Uma resenha crítica do livro Contra-História do Liberalismo, do filósofo marxista Domenico Losurdo.
Leilão de pessoas escravizadas no estado de Virgínia, nos EUA, pouco antes da Guerra Civil, 1861. Imagem: Associated Press. |
Tradução / Domenico Losurdo compõe sua Contra-História do Liberalismo com a ambiciosa tarefa de redefinir uma tradição política de centenas de anos. Ele não gasta muito tempo explorando a definição usual de liberalismo – um sistema de pensamento e organização política baseado na liberdade individual – e, em vez disso, traz à luz aspectos que “até agora têm sido ampla e injustamente ignorados”. Losurdo concentra-se nas cláusulas de exclusão presentes nas ideias e nas sociedades liberais englobando escravos, trabalhadores, os pobres e os povos coloniais. Ele não pretende apenas corrigir um registro hagiográfico demais para o seu gosto, mas também dizer algo profundo sobre os paradoxos no cerne do liberalismo.
O livro debate com pensadores liberais de maior e menor importância, mas não é nitidamente uma história intelectual. Contra o “pensamento liberal em sua pureza abstrata”, Losurdo chama a atenção para como os teóricos liberais, especialmente quando escreveram sobre pessoas a quem foi negada a liberdade, justificavam ou atenuavam aspectos incômodos das sociedades que propagandeavam: principalmente a Grã-Bretanha após a Revolução Gloriosa e os Estados Unidos, mas também Holanda, França (em certos momentos), América Latina pós-revolucionária e a Alemanha que emergiu na segunda metade do século XIX. Esses bastiões liberais são responsáveis por inúmeras políticas de repressão e até barbárie, que hoje seriam chamadas de “iliberais” sem hesitação, mas que na época foram defendidas por uma profusão de pensadores liberais.
Uma das controvérsias centrais de Losurdo, no entanto, diz que instituições como a escravidão racial, o colonialismo e hierarquias de classe codificadas nas leis não apenas encontravam apologistas liberais muito bem dispostos, mas que eram expressões da própria sociedade liberal. Na abertura de seu livro, ele reivindica para o liberalismo a figura de John C. Calhoun, teórico e Estadista do sul escravocrata nos EUA. Calhoun investia contra os “fanáticos” abolicionistas e elogiava a harmonização, o compromisso; ele se declarava um oponente do “governo absoluto” e acreditava firmemente no constitucionalismo. Ele defendia a liberdade – mas apenas para alguns, e ao preço de uma das instituições menos livres e mais brutais da história humana.
Colocar Calhoun no início do livro é útil para alguns argumentos que Losurdo deseja construir. O primeiro é que o liberalismo representaria a revolta da sociedade civil contra o poder central e que, portanto, muitas vezes levou a novas e mais severas formas de poder fora do estado – o poder dos proprietários das plantations, de corporações coloniais e de capitalistas urbanos. Em segundo lugar, a crueldade dessas novas formas de poder derivaria em grande parte da posição fundamental dos direitos de propriedade no interior do liberalismo – incluindo o direito à propriedade humana. Terceiro, as restrições à filiação na “comunidade dos livres” tornariam a liberdade ainda mais preciosa para seus possuidores, produzindo uma casta de homens livres ansiosos por manter “no seu lugar” as castas mais baixas (cuja emancipação completa levaria a reivindicações de longo alcance contra a propriedade privada). A eventual emancipação dos não proprietários, por sua vez, dependeria de uma “linha nítida de demarcação entre brancos, por um lado, e negros e peles-vermelhas, por outro”.
Essa é uma teoria bastante sofisticada, mas a inclusão de Calhoun no panteão liberal não pode deixar de levantar algumas sobrancelhas de desconfiança. Seus argumentos contra o fanatismo e os “governos absolutos” e a favor do “compromisso” e do constitucionalismo o tornam um liberal ou um conservador que sabia mobilizar a linguagem da liberdade em benefício de sua classe? Em alguns momentos, Losurdo parece abraçar a ideia de que não há muita diferença entre os dois, escrevendo que a “celebração da liberdade” do liberalismo estava “vinculada à realidade de um poder absoluto sem precedentes” e que ela “pode ser claramente interpretada como uma ideologia”. Porém, à medida que o livro avança, fica explícito que ele não enxerga todos os teóricos liberais como cúmplices em uma farsa em nome das configurações existentes de poder e riqueza.
