1 de dezembro de 2003

Recordações de Edward Said (1935-2003)

A coragem física e moral de um escritor e lutador único - importante intelectual árabe, teórico cultural inconformado, defensor da causa palestina no coração do poder ultramarino israelense.

Tariq Ali


NLR 24 • NOV/DEC 2003

Tradução / Edward Said foi um amigo e camarada de longa data. Conhecemo-nos em 1972, num seminário em Nova York. Mesmo naquela época turbulenta, uma de suas características mais marcantes era seu primor no trajar: tudo era meticulosamente escolhido, até as meias. É quase impossível imaginá-lo de outro modo. Em 1997, em uma conferência em sua homenagem na cidade de Beirute, Edward insistiu em acompanhar a mim e Elias Khoury num mergulho. Quando saiu de calção de banho, perguntei a ele por que a toalha não combinava. “Quando em Roma…”, respondeu, com graça; mas naquela noite, ao ler um trecho do manuscrito árabe de Fora do lugar, seu livro de memórias, sua roupa era impecável. E assim foi até o fim, durante toda a sua longa batalha contra a leucemia.

Nos últimos onze anos ficamos tão acostumados com a doença de Edward – as internações regulares no hospital, a disposição de experimentar os remédios mais recentes, a recusa de aceitar a derrota – que começamos a achá-lo indestrutível. No ano passado, por puro acaso, encontrei em Nova York o médico de Said. Em resposta a minhas perguntas, ele disse que não havia explicação clínica para a sobrevivência de Edward. Foi seu espírito indômito de combatente, a vontade de viver, que o preservou por tanto tempo. Said viajava por toda parte. Falava, como sempre, da Palestina, mas também da capacidade unificadora das três culturas que, insistia ele, tinham muito em comum. O monstro devorava-o por dentro, mas os que iam ouvi-lo não eram capazes de perceber, e os que sabiam preferiam esquecer. Quando o maldito câncer finalmente o levou, o choque foi violento.

A briga com o establishment político e cultural do Ocidente e do mundo árabe oficial é a característica mais importante da biografia de Said. Foi a Guerra dos Seis Dias, de 1967, que mudou sua vida; antes disso, não era politicamente engajado. Seu pai, cristão palestino, emigrou para os Estados Unidos em 1911, com dezesseis anos, para não ser alistado à força pelos otomanos para lutar na Bulgária. Tornou-se cidadão norte-americano e serviu, em vez disso, nas forças armadas dos Estados Unidos na França, durante a Primeira Guerra Mundial. Depois voltou a Jerusalém, onde Edward nasceu em 1935. Said nunca fingiu ser um refugiado palestino atingido pela pobreza, como alegaram depois alguns detratores. Sua família mudou-se para o Cairo, onde Wadie Said abriu uma papelaria, sendo bem-sucedido, e Edward foi matriculado numa escola de elite de língua inglesa. Seus anos de adolescência foram solitários, dominados por um pai vitoriano, a cujos olhos o menino precisava de disciplina permanente e de uma vida sem amigos fora da escola. Os romances tornaram-se um sucedâneo: Defoe, Scott, Kipling, Dickens, Mann. Recebera o nome de Edward por causa do príncipe de Gales, mas, apesar do monarquismo do pai, não foi estudar na Grã-Bretanha, e sim nos Estados Unidos, em 1951. Mais tarde Said diria odiar o internato “puritano e hipócrita” da Nova Inglaterra: era “terrível e desorientador”. Até então, achava que sabia exatamente quem era, que conhecia todas as suas falhas, “morais e físicas”. Nos Estados Unidos teve de se transformar “numa coisa que o sistema exigia”.

