I/227 • Jan/Feb 1998 |
Tradução / Proponho-me me a considerar dois tipos diferentes de afirmações que têm circulado recentemente, representando a culminação de um sentimento que vem sendo construído há algum tempo.[1] Um deles tem a ver com uma objeção explicitamente marxista à redução da pesquisa e do ativismo marxista ao estudo da cultura, às vezes entendido como uma redução do marxismo aos estudos culturais. O segundo ter a ver com a tendência a relegar os novos movimentos sociais à esfera da cultura, decerto para desqualificá-los como estando preocupados com o que é chamado “meramente” cultural, e então conceber esta política cultural como sectária, identitária e particularista. Se não dou nomes àqueles que sustentam esse ponto de vista, espero que seja perdoada. A suposição cultural em ação neste ensaio é que nós articulamos e ouvimos tais pontos de vista, que eles fazem parte dos debates que povoam a paisagem intelectual dentro dos círculos intelectuais progressistas. Presumo ainda que, ao ligar indivíduos a estes pontos de vista, corre-se o risco de desviar a atenção do significado e do efeito de tais concepções para uma política menor de quem disse o quê, e quem disse o quê de volta – uma forma de política cultural à qual, por enquanto, quero resistir.
Estas são algumas das formas que este tipo de argumento assumiu no ano passado: que o foco cultural da política de esquerda abandonou o projeto materialista de Marx, falhando em enfrentar questões de equidade e redistribuição econômica, e falhando também em situar a cultura nos termos de um entendimento sistemático dos modos sociais e econômicos de produção; que o foco cultural da política de esquerda a dividiu em seitas identitárias, e que, assim, perdemos um conjunto de ideais e metas comuns, um sentido de uma história comum, um conjunto de valores comuns, uma linguagem comum e até um modo de racionalidade objetivo e universal; que o foco cultural da política de esquerda substitui uma forma de política trivial e autocentrada que foca em eventos, práticas e objetos transitórios, em vez de oferecer uma visão mais robusta, séria e abrangente das interrelações sistemáticas entre as condições sociais e econômicas.
Claramente, um pressuposto mais ou menos implícito em alguns destes argumentos é a noção de que o pós-estruturalismo se tornou um obstáculo para o marxismo, e que qualquer habilidade em prestar contas sistematicamente à vida social ou em fazer valer normas de racionalidade – sejam elas objetivas, universais ou ambas – é agora seriamente dificultada por um pós-estruturalismo que entrou no campo da política cultural, no qual ele é tido como destrutivo, relativista e politicamente paralisante.
Talvez vocês estejam se perguntando como é que posso dedicar tempo a ensaiar estes argumentos deste modo, dando-lhes audiência, por assim dizer; e pode ser que estejam imaginando ainda se estou ou não parodiando tais posições. Penso que elas são inúteis, ou considero que são importantes e merecem uma resposta? Se estivesse parodiando estas posições, isso poderia implicar que penso que elas são ridículas, ocas e estereotipadas, que elas têm uma generalidade e uma atualidade como discurso, que permite que sejam tomadas por quase qualquer um e soar convincentes, mesmo quando proferidas pela pessoa mais improvável. Mas e se o meu ensaio envolve uma identificação provisória com elas, ainda que eu mesma participe da política cultural sob ataque? Esta identificação temporária que realizo, a qual levanta a questão se estou envolvida em uma paródia destas posições, não é precisamente um momento no qual, para bem ou mal, elas se tornam a minha posição?
Eu argumentaria que é impossível executar uma paródia de uma posição intelectual sem ter uma afiliação prévia com o que se parodia, sem ter e querer uma intimidade com a posição que se assume ou com o objeto da paródia. A paródia requer uma certa habilidade de identificar, aproximar e chegar perto; ela partilha uma intimidade com a posição da qual se apropria, que perturba a voz, o suporte, a performatividade do sujeito, de tal modo que a audiência ou o leitor não sabe muito bem onde você se apoia, se foi para o outro lado, se permanece do seu lado, se você pode ensaiar aquela outra posição sem se tornar presa dela no meio da performance. Vocês podem concluir: ela não está sendo séria de modo algum – ou podem concluir que esta é uma espécie de peça desconstrutiva e resolver olhar para outra parte a fi m de encontrar uma discussão séria. Mas, se quiserem, eu os convidaria a tomar parte em minha aparente hesitação, porque penso que ela realmente atende ao propósito de superar divisões desnecessárias na esquerda, e isto é parte do meu propósito aqui.
Quero sugerir que os esforços recentes de parodiar a esquerda cultural não poderiam ter ocorrido se não houvesse esta afiliação e intimidade preliminares, e que entrar na paródia é entrar em um relacionamento de ambos: desejo e ambivalência. Na farsa do ano passado, vimos uma forma peculiar de identificação em progresso, na qual quem realiza a paródia aspira, bem literalmente, a ocupar o lugar do parodiado, não apenas para expor os ícones da esquerda cultural, mas para adquirir e se apropriar desta própria iconicidade, e então se abrir alegremente à exposição pública como quem realizou a exposição, assim ocupando ambas as posições na paródia, territorializando a posição daquele outro e adquirindo temporariamente fama cultural.3 Assim, não se pode dizer que o propósito da paródia é denunciar o modo pelo qual a política de esquerda se tornou direcionada pela mídia ou centrada nela, degradada pelo popular e pelo cultural, mas, antes, precisamente entrar e mergulhar na mídia, para se tornar popular e triunfar nos mesmos termos que foram adquiridos por aqueles que se quer humilhar, assim reconfirmando e incorporando os valores de popularidade e sucesso midiático que levam a crítica a começar. Considere o eletrizante sadismo, o alívio do ressentimento reprimido no momento de ocupar o campo popular que é aparentemente deplorado como um objeto de análise, prestando tributo ao poder do oponente, assim revigorando a própria idealização que se pretendia desmontar.