Ao mesmo tempo, Losurdo se opõe à ideia de que alguma dialética interna da liberdade teria levado os liberais a enfrentar com mais honestidade as exclusões do liberalismo inicial. Em vez disso, ele aponta para os principais conflitos dentro da comunidade dos livres – durante a Revolução Americana, as Revoluções Francesa e Haitiana, a Guerra Civil Americana e a Primeira Guerra Mundial – como momentos de constrangimento e desmistificação mútuos, quando aqueles em lados opostos em torno de uma questão política expunham as formas de falta de liberdade que seus adversários institucionalizavam. Os revolucionários americanos, por exemplo, proclamavam que sofriam sob o jugo da “escravidão política”. Os britânicos respondiam “ironizando sobre a bandeira da liberdade hasteada por proprietários de escravos” e apontando para o tratamento brutal dispensado aos nativos americanos. Tornou-se mais complicado para os liberais – embora não impossível – continuar justificando a escravidão após essas polêmicas. No rescaldo da Guerra Civil estadunidense, eles abandonaram por completo essa linha de argumentação, embora ainda não abandonassem o princípio da democracia com base racial. Como resultado desses conflitos sangrentos, o liberalismo absorveu ideias mais inclusivas e até mais igualitárias, demonstrando a “flexibilidade” que é um dos poucos méritos que Losurdo atribui à essa tradição.
Embora em alguns casos, como na Revolução Americana, os lados opostos em um conflito fossem compostos por liberais com interesses concorrentes, em outros casos Losurdo encontra uma dinâmica diferente em ação. Durante a Revolução Francesa, argumenta ele, pessoas antes inspiradas pela Revolução Americana ficaram tristes porque sua promessa de liberdade sucumbiu a um Estado racial inveterado. Em sua desilusão, elas deixaram de analisar as sociedades liberais apenas a partir da posição da comunidade dos livres. A palavra que Losurdo usa para o liberalismo desiludido é “radicalismo”, uma tradição cujos proponentes reconheciam que a liberdade em relação ao Estado não é igual à liberdade em geral, pelo menos para a vasta maioria. De acordo com Losurdo, mais do que qualquer compromisso político específico, o radicalismo implicou em uma mudança da perspectiva focada naqueles que desfrutavam da liberdade para uma perspectiva voltada àqueles que não desfrutavam dela e em uma disposição para permitir que estes últimos assumissem a “luta pelo reconhecimento” em suas próprias mãos.
A perspectiva radical desmente a divisão entre aquilo que Benjamin Constant, na esteira da Revolução Francesa, chamou de “liberdade dos antigos” (autogoverno) e “liberdade dos modernos” (o direito à vida privada e à propriedade privada, livre da interferência do Estado). Os defensores liberais do status quo acima de tudo elogiavam a liberdade moderna, ou (nas palavras de Isaiah Berlin) a “liberdade negativa“, especialmente quando se tratava de redistribuição de riqueza. A maioria das pessoas, é claro, não tinha propriedade para desfrutar, em grande parte porque lhes fora negada a liberdade “positiva” de participar do governo de suas sociedades. Mais do que simplesmente privar os pobres dessa participação, no entanto, os liberais muitas vezes demonstraram uma tendência, tanto na teoria quanto na prática, “de governar a existência das classes populares até nos menores detalhes” – por meio da frequência obrigatória à igreja, de internamento de mendigos em casas de correção e de restrições à reunião, entre outros regulamentos. Tanto a liberdade positiva quanto a negativa estavam fora de seu alcance.
Uma das controvérsias centrais de Losurdo, no entanto, diz que instituições como a escravidão racial, o colonialismo e hierarquias de classe codificadas nas leis não apenas encontravam apologistas liberais muito bem dispostos, mas que eram expressões da própria sociedade liberal. Na abertura de seu livro, ele reivindica para o liberalismo a figura de John C. Calhoun, teórico e Estadista do sul escravocrata nos EUA. Calhoun investia contra os “fanáticos” abolicionistas e elogiava a harmonização, o compromisso; ele se declarava um oponente do “governo absoluto” e acreditava firmemente no constitucionalismo. Ele defendia a liberdade – mas apenas para alguns, e ao preço de uma das instituições menos livres e mais brutais da história humana.