O divisor de águas de 67

Ainda assim, prosperou no ambiente da Ivy League, primeiro em Princeton e depois em Harvard, onde, como disse tempos mais tarde, teve o privilégio de estudar a tradição filológica alemã de literatura comparada. Said começou a ensinar em Columbia em 1963; seu primeiro livro, sobre Conrad, foi publicado três anos depois. Quando o entrevistei em Nova York, em 1994, numa conversa filmada para o Channel Four britânico, ele descreveu seus primeiros anos em Columbia, entre 1963 e 1967, como o “período Dorian Gray”:

Tariq Ali: Então um de vocês era o professor de literatura comparada, que cuidava de seus afazeres, dava aulas, trabalhava com Trilling e os demais; mas, ao mesmo tempo, outro personagem crescia dentro de você – e você mantinha os dois separados? 
Edward Said: Tinha de manter. Não havia espaço para o outro personagem existir. Eu havia efetivamente rompido minha ligação com o Egito. A Palestina não existia mais. Uma parte de minha família vivia no Egito, a outra parte, no Líbano. Eu era estrangeiro nos dois lugares. Não me interessava pela empresa da família e por isso estava aqui. Até 1967, não pensava em mim senão como alguém que se preocupa com o próprio trabalho. Aprendera algumas coisas pelo caminho. Estava obcecado com o fato de muitos heróis culturais meus – Edmund Wilson, Isaiah Berlin, Reinhold Niebuhr – serem sionistas fanáticos. Não eram apenas pró-israelenses; diziam e publicavam as coisas mais horríveis sobre os árabes. Mas eu só podia observar. Em termos políticos, não havia outro lugar para mim. Estava em Nova York quando começou a Guerra dos Seis Dias; fiquei absolutamente abalado. O mundo que eu entendia acabou naquele momento. Estava nos Estados Unidos fazia anos, mas só então foi que comecei a ter contato com outros árabes. Em 1970, estava totalmente mergulhado na política e no movimento de resistência palestina.[1]

Sua obra Beginnings [Princípios], de 1975 – um envolvimento heroico com os problemas causados pelo “ponto de partida”, que sintetizava as visões de Auerbach, Vico, Freud, com uma leitura notável do romance modernista –, e, sobretudo, Orientalismo foram produto dessa conjuntura. Publicado em 1978, quando Said já era membro do Conselho Nacional Palestino (CNP), Orientalismo combina o vigor polêmico do ativista com a paixão do crítico cultural. Como todas as grandes polêmicas, rejeita o equilíbrio. Certa vez eu lhe disse que, para muitos asiáticos do Sul, o problema com os primeiros acadêmicos orientalistas britânicos não era a ideologia imperialista, mas, pelo contrário, o fato de serem politicamente corretos demais, impressionados demais com os textos sânscritos que traduziam. Said riu e insistiu que o livro era, em essência, uma tentativa de desbastar as premissas mais básicas do Ocidente sobre o Oriente árabe. O “discurso” – Foucault, vejam só, era uma influência importante – do Oriente, elaborado na França e na Grã-Bretanha durante os dois séculos que se seguiram à conquista do Egito por Napoleão, servira tanto de instrumento de domínio quanto de sustentação da identidade cultural européia, contrapondo-a ao mundo árabe . Por essa razão ele se concentrara deliberadamente na exotização, na vulgarização e nas distorções do Oriente Médio e de sua cultura. Retratar as suposições imperialistas como verdade universal era uma mentira, baseada em observações tendenciosas e instrumentalistas a serviço da dominação ocidental.

Orientalismo gerou muitos seguidores acadêmicos. Embora sem dúvida Said tenha ficado emocionado e lisonjeado com o sucesso do livro, sabia muito bem como era mal usado e costumava negar a responsabilidade por seus rebentos mais monstruosos: “Como podem me acusar de condenar os ‘insensíveis machos brancos’? Todo mundo sabe que adoro Conrad”. E então desfiava uma lista de críticos pós-modernos, atacando um de cada vez pela ênfase dada por eles à identidade e pela hostilidade à narrativa. “Escreva tudo isso”, disse-lhe certa vez. “Por que não escreve você?”, foi a resposta. O que gravamos foi mais contido: 

TA: A guerra de 1967 radicalizou-o, levou-o a se tornar um porta-voz palestino? 
ES: Árabe primeiro, antes de palestino. 
TA: E Orientalismo nasceu desse novo compromisso. 
ES: Passei a ler metodicamente o que vinham escrevendo sobre o Oriente Médio. Não correspondia à minha experiência. No início dos anos 1970 comecei a perceber que as distorções e idéias erradas eram sistemáticas, faziam parte de um sistema de pensamento bem maior, endêmico em toda iniciativa do Ocidente de lidar com o mundo árabe. Isso confirmou minha sensação de que o estudo da literatura era, em essência, uma tarefa histórica, não apenas estética. Ainda acredito no papel da estética; mas o “reino da literatura” – “literatura pela literatura” – está simplesmente errado. A pesquisa histórica séria tem de partir do fato de que a cultura está irremediavelmente envolvida na política. O meu interesse tem sido a grande literatura canônica do Ocidente, lida não como obras-primas que têm de ser veneradas, mas como obras que precisam ser entendidas em sua densidade histórica para que possam ressoar. Mas também não acho que se possa fazer isso sem gostar delas, sem ligar para os próprios livros.