O resultado da paródia é paradoxal: a alegre sensação de triunfo proporcionada pelos avatares de um marxismo ostensivamente mais sério em seu momento de protagonismo cultural exemplifica e sintomatiza precisamente o objeto cultural da crítica a que ele se opõe; a sensação de triunfo sobre o inimigo, a qual não pode se dar sem, de algum modo estranho, tomar o próprio lugar do inimigo, levanta a questão de se os objetivos e metas desse marxismo mais sério não se tornaram desesperadamente deslocados em um domínio cultural, produzindo um objeto transitório de atenção midiática no lugar de uma análise mais sistemática das relações econômicas e sociais. Esta sensação de triunfo reinscreve uma faccionalização dentro da esquerda no momento mesmo em que os direitos sociais estão sendo abolidos nos Estados Unidos, as diferenciações de classe estão se intensificando em todo o globo, e a direita conquista com sucesso o terreno do “meio”, fazendo efetivamente a própria esquerda invisível dentro da mídia – exceto naquela rara ocasião em que uma parte da esquerda ataca a outra, produzindo um espetáculo para ser consumido pelo mainstream liberal e conservador da imprensa, o qual fica muito contente em desacreditar toda e qualquer fração da esquerda dentro do processo político e em negar a esquerda como um forte poder a serviço de uma mudança social radical.
A tentativa de separar o marxismo dos estudos da cultura e de resgatar o conhecimento crítico dos obstáculos ocultos da especificidade cultural é simplesmente uma guerra por território entre os estudos culturais de esquerda e formas mais ortodoxas de marxismo? Como esta pretensa separação se relaciona com a afirmação de que os novos movimentos sociais dividiram a esquerda, privando-nos de ideais comuns, fracionando o campo do conhecimento e do ativismo político, reduzindo este último a uma mera reivindicação e afirmação de uma identidade cultural? A acusação de que os novos movimentos sociais são “meramente culturais”, de que um marxismo progressista e unificado deveria retornar a um materialismo baseado em uma análise de classe objetiva, presume ela mesma que a distinção entre a vida material e a vida cultural é estável. E este recurso a uma distinção aparentemente estável entre a vida material e a cultural é claramente um renascimento de um anacronismo teórico, o qual desacredita as contribuições à teoria marxista desde o deslocamento do modelo base-superestrutura de Althusser, assim como várias formas de materialismo cultural (por exemplo, de Raymond Williams, Stuart Hall e Gayatri Chakravorty Spivak). Com certeza, o inoportuno reaparecimento desta distinção está a serviço de uma tática que busca identificar os novos movimentos sociais com o meramente cultural, e o cultural com o derivado e secundário, adotando deste modo um materialismo anacrônico como a bandeira para uma nova ortodoxia.
Esta ressurgência da ortodoxia de esquerda clama por uma “unidade” que, paradoxalmente, viria a redividir a esquerda precisamente do modo que tal ortodoxia alega lamentar. Certamente, uma maneira de produzir esta divisão se torna clara quando perguntamos quais movimentos, e por quais razões, foram relegados à esfera do “meramente cultural”, e como esta mesma divisão entre o material e o cultural é taticamente invocada a fi m de marginalizar certas formas de ativismo político. Como a nova ortodoxia na esquerda trabalha junto a um conservadorismo sexual e social, que procura fazer com que questões de raça e sexualidade sejam secundárias em relação à questão “real” da política, produzindo uma nova e estranha formação de marxismos neoconservadores? Com base em quais princípios de exclusão e subordinação esta ostensiva unidade foi erigida? Quão rapidamente nos esquecemos de que os novos movimentos sociais baseados em princípios democráticos foram articulados contra uma esquerda hegemônica tanto quanto contra um centro liberal complacente e uma direita verdadeiramente ameaçadora? As razões históricas para o desenvolvimento de novos movimentos sociais semiautônomos foram alguma vez realmente levadas em conta por aqueles que agora lamentam sua emergência e os atribuem a estreitos interesses identitários? Esta situação não é simplesmente reproduzida nos esforços recentes de restaurar o universal por decreto, seja por meio da imaginária sutileza da racionalidade habermasiana ou de noções do bem comum que priorizam uma noção de classe racialmente purificada? Não é o ponto da nova retórica da unidade simplesmente “incluir”, por meio da domesticação e da subordinação, precisamente aqueles movimentos formados, em parte, em oposição a tal domesticação e subordinação, mostrando que os proponentes do “bem comum” falharam em ler a história que tornou este conflito possível?