Colocar Calhoun no início do livro é útil para alguns argumentos que Losurdo deseja construir. O primeiro é que o liberalismo representaria a revolta da sociedade civil contra o poder central e que, portanto, muitas vezes levou a novas e mais severas formas de poder fora do estado – o poder dos proprietários das plantations, de corporações coloniais e de capitalistas urbanos. Em segundo lugar, a crueldade dessas novas formas de poder derivaria em grande parte da posição fundamental dos direitos de propriedade no interior do liberalismo – incluindo o direito à propriedade humana. Terceiro, as restrições à filiação na “comunidade dos livres” tornariam a liberdade ainda mais preciosa para seus possuidores, produzindo uma casta de homens livres ansiosos por manter “no seu lugar” as castas mais baixas (cuja emancipação completa levaria a reivindicações de longo alcance contra a propriedade privada). A eventual emancipação dos não proprietários, por sua vez, dependeria de uma “linha nítida de demarcação entre brancos, por um lado, e negros e peles-vermelhas, por outro”.
Essa é uma teoria bastante sofisticada, mas a inclusão de Calhoun no panteão liberal não pode deixar de levantar algumas sobrancelhas de desconfiança. Seus argumentos contra o fanatismo e os “governos absolutos” e a favor do “compromisso” e do constitucionalismo o tornam um liberal ou um conservador que sabia mobilizar a linguagem da liberdade em benefício de sua classe? Em alguns momentos, Losurdo parece abraçar a ideia de que não há muita diferença entre os dois, escrevendo que a “celebração da liberdade” do liberalismo estava “vinculada à realidade de um poder absoluto sem precedentes” e que ela “pode ser claramente interpretada como uma ideologia”. Porém, à medida que o livro avança, fica explícito que ele não enxerga todos os teóricos liberais como cúmplices em uma farsa em nome das configurações existentes de poder e riqueza.
Ao mesmo tempo, Losurdo se opõe à ideia de que alguma dialética interna da liberdade teria levado os liberais a enfrentar com mais honestidade as exclusões do liberalismo inicial. Em vez disso, ele aponta para os principais conflitos dentro da comunidade dos livres – durante a Revolução Americana, as Revoluções Francesa e Haitiana, a Guerra Civil Americana e a Primeira Guerra Mundial – como momentos de constrangimento e desmistificação mútuos, quando aqueles em lados opostos em torno de uma questão política expunham as formas de falta de liberdade que seus adversários institucionalizavam. Os revolucionários americanos, por exemplo, proclamavam que sofriam sob o jugo da “escravidão política”. Os britânicos respondiam “ironizando sobre a bandeira da liberdade hasteada por proprietários de escravos” e apontando para o tratamento brutal dispensado aos nativos americanos. Tornou-se mais complicado para os liberais – embora não impossível – continuar justificando a escravidão após essas polêmicas. No rescaldo da Guerra Civil estadunidense, eles abandonaram por completo essa linha de argumentação, embora ainda não abandonassem o princípio da democracia com base racial. Como resultado desses conflitos sangrentos, o liberalismo absorveu ideias mais inclusivas e até mais igualitárias, demonstrando a “flexibilidade” que é um dos poucos méritos que Losurdo atribui à essa tradição.
Embora em alguns casos, como na Revolução Americana, os lados opostos em um conflito fossem compostos por liberais com interesses concorrentes, em outros casos Losurdo encontra uma dinâmica diferente em ação. Durante a Revolução Francesa, argumenta ele, pessoas antes inspiradas pela Revolução Americana ficaram tristes porque sua promessa de liberdade sucumbiu a um Estado racial inveterado. Em sua desilusão, elas deixaram de analisar as sociedades liberais apenas a partir da posição da comunidade dos livres. A palavra que Losurdo usa para o liberalismo desiludido é “radicalismo”, uma tradição cujos proponentes reconheciam que a liberdade em relação ao Estado não é igual à liberdade em geral, pelo menos para a vasta maioria. De acordo com Losurdo, mais do que qualquer compromisso político específico, o radicalismo implicou em uma mudança da perspectiva focada naqueles que desfrutavam da liberdade para uma perspectiva voltada àqueles que não desfrutavam dela e em uma disposição para permitir que estes últimos assumissem a “luta pelo reconhecimento” em suas próprias mãos.