Cultura e imperialismo, publicado em 1993, ampliou os principais argumentos de Orientalismo para descrever um padrão mais geral de relações entre o Ocidente metropolitano e seus territórios ultramarinos, além da Europa e do Oriente Médio. Escrito num período político diferente, provocou alguns ataques afrontosos. Houve uma famosa controvérsia no Times Literary Supplement com Ernest Gellner – que achava que Said deveria ter “pelo menos alguma palavra de gratidão” pelo papel do imperialismo como veículo da modernidade –, na qual nenhum dos lados poupou o adversário. Mais tarde, quando Gellner tentou uma possível reconciliação, Said foi impiedoso; o ódio tem de ser puro para ser eficaz, e, aqui e em todo lugar, ele sempre retribuiu tudo na mesma moeda.

Mas então os debates sobre cultura foram obscurecidos pelos acontecimentos na Palestina. Quando perguntei se o ano de 1917 lhe significava alguma coisa, respondeu sem hesitar: “Sim, a Declaração Balfour”. Os textos de Said sobre a Palestina têm um sabor totalmente diferente de tudo o mais que escreveu, apaixonados e bíblicos em sua simplicidade. Era essa a sua causa. Em The End of the peace process [O fim do processo de paz], Blaming the victims [Culpar as vítimas] e uma meia dúzia de outros livros, em suas colunas no al-Ahram e em seus ensaios nesta revista e no London Review of Books, a chama que se acendera em 1967 brilhou ainda mais intensa. Ele ajudou uma geração a entender a verdadeira história da Palestina, e foi sua posição de cronista fiel de seu povo e de sua pátria ocupada que lhe conferiu respeito e admiração no mundo todo. Os palestinos tornaram-se vítimas indiretas do judeocídio europeu na Segunda Guerra Mundial, mas poucos políticos do Ocidente pareceram se incomodar. Said esporeou-lhes a consciência coletiva, e por isso não gostavam dele.

Anti-Oslo

Dois amigos íntimos, cujos conselhos sempre buscou – Ibrahim Abu-Lughod e Eqbal Ahmad –, morreram com poucos anos de diferença, em 1999 e 2001. Said sentiu muitíssimo a falta deles, mas a ausência só o deixou mais decidido a continuar com seu massacre literário do inimigo. Embora tenha sido, durante catorze anos, membro independente do CNP e ajudado a burilar e revisar o discurso de Arafat na Assembléia Geral da ONU em 1984, tornou-se cada vez mais crítico da falta de visão estratégica que caracterizava a maior parte dos líderes palestinos. Ao escrever logo depois do que chamou de “vulgaridade de desfile de moda” – o aperto de mãos entre Arafat e Rabin no gramado da Casa Branca –, Said retratou os Acordos de Oslo, impostos aos vencidos pelos Estados Unidos e Israel depois da Guerra do Golfo de 1991, como “instrumento de rendição, um Versalhes palestino, oferecendo apenas murchos bantustões em troca de uma série de renúncias históricas”. Israel, enquanto isso, não tinha razão para desistir enquanto Washington lhe fornecesse armas e recursos . (O lugar-tenente de Arafat, Nabil Shaath, repetindo os críticos mais reacionários de Orientalismo, respondeu: “Ele devia se limitar à crítica literária. Afinal de contas, Arafat não se mete a discutir Shakespeare”.) A história absolveu a análise de Said. Um de seus ataques mais devastadores à liderança de Arafat, publicado em 2001 nestas páginas e no al-Ahram, condenou Oslo como mera embalagem nova da ocupação, “oferecendo simbólicos 18% das terras tomadas em 1967 à autoridade corrupta, ao estilo de Vichy, de Arafat, cuja missão, em essência, tem sido policiar e tributar seu povo em prol de Israel”:

