3 de março de 2013

A ilusão da austeridade

Por que uma má ideia conquistou o Ocidente

Mark Blyth


"Algo mais terá que ser cortado": graffiti em Sevilha, Espanha, novembro de 2012. Reuters / Marcelo Del Pozo

Tradução / Incapaz de agir de forma construtiva e no sentido de um fim em comum, o Congresso dos EUA recentemente decidiu começar a jogar o jogo do frango com a economia americana. O descalabro da discussão à volta do teto da dívida abriu o caminho para o abismo “fiscal”, que se transformou em cortes lineares nos gastos militares e cortes discricionários na despesa conhecidos como o “sequestro”. Aconteça o que acontecer em seguida no campo dos impostos, é provável que venha a haver mais cortes na despesa pública. E, portanto, estamos com uma forma modificada da austeridade que tem caracterizado a formulação de políticas na Europa desde 2010 e está agora a ser aplicada nos Estados Unidos também; as perguntas que se levantam são a de qual vai o sucesso de tudo isto e a de quem é que irá pagar a fatura, ou seja, quem é que vai suportar o peso de tudo isto. O que faz tudo tão absurdo é o fato de que o exemplo europeu demonstrou uma vez mais, porque é que aderir ao clube da austeridade é exatamente a atitude errada para uma economia que está em dificuldades para conseguir sair da crise.

Os países da zona euro, o Reino Unido e os Estados bálticos, ofereceram-se como voluntários para uma grande experiência em que se pretende saber se é possível, para um país economicamente em situação de estagnação, traçar o seu caminho para a prosperidade. A austeridade – a deflação deliberada de salários nacionais e dos preços através de fortes cortes nas despesas públicas – foi projetada para reduzir a situação de endividamento dos Estados devedores assim como dos seus défices, para aumentar a sua competitividade e para restaurar o que é vagamente referido como a “confiança empresarial”. O último ponto é fundamental: os defensores da austeridade acreditam que cortar nas despesas públicas estimula o investimento privado, desde que isso signifique que o governo nem vai gerar nenhum efeito de evicção do mercado de investimento com os seus próprios esforços para estimular a economia, nem vai estar a aumentar a sua carga de dívida. Consumidores e produtores, o argumento é assim mesmo, estes agentes ir-se-ão sentir, ambos os grupos, confiantes quanto ao seu futuro e vão gastar mais, permitindo-se assim que a economia volte novamente a crescer.

Em consonância com tal linha de pensamento e na sequência do choque da recente crise financeira, que provocou um crescimento rápido da dívida pública, uma grande parte da Europa tem andado a aplicar as políticas de austeridade de forma consistente durante os últimos quatro anos. Os resultados desta política encontram-se bem visíveis e são igualmente consistentes: a austeridade não funcionou, não funciona. A maioria das economias da periferia da zona euro está em queda livre desde 2009 e no quarto trimestre de 2012, a zona euro como um todo contraiu-se pela primeira vez. A economia de Portugal recuou 1,8%, a de Itália caiu 0,9 por cento e até mesmo a suposta grande potência da região, a Alemanha, viu a sua economia contrair-se 0,6 por cento. O Reino Unido, apesar de não estar na zona do euro, só à justa escapou de ser considerada a economia de um país do mundo desenvolvido com uma recessão em triplo V.

A única surpresa é que isso deve parecer estar a acontecer como sendo uma verdadeira surpresa. Afinal, o Fundo Monetário Internacional advertiu em Julho de 2012 que cortes simultâneos nas despesas públicas em economias interligadas durante uma recessão, quando as taxas de juros já estão muito baixas, poderão inevitavelmente vir a prejudicar as perspectivas de crescimento. E esse aviso foi publicado quando já era ampla a evidência de que todos os países que tinham abraçado a austeridade como a política escolhida, tinham elevado significativamente o seu valor da dívida relativamente aos valores de partida. A relação dívida pública/ PIB de Portugal aumentou de 62 por cento em 2006 para 108%, em 2012. A mesma relação para a Irlanda em que esta mais do que quadruplicou, de 24,8% em 2007 para 106,4% em 2012. O rácio de dívida-PIB na Grécia subiu de 106% em 2007 para 170 por cento em 2012. E a dívida da Letônia passou de 10,7 por cento do PIB em 2007 para 42 por cento em 2012. Nenhuma destas estatísticas começou a contabilizar os custos sociais da austeridade, que incluem os elevados níveis de desemprego nunca vistos desde a década de 1930, nos países que agora compõem a zona euro. Então porque é que a administração pública de cada um dos países da zona euro, e não só da zona euro como é o caso da Inglaterra, se mantêm nesta trajetória, nesta espiral recessiva?

A austeridade tornou-se e continua a ser a resposta de referência a adotar contra o incumprimento, no quadro da atual crise financeira na zona euro quer por razões de ordem material, quer por razões de ordem ideológica. Materialmente, isto é assim porque há muito poucas opções de política econômica que esteja facilmente disponíveis. Ao contrário dos Estados Unidos, que foi capaz de resgatar os seus bancos em 2008 porque tinha Tesouro federal e tinha um Banco Central que pode facilmente aceitar qualquer tipo de garantia que quisesse, enquanto a UE tinha que estar a sustentar a própria falência do seu sistema bancário (que era três vezes maior e duas vezes mais alavancado que o sistema bancário dos EUA), com apenas um pouco mais de liquidez adicional, com cortes na despesa pública, e encantada com o seu “compromisso inabalável” para com o euro. O sistema bancário dos EUA tem espalhado a sua dívida e este tem-se recapitalizado, estando agora pronto para o crescimento econômico. A UE, dada a sua composição institucional, não ainda foi capaz de iniciar esse processo. Como resultado, as economias da zona euro continuam a contrair-se, apesar da promessa cada vez mais duvidosa de que a confiança está a regressar.