A perspectiva radical desmente a divisão entre aquilo que Benjamin Constant, na esteira da Revolução Francesa, chamou de “liberdade dos antigos” (autogoverno) e “liberdade dos modernos” (o direito à vida privada e à propriedade privada, livre da interferência do Estado). Os defensores liberais do status quo acima de tudo elogiavam a liberdade moderna, ou (nas palavras de Isaiah Berlin) a “liberdade negativa“, especialmente quando se tratava de redistribuição de riqueza. A maioria das pessoas, é claro, não tinha propriedade para desfrutar, em grande parte porque lhes fora negada a liberdade “positiva” de participar do governo de suas sociedades. Mais do que simplesmente privar os pobres dessa participação, no entanto, os liberais muitas vezes demonstraram uma tendência, tanto na teoria quanto na prática, “de governar a existência das classes populares até nos menores detalhes” – por meio da frequência obrigatória à igreja, de internamento de mendigos em casas de correção e de restrições à reunião, entre outros regulamentos. Tanto a liberdade positiva quanto a negativa estavam fora de seu alcance.
Losurdo argumenta, embora apenas brevemente, que o radicalismo devia tanto à religião cristã (que alguns liberais esperavam varrer como uma mera superstição) quanto à própria ideia de liberdade. No final do livro, ele praticamente abandona essa sugestão e, em vez disso, descreve “dois liberalismos”: um que identificava “a ‘verdadeira liberdade’ com o controle irrestrito do senhor sobre sua família, bem como seus servos e seus bens”; e o outro, “mobilizado pelos servos, que se recusavam a se deixar assimilar aos pertences do senhor e que buscavam a emancipação por meio da intervenção do poder político em seu nome, seja este o poder já existente ou o poder formado na esteira de uma revolução vinda de baixo”. Este último, é claro, soa quase idêntico ao “radicalismo” descrito como uma força que se opõe ao liberalismo alguns capítulos antes – uma tensão não resolvida no livro de Losurdo que pode nos levar a questionar se “liberalismo” e “radicalismo” podem ser tão separados de maneira tão nítida. Até Kant e Mill, admite Losurdo, tinham em si algo da perspectiva radical; e, por outro lado, o Rheinische Zeitung, que Marx editou no início da década de 1840, era um jornal radical, mas também “liberal”.
O escrutínio implacável de Losurdo às vezes vem às custas de um quadro mais completo sobre o liberalismo. Se ele admite “dois liberalismos”, é o mais conservador deles que Losurdo passa a maior parte do livro expondo, e o menos conservador mais frequentemente ele chama de “radicalismo” em vez de liberalismo como tal. O livro de Losurdo é, sem dúvida intencionalmente, uma leitura do liberalismo a partir da perspectiva daqueles que o liberalismo marginalizou ou pior, mas muitas vezes ele parece ter medo de permitir que “radicalismo” e “liberalismo” se misturem. Hayek e Von Mises, por exemplo, fazem participações especiais denunciando concessões liberais ao socialismo nos escassos comentários de Losurdo sobre o século XX após a Primeira Guerra Mundial; já Keynes e Rawls, por outro lado, não recebem uma única menção.
Esse problema de viés de seleção perseguirá qualquer livro que cubra tanto terreno e que amarre tantas interpretações históricas disputadas. A erudição de Losurdo é quase inacreditável, o que talvez explique por que seu texto, tão abrangente, carece de uma explicação sistemática sobre aquilo que faz do liberalismo o que ele é. De certa forma, isso é em benefício de Losurdo: embora se possa separar algumas de suas interpretações ou seu ceticismo quase automático em relação ao liberalismo, ele chega a várias conclusões provocativas, e nem todas precisam permanecer de pé para que seu livro seja persuasivo. Tomemos, por exemplo, aquela que talvez seja sua conclusão mais provocante de todas, esboçada rapidamente no capítulo final da Contra-História do Liberalismo: a guerra total, o extermínio e a ordenação racial da sociedade, que receberiam tanto repúdio na esteira da Segunda Guerra Mundial, encontravam expressão na sociedade e no pensamento liberais poucas décadas antes. Embora ele tire essa conclusão do trabalho de outros estudiosos, os pesquisadores do fascismo contestarão corretamente uma genealogia vulgar em que o liberalismo levaria ao nazismo. No entanto, dar atenção aos resultados contraditórios e às vezes cruéis da emancipação liberal da sociedade civil – incluindo o abraço liberal da eugenia – é uma tarefa importante para qualquer pessoa preocupada em evitar uma caracterização da “catástrofe do século XX como uma espécie de nova invasão bárbara que inesperadamente teria atacado, confundido e engolido uma sociedade saudável e feliz.”