Aquilo de que a ortodoxia ressurgente pode se ressentir em relação aos novos movimentos sociais é precisamente a vitalidade de que tais movimentos estão desfrutando. Paradoxalmente, os mesmos movimentos que continuam a manter a esquerda viva são responsabilizados por sua paralisia. Embora eu concorde que uma construção estreitamente identitária de tais movimentos possa levar a um estreitamento do campo político, não há razão para presumir que tais movimentos sociais são redutíveis a suas formações identitárias. O problema de unidade ou, mais modestamente, de solidariedade não pode ser resolvido por meio da transcendência ou da obliteração deste campo, e certamente não por meio da promessa vã de recuperar uma unidade forjada por meio de exclusões, que restitui a subordinação como condição de sua própria possibilidade. A única unidade possível não será a síntese de um conjunto de confl itos, mas será um modo de sustentar conflitos de formas politicamente produtivas, uma prática de contestação que exige que estes movimentos articulem suas metas sob a pressão uns dos outros, sem consequentemente se confundirem com eles.
Esta não é exatamente a cadeia de equivalência proposta por Laclau e Mouff e, ainda que mantenha, de fato, importantes relações com ela.4 Novas formações políticas não se colocam em uma relação analógica umas com as outras, como se fossem entidades discretas e diferenciadas. Elas constituem campos de politização sobrepostos, mutuamente determinantes e convergentes. Com efeito, os momentos mais promissores são aqueles nos quais um movimento social vem a encontrar sua condição de possibilidade em um outro. Aqui a diferença não corresponde simplesmente às diferenças externas entre movimentos, entendidas como aquilo que os diferencia uns dos outros, mas, antes, à autodiferença do movimento em si, uma ruptura constitutiva que torna os movimentos possíveis em fundamentos não identitários, que instala um certo conflito mobilizador como base da politização. A criação de facções, entendida como o processo pelo qual uma identidade exclui outra a fi m de fortalecer sua própria unidade e coerência, comete o erro de situar o problema da diferença como o que emerge entre uma identidade e outra; mas a diferença é a condição de possibilidade da identidade ou, antes, seu limite constitutivo: o que torna sua articulação possível é, ao mesmo tempo, aquilo que torna qualquer articulação final ou fechada impossível.
Dentro da academia, o esforço de separar os estudos de raça dos estudos da sexualidade e estes dos estudos de gênero marca várias necessidades de articulação autônoma, mas também produz invariavelmente um conjunto de confrontações importantes, dolorosas e promissoras que expõem os limites últimos de tal autonomia: a política de sexualidade dentro dos estudos afro-americanos; a política de raça dentro dos estudos queer, dos estudos de classe, do feminismo; a questão da misoginia dentro de qualquer um dos estudos acima; a questão da homofobia dentro do feminismo – apenas para nomear algumas. Isso parece ser precisamente o tedium das lutas identitárias que uma esquerda nova e mais inclusiva busca transcender. E, no entanto, para uma política de “inclusão” significar algo que não a redomesticação e a ressubordinação de tais diferenças, ela terá que desenvolver um sentido de aliança no curso de uma nova forma de encontro conflituoso. Quando os novos movimentos sociais são lançados como tantos “particularismos” em busca de um universal abran-gente, é necessário perguntar como a própria rubrica do universal só se tornou possível por meio do apagamento dos trabalhos prévios do poder social. Isso não significa que os universais são impossíveis, mas apenas que um universal abstraído de sua situação no poder será sempre falsificador e territorializante, clamando para que se resista a ele em qualquer nível. Seja qual for o universal que se torna possível – e pode ser que os universais sejam possíveis apenas por um certo tempo, “relampejando” [flashing up] no sentido benjaminiano –, ele será o resultado de um difícil trabalho de tradução no qual os movimentos sociais oferecem seus pontos de convergência contra um background de permanente contestação.
Culpar os novos movimentos sociais por sua vitalidade, como alguns fizeram, é precisamente recusar-se a entender que qualquer futuro para a esquerda será construído com base em movimentos que levam à participação popular, e que todo esforço para impor de fora uma unidade a tais movimentos será rejeitado mais uma vez como uma forma de vanguardismo dedicado à produção de hierarquia e dissensão, produzindo o mesmo sectarismo que afirma ter vindo de fora.
A nostalgia de uma unidade falsa e excludente está ligada ao menosprezo do cultural e a um renovado conservadorismo social e sexual na esquerda. Algumas vezes, isso toma a forma de uma tentativa de ressubordinar a raça à classe, falhando em considerar o que Paul Gilroy e Stuart Hall argumentaram, a saber, que a raça pode ser uma modalidade na qual a classe é vivenciada. Deste modo, raça e classe se tornam analiticamente distintas apenas para perceber que a análise de uma não pode proceder sem a análise da outra. Uma dinâmica diferente está em processo em relação à sexualidade, e proponho dedicar o restante deste ensaio a esta questão. Considerada inessencial àquilo que é mais premente na vida material, a política queer é usualmente retratada pela ortodoxia como o extremo cultural da politização.