Ideologicamente, é o apelo intuitivo da ideia de austeridade — a de não gastar mais do que o que se tem – que realmente tem enfeitiçado a Europa . Compreender como é que a austeridade passou a ser a política de referência no pensamento econômico liberal quando os Estados têm problemas pode revelar porque é que esta ideia da austeridade aparece como sendo tão sedutora e, ao mesmo tempo, tão perigosa.

A Bíblia

A austeridade é uma ideia sedutora devido à simplicidade da sua exigência central – que ninguém se pode curar da dívida fazendo ainda mais dívida. Isto é verdadeiro e tanto quanto acontece, mas não nos leva suficientemente longe. Três fatores menos óbvios minam o argumento simples de que os países que estão na zona a vermelho precisam de parar de gastar. O primeiro fator tem a ver com a distribuição, uma vez que os efeitos de austeridade se fazem sentir diferentemente consoante os diferentes níveis da sociedade. Aqueles que estão na parte inferior da distribuição de rendimento, esses perdem proporcionalmente mais do que aqueles que estão no topo, porque dependem muito mais dos serviços públicos e têm muito pouco patrimônio para se protegerem dos azares provocados com a crise. Os 400 americanos mais ricos possuem mais ativos do que os 150 milhões mais pobres; os 15 por cento de mais baixos rendimentos, cerca de 46 milhões de pessoas, vivem em agregados familiares que ganham menos de US $22.050 por ano. Tentar fazer com que as faixas de mais baixos rendimentos paguem o preço da austeridade através de cortes nos gastos públicos é simultaneamente uma atitude de crueldade e é um objetivo matematicamente difícil. Aqueles que podem pagar os efeitos da austeridade não os pagam enquanto que àqueles que não os podem pagar é-lhes exigido que o façam.

O segundo fator é uma questão de composição; nem todos países poderão em simultâneo entrar numa situação de poder aplicar as políticas de forte austeridade. Para colocar isso em contexto europeu, embora faça sentido para qualquer um Estado reduzir a sua dívida, se todos os Estados da união monetária, que são os principais parceiros comerciais uns dos outros, cortar seus gastos, simultaneamente, o resultado só pode ser uma contração da economia regional como um todo. Os defensores da austeridade são cegos face a este perigo porque consideram que a relação entre poupança e despesa é inversa. Eles pensam que a frugalidade pública pode eventualmente promover a despesa privada. Mas alguém tem que gastar para alguém poder estar a aforrar, ou então o aforrador não terá nenhum rendimento que a justifique, nenhum rendimento de que ela seja o resultado. Da mesma forma, para um país beneficiar de uma redução dos seus salários nacionais, tornando-se então mais competitivo em termos de custos, deve haver outro país disposto a gastar o seu dinheiro com o que produz o primeiro país e que não consumiu devido à baixa salarial. Se todos os Estados tentam cortar ou aforrar em simultâneo, como é o caso da zona euro hoje, então a ninguém será permitido fazer a despesa necessária para assegurar o crescimento.

O terceiro fator é uma questão de lógica; a noção de que reduzindo as despesas públicas se aumenta assim a confiança dos investidores não resiste a um exame minucioso. Como o economista Paul Krugman e outros têm argumentado, esta ideia assume que os consumidores antecipam e incorporam todas as mudanças de política do governo nos seus cálculos de orçamento ao longo da vida. Quando o governo assinala que projeta cortar drasticamente na despesa pública, o argumento diz-nos, que os consumidores percebem que os seus encargos em impostos futuros irão diminuir. Isso leva-os a gastar mais hoje do que o fariam se não houvesse os cortes na despesa pública, e por esta via acabam assim com a recessão, apesar do colapso da economia estar a dar-se em todos os países vizinhos, à sua volta, portanto. A hipótese de que esse comportamento realmente será verificado pelos consumidores financeiramente analfabetos, os consumidores reais, que vivem sob o pavor de perder o emprego no meio de uma recessão induzida pela política econômica seguida é sinceramente uma hipótese heroica, no melhor dos casos, e uma hipótese estúpida, no pior dos casos.

A austeridade é, então, uma ideia perigosa, porque com ela se ignoram as externalidades que ela gera, o impacto das escolhas de uma pessoa sobre os outros, e a baixa probabilidade de que as pessoas se comportem realmente da maneira que a teoria o pressupõe e o exige. Para entender porque é que um tal conjunto de ideias já mais que ultrapassadas se tornou a base conceptual do mundo ocidental para poder sair de uma recessão, precisamos de consultar alguns ingleses, dois escoceses e três austríacos.

Uma tensão liberal

As origens de austeridade encontram-se numa certa tensão dentro do pensamento econômico liberal sobre o Estado. No segundo dos seus dois Tratados sobre o Governo, o teórico político inglês do século XVII, John Locke, aceita a inevitabilidade da desigualdade decorrente da invenção do dinheiro e da propriedade privada. Mas, tendo assim considerado Locke também teve de reconhecer a necessidade de um Estado ter de controlar as desigualdades que o mercado produz. Qualquer Estado que o possa fazer de forma eficaz, no entanto, também será suficiente forte para ameaçar os detentores de propriedade que ao Estado enquanto Estado lhe cabe também defender. E assim uma tensão nasceu no coração do liberalismo: você não pode viver com o Estado, uma vez que pode roubá-lo, mas você também não pode viver sem ele, uma vez que a multidão poderia matá-lo. Mais tarde, quando os pensadores escoceses do século XVIII, David Hume e Adam Smith, se debruçaram a analisar esta tensão, esta tomou entretanto uma outra dimensão: como pagar para o Estado que se teme, mas de que mesmo assim precisa dele. A solução parecia ser a dívida do governo, mas nem Hume nem Smith gostaram dessa resposta.

