23 de março de 2013

Problema nas contas é sintoma da fragilização da indústria

Pedro Rossi, Bruno de Conti, André Biancarelli


A piora nos dados do balanço de pagamentos neste início de 2013 merece ser analisada com atenção.

Certamente o aumento no deficit em transações correntes acende um sinal de alerta, mas de um modo diferente daquele mais comum na história do Brasil.

Em vários episódios o desenvolvimento esbarrou na restrição externa e foi interrompido por uma crise no balanço de pagamentos.

Não é essa a principal preocupação na atual conjuntura econômica e são diversos os fatores que apontam nessa direção.

Em primeiro lugar, o estoque de reservas internacionais, hoje em torno de R$ 377 bilhões, seria suficiente para sustentar mais de 50 meses de deficit em transações correntes como o de fevereiro.

Do ponto de vista dos fluxos, as perspectivas de receitas futuras com as exportações líquidas do pré-sal e a abundância e a estabilidade dos investimentos diretos estrangeiros também contribuem para que a restrição externa não esteja na pauta das preocupações emergenciais.

Do ponto de vista do financiamento externo, a situação da economia brasileira segue confortável.

Entretanto, os recordes negativos das contas-correntes apontam para problemas inerentes ao atual modelo de desenvolvimento brasileiro e que merecem ser destacados.
Em particular, a luz amarela se acende quando o foco recai sobre a evolução da balança comercial.

Os resultados verificados, por outro lado, são reflexo do crescimento da concorrência internacional por mercados de exportação e do posicionamento brasileiro nesse cenário.

Além do impacto evidente sobre a demanda internacional, a crise em curso faz com que a maioria dos países centrais procure ajustar suas contas de transações correntes e é inevitável que esse ajuste recaia sobre as nações emergentes.

Enquanto alguns emergentes --notadamente a China-- mantêm um crescimento robusto e redirecionam seus superavit comerciais para outras regiões, nosso país paga o preço de uma baixa competitividade industrial.

Nesses termos, o aumento do deficit brasileiro nos últimos anos é um sintoma da fragilização do setor produtivo brasileiro e, em especial, do setor industrial.

Portanto, os problemas externos da economia brasileira se apresentam mais como um desafio de longo do que de curto prazo.

Medidas favoráveis ao aumento da competitividade industrial brasileira --câmbio, desonerações etc.-- já foram tomadas e seus efeitos não são imediatos.

Se o fantasma da crise externa assusta menos que em outras conjunturas, o da regressão estrutural continua na agenda de preocupações.

Sobre os autores

Pedro Rossi, Bruno de Conti, André Biancarelli são professores do Instituto de Economia da Unicamp

6 de março de 2013

E.P. Thompson: O historiador não-convencional

A Formação da Classe Operária Inglesa completa 50 anos, mas ainda é amplamente reverenciada como uma obra canônica de história social.

Emma Griffin


E.P. Thompson ... figura de proa intelectual. Fotografia: John Hodder

Cinquenta anos atrás, um historiador obscuro que trabalhava na Universidade de Leeds enviou um manuscrito, atrasado e excessivamente longo, a Victor Gollancz Ltd., uma editora especializada em temas de não-ficção socialista e internacionalista. Ninguém poderia ter previsto a recepção do livro. A Formação da Classe Operária Inglesa de E.P. Thompson se converteu em um sucesso comercial e de crítica. A demanda pelo texto de 800 páginas não foi senão surpreendente. Em 1968, Pelican Books comprou os direitos de A Formação da Classe Operária Inglesa e o publicou em uma versão revista como o livro número 1.000 de seu catálogo. Em menos de uma década seriam feitas cinco reimpressões. Cinquenta anos depois, ainda está sendo impresso e amplamente reverenciado como um trabalho canônico história social.

Não era o primeiro livro de Thompson. Uma história de William Morris havia aparecido em 1955, mas havia recebido a mesma indiferença que conhecem muitas das monografias acadêmicas. Após a A Formação... veio Senhores e Caçadores, um livro sobre a Lei Negra, a conhecida legislação que criminalizava não apenas o assassinato dos cervos, mas toda atividade suspeita que levasse a pensar que houvesse a intenção de matá-los. A este se seguiu uma série de variados ensaios sobre temas diversos, que incluem o tempo e o capitalismo industrial, as revoltas por fome, e a venda de esposas (sim, no século XVIII os homens levavam suas esposas ao mercado para vendê-las). Thompson mostrou-se capaz de abordar novos temas e revisitar antigos com novas aproximações, desenvolvendo um corpo de estudos original e muito influente.

Thompson estava longe de ser um historiador convencional. Seus anos em Leed não só foram dedicados ao departamento de história, mas à educação de adultos. Sua nomeação para a recém-criada Universidade de Warwick foi breve: demitiu-se após seis anos, cansado pelo giro comercial que a instituição tinha tomado. Sempre um homem de letras, sua demissão foi acompanhada por um extenso panfleto afirmando suas objecções intelectuais. O resto de sua vida foi dedicada a um amplo grupo de causas políticas. Thompson foi um membro ativo do partido comunista nos anos 1940 e 1950 e fundador do grupo de historiadores do partido comunista em 1946. Ele também fez parte do êxodo em massa que se seguiu a invasão de Stalin à Hungria, mas manteve-se perto de um amplo grupo de movimentos de esquerda. No final da década de 1970 Thompson foi uma figura-chave como incansável organizador e figura intelectual pública no nascente movimento anti-guerra, uma causa à qual permaneceu ligado até sua morte em 1993. Foi uma vida de ativismo e dedicação ao mundo acadêmico.

Mas, acima de tudo, permanece A Formação da Classe Operária Inglesa, com seu prefácio tão memorável declarando a intenção do livro de "resgatar o pobre estofado, o lavrador ludita, o tecelão obsoleto, o artesão "utópico" e até o iludido seguidor de Joanna Southcott, da enorme condescendência da posteridade". O status mítico do livro não deve nos distrair da originalidade crua da obra. Em 1963, tecelões e artesãos não eram o material de livros de história. Historiadores sociais pioneiros vêm estudando as pessoas trabalhadoras desde o início do século XX, mas o foco permanece diretamente no tangível, mensurável, "significativo" - salários, condições de vida, sindicatos, greves, cartistas. Thompson tocou nos sindicatos e no salário real, é claro, mas a maior parte de seu livro foi dedicada a algo que ele chamou de "experiência". Por meio de um paciente e extenso exame de arquivos locais e nacionais, Thompson descobriu detalhes sobre costumes e rituais de oficinas, conspirações falhadas, cartas ameaçadoras, canções populares e cartões de clube de sindicatos. Ele tomou o que os outros tinham considerado como restos do arquivo e os interrogou para saber o que eles nos dizem sobre as crenças e objetivos daqueles que não estavam no lado vencedor. Aqui, então, era um livro que divagava sobre aspectos da experiência humana que nunca antes tiveram seu historiador. E o momento de sua aparição poderia dificilmente ter sido mais afortunado. A década de 1960 viu uma turbulência sem precedentes e uma expansão no setor universitário, com a criação de novas universidades cheias de palestrantes e estudantes cujas famílias não tinham tradicionalmente acesso ao mundo privilegiado do ensino superior. Não é de admirar, então, que tantos sentiam uma afinidade natural com os outsiders e underdogs de Thompson.

E havia algo mais. A longo de A Formação da Classe Operária Inglesa havia uma raiva abrasadora contra a exploração econômica e um comentário robusto sobre o capitalismo daquele tempo. Thompson rejeitou a noção de que o capitalismo era inerentemente superior ao modelo alternativo de organização econômica que substituiu. Recusava-se a aceitar que os artesãos se tornaram obsoletos, ou que sua angústia era um ajuste doloroso, mas necessário, à economia de mercado. Foi um argumento que ecoou amplamente na década de 1960, quando os intelectuais marxistas ainda podiam acreditar que existia uma alternativa realista ao capitalismo, ainda poderia argumentar que o "verdadeiro" marxismo não tinha sido experimentado corretamente

Aparecendo no apogeu da erudição marxista, o quadro político de A formação da classe trabalhadora estava no cerne do sucesso do livro. Talvez sua maior conquista, no entanto, seja como ela conseguiu enfrentar a queda subseqüente do marxismo da graça acadêmica. Na década de 1980, a história marxista já não ocupava um lugar significativo nos departamentos de história acadêmica. Ele tem estado na defensiva desde então. Examinando o discurso literário entre Thompson e o filósofo polonês, Leszek Kołakowski - que, após anos de comunismo, tinha tido a temeridade de abandonar o estandarte marxista - Tony Judt observou: "Ninguém que o leia tomará o EP Thompson a sério." E ainda assim levamos Thompson a sério. Mais do que qualquer um de seus livros, A formação da classe trabalhadora continua a deliciar e inspirar novos leitores. Naturalmente, a motivação acadêmica de Thompson era parcial e impulsionada por sua política. Mas a originalidade, o vigor e a iconoclastia de seu livro asseguram que ele resistirá.

3 de março de 2013

A ilusão da austeridade

Por que uma má ideia conquistou o Ocidente

Mark Blyth


"Algo mais terá que ser cortado": graffiti em Sevilha, Espanha, novembro de 2012. Reuters / Marcelo Del Pozo

Tradução / Incapaz de agir de forma construtiva e no sentido de um fim em comum, o Congresso dos EUA recentemente decidiu começar a jogar o jogo do frango com a economia americana. O descalabro da discussão à volta do teto da dívida abriu o caminho para o abismo “fiscal”, que se transformou em cortes lineares nos gastos militares e cortes discricionários na despesa conhecidos como o “sequestro”. Aconteça o que acontecer em seguida no campo dos impostos, é provável que venha a haver mais cortes na despesa pública. E, portanto, estamos com uma forma modificada da austeridade que tem caracterizado a formulação de políticas na Europa desde 2010 e está agora a ser aplicada nos Estados Unidos também; as perguntas que se levantam são a de qual vai o sucesso de tudo isto e a de quem é que irá pagar a fatura, ou seja, quem é que vai suportar o peso de tudo isto. O que faz tudo tão absurdo é o fato de que o exemplo europeu demonstrou uma vez mais, porque é que aderir ao clube da austeridade é exatamente a atitude errada para uma economia que está em dificuldades para conseguir sair da crise.

Os países da zona euro, o Reino Unido e os Estados bálticos, ofereceram-se como voluntários para uma grande experiência em que se pretende saber se é possível, para um país economicamente em situação de estagnação, traçar o seu caminho para a prosperidade. A austeridade – a deflação deliberada de salários nacionais e dos preços através de fortes cortes nas despesas públicas – foi projetada para reduzir a situação de endividamento dos Estados devedores assim como dos seus défices, para aumentar a sua competitividade e para restaurar o que é vagamente referido como a “confiança empresarial”. O último ponto é fundamental: os defensores da austeridade acreditam que cortar nas despesas públicas estimula o investimento privado, desde que isso signifique que o governo nem vai gerar nenhum efeito de evicção do mercado de investimento com os seus próprios esforços para estimular a economia, nem vai estar a aumentar a sua carga de dívida. Consumidores e produtores, o argumento é assim mesmo, estes agentes ir-se-ão sentir, ambos os grupos, confiantes quanto ao seu futuro e vão gastar mais, permitindo-se assim que a economia volte novamente a crescer.

Em consonância com tal linha de pensamento e na sequência do choque da recente crise financeira, que provocou um crescimento rápido da dívida pública, uma grande parte da Europa tem andado a aplicar as políticas de austeridade de forma consistente durante os últimos quatro anos. Os resultados desta política encontram-se bem visíveis e são igualmente consistentes: a austeridade não funcionou, não funciona. A maioria das economias da periferia da zona euro está em queda livre desde 2009 e no quarto trimestre de 2012, a zona euro como um todo contraiu-se pela primeira vez. A economia de Portugal recuou 1,8%, a de Itália caiu 0,9 por cento e até mesmo a suposta grande potência da região, a Alemanha, viu a sua economia contrair-se 0,6 por cento. O Reino Unido, apesar de não estar na zona do euro, só à justa escapou de ser considerada a economia de um país do mundo desenvolvido com uma recessão em triplo V.

A única surpresa é que isso deve parecer estar a acontecer como sendo uma verdadeira surpresa. Afinal, o Fundo Monetário Internacional advertiu em Julho de 2012 que cortes simultâneos nas despesas públicas em economias interligadas durante uma recessão, quando as taxas de juros já estão muito baixas, poderão inevitavelmente vir a prejudicar as perspectivas de crescimento. E esse aviso foi publicado quando já era ampla a evidência de que todos os países que tinham abraçado a austeridade como a política escolhida, tinham elevado significativamente o seu valor da dívida relativamente aos valores de partida. A relação dívida pública/ PIB de Portugal aumentou de 62 por cento em 2006 para 108%, em 2012. A mesma relação para a Irlanda em que esta mais do que quadruplicou, de 24,8% em 2007 para 106,4% em 2012. O rácio de dívida-PIB na Grécia subiu de 106% em 2007 para 170 por cento em 2012. E a dívida da Letônia passou de 10,7 por cento do PIB em 2007 para 42 por cento em 2012. Nenhuma destas estatísticas começou a contabilizar os custos sociais da austeridade, que incluem os elevados níveis de desemprego nunca vistos desde a década de 1930, nos países que agora compõem a zona euro. Então porque é que a administração pública de cada um dos países da zona euro, e não só da zona euro como é o caso da Inglaterra, se mantêm nesta trajetória, nesta espiral recessiva?