O livro de Losurdo é mais do que apenas uma intervenção útil na historiografia liberal. Contudo, como ele o interrompe com alguns breves comentários sobre a Segunda Guerra Mundial, ele nunca integra os desenvolvimentos do liberalismo desde seu encontro com o socialismo, o fim do colonialismo, o fim da segregação racial codificada na lei e a libertação das mulheres com suas teorias decorrentes da revolta da sociedade civil. Em particular, o silêncio de Losurdo sobre as lutas das mulheres por reconhecimento é tão completo que chega a ser intrigante. Ele deixa essas lutas de lado porque liberais como Bentham e Mill eram críticos ferozes de sua sociedade patriarcal?
Em vez de voltar seu olhar crítico para as ideias liberais que floresceram no século XX, como o intervencionismo humanitário e o welfarismo, ele termina com questões em aberto como “será que o liberalismo deixou definitivamente para trás a dialética da emancipação e da des-emancipação, com todos os perigos de regressão e restauração implícitos nela?” Lidar com um século a mais em seu estudo teria exigido acréscimos substanciais a um livro já robusto, mas dados os emaranhados e paradoxos do liberalismo contemporâneo, é difícil não desejar que ele tivesse empreendido esse esforço.
Há outra ausência em Contra-História do Liberalismo que deve incomodar até mesmo os leitores simpáticos aos argumentos apresentados no livro: podemos sentir o capitalismo por toda parte, mas ele quase nunca é nomeado. Em uma passagem, Losurdo distancia explicitamente o “radicalismo” do “socialismo”, que ele acredita poder envolver exclusões (especificamente com respeito às colônias) semelhantes às do liberalismo. Em outra passagem, ele elogia a ênfase liberal na “concorrência entre indivíduos no mercado” para a criação de riqueza social e o desenvolvimento de capacidades produtivas, desde que esses mercados atendam a certas condições que as sociedades liberais do pré-guerra nunca cumpriram. Liberais e radicais têm se encontrado nos dois lados dos debates recentes sobre o imperialismo e, após as vitórias da política identitária, parecem concordar em grande medida na questão da “perspectiva” que para Losurdo é uma linha divisória. Suas divergências com relação a questões de organização econômica e de poder econômico deveriam agora ser mais evidentes do que nunca.
Contra-História do Liberalismo foi publicado na Itália em 2005, quando o império estadunidense provavelmente parecia uma preocupação mais urgente do que o capitalismo global. Se não era óbvio na época, deveria ser agora: os críticos das forças que estão subvertendo a democracia e o livre desenvolvimento de todos os indivíduos precisarão fazer mais do que olhar para o mundo com os olhos dos miseráveis da Terra. Todavia, para os realistas crassos que diriam que infelizmente este é o melhor de todos os mundos possíveis, uma mudança de perspectiva seria um ótimo ponto de partida.
Colaborador
Nick Serpe é editor sênior da revista Dissent.
O escrutínio implacável de Losurdo às vezes vem às custas de um quadro mais completo sobre o liberalismo. Se ele admite “dois liberalismos”, é o mais conservador deles que Losurdo passa a maior parte do livro expondo, e o menos conservador mais frequentemente ele chama de “radicalismo” em vez de liberalismo como tal. O livro de Losurdo é, sem dúvida intencionalmente, uma leitura do liberalismo a partir da perspectiva daqueles que o liberalismo marginalizou ou pior, mas muitas vezes ele parece ter medo de permitir que “radicalismo” e “liberalismo” se misturem. Hayek e Von Mises, por exemplo, fazem participações especiais denunciando concessões liberais ao socialismo nos escassos comentários de Losurdo sobre o século XX após a Primeira Guerra Mundial; já Keynes e Rawls, por outro lado, não recebem uma única menção.