Como Hume e Smith observaram, o governo poderia contrair empréstimos oferecendo aos comerciantes a possibilidade de fazer investimentos menos arriscados com esse mesmo dinheiro, ou melhor, alcançar um maior nível de remuneração através do instrumento da dívida pública. E para estes investidores, comprar essa dívida seria ter a mão levantada sobre o financiamento do Estado que era necessário sem que tenham de pagar impostos. Na verdade, o Estado lhes paga para financiá-lo. Mas o problema com esta opção gratuita é que ela não é verdadeiramente gratuita. Com o objetivo de encontrar compradores para a sua dívida, o Estado deve oferecer melhores taxas de rentabilidade do que os oferecidos por outros investimentos, e oferecendo tais taxas, o dinheiro é portanto desviado para longe dos investimentos orientados pelo mercado em direção às despesas públicas e seria então um desperdício. Este processo acaba por reduzir o crescimento, acabando por conduzir ao aumento das taxas de juros e por levar ao endividamento do Estado, primeiro para os comerciantes locais e, em seguida, para os estrangeiros. Mais do que resolver para o Estado o problema de como pagar, este processo leva, perpetuamente, ao aumento dos impostos e, como Adam Smith avisou, à inevitável ruína do credor, como “o ocioso e profundamente devedor [ganha] às custas do credor industrioso e frugal, ... transportando uma grande parte da capital nacional... para aqueles que são susceptíveis de o dissiparem e destruí-lo.” Face a este enquadramento, Hume e Smith concluíram que ao veneno da dívida pública tinha que se resistir a todo o custo, mesmo que este pareça atraente como uma solução de curto prazo para o financiamento do Estado.

Os pensadores liberais britânicos do século XIX tentaram resolver esta tensão de duas maneiras diferentes. Alguns, como David Ricardo, tentaram banir o Estado da economia, vendo as suas ações como intervenções contraproducentes no que era por ele considerado um sistema a convergir para a situação de auto-equilíbrio. Ainda outros, como John Stuart Mill, começaram por ver um papel para o Estado, além de controle sobre as desigualdades. Mill chegou a argumentar que a dívida pública não precisa de levar inevitavelmente um país à falência e poderia até mesmo ser usada para financiar investimentos socialmente úteis. Para Mill e seus irmãos ideológicos, o capitalismo não poderia funcionar corretamente no mundo moderno sem uma maior intervenção do Estado. Consideravam que a situação do auto-equilíbrio que Ricardo previu seria improvável, devido à agitação da mão-de-obra, à volatilidade do ciclo de negócios, às exigências dos processos eleitorais e a situação de um mundo com forte desemprego e pobreza no meio de uma grande abundância.

Assim no século XX, o liberalismo começou por se dividir ao longo de duas direções. Uma, seguindo Ricardo, alguns economistas austríacos, nomeadamente Joseph Schumpeter, Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, rejeitaram, cada vez mais firmemente o Estado, assim como as suas intervenções e as suas dívidas. Do outro lado, seguindo Mill, surgiu um grupo de economistas britânicos, onde se incluem John Hobson, William Beveridge e, finalmente, John Maynard Keynes, que encontraram linhas de convergência, defendiam um Estado mais ativo e, quando necessário, defendiam um Estado endividado.

A armadilha liquidacionista

Embora um medo do Estado e da sua dívida tenha sido criado e integrado no liberalismo desde o seu início, só quando os estados emergiram e se tornaram grandes e fortemente endividados para que fosse compreensível o discurso da redução das despesas públicas e do endividamento é que a oposição ao endividamento dos governos tornou-se uma moda política. Na década de 1920 e 1930, particularmente na Áustria e Estados Unidos, um número crescente de economistas procurou explicar porque é que as economias reais, apesar das suas supostas tendências para o equilíbrio automático, pareciam estar igualmente sujeitas a situações de forte subida e de fortes descidas para não se dizer mesmo que estas mudanças, estes altos e baixos, eram bem espetaculares. A resposta dada por essa escola de pensamento foi a de que os bancos emprestaram demasiado dinheiro o que levava a uma má alocação de capital em investimentos duvidosos. Eventualmente e talvez também de forma inevitável o dinheiro barato que estaria a alimentar estes investimentos iria secar e as taxas de juros subiriam com o acompanhamento inegável de um cortejo de falências que se lhe seguiria. O resultado, como diria Andrew Mellon, secretário do Tesouro dos Estados Unidos sob o presidente Herbert Hoover, é que com isso se vai “limpar a podridão do sistema. ... Pessoas... vão viver uma vida mais moral. ... E as pessoas com capacidade empresarial distar-se-iam das pessoas menos competentes.”

Em suma, argumentavam os austríacos, a farra do financiamento da dívida poderia ser curada apenas pelo expurgo da austeridade. O papel do Estado seria então o de ficar fora do caminho e deixar o processo desenvolver-se. “O Liquidacionismo” – defendia que as empresas em situação de possível falência fossem liquidadas como sendo a solução para os problemas econômicos — era o nome do jogo, e então Washington tentou fazê-lo durante a Grande Depressão. E tal como hoje na zona euro, este jogo simplesmente não funcionou. Mesmo sobre o Reino Unido, uma abordagem semelhante, argumentando que a utilização da expansão das despesas públicas como instrumento para travar uma queda da economia significaria simplesmente estar a aumentar a dívida e a eliminar o investimento privado, tornou-se conhecida como “o ponto de vista do Tesouro”. Esta política foi posta em prática e, também aqui, falhou, tornando ainda maior a queda da economia britânica.

Isto significa tomar como referência A Teoria Geral de Keynes em articulação com a análise das repetidas falhas das políticas de austeridade para salvar as economias que foram aplicadas durante a década de 1930, para liquidar definitivamente a ideia de uma politica de austeridade como sendo uma ideia aceitável e respeitável. Os mesmos três argumentos que acima foram expostos – sobre a distribuição, composição e sobre a lógica – também aqui são críticos. Em conjunto com os resultados práticos dos terríveis ensaios das políticas de austeridade como forma realizados nos anos 1930 e 1940 – incluindo a experiência da Segunda Guerra Mundial, que parecia justificar a necessidade e a eficácia de uma massiva intervenção governamental na economia – estes argumentos foram reformulados para aplicar as políticas de austeridade e estas falharam, pura e simplesmente, as economias entraram em colapso. Porque é que, então, se voltou para trás, para os anos 40, e com tanta ou mais força agora, cerca de 60 anos mais tarde? Para responder a essa pergunta, precisamos de nos centrar uma vez mais nos Estados Unidos, onde o modelo austríaco de altos e baixos encontrou uma ressonância inesperada na crise financeira de 2008, e a viagem, a partir daí, para a Alemanha pós-guerra, onde o pensamento econômico assente nas políticas de austeridade conseguiu sobreviver ao longo inverno keynesiano e deu origem à resposta econômica face à crise que tem caracterizado a zona euro.