A austeridade tornou-se e continua a ser a resposta de referência a adotar contra o incumprimento, no quadro da atual crise financeira na zona euro quer por razões de ordem material, quer por razões de ordem ideológica. Materialmente, isto é assim porque há muito poucas opções de política econômica que esteja facilmente disponíveis. Ao contrário dos Estados Unidos, que foi capaz de resgatar os seus bancos em 2008 porque tinha Tesouro federal e tinha um Banco Central que pode facilmente aceitar qualquer tipo de garantia que quisesse, enquanto a UE tinha que estar a sustentar a própria falência do seu sistema bancário (que era três vezes maior e duas vezes mais alavancado que o sistema bancário dos EUA), com apenas um pouco mais de liquidez adicional, com cortes na despesa pública, e encantada com o seu “compromisso inabalável” para com o euro. O sistema bancário dos EUA tem espalhado a sua dívida e este tem-se recapitalizado, estando agora pronto para o crescimento econômico. A UE, dada a sua composição institucional, não ainda foi capaz de iniciar esse processo. Como resultado, as economias da zona euro continuam a contrair-se, apesar da promessa cada vez mais duvidosa de que a confiança está a regressar.

Ideologicamente, é o apelo intuitivo da ideia de austeridade — a de não gastar mais do que o que se tem – que realmente tem enfeitiçado a Europa . Compreender como é que a austeridade passou a ser a política de referência no pensamento econômico liberal quando os Estados têm problemas pode revelar porque é que esta ideia da austeridade aparece como sendo tão sedutora e, ao mesmo tempo, tão perigosa.

A Bíblia

A austeridade é uma ideia sedutora devido à simplicidade da sua exigência central – que ninguém se pode curar da dívida fazendo ainda mais dívida. Isto é verdadeiro e tanto quanto acontece, mas não nos leva suficientemente longe. Três fatores menos óbvios minam o argumento simples de que os países que estão na zona a vermelho precisam de parar de gastar. O primeiro fator tem a ver com a distribuição, uma vez que os efeitos de austeridade se fazem sentir diferentemente consoante os diferentes níveis da sociedade. Aqueles que estão na parte inferior da distribuição de rendimento, esses perdem proporcionalmente mais do que aqueles que estão no topo, porque dependem muito mais dos serviços públicos e têm muito pouco patrimônio para se protegerem dos azares provocados com a crise. Os 400 americanos mais ricos possuem mais ativos do que os 150 milhões mais pobres; os 15 por cento de mais baixos rendimentos, cerca de 46 milhões de pessoas, vivem em agregados familiares que ganham menos de US $22.050 por ano. Tentar fazer com que as faixas de mais baixos rendimentos paguem o preço da austeridade através de cortes nos gastos públicos é simultaneamente uma atitude de crueldade e é um objetivo matematicamente difícil. Aqueles que podem pagar os efeitos da austeridade não os pagam enquanto que àqueles que não os podem pagar é-lhes exigido que o façam.

O segundo fator é uma questão de composição; nem todos países poderão em simultâneo entrar numa situação de poder aplicar as políticas de forte austeridade. Para colocar isso em contexto europeu, embora faça sentido para qualquer um Estado reduzir a sua dívida, se todos os Estados da união monetária, que são os principais parceiros comerciais uns dos outros, cortar seus gastos, simultaneamente, o resultado só pode ser uma contração da economia regional como um todo. Os defensores da austeridade são cegos face a este perigo porque consideram que a relação entre poupança e despesa é inversa. Eles pensam que a frugalidade pública pode eventualmente promover a despesa privada. Mas alguém tem que gastar para alguém poder estar a aforrar, ou então o aforrador não terá nenhum rendimento que a justifique, nenhum rendimento de que ela seja o resultado. Da mesma forma, para um país beneficiar de uma redução dos seus salários nacionais, tornando-se então mais competitivo em termos de custos, deve haver outro país disposto a gastar o seu dinheiro com o que produz o primeiro país e que não consumiu devido à baixa salarial. Se todos os Estados tentam cortar ou aforrar em simultâneo, como é o caso da zona euro hoje, então a ninguém será permitido fazer a despesa necessária para assegurar o crescimento.

O terceiro fator é uma questão de lógica; a noção de que reduzindo as despesas públicas se aumenta assim a confiança dos investidores não resiste a um exame minucioso. Como o economista Paul Krugman e outros têm argumentado, esta ideia assume que os consumidores antecipam e incorporam todas as mudanças de política do governo nos seus cálculos de orçamento ao longo da vida. Quando o governo assinala que projeta cortar drasticamente na despesa pública, o argumento diz-nos, que os consumidores percebem que os seus encargos em impostos futuros irão diminuir. Isso leva-os a gastar mais hoje do que o fariam se não houvesse os cortes na despesa pública, e por esta via acabam assim com a recessão, apesar do colapso da economia estar a dar-se em todos os países vizinhos, à sua volta, portanto. A hipótese de que esse comportamento realmente será verificado pelos consumidores financeiramente analfabetos, os consumidores reais, que vivem sob o pavor de perder o emprego no meio de uma recessão induzida pela política econômica seguida é sinceramente uma hipótese heroica, no melhor dos casos, e uma hipótese estúpida, no pior dos casos.

A austeridade é, então, uma ideia perigosa, porque com ela se ignoram as externalidades que ela gera, o impacto das escolhas de uma pessoa sobre os outros, e a baixa probabilidade de que as pessoas se comportem realmente da maneira que a teoria o pressupõe e o exige. Para entender porque é que um tal conjunto de ideias já mais que ultrapassadas se tornou a base conceptual do mundo ocidental para poder sair de uma recessão, precisamos de consultar alguns ingleses, dois escoceses e três austríacos.

Uma tensão liberal

As origens de austeridade encontram-se numa certa tensão dentro do pensamento econômico liberal sobre o Estado. No segundo dos seus dois Tratados sobre o Governo, o teórico político inglês do século XVII, John Locke, aceita a inevitabilidade da desigualdade decorrente da invenção do dinheiro e da propriedade privada. Mas, tendo assim considerado Locke também teve de reconhecer a necessidade de um Estado ter de controlar as desigualdades que o mercado produz. Qualquer Estado que o possa fazer de forma eficaz, no entanto, também será suficiente forte para ameaçar os detentores de propriedade que ao Estado enquanto Estado lhe cabe também defender. E assim uma tensão nasceu no coração do liberalismo: você não pode viver com o Estado, uma vez que pode roubá-lo, mas você também não pode viver sem ele, uma vez que a multidão poderia matá-lo. Mais tarde, quando os pensadores escoceses do século XVIII, David Hume e Adam Smith, se debruçaram a analisar esta tensão, esta tomou entretanto uma outra dimensão: como pagar para o Estado que se teme, mas de que mesmo assim precisa dele. A solução parecia ser a dívida do governo, mas nem Hume nem Smith gostaram dessa resposta.

Como Hume e Smith observaram, o governo poderia contrair empréstimos oferecendo aos comerciantes a possibilidade de fazer investimentos menos arriscados com esse mesmo dinheiro, ou melhor, alcançar um maior nível de remuneração através do instrumento da dívida pública. E para estes investidores, comprar essa dívida seria ter a mão levantada sobre o financiamento do Estado que era necessário sem que tenham de pagar impostos. Na verdade, o Estado lhes paga para financiá-lo. Mas o problema com esta opção gratuita é que ela não é verdadeiramente gratuita. Com o objetivo de encontrar compradores para a sua dívida, o Estado deve oferecer melhores taxas de rentabilidade do que os oferecidos por outros investimentos, e oferecendo tais taxas, o dinheiro é portanto desviado para longe dos investimentos orientados pelo mercado em direção às despesas públicas e seria então um desperdício. Este processo acaba por reduzir o crescimento, acabando por conduzir ao aumento das taxas de juros e por levar ao endividamento do Estado, primeiro para os comerciantes locais e, em seguida, para os estrangeiros. Mais do que resolver para o Estado o problema de como pagar, este processo leva, perpetuamente, ao aumento dos impostos e, como Adam Smith avisou, à inevitável ruína do credor, como “o ocioso e profundamente devedor [ganha] às custas do credor industrioso e frugal, ... transportando uma grande parte da capital nacional... para aqueles que são susceptíveis de o dissiparem e destruí-lo.” Face a este enquadramento, Hume e Smith concluíram que ao veneno da dívida pública tinha que se resistir a todo o custo, mesmo que este pareça atraente como uma solução de curto prazo para o financiamento do Estado.

Os pensadores liberais britânicos do século XIX tentaram resolver esta tensão de duas maneiras diferentes. Alguns, como David Ricardo, tentaram banir o Estado da economia, vendo as suas ações como intervenções contraproducentes no que era por ele considerado um sistema a convergir para a situação de auto-equilíbrio. Ainda outros, como John Stuart Mill, começaram por ver um papel para o Estado, além de controle sobre as desigualdades. Mill chegou a argumentar que a dívida pública não precisa de levar inevitavelmente um país à falência e poderia até mesmo ser usada para financiar investimentos socialmente úteis. Para Mill e seus irmãos ideológicos, o capitalismo não poderia funcionar corretamente no mundo moderno sem uma maior intervenção do Estado. Consideravam que a situação do auto-equilíbrio que Ricardo previu seria improvável, devido à agitação da mão-de-obra, à volatilidade do ciclo de negócios, às exigências dos processos eleitorais e a situação de um mundo com forte desemprego e pobreza no meio de uma grande abundância.

Assim no século XX, o liberalismo começou por se dividir ao longo de duas direções. Uma, seguindo Ricardo, alguns economistas austríacos, nomeadamente Joseph Schumpeter, Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, rejeitaram, cada vez mais firmemente o Estado, assim como as suas intervenções e as suas dívidas. Do outro lado, seguindo Mill, surgiu um grupo de economistas britânicos, onde se incluem John Hobson, William Beveridge e, finalmente, John Maynard Keynes, que encontraram linhas de convergência, defendiam um Estado mais ativo e, quando necessário, defendiam um Estado endividado.

A armadilha liquidacionista

Embora um medo do Estado e da sua dívida tenha sido criado e integrado no liberalismo desde o seu início, só quando os estados emergiram e se tornaram grandes e fortemente endividados para que fosse compreensível o discurso da redução das despesas públicas e do endividamento é que a oposição ao endividamento dos governos tornou-se uma moda política. Na década de 1920 e 1930, particularmente na Áustria e Estados Unidos, um número crescente de economistas procurou explicar porque é que as economias reais, apesar das suas supostas tendências para o equilíbrio automático, pareciam estar igualmente sujeitas a situações de forte subida e de fortes descidas para não se dizer mesmo que estas mudanças, estes altos e baixos, eram bem espetaculares. A resposta dada por essa escola de pensamento foi a de que os bancos emprestaram demasiado dinheiro o que levava a uma má alocação de capital em investimentos duvidosos. Eventualmente e talvez também de forma inevitável o dinheiro barato que estaria a alimentar estes investimentos iria secar e as taxas de juros subiriam com o acompanhamento inegável de um cortejo de falências que se lhe seguiria. O resultado, como diria Andrew Mellon, secretário do Tesouro dos Estados Unidos sob o presidente Herbert Hoover, é que com isso se vai “limpar a podridão do sistema. ... Pessoas... vão viver uma vida mais moral. ... E as pessoas com capacidade empresarial distar-se-iam das pessoas menos competentes.”

Em suma, argumentavam os austríacos, a farra do financiamento da dívida poderia ser curada apenas pelo expurgo da austeridade. O papel do Estado seria então o de ficar fora do caminho e deixar o processo desenvolver-se. “O Liquidacionismo” – defendia que as empresas em situação de possível falência fossem liquidadas como sendo a solução para os problemas econômicos — era o nome do jogo, e então Washington tentou fazê-lo durante a Grande Depressão. E tal como hoje na zona euro, este jogo simplesmente não funcionou. Mesmo sobre o Reino Unido, uma abordagem semelhante, argumentando que a utilização da expansão das despesas públicas como instrumento para travar uma queda da economia significaria simplesmente estar a aumentar a dívida e a eliminar o investimento privado, tornou-se conhecida como “o ponto de vista do Tesouro”. Esta política foi posta em prática e, também aqui, falhou, tornando ainda maior a queda da economia britânica.

Isto significa tomar como referência A Teoria Geral de Keynes em articulação com a análise das repetidas falhas das políticas de austeridade para salvar as economias que foram aplicadas durante a década de 1930, para liquidar definitivamente a ideia de uma politica de austeridade como sendo uma ideia aceitável e respeitável. Os mesmos três argumentos que acima foram expostos – sobre a distribuição, composição e sobre a lógica – também aqui são críticos. Em conjunto com os resultados práticos dos terríveis ensaios das políticas de austeridade como forma realizados nos anos 1930 e 1940 – incluindo a experiência da Segunda Guerra Mundial, que parecia justificar a necessidade e a eficácia de uma massiva intervenção governamental na economia – estes argumentos foram reformulados para aplicar as políticas de austeridade e estas falharam, pura e simplesmente, as economias entraram em colapso. Porque é que, então, se voltou para trás, para os anos 40, e com tanta ou mais força agora, cerca de 60 anos mais tarde? Para responder a essa pergunta, precisamos de nos centrar uma vez mais nos Estados Unidos, onde o modelo austríaco de altos e baixos encontrou uma ressonância inesperada na crise financeira de 2008, e a viagem, a partir daí, para a Alemanha pós-guerra, onde o pensamento econômico assente nas políticas de austeridade conseguiu sobreviver ao longo inverno keynesiano e deu origem à resposta econômica face à crise que tem caracterizado a zona euro.

Como os alemães fizeram?