Se as lutas de classe e de raça são entendidas como profundamente econômicas, e as lutas feministas como às vezes econômicas e às vezes culturais, as lutas queer são entendidas não apenas como lutas culturais, mas ainda como típicas da forma “meramente cultural” que os movimentos sociais contemporâneos assumiram. Consideremos o trabalho recente de uma colega, Nancy Fraser, cujas concepções não são de modo algum ortodoxas, e quem, pelo contrário, tem buscado encontrar caminhos para oferecer um quadro referencial abrangente para a compreensão das relações interligadas entre os vários tipos de lutas emancipatórias. Volto-me para o seu trabalho em parte devido ao fato de encontrar ali a pressuposição que tanto me preocupa, e porque eu e ela temos uma história de argumentação amigável – a qual confio que vá continuar a partir daqui como uma interlocução produtiva[5] (esta é também a razão pela qual ela permanece sendo a única pessoa que concordo em nomear neste ensaio).
No livro recente de Fraser, Justice Interruptus, ela acertadamente observa que “hoje, nos Estados Unidos, a expressão ‘política de identidade’ é cada vez mais utilizada como um termo depreciativo para o feminismo, o antirracismo e o anti-heterossexismo”.6 Ela insiste que tais movimentos têm tudo a ver com a justiça social, e argumenta que qualquer movimento de esquerda deve responder a seus desafios. Não obstante, ela reproduz a divisão que localiza certas opressões como parte da política econômica, e relega outras à esfera exclusivamente cultural. Abrindo um leque que abarca desde a economia até a cultura política, ela situa as lutas lésbicas e gays no polo cultural deste espectro político. A homofobia, ela argumenta, não tem qualquer raiz na economia política, pois os homossexuais não ocupam qualquer posição distintiva na divisão do trabalho, estão distribuídos ao longo de toda a estrutura classista, e não constituem uma classe explorada. “[A] injustiça que eles sofrem é essencialmente uma questão de reconhecimento” (ibid., p. 17-18), afirma Fraser, construindo deste modo as lutas lésbicas e gays como questões meramente de reconhecimento cultural, em vez de reconhecê-las como lutas seja por equidade ao longo de toda a esfera da economia política, seja pelo fi m da opressão material.
Por que um movimento preocupado em criticar e transformar os modos por meio dos quais a sexualidade é regulada socialmente não deveria ser entendido como central para o funcionamento da economia política? Certamente, o fato de que esta crítica e esta transformação são centrais para o projeto do materialismo era o argumento incisivo das feministas socialistas e daqueles interessados na convergência entre o marxismo e a psicanálise nos anos 1970 e 1980; e foi claramente inaugurado por Engels e Marx com sua insistência em que o “modo de produção” precisava incluir, também, formas de associação social. Em A ideologia alemã (1846), Marx celebremente escreveu: “os homens, que diariamente reproduzem sua própria vida, começam a produzir outros homens, a propagar sua espécie: a relação entre homem e mulher, pais e fi lhos, a família”.7 Apesar de Marx vacilar entre considerar a procriação como uma relação natural ou social, ele deixa claro não apenas que um modo de produção é sempre combinado com um modo de cooperação, mas ainda que, significativamente, “um modo de produção é em si mesmo uma ‘força produtiva’” (ibid.). Engels claramente desenvolve este argumento em A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884), oferecendo ali uma formulação que se tornou, por algum tempo, talvez a citação mais amplamente mencionada nas pesquisas feministas-socialistas:
De acordo com a concepção materialista, o fator determinante na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata. Isso, outra vez, adquire um duplo caráter: de um lado, a produção dos meios de existência, de alimento, vestuário, abrigo e das ferramentas necessárias a esta produção; de outro lado, a produção dos próprios seres humanos, a propagação da espécie.[8]
Com certeza, muitos dos argumentos feministas durante este período procuraram não apenas identificar a família como parte do modo de produção, mas também mostrar como a própria produção do gênero tinha que ser entendida como parte da “produção de seres humanos”, em conformidade com as normas que reproduziam a família heterossexualmente normativa. Assim, a psicanálise surgia como um modo de mostrar como o parentesco operava para reproduzir pessoas em formas sociais que atendiam aos interesses do capital. Mesmo que alguns participantes destes debates tenham cedido o território do parentesco a Lévi-Strauss e aos sucessores lacanianos desta teoria, outros ainda sustentavam que uma consideração especificamente social da família era necessária para explicar a divisão sexual do trabalho e a reprodução do trabalhador marcada pelo gênero [gendered]. Essencial para a posição feminista-socialista da época foi precisamente a concepção de que a família não é um dado natural e que, como um arranjo social específico de funções parentais, ela permanecia historicamente contingente e, em princípio, transformável. A pesquisa nos anos 1970 e 1980 buscava estabelecer a esfera da reprodução sexual como parte das condições materiais da vida, como um traço próprio e constitutivo da economia política. Ela também procurava mostrar como a reprodução de pessoas marcadas pelo gênero, de “homens” e “mulheres”, dependia da regulação social da família e, de fato, da reprodução da família heterossexual como um espaço para a reprodução de pessoas heterossexuais aptas a entrarem na família como uma forma social. Com certeza, a pressuposição tornou-se, no trabalho de Gayle Rubin e outros, que a reprodução normativa do gênero era essencial para a reprodução da heterossexualidade e da família. Deste modo, a divisão sexual do trabalho não podia ser entendida separadamente da reprodução de pessoas marcadas pelo gênero, e a psicanálise entrava usualmente como um modo de compreender os vestígios psíquicos daquela organização social, bem como os modos por meio dos quais aquela regulação aparecia nos desejos sexuais dos indivíduos. Então, a regulação da sexualidade foi sistematicamente vinculada ao modo de produção adequado ao funcionamento da economia política.