Como os alemães fizeram?

Uma das coisas estranhas sobre os programas de pós-graduação em economia após a década de 1970, quando a estagflação finalmente assumiu um grande relevo fora do keynesianismo, foi a de que se poderia trabalhar num doutoramento nas melhores escolas nos Estados Unidos e nunca ter tido uma aula sobre teoria monetária, sobre operação bancárias ou sobre crédito. Isso era assim porque na estrutura neoclássica que surgiu após o auge da teoria Keynesiana, a moeda era visto como sendo neutra nos seus efeitos a longo prazo sobre a economia real (não se mudavam nem as preferências nem a outras possibilidades), enquanto as expectativas dos agentes eram sempre vistas como sendo prudentes e racionais. Num tal mundo pleno de felicidade sempre em convergência para a (ou na) situação de equilíbrio, o crédito é simplesmente encarado como sendo rendimento de gasto deferido de uma pessoa e que é transferido para uma outra que o utiliza como antecipação do seu rendimento futuro e os bancos são simplesmente veículos para o investimento. A crise financeira de 2008, que revelou um mundo real de hiper-alavancagem em créditos, de empréstimos excessivos, uma cegueira total e intencional face ao risco por parte dos atores supostamente racionais, veio abalar fortemente estes quadros mentais. Mas isto não é de forma alguma visto como um choque para ninguém desde que tenha andado e ainda ande a ler estes defensores das políticas de austeridade.

A crise parecia estar a desenrolar-se exatamente de acordo com o modelo de Mises e Hayek sobre as quebras bruscas na economia: os bancos emprestaram dinheiro, os estados serviram de garantia aos bancos, os consumidores endividaram-se em excesso e o capital foi mal aplicado, alimentando-se assim uma bolha monumental no setor da habitação no período de 2000 a 2007. O modelo contém em si mesmo uma prescrição de política clara: não se devem socorrer os bancos. Mas depois disto já ter sido feito e da dívida privada do sistema bancário estar bem acima da dívida pública, a única coisa que restava fazer – tal como os austríacos argumentaram em 1920 e 1930 – era a de cortar nas despesas públicas e de reduzir a dívida, acelerar as falências quer das empresas em grande dificuldade quer dos indivíduos endividados e deixar a via aberta para as “pessoas empreendedoras... pegar os destroços de pessoas menos competentes.”

O Liquidacionismo estava de volta, mas apenas porque os economistas e políticos tinha esquecido os argumentos anteriores contra ele durante as três década de interregno neoliberal. Num mundo de mercados eficientes e de consumidores racionais, o tipo de crise que agora o Estado está a enfrentar tinha sido considerado teoricamente impossível. Então, quando a crise deflagrou, a única abordagem que de forma consistente levou os altos e baixos dos bancos a sério foi a escola da austeridade – pelo que devemos mesmo agradecer parcialmente aos alemães.

Dada a história da Alemanha com a inflação e com a deflação na década de 1920 e 1930, a estabilidade financeira sempre foi a palavra de ordem da economia alemã do pós-guerra. Mas o que realmente tem distinguido o pensamento econômico alemão é sua rejeição do Keynesianismo – porque esta teoria nunca fez muito sentido para os decisores políticos alemães, considerando a forma como a economia alemã tem na verdade estado a funcionar.

O crescimento econômico alemão sempre foi orientado para a exportação. As prioridades de Berlim depois da Segunda Guerra Mundial foram, portanto, a de investir na reconstrução da estrutura e do volume de capital do país (o que significava manter uma forte limitação ao consumo interno) e a de recuperar os mercados à exportação (o que significa manter os custos e assim, os salários, baixos). Com a procura externa mais importante do que a procura interna, o seu crescimento era determinado pela competitividade e pela estabilidade monetária e não pelo seu consumo interno. Todos os programas de estímulos governamentais que se fizessem neste sistema levariam ao aumento dos custos de produção e baixariam a procura externa dos bens que a Alemanha exporta.
Este é um grande modelo econômico pelo lado da oferta, é um modelo de uma economia orientada para a exportação, com uma forte autoridade monetária e com produtos supercompetitivos. O problema é que, como Highlander, só pode haver um e apenas um. Nem todos os países europeus podem ser uma Alemanha e ter excedentes; os outros precisam de ter défices, exatamente como quando alguém está a querer poupar é aí necessário para que isso suceda que alguém esteja a gastar, para além do seu próprio rendimento. Infelizmente, a Alemanha foi capaz de conceber e de impor as principais instituições da UE e da zona euro à sua própria imagem, criando-se assim uma zona de forte concorrência com uma autoridade forte nesse campo e um banco central extremamente independente e obcecado pela ideia de inflação. Assim, no momento em que dispara a crise grega, a objeção particular da Alemanha contra o keynesianismo foi transposta para a orientação da política que tem sido aplicada em toda a zona euro, com os resultados desastrosos que bem se conhecem.

A Alemanha podia cortar na sua etapa para o crescimento, uma vez que as fontes do seu crescimento estão fora das suas fronteiras: é o campeão das exportações no mundo. Mas a Europa como um todo não pode reproduzir essa característica, especialmente porque os países asiáticos também são excedentários. Como muito bem expressou Martin Wolf, o colunista do Financial Times, “e se todo o mundo quisesse ter excedentes na sua balança corrente”? Se assim fosse, “com quem é que as suas balanças correntes seriam excedentárias – com os marcianos?” As ideias que estão na base do projeto institucional da economia alemã no pós-guerra e no da própria União Europeia podem funcionar bem para a Alemanha, mas elas funcionam muito mal para o continente europeu como um todo, que não pode ter um excedente na balança corrente, por mais que o queira conseguir. Mais uma vez, trata-se de questões de composição.