Uma das coisas estranhas sobre os programas de pós-graduação em economia após a década de 1970, quando a estagflação finalmente assumiu um grande relevo fora do keynesianismo, foi a de que se poderia trabalhar num doutoramento nas melhores escolas nos Estados Unidos e nunca ter tido uma aula sobre teoria monetária, sobre operação bancárias ou sobre crédito. Isso era assim porque na estrutura neoclássica que surgiu após o auge da teoria Keynesiana, a moeda era visto como sendo neutra nos seus efeitos a longo prazo sobre a economia real (não se mudavam nem as preferências nem a outras possibilidades), enquanto as expectativas dos agentes eram sempre vistas como sendo prudentes e racionais. Num tal mundo pleno de felicidade sempre em convergência para a (ou na) situação de equilíbrio, o crédito é simplesmente encarado como sendo rendimento de gasto deferido de uma pessoa e que é transferido para uma outra que o utiliza como antecipação do seu rendimento futuro e os bancos são simplesmente veículos para o investimento. A crise financeira de 2008, que revelou um mundo real de hiper-alavancagem em créditos, de empréstimos excessivos, uma cegueira total e intencional face ao risco por parte dos atores supostamente racionais, veio abalar fortemente estes quadros mentais. Mas isto não é de forma alguma visto como um choque para ninguém desde que tenha andado e ainda ande a ler estes defensores das políticas de austeridade.

A crise parecia estar a desenrolar-se exatamente de acordo com o modelo de Mises e Hayek sobre as quebras bruscas na economia: os bancos emprestaram dinheiro, os estados serviram de garantia aos bancos, os consumidores endividaram-se em excesso e o capital foi mal aplicado, alimentando-se assim uma bolha monumental no setor da habitação no período de 2000 a 2007. O modelo contém em si mesmo uma prescrição de política clara: não se devem socorrer os bancos. Mas depois disto já ter sido feito e da dívida privada do sistema bancário estar bem acima da dívida pública, a única coisa que restava fazer – tal como os austríacos argumentaram em 1920 e 1930 – era a de cortar nas despesas públicas e de reduzir a dívida, acelerar as falências quer das empresas em grande dificuldade quer dos indivíduos endividados e deixar a via aberta para as “pessoas empreendedoras... pegar os destroços de pessoas menos competentes.”

O Liquidacionismo estava de volta, mas apenas porque os economistas e políticos tinha esquecido os argumentos anteriores contra ele durante as três década de interregno neoliberal. Num mundo de mercados eficientes e de consumidores racionais, o tipo de crise que agora o Estado está a enfrentar tinha sido considerado teoricamente impossível. Então, quando a crise deflagrou, a única abordagem que de forma consistente levou os altos e baixos dos bancos a sério foi a escola da austeridade – pelo que devemos mesmo agradecer parcialmente aos alemães.

Dada a história da Alemanha com a inflação e com a deflação na década de 1920 e 1930, a estabilidade financeira sempre foi a palavra de ordem da economia alemã do pós-guerra. Mas o que realmente tem distinguido o pensamento econômico alemão é sua rejeição do Keynesianismo – porque esta teoria nunca fez muito sentido para os decisores políticos alemães, considerando a forma como a economia alemã tem na verdade estado a funcionar.

O crescimento econômico alemão sempre foi orientado para a exportação. As prioridades de Berlim depois da Segunda Guerra Mundial foram, portanto, a de investir na reconstrução da estrutura e do volume de capital do país (o que significava manter uma forte limitação ao consumo interno) e a de recuperar os mercados à exportação (o que significa manter os custos e assim, os salários, baixos). Com a procura externa mais importante do que a procura interna, o seu crescimento era determinado pela competitividade e pela estabilidade monetária e não pelo seu consumo interno. Todos os programas de estímulos governamentais que se fizessem neste sistema levariam ao aumento dos custos de produção e baixariam a procura externa dos bens que a Alemanha exporta.
Este é um grande modelo econômico pelo lado da oferta, é um modelo de uma economia orientada para a exportação, com uma forte autoridade monetária e com produtos supercompetitivos. O problema é que, como Highlander, só pode haver um e apenas um. Nem todos os países europeus podem ser uma Alemanha e ter excedentes; os outros precisam de ter défices, exatamente como quando alguém está a querer poupar é aí necessário para que isso suceda que alguém esteja a gastar, para além do seu próprio rendimento. Infelizmente, a Alemanha foi capaz de conceber e de impor as principais instituições da UE e da zona euro à sua própria imagem, criando-se assim uma zona de forte concorrência com uma autoridade forte nesse campo e um banco central extremamente independente e obcecado pela ideia de inflação. Assim, no momento em que dispara a crise grega, a objeção particular da Alemanha contra o keynesianismo foi transposta para a orientação da política que tem sido aplicada em toda a zona euro, com os resultados desastrosos que bem se conhecem.

A Alemanha podia cortar na sua etapa para o crescimento, uma vez que as fontes do seu crescimento estão fora das suas fronteiras: é o campeão das exportações no mundo. Mas a Europa como um todo não pode reproduzir essa característica, especialmente porque os países asiáticos também são excedentários. Como muito bem expressou Martin Wolf, o colunista do Financial Times, “e se todo o mundo quisesse ter excedentes na sua balança corrente”? Se assim fosse, “com quem é que as suas balanças correntes seriam excedentárias – com os marcianos?” As ideias que estão na base do projeto institucional da economia alemã no pós-guerra e no da própria União Europeia podem funcionar bem para a Alemanha, mas elas funcionam muito mal para o continente europeu como um todo, que não pode ter um excedente na balança corrente, por mais que o queira conseguir. Mais uma vez, trata-se de questões de composição.

Para ver o que é que pode acontecer a seguir, podemos olhar um pouco mais para o passado, para a última vez que estas políticas foram levadas a cabo em grande escala, para a década de 1930 e para o caos que se lhes seguiu. Mas uma tal história é irrelevante, poderão os nossos críticos objetar, uma vez que há casos mais recentes, em lugares como o Canadá e a Irlanda na década de 1980 ou os PECO mais recentemente e onde se mostra o oposto, onde se mostra que a austeridade leva ao crescimento. Mas não, estes críticos não têm nenhuma razão pelo que, na verdade, então vale a pena atualmente olhar para estes casos, também.

A austeridade para agora, a loucura para mais tarde

Durante a década de 1920 e 1930, os Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Japão tentaram simultaneamente cortar no seu caminho para o crescimento. Este projeto não apenas falhou; este projeto também ajudou a provocar a Segunda Guerra Mundial. A economia dos EUA da década de 1920 foi uma estranha besta. Os preços agrícolas caíram, o desemprego manteve-se ou cresceu de modo muito marginal e o mercado de ações cresceu. Então, em 1929, este mercado caiu espetacularmente, as receitas caíram vertiginosamente e os défices tornaram-se elevadíssimos. Nessa altura, os investidores por temerem que os americanos seguissem os britânicos e viessem assim a abandonar também o padrão-ouro, deram origem e rapidamente a uma fuga de capitais para o exterior e, fazendo com que as taxas de juro viessem a subir e piorassem a contração da economia. Um exemplo clássico do discurso dos defensores da austeridade, Hoover argumentou que o país não poderia “dissipar a sua prosperidade na ruína de seus contribuintes", e em 1931, ele passou a elevar simultaneamente os impostos e cortar gastos, e em 1931, ele passou a aumentar impostos e a cortar nas despesas públicas simultaneamente. Nos dois anos seguintes, o desemprego disparou, de oito por cento para 23 por cento, e a economia entrou em colapso – assim como também diminuiu a capacidade dos Estados Unidos funcionarem como um destino para as exportações de outros Estados. A economia dos EUA não recuperou totalmente até que se deram os massivos aumentos da despesa pública provocados pela II Grande Guerra que fizeram descer o desemprego para 1,2 por cento em 1944.

A situação era quase que semelhante, talvez apenas levemente melhor, no Reino Unido, país que tinha saído da I Guerra Mundial muito pior do que os Estados Unidos. De modo a conseguir crescer depois da guerra, Londres teria que desvalorizar a libra, o que faria com que os seus produtos se tornassem mais competitivos. Mas uma vez que o Reino Unido era a maior potência financeira do mundo e o eixo central do padrão-ouro, mesmo uma sugestão de desvalorização teria produzido um enorme pânico nas bolsas, o que desencadearia assim uma corrida à Libra e levaria a que os ativos britânicos no exterior perdessem um valor significativo. Apanhados ou mesmo encurralados nesta posição, o Reino Unido estabeleceu uma alta taxa de câmbio, na esperança de inspirar a confiança dos investidores, mas isto teve o efeito de arrasar as exportações britânicas e frustrar a recuperação do pós-guerra. Assim, o Reino Unido estagnou, com taxas de desemprego cronicamente elevadas ao longo da década de 1920.

As coisas ainda se degradaram mais para os ingleses quando os Estados Unidos aumentaram as suas taxas de juros em 1929 para esfriar o boom de Wall Street e quando o Plano Young para o reembolso das reparações alemãs entrou em vigor, em 1930, dando prioridade à dívida pública sobre as dívidas privadas, significando que as dívidas oficiais da Alemanha seriam as primeiras a ser pagas no caso de neste país se entrar em recessão, em contração econômica. Isto era importante porque anteriormente, muitíssimo dinheiro americano, de agentes privados, tinha afluído à Alemanha e numa altura em que a prioridade de pagamento era dada à dívida privada e não à dívida pública. Quando o plano Young inverte a prioridade no pagamento da dívida, a fuga de capitais da Europa para os Estados Unidos, que era a resultante dessa inversão, levou a que as taxas de juros britânicas permanecessem altas e que se continuasse com a economia numa situação de estagnação.

Uma vez que a Inglaterra não poderia nem inflacionar a economia nem desvalorizar a sua moeda, a deflação – o que significa austeridade – manteve-se como a política econômica escolhida, mesmo que esta seja reconhecidamente autodestrutiva. Apesar dos sucessivos cortes nas despesas públicas e apesar de a Inglaterra estar mesmo a sair do padrão-ouro, a dívida britânica subiu de 170% do PIB em 1930 para 190% em 1933. Por volta de 1938, em termos reais, o PIB britânico foi apenas ligeiramente superior ao que se tinha verificado em 1918. Em suma, as duas maiores economias mundiais tentaram cortar o seu caminho para a prosperidade em simultâneo e em situação conduziu à ascensão do fascismo.

As desgraças da Alemanha neste período são muitas vezes deixadas aos pés da hiperinflação de 1923, ou seja, são por esta justificadas, como sendo esta hiperinflação a responsável, hipótese esta que se tornou, evidentemente, o papão da economia nacional daquela época, um pesadelo que nunca mais deve voltou a acontecer. Mas o que essa visão da realidade se esquece de dizer é que a hiperinflação foi muito mais o resultado de uma política deliberada do governo alemão para evitar fazer pagamentos de indenizações à França, ao invés de ser uma tentativa errada de um esforço ou de um estímulo orçamental tipicamente keynesiano de relançamento da economia. Após a ocupação francesa do Ruhr, em 1923, o governo alemão começou a pagar os salários dos trabalhadores locais como um ato de resistência, fazendo com que o défice disparasse e assim atingisse um verdadeiro pico. O banco central alemão, o Reichsbank, imprimiu moeda para cobrir o défice, o que, por seu lado, provocou a queda do valor do marco. Isso fez com que o pagamento das reparações de guerra se tornasse impossível, forçando a uma renegociação da dívida alemã. Logo a seguir, no entanto, a inflação foi estabilizada e o país recomeçou a andar pelos seus pés.

Quando o novo plano de reembolso da dívida levou a que o dinheiro dos investidores americanos fugissem da Alemanha, o Reichsbank decidiu aumentar as taxas de juros para conter o fluxo, empurrando a economia para uma recessão. Nesse momento, o Partido do Centro ganhou as eleições e tentou aplicar o barco fiscal ou seja aplicar cortes verdadeiramente draconianos nas despesas públicas. Mas quanto mais o governo ia aplicando corte sobre corte mais os nazistas ganharam apoio. Nas eleições de 1930, os nazistas ganharam 18,3% dos votos e tornaram-se o segundo maior partido no Reichstag. Eles eram, afinal de contas, o único partido que contestava a austeridade. Em 1933, como os cortes continuaram, eles obtiveram 43,9% dos votos. A austeridade, não a inflação, foi que deu ao mundo o nacional-socialismo.

O governo japonês aplicou a austeridade de modo mais consistente e com mais vigor do que foi aplicado em qualquer outro lugar. Na sequência de uma grande queda na bolsa em 1920, fizeram-se sucessivos cortes nas despesas públicas que exacerbaram ainda a situação de deflação em que debatia a economia japonesa. O item de maior peso no orçamento de Tóquio era o das despesas militares que foi quase metade dos correspondentes gastos na década seguinte. O Japão continuou a cortar nas despesas públicas a fim de voltar para o padrão-ouro, que aconteceu em 1930 -- assim como acontecia nas economias dos EUA e da Europa que entraram em queda livre, matando as exportações do Japão. A taxa de crescimento do Japão caiu 9,7 por cento em 1930 e cai igualmente de 9,5% em 1931, enquanto as suas taxas de juros dispararam. Apesar do colapso, Tóquio acelerou ainda o seu programa de redução das despesas públicas e com os militares a arcarem com o ônus desses mesmos cortes. Pelo final de 1930, os militares tiveram depois bem mais do que suficiente.