Importa notar que ambos, gênero e sexualidade, tornam-se parte da vida material não apenas pelo modo com que eles servem à divisão sexual do trabalho, mas também porque o gênero normativo serve à reprodução da família normativa. A questão aqui é que, contra Fraser, as lutas para transformar o campo social da sexualidade não se tornam centrais para a economia política na medida em que podem ser diretamente relacionadas a questões de exploração e não remuneração do trabalho, mas, antes, porque elas não podem ser compreendidas sem uma expansão da própria esfera “econômica” para incluir tanto a reprodução de bens quanto a reprodução social de pessoas.
Dados os esforços das feministas socialistas para entender como a reprodução de pessoas e a regulação social da sexualidade faziam parte do próprio processo de produção e, deste modo, da “concepção materialista” da economia política, como é que de repente, quando o foco da análise crítica passa da questão de como a sexualidade normativa é reproduzida para a questão queer de como esta mesma normatividade é confundida pelas sexualidades não normativas que ela abriga dentro de seus próprios termos – para não mencionar as sexualidades que prosperam e sofrem fora daqueles termos –, a ligação entre tal análise e o modo de produção é repentinamente abandonado? É apenas uma questão de reconhecimento “cultural” quando as sexualidades não normativas são marginalizadas e rebaixadas, ou entra no jogo a possibilidade de subsistência? É possível distinguir, mesmo analiticamente, entre uma falta de reconhecimento cultural e uma opressão material, quando a própria definição legal de “pessoa” é rigorosamente circunscrita às normas culturais que são indissociáveis de seus efeitos materiais? Tome-se, por exemplo, aquelas instâncias nas quais lésbicas e gays são rigorosamente excluídos das noções de família sancionadas pelo Estado (que, segundo as leis de imposto e propriedade, forma uma unidade econômica); detidos na fronteira; considerados inadmissíveis à cidadania; têm seletivamente negado o status de liberdade de expressão e de associação; têm o direito negado, como membros do exército, de falar sobre seu desejos; ou são desautorizados por lei a tomar decisões médicas emergenciais a respeito de um companheiro à beira da morte, a receber as propriedades de um parceiro morto, ou a receber do hospital o corpo de um parceiro morto – estes exemplos não indicam a “sagrada família” mais uma vez restringindo as vias pelas quais os interesses de propriedade são regulados e distribuídos? Isso é simplesmente a circulação de atitudes culturais difamatórias ou tais privações marcam uma operação específica de distribuição sexual e de gênero de direitos legais e econômicos?
Caso se continue a tomar o modo de produção como a estrutura definidora da economia política, então certamente não faz qualquer sentido para as feministas rejeitarem o insight duramente conquistado de que a sexualidade deve ser entendida como parte desse modo de produção. Mas ainda que se tome a “redistribuição” de direitos e bens como o momento definidor da economia política, como Fraser faz, como é que podemos falhar em reconhecer como as operações de homofobia são centrais ao funcionamento da economia política? Dada a distribuição de assistência médica neste país, é realmente possível dizer que as pessoas gays não constituem uma “classe” diferencial, considerando como a organização de assistência médica e de produtos farmacêuticos, orientada pelo lucro, impõe encargos diferenciais sobre aqueles que vivem com o HIV e a AIDS? Como podemos entender a produção da população HIV-positiva como uma classe de devedores permanentes? Os índices de pobreza entre lésbicas não merecem ser pensados em relação com a heterossexualidade normativa da economia?
