16 de dezembro de 2021

O neoliberalismo nos torna impotentes — e nos culpa por isso

À medida que o 1% dos bilionários criaram a falsa sensação de que eles eram os únicos responsáveis ​​por seu sucesso, todos os outros trabalhadores também foram levados a se sentir como a causa de seu próprio fracasso. Essa fórmula foi incorporada à filosofia neoliberal e repercutida na imprensa desde o início.

Matt McManus

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O neoliberalismo foi concebido como um projeto fundamentalmente moral para tornar o mundo mais seguro para a propriedade, ao mesmo tempo que transforma os indivíduos em empreendedores de si mesmos. (Etienne Girardet / Unsplash)

Resenha de Futilitarianism: Neoliberalism and the Production of Uselessness [Futilitarismo: neoliberalismo e a produção da inutilidade] por Neil Vallelly (Goldsmiths Press, 2021)

Poucas coisas são mais horríveis do que se sentir descartável.

Quando Joseph De Maistre descreveu os revolucionários franceses como satânicos e destrutivos, ele pelo menos lhes concedeu a dignidade de causar impacto. José Gasset pode ter sido cauteloso com a “revolta das massas” de pessoas medíocres contra a aristocracia, mas ocasionalmente expressou admiração pela permanência e alcance de sua revolta.

Mas quando o proto-neoliberal Ludwig von Mises escreveu para Ayn Rand, que ela mesma descartou a maioria da raça humana como medíocre na melhor das hipóteses e “de segunda mão” na pior, ele não escondeu isso. A maioria das pessoas era “inferior” e devia toda e qualquer melhoria em sua sorte ao “esforço de homens que são melhores do que você”.

O que torna essa marca particular de desdém aristocrático tão inerentemente niilista e feia é precisamente esse sentimento de que a maioria das pessoas não leva vidas que valham muito a pena. Servimos como formas substituíveis de capital humano, colocadas para trabalhar pelo punhado de indivíduos excepcionais que realmente sabem o que devemos fazer com nossas vidas, antes de morrermos e a próxima geração tomar nosso lugar.

Para invocar o sociólogo Zygmunt Bauman em seu Vidas Desperdiçadas, o objeto paradigmático da era neoliberal é o descarte. A massa de pessoas “inferiores” cumpre sua função e, quando esgotadas, são jogadas fora. De que outra forma se pode descrever os momentos marcantes durante a pandemia quando, diante das possibilidades de crise econômica ou de enviar trabalhadores para contrair o vírus e morrer, muitos na direita sinalizaram seu entusiasmo por este último?

O novo e soberbo livro de Neil Vallelly, Futilitarianism: Neoliberalism and the Production of Uselessness, é uma polêmica contra o vazio da era neoliberal. Ele examina suas raízes ideológicas, história e cultura política.

Profundamente inspirado pelo igualmente sombrio Mark Fisher (famoso por Realismo Capitalista), o livro é frequentemente sóbrio e até melancólico. De fato, em algumas de suas passagens mais mordazes, Futilitarismo parece o equivalente acadêmico de um grito primitivo contra a injustiça e a alienação da era futilitária. Mas essa paixão impulsiona e aprofunda a análise de Vallelly, e o livro sem dúvida será bem-vindo por todos aqueles que buscam uma alternativa melhor ao desespero do neoliberalismo na era da COVID-19.

Utilitarismo e capitalismo

Vallelly localiza as raízes do neoliberalismo na teoria moral e política do utilitarismo, que tem longos antecedentes, mas que geralmente recebeu um forma sistemática do polímata inglês Jeremy Bentham nos séculos XVIII e XIX.

Bentham começou sua carreira intelectual com uma denúncia mordaz do direito comum inglês, que ele via como irremediavelmente tradicionalista e repleto de preconceitos irracionais. Embora, em retrospecto, os progressistas devam realmente concordar com muitas de suas críticas, Bentham já demonstrava uma tendência preocupante de resumir as coisas a um conjunto muito básico de princípios morais e psicológicos, que lutavam para dar conta das complexidades históricas e humanas. Isso foi melhor refletido em Uma introdução aos princípios da moral e da legislação quando Bentham proclamou: “A natureza colocou a humanidade sob o governo de dois mestres soberanos, a dor e o prazer. Cabe somente a eles apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que faremos.”