Após a ratificação do Tratado Naval de Londres em Outubro de 1930, que coloca limites na construção naval, um grupo ultranacionalista no Japão tentou matar o primeiro-ministro Osachi Hamaguchi (este acabou por morrer devido aos ferimentos feitos no atentado). Mais tarde, em 1932, o ex-ministro de Finanças japonês Junnosuke Inoue, que tinha sido o arquitecto da política de austeridade ao longo da década de 1920, foi assassinado. O ministro das Finanças do novo governo, Takahashi Korekiyo, abandonou a politica de austeridade, e a economia rapidamente começou a movimentar-se, crescendo a uma taxa média de quatro por cento ao ano entre 1932 e 1936. Provando que nenhuma boa ação fica por punir, no entanto, Korekiyo foi assassinado em 1936, juntamente com várias outras figuras políticas civis. Por volta de 1936, o governo civil caiu e caiu com ele também a experiência do Japão em que com a queda do governo também simultaneamente caia a democracia e as políticas de austeridade que neste país estavam associadas. A expansão imperial do Japão foi o resultado desta experiência.

Esse show dos anos 80

Quando as quatro maiores economias do mundo, todas ao mesmo tempo, tentaram cortar o seu caminho para a prosperidade nos anos entre as duas guerras, o resultado foi a contração econômica, o protecionismo, a violência e o fascismo. Bem, alguns podem dizer que se trata de diferentes casos que sugerem diferentes lições. As experiências da Austrália, Canadá, Dinamarca e da Irlanda na década de 1980 são muitas vezes referidas para nos ajudar como exemplos para defender a existência de um conjunto de políticas a que os economistas dão o nome de “consolidação orçamental expansionista”, isto é em que pressupõem que os cortes nas despesas públicas, os cortes nos défices orçamentais, nos levam ao crescimento. Infelizmente, os fatos discordam desse pressuposto.

Durante a década de 1990, foram publicados vários estudos que nos queriam mostrar que as consolidações fiscais que se verificaram na década anterior em países como a Austrália, Canadá, Dinamarca e na Irlanda tinham sido estimulantes para as economias locais. Todos estes países cortaram nos seus orçamentos, desvalorizaram as suas moedas e controlaram a inflação salarial e mais tarde as suas taxas de crescimento foram impressionantes. O suposto mecanismo que estaria por detrás do crescimento teriam sido as previdente expectativas dos consumidores, ou seja, o efeito de confiança dos agentes econômicos: antecipando que os cortes nas despesas públicas passariam agora a significar menos impostos mais tarde, no futuro, e que por isso os indivíduos passaram a gastar o seu dinheiro estimulando assim essas economias.

Estudos recentes, no entanto, vieram a pôr em causa os métodos utilizados pelos estudos anteriores, o conhecimento recebido sobre o que realmente aconteceu nos países em questão e as lições mais importantes da época. Em primeiro lugar, em cada um desses casos, era um pequeno país que estava a reduzir o seu défice pelo corte das suas despesas públicas no auge de um período de crescimento e quando os seus principais parceiros comerciais era de muito maior dimensão e estavam em fase de crescimento. Tratou-se também de acontecimentos, discretos, independentes, que não foram realizados em simultâneo mas um acontecimento de cada vez, não havendo portanto contrações econômicas simultâneas.

Em segundo lugar, em todos estes casos, os principais instrumentos de austeridade foram as grandes taxas de desvalorização da moeda nacional e a realização de acordos com os sindicatos para controlar os preços de modo a que os efeitos dos desvalorizações não fossem absorvidos inclusive pela inflação importada. Ou seja, se um país está a tentar obter um aumento nas suas exportações com uma moeda mais barata, então este mesmo país não quer que a vantagem de custo assim obtida com a desvalorização venha a ser eliminada pelo aumento de custos devidos esses aos aumentos salariais, de tal forma que por isso por isso, faz um acordo com os sindicatos para impedir que isso aconteça. Isto, naturalmente, só é possível apenas em países que têm sindicalizado uma grande parte dos seus trabalhadores. Sendo assim, estes casos dificilmente poderão constituir a prova de que a austeridade leva ao aumento da confiança dos consumidores, confiança esta que, por sua vez, leva ao crescimento.

Além disso, nos casos da Austrália e Dinamarca, estas chamadas consolidações orçamentais expansionistas produziram apenas em termos de dinamismo econômico o correspondente ao um salto de um gato morto – um fugaz sinal de retoma mas na verdade completamente ilusório, e em ambas as economias os sinais de retoma esfumaram-se. Ambas as economias caíram em grave recessão no espaço de dois anos após os cortes nas despesas públicas ( acontecendo o mesmo no plano da confiança). Enquanto isso, no caso irlandês, como o mostrou o economista Stephen Kinsella, os salários reais aumentaram durante a década de 1980, sugerindo que terá sido um efeito de estímulo de rotina, e não uma mudança nas expectativas dos consumidores, que terá provocado a retoma da economia. O Canadá, por seu lado, foi capaz de reduzir as despesas públicas e crescer na década de 1980, pela simples razão de que o seu principal parceiro comercial, os Estados Unidos, estavam a passar por uma situação de boom econômico massivo enquanto o Dólar canadiano se estava a depreciar e na ordem dos 40 por cento.

Nada disto tem nada a ver com as expectativas ou com a confiança. Na verdade, de forma ainda mais clara, o que está na sua base é uma história keynesiana de como a desvalorização e a moderação salarial podem impulsionar a economia quando os seus parceiros estão em situação de claro crescimento e em que a impulsão assim dada à economia fá-la crescer e por essa via, permite assim abrir o caminho para a consolidação orçamental. Como Keynes afirmou, “a situação com crescimento, não a situação de economias em queda, é o momento correto para a aplicação de políticas de austeridade.” Cortes em si mesmos não levam ao crescimento, pois eles só funcionam em pequenos estados que podem exportar para grandes nações que estão com as economias em expansão, ou seja, a crescerem. Assim como os países que negociam uns com os outros não podem ter todos, como é lógico, excedentes comerciais em simultâneo, pelo que as economias interligadas não poderão nunca desvalorizar em conjunto se com isso se quer ao mesmo tempo que cada um deles aumente as suas exportações.

Porque é que uma aliança de países na mesma situação não pode fazer explodir a estrela da dívida

Mas, espere, ainda há mais. Mais recentemente, um lote de países do Leste Europeu foram utilizados como modelo pelos defensores da austeridade: Romênia, Estônia, Bulgária, Letônia e Lituânia – conjunto de países também chamado a Aliança REBLL. Eles cortaram na despesa pública mais do que qualquer outro país na Europa em 2009 e 2010 e cresceram mais rápido do que o resto em 2011 e 2012. Isso poderia finalmente ser a prova de que os cortes de gastos levam ao crescimento? Não tão rápido.

A primeira pergunta a fazer é, em primeiro lugar, porque é que houve tanta redução na despesa pública e a resposta é interessante. Voltando atrás, aos primeiros anos deste nosso século XXI, quando esses estados estavam à beira de se tornarem membros da União Europeia, os seus ativos bancários parecia extremamente subavaliados. Os governos desses Estados, a recuperarem do seu passado comunista e ávidos de virem a ser governos de países capitalistas decidiram criar instituições econômicas que fossem extremamente abertos aos fluxos de capital e amigáveis para o investimento estrangeiro. A união dessas duas forças levou a que 80 a 100 por cento dos bancos locais viessem a ser comprados por estrangeiros. Durante a crise de liquidez ocorrida entre 2008 e 2009, as novas sedes dos bancos austríacos, alemães e suecos decidiram procurar obter o dinheiro extra de que precisavam contraindo empréstimos nos mercados dos ramos desses bancos situados no Leste da Europa. Mas isso significava que os países da Europa Oriental ficaram impotentes a assistir às massivas saídas de capital dos seus respectivos países a favor dos países da Europa Ocidental.

Para estancar esta sangria, foi assinado um acordo em Viena, em 2009, entre os bancos, a União Europeia, o Fundo Monetário Internacional e a Comissão Europeia, a Hungria, a Letônia e a Romênia. O acordo levava a que os bancos do núcleo da Europa deviam manter os seus fundos no Leste da Europa se os governos dos países da Europa Oriental estivessem empenhados em levar a cabo políticas de austeridade destinadas a estabilizar a situação dos bancos locais. O acordo de Viena impediu a propagação da crise de liquidez para o resto dos países ditos REBLLs, tanto quanto as políticas de austeridade estavam a ser aplicadas em toda esta região também. O resultado deste acordo foi a de que os professores da Letônia e os reformados na Romênia ficaram sem avultadíssimas somas de rendimento para com esse dinheiro se garantir o pagamento aos detentores de títulos seniores pertencentes aos bancos europeus dos países da Europa Ocidental.

Mas coloquemos tudo isto de lado, e perguntemos então se teriam as políticas de austeridade sido bem sucedidas? Na Letônia, em 2009, o consumo caiu quase 23 por cento e o PIB caiu sete por cento. Na Estônia, o consumo e o PIB caíram em quase 15 por cento. Os cortes salariais do setor público ao nível de dois dígitos tornou-se a norma no conjunto dos países dito REBLLs, provocando enormes estragos nos programas sociais de saúde pública, na educação e nos programas de apoio social. Ainda se deve sublinhar que o recuo econômico e social nesta trajetória tem sido impressionante, com uma recuperação agora entre 60 e 80 por cento das suas perdas da contração havida nestes países. Ainda assim, o jogo não foi valeu a pena.

Primeiro, se o objetivo de austeridade é reduzir a dívida, então todos estes países, com exceção da Estônia, falharam: eles estão mais endividados hoje do que quando começaram a impor as políticas de austeridade. Na verdade, a Letônia, Lituânia, Romênia todos eles tiveram muito mais elevados défices orçamentais quando estavam na situação de pico máximo na aplicação dos seus programas de austeridade, em 2009-10, mais ainda do que o pico da Grécia ou da Espanha, no auge dos seus programas de austeridade. Em segundo lugar, a situação de contração irá demorar pelo menos até 2015, de acordo com a mais otimista das projeções, para qualquer um destes países possa recuperar o terreno perdido desde 2009, com o resultado de que o desemprego nesses estados permanecerá na casa dos dois dígitos no quadro de um futuro previsível. E em terceiro lugar, esses países não tiveram nenhuma das expectativas positivas ou de aumento de confiança que a austeridade deveria gerar, segundo os seus defensores. De acordo com uma sondagem do Eurobarómetro, 79 por cento dos letões inquiridos ​​em 2009 pensam que a situação econômica do seu país era má. Em 2011, quando a taxa de crescimento da Letônia foi a mais elevada da UE, um total de 91 por cento dos letões inquiridos sentiam a situação econômica ser simplesmente má, e 58 por cento disseram que o pior ainda estava por vir. Em suma, como é o caso com as consolidações orçamentais expansionistas dos anos 1980, a experiência recente da Europa Oriental, nunca pode ser descrita como uma vitória para os defensores das políticas de austeridade. O grupo REBLL não conseguiu fazer saltar a estrela da dívida. Na verdade, a dívida ficou ainda muito maior e a um custo econômico e social elevadíssimo.

Amanhã é um outro dia

Se a austeridade não funciona, qual é a alternativa? Avançar para uma espiral de consumo em países já fortemente endividados ou entrar numa série de incumprimentos ao nível do mundo desenvolvido serão obviamente opções muito pouco atraentes. Mas não é preciso ser-se tão ambicioso. Uma regra simples seria a regra de Hipócrates: em primeiro lugar, não provocar danos. A zona euro tem estado de forma consistente a aplicar as políticas de austeridade e economicamente ela está, como um todo, em contração do seu PIB. Os Estados Unidos, por outro lado, não têm estado a aplicar a austeridade e como resultado têm estado a melhorar as suas contas e agora é capaz de poder crescer. Sim, a dívida dos Estados Unidos tem aumentado, também, mas possivelmente o crescimento irá resolver a questão da dívida. Os cortes na despesa pública, se eles são simultânea e em grande escala, só irão aumentar o problema.

A relação entre os cortes na despesa pública e a dívida pública é melhor captada pela ideia do economista Richard Koo sobre as recessões nos balanços. Os países não podem simultaneamente estar a querer reduzir a sua dívida pública e privada, que é o que na Europa se tem estado a fazer. Em vez disso, os governos devem fazer com que o setor privado possa pagar as suas dívidas, mantendo a despesa pública; afinal de contas, a poupança do setor privado tem que ter origem nalgum lado. Uma vez que isso seja feito, como o setor privado a recuperar então irão aumentar as receitas fiscais e os défices e dívidas acumuladas podem começar a serem pagos ou reduzidos. Como observamos anteriormente, conseguir este resultado é uma questão de sincronismo e de composição.

Os Estados Unidos, entretanto, devem aproveitar o fato de que não estão nem sobrecarregados nem encurralados pelo tipo de falhas institucionais existentes na zona euro e ter em conta que os Estados Unidos pode contrair empréstimos a taxa praticamente vizinha de zero. Agora é um bom momento para Washington fazer investimentos úteis. Para dar apenas um exemplo, cerca de um terço das pontes nos Estados Unidos estão em mau estado e precisam de ser reparadas. Repará-las ou mesmo renová-las poderia levar ao aumento da produtividade dos EUA e não há mesmo nenhuma desvantagem em o fazer. Neste sentido, a austeridade não é uma opção errada por causa dos problemas de distribuição, de composição e de lógica que acima foram descritos; ela também carrega um custo de oportunidade perigoso. Se os Estados Unidos continuassem no caminho da austeridade, as estradas ficariam por reparar, os alunos iriam faltar às aulas e deixariam de adquirir os conhecimentos e as capacidades profissionais dos desempregados atrofiar-se-iam. A posição do país em relação a qualquer outro país que não fez isto iria piorar. Os Estados Unidos iria acabar mais pobre e mais endividado do que antes, e o que é mais problemático, não teria as capacidades necessárias para gerar crescimento no futuro.