Para ver o que é que pode acontecer a seguir, podemos olhar um pouco mais para o passado, para a última vez que estas políticas foram levadas a cabo em grande escala, para a década de 1930 e para o caos que se lhes seguiu. Mas uma tal história é irrelevante, poderão os nossos críticos objetar, uma vez que há casos mais recentes, em lugares como o Canadá e a Irlanda na década de 1980 ou os PECO mais recentemente e onde se mostra o oposto, onde se mostra que a austeridade leva ao crescimento. Mas não, estes críticos não têm nenhuma razão pelo que, na verdade, então vale a pena atualmente olhar para estes casos, também.

A austeridade para agora, a loucura para mais tarde

Durante a década de 1920 e 1930, os Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Japão tentaram simultaneamente cortar no seu caminho para o crescimento. Este projeto não apenas falhou; este projeto também ajudou a provocar a Segunda Guerra Mundial. A economia dos EUA da década de 1920 foi uma estranha besta. Os preços agrícolas caíram, o desemprego manteve-se ou cresceu de modo muito marginal e o mercado de ações cresceu. Então, em 1929, este mercado caiu espetacularmente, as receitas caíram vertiginosamente e os défices tornaram-se elevadíssimos. Nessa altura, os investidores por temerem que os americanos seguissem os britânicos e viessem assim a abandonar também o padrão-ouro, deram origem e rapidamente a uma fuga de capitais para o exterior e, fazendo com que as taxas de juro viessem a subir e piorassem a contração da economia. Um exemplo clássico do discurso dos defensores da austeridade, Hoover argumentou que o país não poderia “dissipar a sua prosperidade na ruína de seus contribuintes", e em 1931, ele passou a elevar simultaneamente os impostos e cortar gastos, e em 1931, ele passou a aumentar impostos e a cortar nas despesas públicas simultaneamente. Nos dois anos seguintes, o desemprego disparou, de oito por cento para 23 por cento, e a economia entrou em colapso – assim como também diminuiu a capacidade dos Estados Unidos funcionarem como um destino para as exportações de outros Estados. A economia dos EUA não recuperou totalmente até que se deram os massivos aumentos da despesa pública provocados pela II Grande Guerra que fizeram descer o desemprego para 1,2 por cento em 1944.

A situação era quase que semelhante, talvez apenas levemente melhor, no Reino Unido, país que tinha saído da I Guerra Mundial muito pior do que os Estados Unidos. De modo a conseguir crescer depois da guerra, Londres teria que desvalorizar a libra, o que faria com que os seus produtos se tornassem mais competitivos. Mas uma vez que o Reino Unido era a maior potência financeira do mundo e o eixo central do padrão-ouro, mesmo uma sugestão de desvalorização teria produzido um enorme pânico nas bolsas, o que desencadearia assim uma corrida à Libra e levaria a que os ativos britânicos no exterior perdessem um valor significativo. Apanhados ou mesmo encurralados nesta posição, o Reino Unido estabeleceu uma alta taxa de câmbio, na esperança de inspirar a confiança dos investidores, mas isto teve o efeito de arrasar as exportações britânicas e frustrar a recuperação do pós-guerra. Assim, o Reino Unido estagnou, com taxas de desemprego cronicamente elevadas ao longo da década de 1920.

As coisas ainda se degradaram mais para os ingleses quando os Estados Unidos aumentaram as suas taxas de juros em 1929 para esfriar o boom de Wall Street e quando o Plano Young para o reembolso das reparações alemãs entrou em vigor, em 1930, dando prioridade à dívida pública sobre as dívidas privadas, significando que as dívidas oficiais da Alemanha seriam as primeiras a ser pagas no caso de neste país se entrar em recessão, em contração econômica. Isto era importante porque anteriormente, muitíssimo dinheiro americano, de agentes privados, tinha afluído à Alemanha e numa altura em que a prioridade de pagamento era dada à dívida privada e não à dívida pública. Quando o plano Young inverte a prioridade no pagamento da dívida, a fuga de capitais da Europa para os Estados Unidos, que era a resultante dessa inversão, levou a que as taxas de juros britânicas permanecessem altas e que se continuasse com a economia numa situação de estagnação.

Uma vez que a Inglaterra não poderia nem inflacionar a economia nem desvalorizar a sua moeda, a deflação – o que significa austeridade – manteve-se como a política econômica escolhida, mesmo que esta seja reconhecidamente autodestrutiva. Apesar dos sucessivos cortes nas despesas públicas e apesar de a Inglaterra estar mesmo a sair do padrão-ouro, a dívida britânica subiu de 170% do PIB em 1930 para 190% em 1933. Por volta de 1938, em termos reais, o PIB britânico foi apenas ligeiramente superior ao que se tinha verificado em 1918. Em suma, as duas maiores economias mundiais tentaram cortar o seu caminho para a prosperidade em simultâneo e em situação conduziu à ascensão do fascismo.

As desgraças da Alemanha neste período são muitas vezes deixadas aos pés da hiperinflação de 1923, ou seja, são por esta justificadas, como sendo esta hiperinflação a responsável, hipótese esta que se tornou, evidentemente, o papão da economia nacional daquela época, um pesadelo que nunca mais deve voltou a acontecer. Mas o que essa visão da realidade se esquece de dizer é que a hiperinflação foi muito mais o resultado de uma política deliberada do governo alemão para evitar fazer pagamentos de indenizações à França, ao invés de ser uma tentativa errada de um esforço ou de um estímulo orçamental tipicamente keynesiano de relançamento da economia. Após a ocupação francesa do Ruhr, em 1923, o governo alemão começou a pagar os salários dos trabalhadores locais como um ato de resistência, fazendo com que o défice disparasse e assim atingisse um verdadeiro pico. O banco central alemão, o Reichsbank, imprimiu moeda para cobrir o défice, o que, por seu lado, provocou a queda do valor do marco. Isso fez com que o pagamento das reparações de guerra se tornasse impossível, forçando a uma renegociação da dívida alemã. Logo a seguir, no entanto, a inflação foi estabilizada e o país recomeçou a andar pelos seus pés.