Em Justice Interruptus, apesar de Fraser reconhecer que o “gênero” é “um princípio básico estruturador da economia política”, a razão que ela oferece para isso é que ele estrutura o trabalho reprodutivo não remunerado.9 Mesmo que ela deixe muito claro seu apoio às lutas emancipatórias lésbicas e gays, bem como sua oposição à homofobia, ela não dá continuidade de modo sufi cientemente radical às implicações deste apoio para a conceitualização que oferece. Ela não pergunta como a esfera da reprodução que garante o lugar do “gênero” dentro da economia política é circunscrito pela regulação sexual; ou seja, ela não questiona as exclusões obrigatórias por meio das quais a esfera da reprodução se torna delimitada e naturalizada. Existe alguma maneira de analisar como a heterossexualidade normativa e seus “gêneros” são produzidos dentro da esfera da reprodução sem notar os modos compulsórios pelos quais a homossexualidade e a bissexualidade, assim como o transgênero, são produzidos como uma sexualidade “abjeta”, e sem estender o modo de produção 9 para dar conta precisamente deste mecanismo social de regulação? Seria um erro entender tais produções como “meramente culturais” se elas são essenciais para o funcionamento da ordem sexual da economia política – isto é, se constituem uma ameaça fundamental a sua própria viabilidade. O econômico, vinculado ao reprodutivo, está necessariamente ligado à reprodução da heterossexualidade. Não é que formas não heterossexuais de sexualidade são simplesmente deixadas de fora, mas que sua supressão é essencial para a operação daquela normatividade prévia. Isso não é simplesmente uma questão de certas pessoas sofrendo uma falta de reconhecimento cultural por parte de outros, mas, antes, um modo específico de produção e troca sexual que atua para manter a estabilidade do gênero, a heterossexualidade do desejo e a naturalização da família.[10]
Por que, então, considerando este lugar fundamental da sexualidade no pensamento da produção e da distribuição, a sexualidade emergiria como uma fi gura exemplar para o “cultural” no contexto de formas recentes de argumentos marxistas e neomarxistas?11 Quão rapidamente – e às vezes inadvertidamente – a distinção entre o material e o cultural é reconstruída quando contribui para a definição das linhas que descartam a sexualidade da esfera da estrutura política fundamental! Isso sugere que a distinção não é um fundamento conceitual, já que reside em uma amnésia seletiva da própria história do marxismo. Afinal, além da suplementação estruturalista de Marx, considera-se que a distinção entre cultura e vida material entrou em crise a partir dos mais diferentes cantos. O próprio Marx argumentou que as formações |econômicas pré-capitalistas não poderiam ser completamente retiradas dos mundos culturais e simbólicos nos quais estavam integradas, e esta tese orientou o importante trabalho em antropologia econômica (Marshall Sahlins, Karl Polanyi, Henry Pearson) que expande e refi na a tese de Marx em Formações econômicas pré-capitalistas, que busca explicar como o cultural e o econômico, eles mesmos, tornaram-se estabelecidos como esferas separadas – de fato, como a instituição do econômico como uma esfera separada é a consequência de uma operação de abstração iniciada pelo capital mesmo. O próprio Marx estava consciente de que tais distinções são o efeito e a culminação da divisão do trabalho, não podendo, portanto, ser excluídas de sua estrutura. Em A ideologia alemã ele escreve, por exemplo, que “a divisão do trabalho só se torna verdadeiramente tal a partir do momento em que uma divisão entre o trabalho material e o mental aparece”.12Isso move, em parte, o esforço de Althusser em repensar a divisão do trabalho em “Ideologia e aparatos ideológicos de Estado” em termos da reprodução da força de trabalho e, mais enfaticamente, “das formas de sujeição ideológica que [sustentam] a reprodução das habilidades da força de trabalho”.13 Esta ênfase do ideológico na reprodução de pessoas culmina no inovador argumento de Althusser de que “uma ideologia sempre existe em um aparato e em sua prática ou práticas. Esta existência é material” (ibid., p. 166). Assim, mesmo se a homofobia fosse concebida somente como uma atitude cultural, esta atitude ainda deveria ser localizada no aparato e na prática de sua institucionalização, isto é, em sua dimensão material.
Importa notar que ambos, gênero e sexualidade, tornam-se parte da vida material não apenas pelo modo com que eles servem à divisão sexual do trabalho, mas também porque o gênero normativo serve à reprodução da família normativa. A questão aqui é que, contra Fraser, as lutas para transformar o campo social da sexualidade não se tornam centrais para a economia política na medida em que podem ser diretamente relacionadas a questões de exploração e não remuneração do trabalho, mas, antes, porque elas não podem ser compreendidas sem uma expansão da própria esfera “econômica” para incluir tanto a reprodução de bens quanto a reprodução social de pessoas.
Dados os esforços das feministas socialistas para entender como a reprodução de pessoas e a regulação social da sexualidade faziam parte do próprio processo de produção e, deste modo, da “concepção materialista” da economia política, como é que de repente, quando o foco da análise crítica passa da questão de como a sexualidade normativa é reproduzida para a questão queer de como esta mesma normatividade é confundida pelas sexualidades não normativas que ela abriga dentro de seus próprios termos – para não mencionar as sexualidades que prosperam e sofrem fora daqueles termos –, a ligação entre tal análise e o modo de produção é repentinamente abandonado? É apenas uma questão de reconhecimento “cultural” quando as sexualidades não normativas são marginalizadas e rebaixadas, ou entra no jogo a possibilidade de subsistência? É possível distinguir, mesmo analiticamente, entre uma falta de reconhecimento cultural e uma opressão material, quando a própria definição legal de “pessoa” é rigorosamente circunscrita às normas culturais que são indissociáveis de seus efeitos materiais? Tome-se, por exemplo, aquelas instâncias nas quais lésbicas e gays são rigorosamente excluídos das noções de família sancionadas pelo Estado (que, segundo as leis de imposto e propriedade, forma uma unidade econômica); detidos na fronteira; considerados inadmissíveis à cidadania; têm seletivamente negado o status de liberdade de expressão e de associação; têm o direito negado, como membros do exército, de falar sobre seu desejos; ou são desautorizados por lei a tomar decisões médicas emergenciais a respeito de um companheiro à beira da morte, a receber as propriedades de um parceiro morto, ou a receber do hospital o corpo de um parceiro morto – estes exemplos não indicam a “sagrada família” mais uma vez restringindo as vias pelas quais os interesses de propriedade são regulados e distribuídos? Isso é simplesmente a circulação de atitudes culturais difamatórias ou tais privações marcam uma operação específica de distribuição sexual e de gênero de direitos legais e econômicos?