As convicções schumpeterianas podem estar em desacordo com a ideia de que mesmo que os gastos do governo fossem gratuitos, a verdadeira fonte de crescimento ainda seria a inovação privada. Mas como o especialista em capital de risco William Janeway explica no seu recente livro Doing Capitalism in the Innovation Economy, o que faz com que Schumpeter tenha possivelmente chamado “destruição criadora” é o que ele chama de “um resíduo Keynesiano”. A indústria aeroespacial dos EUA poderia nunca ter nascido se não houvesse enormes gastos governamentais com a defesa pública; as recentes inovações em biotecnologia devem a sua existência aos institutos nacionais de saúde; até mesmo a Internet foi um subproduto da pesquisa promovida e feita a nível governamental. As bases materiais para a inovação e o crescimento, muitas vezes vem da despesa pública, quase nunca vêm da despesa privada.

Se os Estados Unidos adotassem a austeridade, a incapacidade do governo em gerar resíduos keynesianos prejudicaria a capacidade do país em ser capaz de crescer. Reduzir as despesas, reduzir o Estado, especialmente num momento em outros países ao redor do mundo estão ocupados a gerir as suas políticas de austeridade e a cortarem o seu caminho para a prosperidade, levaria a que os americanos iriam acabar bem pior do que eles alguma vez poderiam ter imaginado. Mas não tomemos isto como um ato de fé. Basta perguntar aos europeus como é que estes se sentem nas políticas que para eles mesmos têm andado a aplicar.

MARK BLYTH é professor de Economia Política Internacional na Brown University. Seu livro mais recente é Austerity: The History of a Dangerous Idea (Oxford University Press, 2013), do qual este ensaio foi adaptado. Copyright © Oxford University Press.

1 de março de 2013

China 2013

Samir Amin


2013, Volume 64, Issue 10 (March)

Tradução / O debate que diz respeito à China atual — uma “potência emergente”— nunca me convence. Alguns defendem que a China escolheu, de uma vez por todas, o “caminho capitalista” e inclusive pretende acelerar sua integração à globalização capitalista atual. Esses estão bastante satisfeitos com isso e apenas esperam que esse “retorno à normalidade” (capitalismo como “fim da história”) seja acompanhado pela escolha da democracia aos moldes ocidentais (multipartidarismo, eleições, direitos humanos). Eles acreditam — ou precisam acreditar — na possibilidade de que a China, a partir desses meios, deva “acompanhar” em termos de renda per capita as sociedades abastadas do Ocidente, mesmo que gradualmente, o que eu não acredito ser possível. A direita chinesa possui a mesma posição. Outros, lamentam isso tendo por base um “socialismo traído”. Alguns partem espontaneamente para as expressões dominantes do ato ocidental de “China bashing” [1]. Ainda outros — aqueles no poder em Pequim — descrevem o caminho escolhido como “socialismo de características chinesas” sem uma precisão muito clara. Entretanto, pode-se discernir suas características através da leitura de textos oficiais, particularmente os Planos Quinquenais, que são precisos e levados muito a sério.

Na verdade, a pergunta “A China é capitalista ou socialista?” é mal colocada, muito geral e abstrata para qualquer resposta que faça sentido em termos de alternativa absoluta. Na verdade, a China vem seguindo um caminho original desde 1950, e quem sabe mesmo desde a Revolução de Taiping no século XIX. Procurarei aqui esclarecer a natureza desse caminho original em cada uma de suas etapas de desenvolvimento, de 1950 até hoje — 2013.

A questão agrária

Mao descreveu a essência da revolução Chinesa liderada pelo Partido Comunista como uma revolução antifeudal e anti-imperialista em direção ao socialismo. Mao nunca assegurou que, após terem enfrentado o Imperialismo e o feudalismo, que o povo chinês havia “construído” uma sociedade socialista. Ele sempre caracterizou essa construção como a primeira etapa do longo caminho para chegar ao socialismo.

Eu devo enfatizar a natureza bastante específica da resposta dada à questão agrária pela Revolução Chinesa. A terra (agrícola) distribuída não era privatizada; permaneceu como propriedade da nação representada pelas comunas rurais e apenas o uso delas era dado para famílias rurais. Não foi este o ocorrido na Rússia, onde Lenin, ao encarar o fato consumado da insurreição camponesa de 1917, reconheceu a propriedade privada para os beneficiários da distribuição de terras.

Por que a implementação do princípio de que as terras agrícolas não são uma mercadoria foi possível para a China (e Vietnã)? É constantemente repetido que os camponeses por todo o mundo lutam por propriedade e apenas. Se fosse esse o caso na China, a decisão de nacionalizar a terra levaria a uma guerra camponesa sem fim, como ocorreu na União Soviética quando Stalin iniciou a coletivização forçada.

A atitude dos camponeses da China e Vietnã (e nenhum outro lugar) não pode ser explicada por uma suposta “tradição” onde eles não têm conhecimento da propriedade. É o produto de uma linha política inteligente e excepcional implementada pelos Partidos Comunistas desses dois países.

A Segunda Internacional tomou como certa a inevitável aspiração dos camponeses por propriedade, bem verdade na Europa do século XIX. Em frente a longa transição europeia do feudalismo para o capitalismo (1500-1800), as anteriormente institucionalizadas formas feudais de acesso à terra através de direitos compartilhados entre reis, nobres, e camponeses servos gradualmente se dissolveu e foi substituído pela forma burguesa de propriedade privada, que trata a terra como uma mercadoria—um bem que o dono pode livremente se dispor (comprar e vender). Os socialistas da Segunda Internacional aceitaram o fato consumado da “Revolução Burguesa”, mesmo que o lamentando.

Também pensaram que a pequena propriedade camponesa não possuía futuro, que pertencia à grandes empresas agrícolas mecanizadas se baseando no modelo industrial. Pensaram que o desenvolvimento capitalista por si só levaria a tal concentração de propriedade e para formas mais eficazes de sua exploração (ver os escritos de Kautsky acerca desse assunto). A história provou que eles estavam errados. A agricultura camponesa deu lugar a agricultura familiar capitalista em um duplo sentido; um que produz para o mercado (consumo dentro da fazenda tendo-se tornado insignificante) e um que faz uso de modernos equipamentos, insumos industriais, e crédito bancário. E indo além, essa agricultura familiar capitalista acabou tornando-se bastante eficiente em comparação àquela de grandes fazendas, em termos de volume de produção por hectare por trabalhador/ano. Essa observação não excluí o fato que o moderno fazendeiro capitalista é explorado pelo capital monopolista em geral, que controla o emergente de fornecimento de insumos e de crédito e o direcionamento da comercialização dos produtos. Esses agricultores foram transformados em empresas subcontratadas para o capital dominante.

Assim (equivocadamente), convencidos que a grande empresa é sempre mais eficiente do que a pequena em todas as áreas—indústria, serviços e agricultura—os socialistas radicais da Segunda Internacional presumiram que a abolição da propriedade fundiária (nacionalização da terra) permitiria a criação de grandes fazendas socialistas (análogas às futuras sovkhozes e kolkhozes soviéticas). No entanto, eles foram incapazes de colocar essas medidas em prática já que a revolução não estava na agenda em seus países (os centros imperialistas).

Os Bolcheviques aceitaram essas teses até 1917. Eles advogaram a nacionalização das grandes propriedades da aristocracia russa, enquanto permitiam propriedade em terras comunais para os camponeses. Entretanto, foram posteriormente pegos despercebidos pela insurreição camponesa, que ocupou as grandes propriedades.

Mao aprendeu as lições dessa história e desenvolveu uma linha de ação política completamente diferente. Começando na década de 1930 no sul da China, durante a longa guerra civil de libertação, Mao fundamentou a crescente presença do Partido Comunista em uma sólida aliança com os camponeses pobres e sem-terra (a maioria), mantinha relações amistosas com os camponeses médios, e isolava os camponeses ricos em todas as fases da guerra, sem necessariamente antagonizá-los. O sucesso dessa linha foi uma pré-condição para a vasta maioria dos habitantes rurais considerarem e aceitarem uma solução para seus problemas que não precisasse da propriedade privada em lotes de terra adquiridos através da distribuição. Penso eu que as ideias de Mao, e sua implementação bem-sucedida, possuem raízes históricas na Rebelião de Taiping do século XIX. Mao, então, logrou êxitos onde o Partido Bolchevique havia falhado; ao estabelecer uma sólida aliança com a vasta maioria camponesa. Na Rússia, o fato consumado do verão de 1917 eliminou oportunidades posteriores para uma aliança com os camponeses pobres e médios contra os ricos (os kulaks) devido ao fato desse último se mostrar determinado para defender sua propriedade adquirida, e os primeiros consequentemente, preferiram seguir os Kulaks ao invés dos Bolcheviques.

Essa “particularidade chinesa”—cujas consequências são de grande importância—nos impede absolutamente de caracterizar a China contemporânea (mesmo em 2013) como "capitalista" porque o caminho capitalista se baseia na transformação da terra em mercadoria.

Presente e futuro da pequena produção

Contudo, uma vez que esse princípio é aceito, as formas de usar esse bem comum (a terra das comunidades rurais) podem ser muito diversas. A fim de compreender isso, devemos ser capazes de distinguir a pequena produção da pequena propriedade.

Pequena produção—camponesa e artesanal—dominou a produção em todas as sociedades antigas. Manteve um lugar de destaque no capitalismo moderno, agora ligado à pequena propriedade—na agricultura, setor de serviços e mesmo em alguns segmentos da indústria. Certamente na tríade dominante do mundo contemporâneo (Estados Unidos, Europa e Japão), isso está sendo reduzido. Um exemplo disso é o desaparecimento do pequeno comércio e sua substituição por grandes operações comerciais. Ainda, isso não é para afirmar que essa mudança seja “progresso”, mesmo em termos de eficiência, e tudo mais se as dimensões culturais, sociais e civilizacionais são levadas em conta. Na verdade, isso é um exemplo da distorção produzida pela dominação dos monopólios e rentistas em geral. Disso se tira o fato que talvez em um socialismo futuro, o lugar da pequena produção seja chamado a retomar sua importância.

Na China contemporânea, de qualquer forma, a pequena produção—o que não necessariamente está ligado à pequena propriedade—toma posições importantes na produção nacional, não apenas na agricultura, mas também em grandes segmentos da vida urbana.

A China passou por formas bastante diversificadas e mesmo contrastantes de uso da terra como um bem comum. Precisamos discutir, por um lado, a eficiência (volume de produção de um hectare por trabalhador/ano) e, por outro, a dinâmica das transformações em movimento. Essas formas podem fortalecer tendência que vão em direção do desenvolvimento capitalista, que acabaria por questionar o estatuto de não-mercadoria da terra, ou pode ser parte do desenvolvimento em uma direção socialista. E essas questões só podem ser respondidas através de um exame concreta das formas em questão, uma vez que foram implementadas em momentos sucessivos do desenvolvimento chinês de 1950 até o presente.

No início, nos anos 50, a forma adotada foi de pequena produção familiar combinada com formas mais simples de cooperação para a gestão da irrigação, trabalho que requer coordenação, bem como a utilização de certos tipos de equipamento. Isto foi associado com a inserção dessa pequena produção familiar a uma economia de estado que manteve um monopólio sobre as compras de produtos destinados ao mercado e da oferta de crédito e insumos, tudo com base em preços planejados (decididos pelo centro).

A experiência das comunas que seguiram o estabelecimento das cooperativas de produção nos anos 70 está repleta de lições. Não foi necessariamente um problema de passar da pequena produção para grandes fazendas, mesmo que a ideia de superioridade da última, inspirasse alguns de seus apoiadores. A essência dessa iniciativa tem sua origem na aspiração por uma construção socialista descentralizada. As Comunas não apenas tiveram a responsabilidade de gerir a produção agrícola de um grande povoado ou de um conjunto de povoados e aldeias(essa organização em si foi uma mistura de formas de pequena produção familiar e produção especializada mais ambiciosas), mas como também forneceram um panorama maior : (1)anexar atividades industriais que utilizavam camponeses disponíveis em determinadas épocas do ano;(2)articular atividades econômicas produtivas junto com a gestão de serviços sociais(educação, saúde, moradia); e (3)iniciar a descentralização da administração política da sociedade. Assim como a Comuna de Paris pretendia, o Estado Socialista estava para se tornar, ao menos parcialmente, uma federação de Comunas socialistas.

Sem dúvidas, em muitos aspectos, as comunas eram um avanço para seu tempo e a dialética entre a descentralização do poder de decisão e a centralização assumida pela onipresença do Partido Comunista nem sempre operava sem contradições. Ainda, os resultados registrados foram longe de serem desastrosos, como a direita pretende nos fazer acreditar. A Comuna na região de Pequim, que resistiu à ordem de dissolução desse sistema, continua a registrar excelentes resultados econômicos, ligados à permanência de debates políticos de alta qualidade, que desapareceram em outros lugares. Os atuais projetos de “reconstrução rural”, implementado pelas comunidades rurais em diversas regiões chinesas, aparentam ser inspirados na experiência das comunas.