Quando o novo plano de reembolso da dívida levou a que o dinheiro dos investidores americanos fugissem da Alemanha, o Reichsbank decidiu aumentar as taxas de juros para conter o fluxo, empurrando a economia para uma recessão. Nesse momento, o Partido do Centro ganhou as eleições e tentou aplicar o barco fiscal ou seja aplicar cortes verdadeiramente draconianos nas despesas públicas. Mas quanto mais o governo ia aplicando corte sobre corte mais os nazistas ganharam apoio. Nas eleições de 1930, os nazistas ganharam 18,3% dos votos e tornaram-se o segundo maior partido no Reichstag. Eles eram, afinal de contas, o único partido que contestava a austeridade. Em 1933, como os cortes continuaram, eles obtiveram 43,9% dos votos. A austeridade, não a inflação, foi que deu ao mundo o nacional-socialismo.

O governo japonês aplicou a austeridade de modo mais consistente e com mais vigor do que foi aplicado em qualquer outro lugar. Na sequência de uma grande queda na bolsa em 1920, fizeram-se sucessivos cortes nas despesas públicas que exacerbaram ainda a situação de deflação em que debatia a economia japonesa. O item de maior peso no orçamento de Tóquio era o das despesas militares que foi quase metade dos correspondentes gastos na década seguinte. O Japão continuou a cortar nas despesas públicas a fim de voltar para o padrão-ouro, que aconteceu em 1930 -- assim como acontecia nas economias dos EUA e da Europa que entraram em queda livre, matando as exportações do Japão. A taxa de crescimento do Japão caiu 9,7 por cento em 1930 e cai igualmente de 9,5% em 1931, enquanto as suas taxas de juros dispararam. Apesar do colapso, Tóquio acelerou ainda o seu programa de redução das despesas públicas e com os militares a arcarem com o ônus desses mesmos cortes. Pelo final de 1930, os militares tiveram depois bem mais do que suficiente.

Após a ratificação do Tratado Naval de Londres em Outubro de 1930, que coloca limites na construção naval, um grupo ultranacionalista no Japão tentou matar o primeiro-ministro Osachi Hamaguchi (este acabou por morrer devido aos ferimentos feitos no atentado). Mais tarde, em 1932, o ex-ministro de Finanças japonês Junnosuke Inoue, que tinha sido o arquitecto da política de austeridade ao longo da década de 1920, foi assassinado. O ministro das Finanças do novo governo, Takahashi Korekiyo, abandonou a politica de austeridade, e a economia rapidamente começou a movimentar-se, crescendo a uma taxa média de quatro por cento ao ano entre 1932 e 1936. Provando que nenhuma boa ação fica por punir, no entanto, Korekiyo foi assassinado em 1936, juntamente com várias outras figuras políticas civis. Por volta de 1936, o governo civil caiu e caiu com ele também a experiência do Japão em que com a queda do governo também simultaneamente caia a democracia e as políticas de austeridade que neste país estavam associadas. A expansão imperial do Japão foi o resultado desta experiência.

Esse show dos anos 80

Quando as quatro maiores economias do mundo, todas ao mesmo tempo, tentaram cortar o seu caminho para a prosperidade nos anos entre as duas guerras, o resultado foi a contração econômica, o protecionismo, a violência e o fascismo. Bem, alguns podem dizer que se trata de diferentes casos que sugerem diferentes lições. As experiências da Austrália, Canadá, Dinamarca e da Irlanda na década de 1980 são muitas vezes referidas para nos ajudar como exemplos para defender a existência de um conjunto de políticas a que os economistas dão o nome de “consolidação orçamental expansionista”, isto é em que pressupõem que os cortes nas despesas públicas, os cortes nos défices orçamentais, nos levam ao crescimento. Infelizmente, os fatos discordam desse pressuposto.

Durante a década de 1990, foram publicados vários estudos que nos queriam mostrar que as consolidações fiscais que se verificaram na década anterior em países como a Austrália, Canadá, Dinamarca e na Irlanda tinham sido estimulantes para as economias locais. Todos estes países cortaram nos seus orçamentos, desvalorizaram as suas moedas e controlaram a inflação salarial e mais tarde as suas taxas de crescimento foram impressionantes. O suposto mecanismo que estaria por detrás do crescimento teriam sido as previdente expectativas dos consumidores, ou seja, o efeito de confiança dos agentes econômicos: antecipando que os cortes nas despesas públicas passariam agora a significar menos impostos mais tarde, no futuro, e que por isso os indivíduos passaram a gastar o seu dinheiro estimulando assim essas economias.

Estudos recentes, no entanto, vieram a pôr em causa os métodos utilizados pelos estudos anteriores, o conhecimento recebido sobre o que realmente aconteceu nos países em questão e as lições mais importantes da época. Em primeiro lugar, em cada um desses casos, era um pequeno país que estava a reduzir o seu défice pelo corte das suas despesas públicas no auge de um período de crescimento e quando os seus principais parceiros comerciais era de muito maior dimensão e estavam em fase de crescimento. Tratou-se também de acontecimentos, discretos, independentes, que não foram realizados em simultâneo mas um acontecimento de cada vez, não havendo portanto contrações econômicas simultâneas.

Em segundo lugar, em todos estes casos, os principais instrumentos de austeridade foram as grandes taxas de desvalorização da moeda nacional e a realização de acordos com os sindicatos para controlar os preços de modo a que os efeitos dos desvalorizações não fossem absorvidos inclusive pela inflação importada. Ou seja, se um país está a tentar obter um aumento nas suas exportações com uma moeda mais barata, então este mesmo país não quer que a vantagem de custo assim obtida com a desvalorização venha a ser eliminada pelo aumento de custos devidos esses aos aumentos salariais, de tal forma que por isso por isso, faz um acordo com os sindicatos para impedir que isso aconteça. Isto, naturalmente, só é possível apenas em países que têm sindicalizado uma grande parte dos seus trabalhadores. Sendo assim, estes casos dificilmente poderão constituir a prova de que a austeridade leva ao aumento da confiança dos consumidores, confiança esta que, por sua vez, leva ao crescimento.

