, a esfera da vida cotidiana privada, como salas de estar, cozinhas e objetos de uso pessoal. O que o filme apresenta não é tanto uma coleção de naturezas-mortas do passado recalcado e do presente em vias de desaparecimento, mas sim diversas passagens audiovisuais e discursivas que ligam a superfície tumultuosa das cidades chinesas contemporâneas ao mundo subterrâneo e obscuro das "histórias pessoais".

O fascínio pela natureza-morta, nesse sentido específico, também se liga ao impulso de registrar "os trabalhadores indo e vindo diante da câmera", nas palavras de Jia14. É sua homenagem àqueles que levam uma existência tão silenciosa quanto uma natureza-morta. A migração compulsória da força de trabalho em Em busca da vida, bem como a irrequieta mobilidade dos personagens de O mundo, todos em trânsito de pequenas para grandes cidades, da Ucrânia para Pequim, ou de Pequim para Ulan Bator -, denotam a primitiva obsessão de Jia com a imobilidade, com aqueles que se acham imobilizados nos municípios e cidades provinciais que marcaram seus anos de formação. Num texto de 2006, ele relata uma viagem imprevista que fez a Datong, sob o impulso do momento, para rever velhos amigos:

Cheguei por volta da meia-noite, tomei um táxi e fui direto para um pequeno restaurante... Tal como esperava, todos os meus amigos chegados estavam ali, pois não tinham outro lugar aonde ir. Eles se reuniam diariamente nesse restaurante para matar o tempo, bebendo e jogando. Nunca precisavam marcar encontro para se verem.

Não tendo outro lugar aonde ir, Jia e seus amigos de Shanxi resolvem visitar as salas de cinema abandonadas do distrito das minas de carvão. Ele depara com salas escuras e vazias, algumas delas já transformadas em depósitos, e suas descrições se leem como notas de filmagem ou trechos de um roteiro:

Como uma turma de vagabundos, seguimos em frente à procura de sinais das antigas salas de cinema e clubes operários, e os encontramos ainda de pé, em meio às tempestades de areia do deserto de Gobi. Algumas exibiam janelas despedaçadas, como feridas abertas, outras simplesmente se deixavam estar em silêncio, como se ainda descrentes do acontecido. Então, me ocorreu com espanto que os rostos dos chineses contemporâneos nunca foram fielmente retratados pelos filmes de mais ou menos uma década para cá, suas alegrias e tristezas, o drama de suas vidas, reduzidos à insignificância. Ninguém se preocupava com aqueles que viviam nos alojamentos operários das imediações, com suas almas e necessidades espirituais15.

O que anima o cinema de Jia no sentido mais pessoal, privado e, não obstante, mais engajado social e politicamente, talvez seja isto: o desejo de documentar, representar, evocar e homenagear, seja como contemporâneo ou retardatário, o evanescente, o imóvel e o silencioso. Trata-se de uma missão de resgate com gume crítico. Como intelectual participante, Jia pode definir seu projeto como "uma tentativa de compreender o estado de coisas moral de nosso país" [mingbai minzu de jingshen xianzhuang], mas Jia Zhangke, o cineasta-poeta como indivíduo, dedica sua obra aos "irmãos prestes a repetir a mesma rotina de comer e beber, de suportar a mesma solidão e o mesmo vazio"16.

A natureza-morta, como noção emprestada da pintura, abre possibilidades para o cinema de Jia, seja como poética da desaparição ou documentário de resgate. Ela oferece, primeiramente, uma categoria epistemológica e uma estrutura operacional básicas para sustar um acelerado e impiedoso processo de mudança, e reconfigurar seus fragmentos dispersos numa sequência de perdurável clareza visual. Aquilo que desaparece diante de nossos olhos, no interior do fotograma, torna-se a substância concreta "daquilo que foi", constituindo negativamente uma fenomenologia da vacuidade. A redução e a suspensão da História sob a forma de natureza-morta não é um mero artifício que torna acessíveis coisas demasiado grandes para a experiência e a percepção humanas, tornando-as mais fáceis de manejar. Pois a quietude assim alcançada se torna um ponto focal para onde convergem todas as imagens, sons e histórias. Enquanto ouve os barulhos de demolição em Em busca da vida, na sua aflitiva monotonia, o espectador se abre para todo tipo de sons e luzes, músicas e linguagens - daí, talvez, a inserção aparentemente inexplicável da gaiata sequência de animação que mostra uma espaçonave riscando os céus. Essa abertura pode servir como uma sugestão útil, um trampolim para uma nova crônica da experiência coletiva.

A poética da desaparição, em Jia, se concretiza mediante o registro do presente da China, no qual se desenrola uma agônica batalha na última fronteira do capitalismo global. De Fenyang a Pequim, e de volta aos "cenários e cenas" desse silencioso conflito, seus filmes ultrapassaram os limites da cidade natal, ao mesmo tempo que buscam uma definição de cidade natal não apenas pessoal, como também prenhe de significado político. Pois assim como o xiancheng vem a ser a China em escala doméstica, a China vem a ser um xiancheng em escala histórico-mundial. O que está em jogo é nada mais nada menos do que o significado da existência social coletiva, para a qual a cidade natal não é a última linha de defesa, mas o locus mais imediato, por meio do qual outras aspirações, social e politicamente mais concretas, se exprimem.

Em busca da vida termina com os trabalhadores migrantes deixando Fenyang com destinação não especificada, em busca de trabalho e meios de subsistência. Atrás deles, entre dois prédios condenados, um homem se equilibra na corda bamba, contra o fundo de um céu sombrio. Observar o que está presente nos filmes de Jia Zhangke é indagar aonde vão seus personagens e que espécie de futuro podem almejar: como diz a letra da canção ouvida no final de Cidade 24, "Weilai zai nali" [Onde está o futuro?]. Por mais incerta que seja a resposta, algo está fora de dúvida: eles não podem ficar - e não ficarão - parados.

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[2] Entrevista ao semanário Nanfang Renwu zhoukan [Semanário do Povo Sulino], n° 10, 2009, p. 66.
3
[3] Jia menciona Ladrão de Bicicleta, de De Sica, como um de seus filmes preferidos. Ver Xudong, Lin e outros (orgs.). Jia Zhangke Dianying [O cinema de Jia Zhangke]. Pequim: Zhongguo Mangwen Chubanshe, 2003, pp. 114-15.
4
[4] Xiaodong, Wang. "Lun Jia Zhangke dianying zhong de guxiang" [A cidade natal nos filmes de Jia Zhangke]. Dianying wenxue [Escritos sobre cinema], nº 5, 2009, p. 72.
[6] Xinyu, Lü. "Cong Bi An Kaishi: Xin Jilu Yundong zai Zhongguo" [Partindo da outra margem: o movimento do Novo Documentário na China], Tianya [Fronteiras], nº 3, 2002, p. 68.
[7] Citado em Yanping, Ruan. "DV meijie duo chuangzuo xintai yingxiang zhi yanjiu" [Estudo do impacto do vídeo digital sobre a postura dos cineastas], em Dianying wenxue, nº 17, 2008, p. 23.
[10] Walter Benjamin, "The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction" , em Illuminations Nova York: Harcourt, Brace & World, 1968, pp. 226-7.
[Ed. bras. "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", em Magia e técnica, arte e política São Paulo, Brasiliense, 1996.
[11] Zhangke, Jia. Jia Xiang [Reflexões de Jia], Pequim: Beijing University Press, 2009, p. 25
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