A decisão de dissolver as Comunas, tomada por Deng Xiaoping em 1980 fortaleceu a pequena produção familiar, que permaneceu sendo a forma dominante durante as três décadas que seguiram essa decisão. No entanto, o leque de direitos dos utilizadores (por Comunas rurais e unidades familiares) expandiu-se consideravelmente. Tornou-se possível aos titulares de direitos de uso da terra “alugar" a terra (mas nunca "vendê-la"), seja para outros pequenos produtores—facilitando, assim, a emigração para as cidades, particularmente de jovens instruídos que não querem permanecer residentes rurais— ou para empresas que visem organizar uma fazenda modernizada muito maior (nunca um latifúndio, que não existe na China, mas, no entanto, consideravelmente maior do que a agricultura familiar). Essa forma é o meio usado para encorajar produção especializada (como bons vinhos, dos quais a China pediu o auxílio de peritos da Borgonha) ou testar novos métodos científicos (OMGs e outros).

“Aprovar” ou “rejeitar” a diversidade desses sistemas, a priori não faz sentido, em minha opinião. Mais uma vez, a análise concreta de cada um deles, tanto na forma como na realidade de sua implementação, é imperativo. O fato permanece que a diversidade criativa das formas de usar a terra como bem comum levou a resultados fenomenais. Primeiramente, em termos de eficiência econômica, ainda que a população urbana tenha crescido de 20 para 50% do total da população, a China alcançou sucesso em aumentar a produção agrícola para acompanhar o ritmo da necessidade gigantesca de urbanização. Esse é um resultado marcante excepcional, sem paralelo nos países do Sul “capitalista”. Ela preservou e reforçou a sua soberania alimentar, embora sofra de uma grande desvantagem: sua agricultura alimenta 22 por cento da população do mundo razoavelmente bem enquanto a China tem apenas 6 por cento das terras aráveis do mundo. Ademais, em termos da forma (e nível) de vida das populações rurais, as aldeias chinesas já não têm nada em comum com o que ainda é dominante em outras partes do terceiro mundo capitalista. Estruturas permanentes confortáveis e bem equipadas, formam um contraste marcante, não só com a antiga China da fome e da pobreza extrema, mas também com as formas extremas de pobreza que ainda dominam a zona rural da Índia ou da África.

Os princípios e políticas implementadas (bem comum da terra, apoio à pequena produção sem a pequena propriedade) são responsáveis por esses resultados sem iguais. Tornaram possível a migração do campo para a cidade relativamente controlada. Compare isso com a via capitalista, no Brasil, por exemplo. A propriedade privada da terra agrícola tem esvaziado o interior do Brasil—hoje apenas 11 por cento da população do país. Mas no mínimo 50% da população urbana vive em favelas e sobrevivem apenas graças à “economia informal” (o que incluí crime organizado). Não existe nada do tipo na China, onde a população urbana está, como um todo, adequadamente empregada e com moradia, mesmo em comparação com os vários “países desenvolvidos”, sem nem mencionar aqueles cujo PIB per capita está no mesmo nível do chinês!

A transferência da população da zona rural chinesa extremamente densamente povoada (apenas Vietnã, Bangladesh e Egito são semelhantes) foi essencial. Melhorou as condições da pequena produção rural, tornando mais terras disponíveis. Esta transferência, embora relativamente controlada (mais uma vez, nada é perfeito na história da humanidade, nem na China, nem em outro lugar), talvez ameace tornar-se demasiadamente rápida. Isso está sendo discutido na China.

Capitalismo de Estado chinês

A primeira forma de qualificação que me vem à mente para descrever a realidade chinesa é capitalismo de estado. É, certamente, capitalismo no sentido de que a relação à que os trabalhadores são submetidos pelas autoridades que organizam a produção é semelhante a que caracteriza o capitalismo: o trabalho submisso e alienado, a extração do trabalho excedente. Formas brutais de extrema exploração dos trabalhadores existem na China, por exemplo, nas minas de carvão ou no ritmo vertiginoso das oficinas que empregam mulheres. Isto é escandaloso para um país que afirma querer avançar no caminho para o socialismo. No entanto, o estabelecimento de um regime capitalista de Estado é inevitável, e permanecerá assim em todos os lugares. Os países capitalistas desenvolvidos por si só não serão capazes de adentrar a um caminho socialista (que não está na agenda visível hoje), sem passar por esta primeira etapa. É a etapa preliminar no comprometimento potencial de qualquer sociedade que queira se libertar historicamente do capitalismo na longa jornada para o socialismo e o comunismo. A socialização e reorganização do sistema econômico sob todas as formas, desde a fábrica (uma unidade elementar) para a nação e o mundo, exige uma luta prolongada durante todo um período histórico que não pode ser encurtado.

Para além dessa reflexão preliminar, devemos concretamente descrever o capitalismo de estado em questão, trazendo a natureza e o projeto de tal Estado em particular, porque não existe apenas um tipo de capitalismo de estado, mas vários que diferem entre si. O capitalismo de estado da França da Quinta República de 1958 até 1975, foi designado para servir e fortalecer os monopólios privados franceses, e não para comprometer o país a um caminho socialista.

O Capitalismo de Estado chinês foi construído para alcançar esses três objetivos: (I) Construir um moderno sistema industrial, integrado e soberano; (II) Administrar as relações desse sistema com a pequena produção rural; e (III) Controlar a integração chinesa ao sistema mundial, dominado pelos monopólios gerais da tríade Imperialista (Estados Unidos, Europa e Japão). A realização desses três objetivos é inevitável. Como consequência, se permite um possível avanço ao longo caminho para o socialismo, mas ao mesmo tempo se fortalecem as tendências ao abandono dessa possibilidade em prol de alcance do desenvolvimento capitalista puro e simples. Deve se aceitar que esse conflito é tanto inevitável como sempre presente. A questão então é essa: as escolhas concretas da China favorecem um dos dois caminhos?

O Capitalismo de Estado chinês exigiu, em sua primeira etapa (1954-1980), a nacionalização de todas as empresas (junto à nacionalização das terras agrícolas), tanto as grandes quanto as pequenas. Em seguida, se viu uma abertura às empresas privadas, nacionais e/ou estrangeiras, e liberalizou a pequena produção rural e urbana (pequenas empresas, comércio, serviços). Contudo, grandes indústrias de base e o sistema de crédito estabelecido durante o período Maoísta não foram desnacionalizados, mesmo se as formas organizacionais de sua integração a uma economia de “mercado” foram modificadas. Esta escolha se deu em conjunto com o estabelecimento de formas de controle sobre a iniciativa privada e uma potencial associação com capital estrangeiro. Continuou observando até que ponto estes meios cumprem as suas funções atribuídas ou, pelo contrário, se eles não se tornam cascas vazias em conluio com o capital privado (através de "corrupção" da administração) tendo ganho a ajuda pelo alto.

Ainda assim, o que o capitalismo de Estado chinês alcançou, entre 1950 e 2012 é simplesmente incrível. Na verdade, obteve sucesso em construir um sistema produtivo moderno soberano e integrado, na escala desse país gigantesco, o que só pode ser comparado com aquele dos Estados Unidos. Ele conseguiu deixar para trás a forte dependência tecnológica de suas origens (importação Soviética, e em seguida, dos modelos ocidentais) através do desenvolvimento de sua própria capacidade para produzir invenções tecnológicas. Entretanto, (ainda?) não começou a reorganização do trabalho pela perspectiva da socialização da gestão econômica. O planejamento— e não a “abertura”— manteve os meios centrais para a implementação desta construção sistemática.

Na fase maoísta desse desenvolvimento planejado, o planejamento permaneceu imprescindível em todos os pormenores: natureza e locação dos novos estabelecimentos, objetivos de produção, e preços. Nessa fase, nenhuma alternativa razoável era possível. Mencionarei aqui, sem aprofundar isso mais tarde, o debate interessante sobre a natureza da lei do valor que sustentou o planejamento nesse período. O próprio sucesso—e não o fracasso—dessa primeira fase exigiu uma alteração nos meios para a execução de um projeto de desenvolvimento acelerado. A “abertura” à iniciativa privada—que se inicia em 1980, mas acima de tudo em 1990— foi necessária para que se evitasse a estagnação que foi fatal para a URSS. Apesar do fato de que essa abertura coincidiu com o triunfo globalizado do neoliberalismo—com todos os efeitos negativos dessa coincidência, da qual eu devo retomar—, a escolha de um “socialismo de mercado, ou melhor ainda, um “socialismo com mercado”, como fundamental para essa segunda etapa de desenvolvimento acelerado é em grande parte justificada, em minha opinião.

Os resultados dessa escolha são, mais uma vez, simplesmente incríveis. Em poucas décadas, a China construiu uma urbanização industrial, produtiva que reúne 600 milhões de seres humanos, dois terços dos quais foram urbanizados nas últimas duas décadas (quase igual à população da Europa!). Isto é devido ao planejamento e não ao mercado. A China hoje tem um sistema produtivo verdadeiramente soberano. Nenhum outro país do Sul (exceto Coreia e Taiwan) foi bem-sucedido em fazer isso. Na Índia e Brasil existem alguns poucos elementos variados de projeto de soberania do mesmo tipo, mas nada mais.

Os métodos para projetar e implementar o planejamento foram mudados nessas novas condições. O planejamento permanece imprescindível para os enormes investimentos infra estruturais que são necessários pelo projeto: para abrigar 400 milhões de novos habitantes urbanos em condições adequadas, e para construir uma rede incomparável de rodovias, estradas, ferrovias, barragens e usinas de energia elétrica; para a abertura de todos ou quase todos da zona rural chinesa; e para transferir o centro gravitacional do desenvolvimento das regiões costeiras para o oeste continental. O planejamento também permanece imprescindível — ao menos parcialmente — para os objetivos e recursos financeiros de empresas públicas (do Estado, províncias, municípios). Quanto ao resto, se aponta para os possíveis e prováveis objetivos de expansão da pequena produção urbana de mercadorias bem como atividade privada industrial e outras atividades privadas. Estes objetivos são levados a sério e os recursos político-econômicos necessários para a sua realização são especificados. No seu conjunto, os resultados não são muito diferentes das previsões "planejadas".

O Capitalismo de Estado chinês se integrou nas dimensões de seu projeto de desenvolvimento visivelmente social (não estou falando em “socialista”). Esses objetivos já estavam presentes na era Maoísta: erradicação do analfabetismo, saúda básica para todos, etc. Na primeira parte da fase pós-maoísta (década de 1990), a tendência foi, sem dúvida, a negligencia da busca destes esforços. Entretanto, deveria ser notado que a dimensão social desse projeto, desde então, tomou de volta seu lugar, e em resposta a movimentos sociais fortes e ativos, se espera que façam mais progressos. A nova urbanização não tem comparação com qualquer país do Sul. Certamente existem bairros “chiques” e outros que não são sob nenhum ponto de vista, ricos; mas não existem favelas, que continuaram a se expandir em todos os lugares nas cidades do terceiro mundo.

A integração da China na globalização capitalista

Não podemos prosseguir na análise do capitalismo de Estado chinês (chamado de “socialismo de mercado” pelo governo) sem levar em consideração sua integração na globalização. O mundo soviético havia visado um desligamento do sistema mundial capitalista, complementando esse desligamento através da construção de um sistema socialista integrado que inclua a URSS e a Europa Oriental. A URSS conseguiu esta dissociação, em grande parte, imposta por outro lado pela hostilidade do Ocidente; mesmo culpando o bloqueio para seu isolamento. No entanto, o projeto de integração da Europa Oriental nunca avançou para muito longe, apesar das iniciativas da COMECOM. As nações do Leste Europeu permaneceram em posições incertas e vulneráveis, parcialmente desvinculadas—mas sob uma base estritamente nacional—e parcialmente com uma abertura à Europa Ocidental que se inicia em 1970. Nunca houve uma questão acerca de uma integração entre URSS e a China, não apenas porque o nacionalismo chinês não aceitaria isso, mas ainda mais porque as tarefas prioritárias chinesas não exigiam isso. A China Maoísta praticamente se demarcou em seu próprio caminho. Devemos dizer que, por reintegrar-se na globalização no início na década de 1990, ela total e permanentemente renunciou essa desvinculação?

A China entrou na globalização nos anos 90 pelo caminho do desenvolvimento acelerado de exportações de manufaturados possíveis para seu sistema produtivo, dando prioridade às exportações cujas taxas de crescimento, em seguida, superaram as do crescimento do PIB. O triunfo do neoliberalismo favoreceu o sucesso desta escolha por quinze anos (1990-2005). O exercício dessa escolha é questionável não apenas pelos seus efeitos políticos e sociais, mas também porque ela é ameaçada pela implosão do capitalismo globalizado neoliberal, que começa em 2007. O Governo Chinês aparenta estar ciente disso e muito cedo começou a tentar corrigir isso ao dar grande importância para o mercado interno e o desenvolvimento do Oeste da China.

Dizer, e como se ouve ad nauseam, que o sucesso chinês deve ser atribuído ao abandono do maoísmo (cujo “fracasso” era óbvio), à abertura, e à entrada de capital estrangeiro é simplesmente idiota. A construção maoísta pôs em prática as bases que sem elas, a abertura não teria alcançado seu sucesso bem conhecido. A comparação com a Índia, que não fez uma revolução comparável, demonstra isso. Dizer que o sucesso chinês é principalmente (ou até “completamente”) atribuível às iniciativas do capital estrangeiro não é menos idiota. Não foi o capital multinacional que construiu o sistema industrial chinês e atingiu os objetivos da urbanização e de construção de infraestrutura. O sucesso é 90% atribuível ao projeto de soberania chinês. Certamente, a abertura para o capital estrangeiro tem cumprido funções úteis: aumentou a importação de tecnologias modernas. No entanto, por causa de seus métodos de parceria, a China absorveu essas tecnologias e agora domina o seu desenvolvimento. Não há nada semelhante em nenhum lugar, mesmo na Índia ou no Brasil, a fortiori na Tailândia, Malásia, África do Sul e outros lugares.