Além disso, nos casos da Austrália e Dinamarca, estas chamadas consolidações orçamentais expansionistas produziram apenas em termos de dinamismo econômico o correspondente ao um salto de um gato morto – um fugaz sinal de retoma mas na verdade completamente ilusório, e em ambas as economias os sinais de retoma esfumaram-se. Ambas as economias caíram em grave recessão no espaço de dois anos após os cortes nas despesas públicas ( acontecendo o mesmo no plano da confiança). Enquanto isso, no caso irlandês, como o mostrou o economista Stephen Kinsella, os salários reais aumentaram durante a década de 1980, sugerindo que terá sido um efeito de estímulo de rotina, e não uma mudança nas expectativas dos consumidores, que terá provocado a retoma da economia. O Canadá, por seu lado, foi capaz de reduzir as despesas públicas e crescer na década de 1980, pela simples razão de que o seu principal parceiro comercial, os Estados Unidos, estavam a passar por uma situação de boom econômico massivo enquanto o Dólar canadiano se estava a depreciar e na ordem dos 40 por cento.

Nada disto tem nada a ver com as expectativas ou com a confiança. Na verdade, de forma ainda mais clara, o que está na sua base é uma história keynesiana de como a desvalorização e a moderação salarial podem impulsionar a economia quando os seus parceiros estão em situação de claro crescimento e em que a impulsão assim dada à economia fá-la crescer e por essa via, permite assim abrir o caminho para a consolidação orçamental. Como Keynes afirmou, “a situação com crescimento, não a situação de economias em queda, é o momento correto para a aplicação de políticas de austeridade.” Cortes em si mesmos não levam ao crescimento, pois eles só funcionam em pequenos estados que podem exportar para grandes nações que estão com as economias em expansão, ou seja, a crescerem. Assim como os países que negociam uns com os outros não podem ter todos, como é lógico, excedentes comerciais em simultâneo, pelo que as economias interligadas não poderão nunca desvalorizar em conjunto se com isso se quer ao mesmo tempo que cada um deles aumente as suas exportações.

Porque é que uma aliança de países na mesma situação não pode fazer explodir a estrela da dívida

Mas, espere, ainda há mais. Mais recentemente, um lote de países do Leste Europeu foram utilizados como modelo pelos defensores da austeridade: Romênia, Estônia, Bulgária, Letônia e Lituânia – conjunto de países também chamado a Aliança REBLL. Eles cortaram na despesa pública mais do que qualquer outro país na Europa em 2009 e 2010 e cresceram mais rápido do que o resto em 2011 e 2012. Isso poderia finalmente ser a prova de que os cortes de gastos levam ao crescimento? Não tão rápido.

A primeira pergunta a fazer é, em primeiro lugar, porque é que houve tanta redução na despesa pública e a resposta é interessante. Voltando atrás, aos primeiros anos deste nosso século XXI, quando esses estados estavam à beira de se tornarem membros da União Europeia, os seus ativos bancários parecia extremamente subavaliados. Os governos desses Estados, a recuperarem do seu passado comunista e ávidos de virem a ser governos de países capitalistas decidiram criar instituições econômicas que fossem extremamente abertos aos fluxos de capital e amigáveis para o investimento estrangeiro. A união dessas duas forças levou a que 80 a 100 por cento dos bancos locais viessem a ser comprados por estrangeiros. Durante a crise de liquidez ocorrida entre 2008 e 2009, as novas sedes dos bancos austríacos, alemães e suecos decidiram procurar obter o dinheiro extra de que precisavam contraindo empréstimos nos mercados dos ramos desses bancos situados no Leste da Europa. Mas isso significava que os países da Europa Oriental ficaram impotentes a assistir às massivas saídas de capital dos seus respectivos países a favor dos países da Europa Ocidental.

Para estancar esta sangria, foi assinado um acordo em Viena, em 2009, entre os bancos, a União Europeia, o Fundo Monetário Internacional e a Comissão Europeia, a Hungria, a Letônia e a Romênia. O acordo levava a que os bancos do núcleo da Europa deviam manter os seus fundos no Leste da Europa se os governos dos países da Europa Oriental estivessem empenhados em levar a cabo políticas de austeridade destinadas a estabilizar a situação dos bancos locais. O acordo de Viena impediu a propagação da crise de liquidez para o resto dos países ditos REBLLs, tanto quanto as políticas de austeridade estavam a ser aplicadas em toda esta região também. O resultado deste acordo foi a de que os professores da Letônia e os reformados na Romênia ficaram sem avultadíssimas somas de rendimento para com esse dinheiro se garantir o pagamento aos detentores de títulos seniores pertencentes aos bancos europeus dos países da Europa Ocidental.

Mas coloquemos tudo isto de lado, e perguntemos então se teriam as políticas de austeridade sido bem sucedidas? Na Letônia, em 2009, o consumo caiu quase 23 por cento e o PIB caiu sete por cento. Na Estônia, o consumo e o PIB caíram em quase 15 por cento. Os cortes salariais do setor público ao nível de dois dígitos tornou-se a norma no conjunto dos países dito REBLLs, provocando enormes estragos nos programas sociais de saúde pública, na educação e nos programas de apoio social. Ainda se deve sublinhar que o recuo econômico e social nesta trajetória tem sido impressionante, com uma recuperação agora entre 60 e 80 por cento das suas perdas da contração havida nestes países. Ainda assim, o jogo não foi valeu a pena.