Caso se continue a tomar o modo de produção como a estrutura definidora da economia política, então certamente não faz qualquer sentido para as feministas rejeitarem o insight duramente conquistado de que a sexualidade deve ser entendida como parte desse modo de produção. Mas ainda que se tome a “redistribuição” de direitos e bens como o momento definidor da economia política, como Fraser faz, como é que podemos falhar em reconhecer como as operações de homofobia são centrais ao funcionamento da economia política? Dada a distribuição de assistência médica neste país, é realmente possível dizer que as pessoas gays não constituem uma “classe” diferencial, considerando como a organização de assistência médica e de produtos farmacêuticos, orientada pelo lucro, impõe encargos diferenciais sobre aqueles que vivem com o HIV e a AIDS? Como podemos entender a produção da população HIV-positiva como uma classe de devedores permanentes? Os índices de pobreza entre lésbicas não merecem ser pensados em relação com a heterossexualidade normativa da economia?
Em Justice Interruptus, apesar de Fraser reconhecer que o “gênero” é “um princípio básico estruturador da economia política”, a razão que ela oferece para isso é que ele estrutura o trabalho reprodutivo não remunerado.9 Mesmo que ela deixe muito claro seu apoio às lutas emancipatórias lésbicas e gays, bem como sua oposição à homofobia, ela não dá continuidade de modo sufi cientemente radical às implicações deste apoio para a conceitualização que oferece. Ela não pergunta como a esfera da reprodução que garante o lugar do “gênero” dentro da economia política é circunscrito pela regulação sexual; ou seja, ela não questiona as exclusões obrigatórias por meio das quais a esfera da reprodução se torna delimitada e naturalizada. Existe alguma maneira de analisar como a heterossexualidade normativa e seus “gêneros” são produzidos dentro da esfera da reprodução sem notar os modos compulsórios pelos quais a homossexualidade e a bissexualidade, assim como o transgênero, são produzidos como uma sexualidade “abjeta”, e sem estender o modo de produção 9 para dar conta precisamente deste mecanismo social de regulação? Seria um erro entender tais produções como “meramente culturais” se elas são essenciais para o funcionamento da ordem sexual da economia política – isto é, se constituem uma ameaça fundamental a sua própria viabilidade. O econômico, vinculado ao reprodutivo, está necessariamente ligado à reprodução da heterossexualidade. Não é que formas não heterossexuais de sexualidade são simplesmente deixadas de fora, mas que sua supressão é essencial para a operação daquela normatividade prévia. Isso não é simplesmente uma questão de certas pessoas sofrendo uma falta de reconhecimento cultural por parte de outros, mas, antes, um modo específico de produção e troca sexual que atua para manter a estabilidade do gênero, a heterossexualidade do desejo e a naturalização da família.[10]
Por que, então, considerando este lugar fundamental da sexualidade no pensamento da produção e da distribuição, a sexualidade emergiria como uma fi gura exemplar para o “cultural” no contexto de formas recentes de argumentos marxistas e neomarxistas?11 Quão rapidamente – e às vezes inadvertidamente – a distinção entre o material e o cultural é reconstruída quando contribui para a definição das linhas que descartam a sexualidade da esfera da estrutura política fundamental! Isso sugere que a distinção não é um fundamento conceitual, já que reside em uma amnésia seletiva da própria história do marxismo. Afinal, além da suplementação estruturalista de Marx, considera-se que a distinção entre cultura e vida material entrou em crise a partir dos mais diferentes cantos. O próprio Marx argumentou que as formações |econômicas pré-capitalistas não poderiam ser completamente retiradas dos mundos culturais e simbólicos nos quais estavam integradas, e esta tese orientou o importante trabalho em antropologia econômica (Marshall Sahlins, Karl Polanyi, Henry Pearson) que expande e refi na a tese de Marx em Formações econômicas pré-capitalistas, que busca explicar como o cultural e o econômico, eles mesmos, tornaram-se estabelecidos como esferas separadas – de fato, como a instituição do econômico como uma esfera separada é a consequência de uma operação de abstração iniciada pelo capital mesmo. O próprio Marx estava consciente de que tais distinções são o efeito e a culminação da divisão do trabalho, não podendo, portanto, ser excluídas de sua estrutura. Em A ideologia alemã ele escreve, por exemplo, que “a divisão do trabalho só se torna verdadeiramente tal a partir do momento em que uma divisão entre o trabalho material e o mental aparece”.12Isso move, em parte, o esforço de Althusser em repensar a divisão do trabalho em “Ideologia e aparatos ideológicos de Estado” em termos da reprodução da força de trabalho e, mais enfaticamente, “das formas de sujeição ideológica que [sustentam] a reprodução das habilidades da força de trabalho”.13 Esta ênfase do ideológico na reprodução de pessoas culmina no inovador argumento de Althusser de que “uma ideologia sempre existe em um aparato e em sua prática ou práticas. Esta existência é material” (ibid., p. 166). Assim, mesmo se a homofobia fosse concebida somente como uma atitude cultural, esta atitude ainda deveria ser localizada no aparato e na prática de sua institucionalização, isto é, em sua dimensão material.