O povo palestino merece coisa melhor. Temos de dizer claramente que, com Arafat e companhia no comando, não há esperança [...] Os palestinos precisam é de líderes que sejam realmente do povo e pelo povo, que resistam de verdade, na prática, e não burocratas gordos e mastigadores de charutos que preferem preservar seus negócios e renovar seus passaportes vip, que perderam qualquer vestígio de decência ou credibilidade [...] Precisamos de uma liderança unida e capaz de pensar, planejar e tomar decisões em vez de rastejar diante do Papa ou de George Bush enquanto os israelenses impunemente matam seu povo. […] É na luta para libertar-se da ocupação israelense que estão hoje todos os palestinos com algum valor.[4]

O Hamaz seria uma alternativa séria? “Esse é um movimento de protesto contra a ocupação”, disse-me Said:

Na minha opinião, as ideias deles sobre um Estado islâmico são completamente incoerentes, incapazes de convencer quem mora lá. Ninguém leva a sério esse aspecto de seu programa. Quando perguntamos a eles, como fiz na Cisjordânia e em outros lugares, “Quais são suas políticas econômicas? Quais são suas idéias sobre usinas elétricas, sobre habitação?”, respondem: “Ah, estamos pensando nisso”. Não há um programa social que se possa rotular de “islâmico”. Vejo-os como criaturas do momento, para quem o Islã é uma oportunidade de protestar contra o impasse atual, a mediocridade e a falência do partido dominante. A Autoridade Palestina, hoje, está irremediavelmente prejudicada e sem credibilidade – como sauditas e egípcios, um Estado dependente dos Estados Unidos.

Por trás das reiteradas exigências israelenses de que a Autoridade combata o Hamaz e a Jihad Islâmica, Said percebeu “a esperança de que haja algo parecido com uma guerra civil palestina, um brilho nos olhos das forças armadas israelenses”. Mas, nos últimos meses de sua vida, ainda pôde comemorar a obstinada recusa dos palestinos de aceitar o papel – como os descreveu o chefe do Estado-Maior das forças de defesa israelenses – de “povo derrotado” e viu sinais de uma política palestina mais criativa na Iniciativa Política Nacional liderada por Mustafá Barghuti: “A idéia aqui não é um Estado provisório inventado que ocupe 40% da terra, com os refugiados abandonados e Jerusalém mantida por Israel, mas um território soberano liberado da ocupação militar pela ação de massa, envolvendo árabes e judeus sempre que possível”.

Com sua morte, a nação palestina perdeu a voz mais articulada no hemisfério norte, mundo onde, em geral, o sofrimento constante dos palestinos é ignorado. Para as autoridades israelenses, são untermenschen, sub-homens; para as autoridades norte-americanas, são todos terroristas; para os regimes árabes mercenários, um incômodo constante. Em seus últimos textos, Said condenou com todo o vigor a guerra ao Iraque e seus muitos apologistas. Defendia a liberdade em vez da violência e das mentiras. Sabia que a ocupação dupla da Palestina e do Iraque tornara ainda mais remota a paz na região. Sua voz é insubstituível, mas seu legado irá perdurar. Ele tem muitas vidas pela frente.

Notas:

[1] Esta citação e as seguintes são de A conversation with Edward Said [Uma conversa com Edward Said], produção da Bandung Films. O programa foi gravado no apartamento de Said na Riverside Drive, num dia tão úmido que ele tirou o paletó e a gravata quando as câmeras começaram a gravar, causando muito riso na casa.

[2] TAssim lorde Cromer, cônsul-geral britânico no Egito durante quase um quarto de século depois de 1881, disse: “O europeu é um raciocinador rigoroso; sua declaração dos fatos são privadas de ambigüidade; é um lógico natural [...] Por outro lado, à mente do oriental, como às suas ruas pitorescas, falta bastante simetria [...] Ele muitas vezes desmoronará sob o mais leve processo de exame mais cuidadoso” (Orientalism, Londres, 2003, p. 38).

[3] London Review of Books, 21 October 1993.

[4] NLR 11, September-October 2001.

[5] London Review of Books, 19 June 2003.

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