A integração da China na globalização tem-se mantido, além disso, parcial e controlada (ou pelo menos controlável, se alguém quiser colocar dessa maneira). A China ficou de fora da globalização financeira. Seu sistema bancário é totalmente nacional e focado no mercado de crédito interno do país. A gestão do yuan ainda é uma questão de tomada de decisão soberana da China. O yuan não está sujeito aos caprichos dos intercâmbios flexíveis que a globalização financeira impõe. Pequim pode dizer a Washington "o yuan é o nosso dinheiro e seu problema", assim como Washington disse aos europeus, em 1971, "o dólar é o nosso dinheiro e seu problema.” Mais além, a China retém uma grande reserva para expansão em seu sistema de crédito público. A dívida pública é insignificante em comparação com as taxas de endividamento (considerada intolerável) nos Estados Unidos, Europa, Japão e muitos dos países do Sul. China pode, assim, aumentar a expansão de seus gastos públicos sem grave perigo de inflação.

A exportação de capital estrangeiro para a China, que se beneficiou disso, não está por trás do sucesso de seu projeto. Pelo contrário, é o sucesso do projeto que fez o investimento na China atraente para as multinacionais ocidentais. Os países do Sul, que abriram suas portas muito mais amplamente do que a China e aceitaram incondicionalmente a sua submissão à globalização financeira não se tornaram atraentes em mesmo nível. O capital transnacional não é exportado para a China para saquear os recursos naturais do país, sem qualquer transferência de tecnologia, para terceirizar e se beneficiar de baixos salários; nem para aproveitar os benefícios da integração de unidades deslocalizadas não relacionados a sistemas produtivos nacionais inexistentes, como em Marrocos e na Tunísia; nem mesmo para realizar um ataque financeiro e permitir que os bancos imperialistas desintegrem as economias nacionais, como foi o caso no México, Argentina, e no Sudeste Asiático. Na China, em contraste, investimentos estrangeiros podem certamente se beneficiar de baixos salários e fazerem bons lucros para eles, sob a condição que seus planos se encaixem nos da China e permitam a transferência de tecnologia. Em suma, esses são lucros “normais”, mas mais pode ser feito em conluio com a permissão das autoridades chinesas!

China, potência emergente

Ninguém duvida que a China seja uma potência emergente. Uma ideia frequente é que a China apenas está tentando recuperar o lugar que tinha ocupado durante séculos e perdeu apenas no século XIX. No entanto, esta ideia, certamente correta, e apologética, por outro lado, não nos ajuda muito na compreensão da natureza desta emergência e as suas perspectivas reais no mundo contemporâneo. Aliás, aqueles que propagam essa ideia geral e vaga não possuem interesse em considerar se a China vai emergir se agrupando em torno dos princípios gerais do capitalismo (que eles provavelmente pensam ser necessários) ou se irá levar a sério seu projeto de “socialismo com características chinesas”. Da minha parte, eu defendo que a China é de fato uma potência emergente, e isso se deve precisamente ao fato que não escolheu o desenvolvimento puro e simples do caminho capitalista; e isso, como consequência, se tivesse decidido seguir o caminho capitalista, o projeto de emergência em si estaria sob sérios ricos de fracassar.

A tese que eu apoio implica em rejeitar a ideia que os povos não podem simplesmente pular uma sequência necessária de etapas e que a China deve passar por um desenvolvimento capitalista antes que a questão sobre seu possível futuro socialista seja considerada. O debate sobre esse problema entre as diferentes correntes do marxismo na história nunca foi concluído. Marx se manteve hesitante sobre isso. Sabemos que logo após os primeiros ataques da Europa (Guerra do Ópio), ele escreveu: a próxima vez que vocês enviarem seus exércitos para a China, eles serão recebidos com uma bandeira “Atenção, vocês estão chegando nas fronteiras da burguesa República da China”. Isto é uma intuição magnífica e mostra confiança na capacidade do povo chinês em responder a esse desafio, mas ao mesmo tempo ele errou porque na verdade estava escrito na bandeira: “Vocês estão a chegar nas fronteiras da República Popular da China”. Ainda que, e nós sabemos disso, que no que tange a Rússia, Marx não rejeitou a ideia de pular a etapa capitalista (veja suas correspondências com Vera Zasulich). Hoje, alguém pode acreditar que o primeiro Marx estava certo e que a China está de fato no caminho do desenvolvimento capitalista.

Mas Mao entendeu—melhor que Lenin— que o caminho capitalista não levaria para nada e que a ressureição da China poderia ser apenas a tarefa dos comunistas. Os Imperadores Qing no final do século XIX, seguidos por Sun Yat Sen e pelo Kuomintang, já haviam planejado uma ressureição chinesa em resposta ao desafio do Ocidente. Contudo, eles não imaginaram outro caminho além do capitalismo e não possuíam os recursos intelectuais necessários para entender o que é o capitalismo de fato e porque esse caminho já havia sido fechado para a China, e para todas as periferias do capitalismo. Mao, um marxista de espírito independente, entendeu isso. Mais do que isso, Mao entendeu que sua batalha não havia sido ganha em um primeiro momento—pela vitória em 1949—e que o conflito entre o comprometimento com o longo caminho para o socialismo, as condições para o renascimento da China, e o retorno ao rebanho capitalista ocuparia todo o futuro que se via a frente.

Pessoalmente, eu sempre compartilhei da análise de Mao e eu sempre retomo o assunto em alguns de meus pensamentos que concernem o papel da Revolução de Taiping (que eu considero ser a origem distante do maoísmo), a revolução de 1911 na China, e outras revoluções ao Sul no começo do século XX, os debates no começo do período da Conferência de Bandung e a análise dos impasses aos quais os assim chamados países emergentes que se comprometeram com o caminho capitalista estão presos. Todas essas considerações são corolários da minha tese central que concerne a polarização (i.e., construção do contraste entre centro e periferia) imanente ao desenvolvimento mundial do capitalismo histórico. Essa polarização elimina a possibilidade de um país periférico “se ascender” dentro do contexto capitalista. Devemos desenhar essa conclusão: se alcançar os países ricos é impossível, alguma outra coisa deve ser feita—se chama seguir o caminho socialista.

China não tem seguido um caminho específico apenas a partir de 1980, mas desde 1950, embora esse caminho tenha passado por etapas que são diferentes em muitos aspectos. A China tem desenvolvido um projeto coerente, soberano que é adaptado para suas próprias necessidades. Este certamente não é o capitalismo, cuja lógica exige que a terra agrícola seja tratada como uma mercadoria. Este projeto permanece soberano na medida em que a China permanece fora da globalização financeira contemporânea.

O fato sobre o projeto chinês não ser capitalista não significa que “seja” socialista, apenas que torna possível avançar para o longo caminho em direção ao socialismo. No entanto, também é ainda ameaçado por um desvio que possa a tirar desse caminho e terminar com um retorno, puro e simples, ao capitalismo.

A emergência bem sucedida da China é completamente resultado de seu projeto soberano. Nesse sentido, China é a única nação emergente autêntica (junto da Coreia e Taiwan, das quais falaremos mais depois). Nenhuma das outras nações que o Banco Mundial concedeu certificado de emergência é verdadeiramente emergente porque nenhuma dessas nações está persistentemente buscando um projeto soberano coerente. Todas subscrevem os princípios fundamentais do capitalismo puro e simples, mesmo em setores potenciais de seu capitalismo de Estado. Todas aceitaram a submissão à globalização contemporânea em todas as suas dimensões, incluindo a financeira. Rússia e Índia são exceções parciais nesse último quesito, mas não Brasil, África do Sul e outras. Eventualmente existem fragmentos de uma “política industrial nacional”, mas nada comparado com o projeto sistemático da China de construir um sistema industrial, completo, integrado e soberano (notadamente na área de especialização tecnológica).

Por essas razões estes outros países, muito precipitadamente caracterizados como emergentes, continuam vulneráveis em graus variados, mas sempre muito mais do que a China. Por todas estas razões, as aparências de emergência— respeitáveis índices de crescimento, capacidade de exportar produtos manufaturados—estão sempre ligadas aos processos de pauperização que afetam a maioria de suas populações (especialmente o campesinato), que não é o caso da China. Certamente o crescimento da desigualdade é óbvio em todo o mundo, incluindo a China; mas essa observação permanece superficial e enganosa. Desigualdade na distribuição de benefícios de um modelo de crescimento que, não obstante não exclui ninguém (e é inclusive acompanhado de uma redução dos bolsões de pobreza—que é o caso chinês) é uma coisa; a desigualdade conjunta com um crescimento que beneficia apenas uma minoria (de 5% a 30% da população, dependendo do caso) enquanto os outros permanecem desesperados é outra coisa. Aqueles que praticam China Bashing desconhecem—ou fingem desconhecer—essa diferença decisiva. A desigualdade que resulta da existência de bairros com moradias de luxo, por um lado, e alojamentos com habitação confortável para as classes média e operárias, por outro, não é o mesmo que a desigualdade resulta da justaposição de bairros ricos, habitação de classe média e favelas para a maioria. Os coeficientes de Gini possuem valor para a medição das mudanças de um ano para o outro num sistema com uma estrutura fixa. No entanto, nas comparações internacionais entre sistemas com diferentes estruturas, eles perdem seu significado, como todas as outras medidas de magnitudes macroeconômicas em termos nacionais. Os países emergentes (além da China) são de fato “mercados emergentes” abertos à penetração por monopólios da tríade imperialista. Esses mercados permitem os últimos a extrair, em seu benefício próprio, uma parte considerável da mais valia produzida no país em questão. A China é diferente; é uma nação emergente, onde o sistema torna possível a retenção da maior parte de sua mais valia produzida ali.

Coreia e Taiwan são os únicos exemplos bem sucedidos de uma emergência autêntica e dentro do capitalismo. Esses dois países devem esse sucesso às razões geoestratégicas que levaram os Estados Unidos a permitir-lhes alcançar o que Washington proibiu os outros de fazerem. O contraste entre o apoio dos Estados Unidos para o capitalismo de Estado destes dois países e a oposição extremamente violenta ao capitalismo de Estado no Egito de Nasser ou a Argélia de Boumedienne é, nesse sentido, bastante esclarecedor.

Não discutirei aqui os projetos potenciais de emergência, que aparecem bem possíveis no Vietnã e em Cuba, ou as condições para uma possível retomada do progresso nesse sentido na Rússia. Nem discutirei os objetivos estratégicos da luta pelas forças progressistas seja no Sul capitalista, na Índia, Sudeste Asiático, América Latina, mundo árabe, e na África, que poderia facilitar indo além dos impasses atuais e incentivar a emergência de projetos soberanos que iniciem uma verdadeira ruptura com a lógica do capitalismo dominante.

Grandes sucessos, novos desafios

A China não acabou de chegar nessa encruzilhada; esteve nela todos os dias desde 1950. As forças políticas e sociais da direita e da esquerda, ativas nas sociedades e no partido, constantemente se enfrentaram.

De onde a direita chinesa surge? Com certeza, da antiga Burguesia burocrático compradora do Kuomintang que foram excluídos do poder. No entanto, no decorrer da guerra de libertação, segmentos inteiros das classes médias, profissionais, funcionários, e industriais, decepcionados com a ineficácia do Kuomintang em face da agressão japonesa, aproximaram-se do Partido Comunista, inclusive entrando em suas fileiras. Muitos deles—mas certamente não todos—continuaram nacionalistas, e mais nada. Posteriormente, começando nos anos 90 com a abertura para iniciativa privada, uma direita nova, mais poderosa, apareceu. Não deve ser reduzida simplesmente a "empresários" que tiveram sucesso e fizeram fortunas (por vezes colossais), fortalecidos pelos seus negociantes—o que inclui funcionários do Estado e do Partido, que misturam o controle com conivência e até mesmo corrupção.

Este sucesso, como sempre, incentiva o apoio às ideias de direita nas crescentes classes médias instruídas. É neste sentido que a crescente desigualdade, mesmo que não tenha nada em comum com a característica desigualdade de outros países no Sul—é um grande perigo político, o veículo para a propagação de ideias de direita, despolitização e ilusões ingênuas.

Aqui devo fazer uma observação adicional que acredito ser importante: a pequena produção, particularmente camponesa, não é motivada por ideias direitistas, como Lenin pensava (isso era correto nas condições russas). A situação da China aqui diverge bastante daquela da antiga URSS. O campesinato chinês, como um todo, não é reacionário porque não defende o princípio da propriedade privada, em oposição com o campesinato soviético. Ao contrário, o campesinato chinês de pequenos produtores (sem serem pequeno proprietários) é hoje uma classe que não se entrega a soluções direitistas, mas é parte do campo de forças de agitação para a adoção das políticas sociais e ecológicas mais corajosas. O forte movimento de “renovação da sociedade rural” comprova isso. O campesinato chinês em grande parte fica no campo de esquerda, junto com a classe operária. A esquerda possui intelectuais orgânicos provenientes do campo e exerce alguma influência nos aparatos do Estado e do Partido.