No contexto da teoria feminista, a virada para Lévi-Strauss trouxe a análise da troca de mulheres para a crítica marxista da família, adquirindo por algum tempo um status paradigmático para pensar ambos gênero e sexualidade. Além disso, foi este movimento importante e problemático que perturbou a estabilidade da distinção entre a vida cultural e a vida material. Se as mulheres eram uma “dádiva”, segundo Lévi-Strauss, então elas entravam no processo de troca de maneiras que não podiam ser reduzidas a uma esfera cultural ou material apenas. De acordo com Marcel Mauss, cuja teoria da dádiva foi apropriada por Lévi-Strauss, a dádiva estabelece os limites do materialismo. Para Mauss, o econômico é somente uma parte de uma troca que assume várias formas culturais, e a distinção entre as esferas econômica e cultural não é tão nítida quanto viria a parecer. Apesar de Mauss não atribuir ao capitalismo a distinção entre vida cultural e vida material, ele oferece uma análise que culpa os modos atuais de troca por formas brutas de materialismo: “originalmente a res não precisava ser a coisa crua, meramente tangível, o simples e passivo objeto de transação que se tornou”.14 Ao contrário, a res é compreendida como sendo o local para a convergência de um conjunto de relações. Similarmente, a “pessoa” não é primariamente separável de seus “objetos”: a troca consolida ou ameaça os vínculos sociais.
Lévi-Strauss não apenas mostrou que esta relação de troca era simultaneamente cultural e econômica, mas também tornou a distinção inapropriada e instável: a troca produz um conjunto de relações sociais, comunica um valor cultural ou simbólico (cuja junção se torna decisiva para o afastamento lacaniano de Lévi-Strauss), e assegura vias de distribuição e de consumo. Se a regulação da troca sexual torna a distinção entre o cultural e o econômico difícil, se não impossível, então quais são as consequências para uma transformação radical dos contornos da troca na medida em que eles excedem e confundem as estruturas de parentesco ostensivamente elementares? A distinção entre o econômico e o cultural seria mais fácil de traçar se as trocas sexuais não normativas e contranormativas viessem a constituir o circuito excessivo da dádiva em relação ao parentesco? A questão não é se a política sexual pertence assim ao cultural ou ao econômico, mas como as próprias práticas de troca sexual confundem a distinção entre as duas esferas.
Com efeito, os esforços justapostos dos estudos queer, lésbicos e gays têm procurado desafiar a suposta ligação entre o parentesco e a reprodução sexual, assim como a ligação entre a reprodução sexual e a sexualidade. Pode-se perceber nos estudos queer um retorno importante à crítica marxista da família, baseado em um insight mobilizador sobre uma abordagem de parentesco socialmente contingente e socialmente transformável, a qual se distancia do pathos universalizante dos esquemas de Lévi-Strauss e Lacan, que se tornaram paradigmáticos para algumas formas de teorização feminista. Apesar de a teoria de Lévi-Strauss ter ajudado a mostrar como a normatividade heterossexual produzia o gênero a serviço de seu próprio autorreforço, ela não pôde oferecer as ferramentas críticas para apontar um caminho para fora de seus impasses. O modelo compulsório de troca sexual reproduz não apenas a sexualidade limitada pela reprodução, mas também uma noção naturalizada de “sexo” para a qual o papel relevante na reprodução é central. Na medida em que os sexos naturalizados funcionam para assegurar a díade heterossexual como a estrutura sagrada da sexualidade, eles continuam a subscrever os direitos legais, econômicos e de parentesco, bem como aquelas práticas que delimitam o que será uma pessoa socialmente reconhecível. Insistir que as formas sociais da sexualidade não apenas excedem, como ainda confundem os arranjos heterossexuais de parentesco, bem como a reprodução, é também argumentar que aquilo que pode ser qualificado como uma pessoa e um sexo será radicalmente alterado – um argumento que não é meramente cultural, mas que confirma o lugar da regulação sexual como um modo de produzir o sujeito.
Estaríamos talvez testemunhando um esforço acadêmico para melhorar a força política das lutas queer mediante a recusa em ver a mudança fundamental na conceitualização e na institucionalização das relações sociais que elas demandam? Seriam a associação do sexual com o cultural e o esforço concomitante em tornar autônoma e degradar a esfera cultural, as respostas irrefletidas a uma degradação sexual percebida como tendo lugar dentro da esfera cultural, um esforço em colonizar e conter a homossexualidade na e como a própria cultura?
Buscando desconsiderar o cultural, o neoconservadorismo dentro da esquerda sempre pode ser apenas uma outra intervenção cultural, seja lá o que mais for. E ainda assim, a manipulação tática da distinção entre o cultural e o econômico para reinstituir a noção desacreditada de opressão secundária apenas provocará, mais uma vez, a resistência à imposição de unidade, fortalecendo a suspeita de que aquela unidade só é adquirida por meio de amputações ou ressubordinações violentas. De fato, acrescentaria que a compreensão desta violência foi o que levou à afiliação da esquerda ao pós-estruturalismo, o que é uma via de leitura que nos permite entender o que precisa ser suprimido de um conceito de unidade para que ele ganhe a aparência de necessidade e coerência e permita que a diferença permaneça constitutiva de qualquer luta. Esta recusa a se tornar, de novo, subordinado a uma unidade que caricaturiza, desmerece e domestica a diferença se torna a base para um impulso político mais expansivo e dinâmico. Esta resistência à “unidade” pode trazer consigo a cifra da promessa democrática na esquerda.
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