Esse problema de viés de seleção perseguirá qualquer livro que cubra tanto terreno e que amarre tantas interpretações históricas disputadas. A erudição de Losurdo é quase inacreditável, o que talvez explique por que seu texto, tão abrangente, carece de uma explicação sistemática sobre aquilo que faz do liberalismo o que ele é. De certa forma, isso é em benefício de Losurdo: embora se possa separar algumas de suas interpretações ou seu ceticismo quase automático em relação ao liberalismo, ele chega a várias conclusões provocativas, e nem todas precisam permanecer de pé para que seu livro seja persuasivo. Tomemos, por exemplo, aquela que talvez seja sua conclusão mais provocante de todas, esboçada rapidamente no capítulo final da Contra-História do Liberalismo: a guerra total, o extermínio e a ordenação racial da sociedade, que receberiam tanto repúdio na esteira da Segunda Guerra Mundial, encontravam expressão na sociedade e no pensamento liberais poucas décadas antes. Embora ele tire essa conclusão do trabalho de outros estudiosos, os pesquisadores do fascismo contestarão corretamente uma genealogia vulgar em que o liberalismo levaria ao nazismo. No entanto, dar atenção aos resultados contraditórios e às vezes cruéis da emancipação liberal da sociedade civil – incluindo o abraço liberal da eugenia – é uma tarefa importante para qualquer pessoa preocupada em evitar uma caracterização da “catástrofe do século XX como uma espécie de nova invasão bárbara que inesperadamente teria atacado, confundido e engolido uma sociedade saudável e feliz.”
O livro de Losurdo é mais do que apenas uma intervenção útil na historiografia liberal. Contudo, como ele o interrompe com alguns breves comentários sobre a Segunda Guerra Mundial, ele nunca integra os desenvolvimentos do liberalismo desde seu encontro com o socialismo, o fim do colonialismo, o fim da segregação racial codificada na lei e a libertação das mulheres com suas teorias decorrentes da revolta da sociedade civil. Em particular, o silêncio de Losurdo sobre as lutas das mulheres por reconhecimento é tão completo que chega a ser intrigante. Ele deixa essas lutas de lado porque liberais como Bentham e Mill eram críticos ferozes de sua sociedade patriarcal?
Em vez de voltar seu olhar crítico para as ideias liberais que floresceram no século XX, como o intervencionismo humanitário e o welfarismo, ele termina com questões em aberto como “será que o liberalismo deixou definitivamente para trás a dialética da emancipação e da des-emancipação, com todos os perigos de regressão e restauração implícitos nela?” Lidar com um século a mais em seu estudo teria exigido acréscimos substanciais a um livro já robusto, mas dados os emaranhados e paradoxos do liberalismo contemporâneo, é difícil não desejar que ele tivesse empreendido esse esforço.
Há outra ausência em Contra-História do Liberalismo que deve incomodar até mesmo os leitores simpáticos aos argumentos apresentados no livro: podemos sentir o capitalismo por toda parte, mas ele quase nunca é nomeado. Em uma passagem, Losurdo distancia explicitamente o “radicalismo” do “socialismo”, que ele acredita poder envolver exclusões (especificamente com respeito às colônias) semelhantes às do liberalismo. Em outra passagem, ele elogia a ênfase liberal na “concorrência entre indivíduos no mercado” para a criação de riqueza social e o desenvolvimento de capacidades produtivas, desde que esses mercados atendam a certas condições que as sociedades liberais do pré-guerra nunca cumpriram. Liberais e radicais têm se encontrado nos dois lados dos debates recentes sobre o imperialismo e, após as vitórias da política identitária, parecem concordar em grande medida na questão da “perspectiva” que para Losurdo é uma linha divisória. Suas divergências com relação a questões de organização econômica e de poder econômico deveriam agora ser mais evidentes do que nunca.
Contra-História do Liberalismo foi publicado na Itália em 2005, quando o império estadunidense provavelmente parecia uma preocupação mais urgente do que o capitalismo global. Se não era óbvio na época, deveria ser agora: os críticos das forças que estão subvertendo a democracia e o livre desenvolvimento de todos os indivíduos precisarão fazer mais do que olhar para o mundo com os olhos dos miseráveis da Terra. Todavia, para os realistas crassos que diriam que infelizmente este é o melhor de todos os mundos possíveis, uma mudança de perspectiva seria um ótimo ponto de partida.
Colaborador
Nick Serpe é editor sênior da revista Dissent.
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