O conflito contínuo entre a direita e esquerda na China sempre se refletiu nas linhas políticas sucessivas implementadas pelo Estado e pela liderança do partido. Na era maoísta, a linha de esquerda não foi dominante sem luta. Avaliando o avanço das ideias de direita dentro do partido e sua liderança, um pouco parecido como o modelo soviético, Mao lançou a Revolução Cultural para combatê-las. “Bombardear os quartéis-generais”, ou seja, a liderança do Partido, onde a “Nova burguesia” estava se formando. No entanto, enquanto a Revolução Cultural atendeu às expectativas de Mao durante seus dois primeiros anos de existência, posteriormente tomou um desvio anárquico, ligado à perda do controle por Mao e da esquerda do partido ao longo da sequência dos eventos. Este desvio levou ao Partido e Estado tomarem a situação por cima de novo, o que deu à direita, a sua oportunidade. Desde então, a direita foi uma parte forte de todos os órgãos de liderança. No entanto, a esquerda está presente no terreno, submetendo a liderança suprema aos compromissos do "centro"—mas seria centro-esquerda ou centro-direita?

Para compreender a natureza dos desafios que a China enfrenta hoje, é essencial entender que o conflito entre o projeto soberano chinês, tal como ele é, e o Imperialismo Norte Americano e seus aliados subalternos europeus e japoneses irá aumentar em maior grau à medida que a China prossiga em seu sucesso. Existem diversas áreas de conflito: o controle da China por tecnologias modernas, o acesso aos recursos do planeta, o fortalecimento das capacidades militares da China, e o alcance do objetivo de reconstrução da política internacional com base nos direitos soberanos dos povos em escolher seu próprio sistema político e econômico. Cada um desses objetivos entra em conflito direto com os objetivos visados pela tríade imperialista.

O objetivo da estratégia política dos EUA é o controle militar do planeta, a única maneira que Washington pode manter as vantagens que lhe dão hegemonia. Esse objetivo está sendo advogado por meio de guerras preventivas no Oriente Médio, e nesse sentido essas guerras são as preliminares para a guerra (nuclear) preventiva contra a China, a sangue-frio, e prevista pelo departamento de Estado da América do Norte como uma possibilidade necessária “antes que seja tarde demais”. Fomentar a hostilidade à China é inseparável desta estratégia global, que se manifesta no apoio demonstrado para os proprietários de escravos do Tibet e Sinkiang, o reforço da presença naval dos EUA no Mar da China, e o incentivo irrestrito ao Japão em construir suas forças militares. Os praticantes do China Bashing contribuem para manter essa hostilidade viva.

Simultaneamente, Washington se dedica a manipular a situação ao apaziguar as possíveis ambições da China e de outros países ditos emergentes, através da criação do G20, que se destina a dar a estes países a ilusão de que a sua adesão à globalização liberal iria servir aos seus interesses .O G2(Estados Unidos e China) é—nesse sentido—uma armadilha que, ao fazer da China um cúmplice das aventuras imperialistas dos EUA, poderia fazer a política externa pacífica de Pequim perder toda a sua credibilidade.

A única resposta eficaz possível a esta estratégia deve proceder em dois níveis: (I) Fortalecer as forças militares da China e equipá-las com o potencial para uma resposta decisiva, e (II) tenazmente prosseguir o objetivo de reconstruir um sistema político internacional policêntrico, que respeite todas as soberanias nacionais, e, para concretizar isto, agir no sentido de reabilitar as Nações Unidas, agora marginalizadas pela OTAN. Eu enfatizo a importância decisiva do último objetivo, que implica a prioridade em reconstruir uma “frente do Sul” (uma segunda conferência de Bandung?) capaz de apoiar as iniciativas independentes dos povos e Estados do Sul. Implica, por sua vez, que a China se torne ciente que não tem os meios para a possibilidade absurda de se alinhar às práticas predatórias do Imperialismo (pilhagem de recursos naturais do planeta), já que carece de um poder militar similar àquele dos Estados Unidos, que em última instância é a garantia de sucesso para projetos imperialistas. A China, pelo contrário, tem muito a ganhar em desenvolver sua oferta de apoio à industrialização dos países do Sul, que o clube dos "doadores" imperialistas está tentando fazer impossível.

A linguagem usada pelas autoridades chinesas em matéria de questões internacionais, que é muito comedida (o que é compreensível), torna difícil saber até que ponto os líderes do país estão conscientes dos desafios abordados acima. Mais a sério, esta escolha de palavras reforça ilusões ingênuas e despolitização da opinião pública.

A outra parte do desafio concerne o problema da democratização da gestão política e social do país. Mao formulou e implementou um princípio geral para a gestão política da nova China que ele resumiu nos seguintes termos: reunir a esquerda, neutralizar (eu acrescento: e não eliminar) a direita, governar a partir da centro-esquerda. Na minha opinião, esta é a melhor maneira de conceber uma forma eficaz para prosseguir em avanços sucessivos, compreendidos e apoiados pela grande maioria. Dessa forma, Mao deu um conteúdo positivo à concepção de democratização da sociedade combinado com progresso social sob o longo caminho em direção ao socialismo. Ele formulou o método ao implementar isso: a “linha de massas” (ir até as massas, aprender com suas lutas, e voltar para as cúpulas de poder). Lin Chun analisou com precisão esse método e os resultados que o fazem possível.

O problema da democratização combinado com progresso social—o contrário de uma “democracia” desligada do progresso social (e até frequentemente ligada a regressão social) — não interessa apenas à China, mas a todos os povos do mundo. Os métodos com os quais isso deve ser implementado com sucesso não podem ser sintetizados em uma única fórmula, válido em qualquer época para qualquer lugar. De qualquer forma, a fórmula oferecida e propagada pela mídia ocidental—multipartidarismo e eleições—deve simplesmente ser rejeitada. Mais além, esse tipo de “democracia” se tornou em uma farsa, mesmo no Ocidente, mais ainda em outros lugares. A “linha de massas” foi o meio de gerar consenso em objetivos sucessivos, constantemente progredindo, e estratégicos. Isso vai em contraposição ao “consenso” obtido nos países ocidentais através da manipulação midiática e da farsa eleitoral, que é nada mais que o alinhamento com as exigências do capital.

Ainda hoje, como deveria a China começar a reconstruir o equivalente a uma nova linha de massas em suas novas condições sociais? Não será fácil porque o poder da liderança, que guinou em maior parte para a direita no Partido Comunista, baseia a estabilidade de sua direção em despolitização e nas ilusões ingênuas que vão em conjunto a isso. O próprio sucesso das políticas de desenvolvimento fortalece a tendência espontânea em mover para esta direção. Se acredita abertamente na China, entre as classes médias, que a estrada real para acompanhar o modo de vida dos países ricos está agora aberta, livre de obstáculos; acredita-se que os membros da tríade (Estados Unidos, Europa, Japão) não se opõem a isso; os métodos dos EUA são mesmo acriticamente admirados; etc. Isso é particularmente verdade para as camadas médias urbanas, que estão em um rápido crescimento e cujas condições de vida estão sob incríveis melhoras. A lavagem cerebral que os estudantes chineses são submetidos nos Estados Unidos, em particular nas ciências sociais, combinado com a rejeição do ensino oficial do marxismo “sem imaginação” e “tedioso”, têm contribuído para diminuir os espaços de debates radicais e críticos.

O Governo da China não é insensível à questão social, não apenas devido à tradição de um discurso fundado no marxismo, mas também porque o povo chinês, que aprendeu como lutar e continua a fazer isso, pressiona as autoridades do governo. Se, nos anos 90, essa dimensão social declinou ante as prioridades imediatas de acelerar o crescimento, hoje a tendência é que se reverta isso. Ao mesmo tempo quando as conquistas social-democratas estão se corroendo no Ocidente rico, a China pobre está implementando a expansão da proteção social em três dimensões—saúde, moradia e pensões. As políticas de habitação popular, difamadas pelo China Bashing da direita e esquerda europeia, seriam invejadas, não apenas na Índia ou Brasil, mas igualmente nas regiões carentes de Paris, Londres ou Chicago!

A previdência social e o sistema de pensões já cobrem 50% da população urbana (que lembrem-se, aumentou, de 200 para 600 milhões de habitantes!) e o planejamento (que a China ainda leva a cabo) antecipa que se cubra a população em 85% nos anos que se seguem. Deixem os jornalistas do China Bashing nos dar exemplos comparáveis nos “países que embarcaram no caminho democrático”, que eles continuamente rasgam elogios. No entanto, o debate permanece aberto sobre os métodos de execução do sistema. A esquerda advoga pelo sistema francês de distribuição baseado no princípio de solidariedade entre esses trabalhadores e as diferentes gerações—que pré-condiciona a instauração do socialismo—enquanto a direita, obviamente, prefere o sistema odioso de fundos de pensão dos Estados Unidos, que divide trabalhadores e transfere os riscos do capital para o trabalho.

No entanto, a aquisição dos benefícios sociais é insuficiente se não for combinada com a democratização da administração política da sociedade, com sua repolitização por métodos que fortaleçam a invenção criativa de formas para o futuro socialista e comunista.

Seguindo os princípios de um sistema eleitoral multipartidário como defendido ad nauseam pela mídia ocidental e praticantes de China Bashing, e defendido pelos “dissidentes” apresentados como “democratas” autênticos, não enfrentam esse desafio. Ao contrário, a implementação desses princípios poderia apenas gerar na China, como todas as experiências do mundo contemporâneo demonstraram (Na Rússia, Leste Europeu, mundo árabe), a autodestruição do projeto emergente e de renascimento social, que é na verdade o atual objetivo de preconizar esses princípios, mascarados por uma retórica vazia (“não existe outra solução além das eleições multipartidárias”!). Ainda assim, não é suficiente contrapor essa solução ruim com um retorno à posição inflexível de defesa do privilégio do “Partido”, em si esclerosado e transformado em uma instituição dedicada ao recrutamento de funcionários para a administração do Estado. Algo novo deve ser inventado.

Os objetivos de repolitização e a criação de condições favoráveis para a invenção de novas respostas não podem ser obtidos através de campanhas de “propaganda”. Podem apenas ser promovidos através de lutas políticas, sociais e ideológicas. Isso implica o reconhecimento provisório da legitimidade dessas lutas e uma legislação com base nos direitos coletivos de organização, expressões políticas e proposta de iniciativas legislativas. Isso implica, por sua vez, que o próprio partido está envolvido nessas lutas; em outras palavras, a reinvenção da fórmula maoísta da linha de massas. A repolitização não faz sentido se não for combinada com procedimentos que incentivem a conquista gradual de responsabilidade por parte dos trabalhadores na gestão da sua sociedade em todos os níveis— nas empresas, no regional e no nacional. Um programa desse nível não exclui os direitos individuais. Pelo contrário, supõe sua institucionalização. Sua implementação tornaria possível reinventar novas formas de utilização de eleições para escolha de líderes.

Nota

[1] “China Bashing” se refere a uma das práticas favoritas da mídia ocidental, qualquer que seja sua tendência — o que inclui a esquerda, infelizmente — que consiste em sistematicamente difamar, ou mesmo criminalizar, tudo que seja feito na China. A China exporta lixo barato para os pobres mercados do terceiro mundo (isso é real), um crime terrível. No entanto, também produz trens de alta velocidade, aviões, satélites, cujas qualidades tecnológicas maravilhosas são elogiadas no Ocidente, mas das quais a China não deveria ter o direito a elas! Eles parecem pensar que a construção em massa de moradias para a classe operária nada mais é do que jogar os trabalhadores para favelas e a uma “desigualdade” na China (casas de trabalhadores não são bairros ricos) comparada a existente na Índia (bairros ricos ao lado de favelas), e etc. China Bashing permeia também as opiniões juvenis encontradas em algumas tendências da fraca “esquerda” ocidental: se não é o comunismo do século 23, é uma traição! China Bashing faz parte da campanha sistemática de manutenção das agressões hostis contra a China, tendo em vista uma possível agressão militar. Isso é nada menos do que uma questão da destruição das oportunidades para uma emergência autêntica do grande povo do Sul.

Fontes

O caminho chinês e a questão agrária

Karl Kautsky, On the Agrarian Question, 2 vols. (London: Zwan Publications, 1988). Originally published 1899.

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Samir Amin, “The 1911 Revolution in a World Historical Perspective: A Comparison with the Meiji Restoration and the Revolutions in Mexico, Turkey and Egypt,” published in Chinese in 1990.

Samir Amin, Ending the Crisis of Capitalism or Ending Capitalism? (Oxford: Pambazuka Press, 2011), chapter 5, “The Agrarian Question.”

Globalização contemporânea, o desafio imperialista

Samir Amin, A Life Looking Forward: Memoirs of An Independent Marxist (London: Zed Books, 2006), chapter 7, “Deployment and Erosion of the Bandung Project.”

Samir Amin, The Law of Worldwide Value (New York: Monthly Review Press, 2010), “Initiatives from the South,” 121ff, section 4.

Samir Amin, The Implosion of Contemporary Capitalism (New York: Monthly Review Press, forthcoming in 2013), chapter 2, “The South: Emergence and Lumpendevelopment.”

Samir Amin, Beyond US Hegemony (London: Zed Books, 2006). “The Project of the American Ruling Class,” “China, Market Socialism?,” “Russia, Out of the Tunnel?,” “India, A Great Power?,” and “Multipolarity in the 20th Century.”

Samir Amin, Obsolescent Capitalism (London: Zed Books, 2003), chapter 5, “The Militarization of the New Collective Imperialism.”

André Gunder Frank, ReOrient: Global Economy in the Asian Age (Berkeley: University of California Press, 1998).

Yash Tandon, Ending Aid Dependence (Oxford: Fahamu, 2008).

O desafio democrático

Samir Amin, “The Democratic Fraud and the Universalist Alternative,” Monthly Review 63, no. 5 (October 2011): 29–45.

Lin Chun, The Transformation of Chinese Socialism (Durham, NC: Duke University Press, 1996).

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