Primeiro, se o objetivo de austeridade é reduzir a dívida, então todos estes países, com exceção da Estônia, falharam: eles estão mais endividados hoje do que quando começaram a impor as políticas de austeridade. Na verdade, a Letônia, Lituânia, Romênia todos eles tiveram muito mais elevados défices orçamentais quando estavam na situação de pico máximo na aplicação dos seus programas de austeridade, em 2009-10, mais ainda do que o pico da Grécia ou da Espanha, no auge dos seus programas de austeridade. Em segundo lugar, a situação de contração irá demorar pelo menos até 2015, de acordo com a mais otimista das projeções, para qualquer um destes países possa recuperar o terreno perdido desde 2009, com o resultado de que o desemprego nesses estados permanecerá na casa dos dois dígitos no quadro de um futuro previsível. E em terceiro lugar, esses países não tiveram nenhuma das expectativas positivas ou de aumento de confiança que a austeridade deveria gerar, segundo os seus defensores. De acordo com uma sondagem do Eurobarómetro, 79 por cento dos letões inquiridos ​​em 2009 pensam que a situação econômica do seu país era má. Em 2011, quando a taxa de crescimento da Letônia foi a mais elevada da UE, um total de 91 por cento dos letões inquiridos sentiam a situação econômica ser simplesmente má, e 58 por cento disseram que o pior ainda estava por vir. Em suma, como é o caso com as consolidações orçamentais expansionistas dos anos 1980, a experiência recente da Europa Oriental, nunca pode ser descrita como uma vitória para os defensores das políticas de austeridade. O grupo REBLL não conseguiu fazer saltar a estrela da dívida. Na verdade, a dívida ficou ainda muito maior e a um custo econômico e social elevadíssimo.

Amanhã é um outro dia

Se a austeridade não funciona, qual é a alternativa? Avançar para uma espiral de consumo em países já fortemente endividados ou entrar numa série de incumprimentos ao nível do mundo desenvolvido serão obviamente opções muito pouco atraentes. Mas não é preciso ser-se tão ambicioso. Uma regra simples seria a regra de Hipócrates: em primeiro lugar, não provocar danos. A zona euro tem estado de forma consistente a aplicar as políticas de austeridade e economicamente ela está, como um todo, em contração do seu PIB. Os Estados Unidos, por outro lado, não têm estado a aplicar a austeridade e como resultado têm estado a melhorar as suas contas e agora é capaz de poder crescer. Sim, a dívida dos Estados Unidos tem aumentado, também, mas possivelmente o crescimento irá resolver a questão da dívida. Os cortes na despesa pública, se eles são simultânea e em grande escala, só irão aumentar o problema.

A relação entre os cortes na despesa pública e a dívida pública é melhor captada pela ideia do economista Richard Koo sobre as recessões nos balanços. Os países não podem simultaneamente estar a querer reduzir a sua dívida pública e privada, que é o que na Europa se tem estado a fazer. Em vez disso, os governos devem fazer com que o setor privado possa pagar as suas dívidas, mantendo a despesa pública; afinal de contas, a poupança do setor privado tem que ter origem nalgum lado. Uma vez que isso seja feito, como o setor privado a recuperar então irão aumentar as receitas fiscais e os défices e dívidas acumuladas podem começar a serem pagos ou reduzidos. Como observamos anteriormente, conseguir este resultado é uma questão de sincronismo e de composição.

Os Estados Unidos, entretanto, devem aproveitar o fato de que não estão nem sobrecarregados nem encurralados pelo tipo de falhas institucionais existentes na zona euro e ter em conta que os Estados Unidos pode contrair empréstimos a taxa praticamente vizinha de zero. Agora é um bom momento para Washington fazer investimentos úteis. Para dar apenas um exemplo, cerca de um terço das pontes nos Estados Unidos estão em mau estado e precisam de ser reparadas. Repará-las ou mesmo renová-las poderia levar ao aumento da produtividade dos EUA e não há mesmo nenhuma desvantagem em o fazer. Neste sentido, a austeridade não é uma opção errada por causa dos problemas de distribuição, de composição e de lógica que acima foram descritos; ela também carrega um custo de oportunidade perigoso. Se os Estados Unidos continuassem no caminho da austeridade, as estradas ficariam por reparar, os alunos iriam faltar às aulas e deixariam de adquirir os conhecimentos e as capacidades profissionais dos desempregados atrofiar-se-iam. A posição do país em relação a qualquer outro país que não fez isto iria piorar. Os Estados Unidos iria acabar mais pobre e mais endividado do que antes, e o que é mais problemático, não teria as capacidades necessárias para gerar crescimento no futuro.

As convicções schumpeterianas podem estar em desacordo com a ideia de que mesmo que os gastos do governo fossem gratuitos, a verdadeira fonte de crescimento ainda seria a inovação privada. Mas como o especialista em capital de risco William Janeway explica no seu recente livro Doing Capitalism in the Innovation Economy, o que faz com que Schumpeter tenha possivelmente chamado “destruição criadora” é o que ele chama de “um resíduo Keynesiano”. A indústria aeroespacial dos EUA poderia nunca ter nascido se não houvesse enormes gastos governamentais com a defesa pública; as recentes inovações em biotecnologia devem a sua existência aos institutos nacionais de saúde; até mesmo a Internet foi um subproduto da pesquisa promovida e feita a nível governamental. As bases materiais para a inovação e o crescimento, muitas vezes vem da despesa pública, quase nunca vêm da despesa privada.

Se os Estados Unidos adotassem a austeridade, a incapacidade do governo em gerar resíduos keynesianos prejudicaria a capacidade do país em ser capaz de crescer. Reduzir as despesas, reduzir o Estado, especialmente num momento em outros países ao redor do mundo estão ocupados a gerir as suas políticas de austeridade e a cortarem o seu caminho para a prosperidade, levaria a que os americanos iriam acabar bem pior do que eles alguma vez poderiam ter imaginado. Mas não tomemos isto como um ato de fé. Basta perguntar aos europeus como é que estes se sentem nas políticas que para eles mesmos têm andado a aplicar.

MARK BLYTH é professor de Economia Política Internacional na Brown University. Seu livro mais recente é Austerity: The History of a Dangerous Idea (Oxford University Press, 2013), do qual este ensaio foi adaptado. Copyright © Oxford University Press.

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