Desde então, apesar de toda a sua insistência em sua simplicidade racionalista, muitos apontaram criticamente tensões profundas na posição de Bentham. Ele fazia uma afirmação psicológica sobre a busca do prazer e a fuga da dor serem simplesmente motivações humanas fundamentais, uma afirmação moral sobre como elas deveriam ser as motivações humanas fundamentais, ou ambas? Mas Bentham estava convencido do poder de seu argumento e afirmou que o melhor sistema moral e político seria aquele dedicado a alcançar a maior felicidade para o maior número de pessoas, conforme determinado por meio de um tipo de cálculo felicífico.

Como Vallelly aponta, a tensão mais óbvia no utilitarismo de Bentham é entre seu individualismo e a preocupação com “uma forma de bem-estar que se estende além do indivíduo. O utilitarismo, afinal, pretende maximizar a utilidade para a maior quantidade de pessoas, com, teoricamente, a felicidade de nenhum indivíduo priorizada sobre a de outro.” Em outras palavras, se é psicologicamente verdade que cada indivíduo é egoisticamente motivado pela busca do prazer para si mesmo, como passamos daí para um argumento moral de que ela deveria deixar seus desejos de lado se isso garantisse maior felicidade para os outros?

O filósofo posterior Henry Sidgwick descreveu isso como a inconsistência duradoura entre “hedonismo racional” e “benevolência racional”, ou como às vezes é chamado de hedonismo “psicológico” versus “ético”. Era tão suficientemente espinhoso que Sidgwick o rotulou como o “problema mais profundo da ética”.

Para muitos capitalistas do século XIX e início do século XX, a solução não estava na filosofia moral ou política, mas na teoria econômica — que, no entanto, tinha um ethos quase utilitário. Importando a ideia evolucionária do mercado como um mecanismo que surgiu ao longo do tempo para maximizar a utilidade, figuras como Francis Edgeworth argumentaram que uma sociedade onde os indivíduos competiam entre si na produção e venda de bens maximizaria a utilidade ao longo do tempo. Isso ocorre porque as empresas capitalistas seriam incentivadas a satisfazer o maior número de necessidades humanas, enquanto os consumidores individuais seriam livres para consumir quaisquer bens que lhes dessem os mais altos níveis de prazer.

Apesar do apelo dessa síntese de utilitarismo e capitalismo, ela nunca foi incontroversa. No século XX, Vallelly observa, houve uma luta acalorada entre utilitaristas de mentalidade social, inspirados principalmente por JM Keynes, e os economistas neoliberais cada vez mais estridentes. Por um tempo, os utilitaristas de mentalidade social foram bem-sucedidos e justificaram amplamente a criação de Estados de bem-estar social extensivos com base no fato de que uma distribuição mais uniforme de bens e serviços tornaria as pessoas mais felizes e evitaria o sofrimento desnecessário.

Mas, como Vallelly aponta, não foi duradouro. “Os neoliberais venceram a longa disputa”, ele escreve. “A estagnação econômica e as crises políticas dos anos 1970 paralisaram a lógica keynesiana. Em seu lugar, [Friedrich] Hayek e a cabala neoliberal da Escola de Economia de Chicago encheram o saco de políticos simpatizantes nos EUA, Reino Unido e mais longe.”

Futilitarismo neoliberal

Há um sentido claro em que o neoliberalismo constitui uma continuação dessa tradição utilitária, por exemplo, ao reter uma ênfase na maximização da utilidade. Mas Vallelly corretamente aponta que a teoria e a prática neoliberais despojaram o utilitarismo de qualquer consciência social que ele tinha, e reorientaram suas energias inteiramente para refazer o indivíduo em uma forma de capital social totalmente dependente das forças de mercado e cada vez mais negando até mesmo um Estado minimamente responsivo para proteção.

O que restou do utilitarismo foi uma crença de que “escolha individual e flexibilidade” eram características integrais da economia de mercado. Além disso, ligada a essa reconsideração da utilidade, havia uma reconceitualização da liberdade como nada mais do que esses tipos de escolhas do consumidor e condições capitalistas flexíveis. Os neoliberais sentiam que, ao proteger o mercado de pressões democráticas e disciplinar a população destruindo programas sociais que melhoram a autonomia, as estreitas liberdades restantes para os indivíduos — para competir e consumir no mercado — os levariam a se tornarem imensuravelmente mais produtivos, muitas vezes por necessidade, em um mundo onde é tudo ou nada.

Jessica Whyte e Wendy Brown são duas das mais importantes influências teóricas sobre o Futilitarismo, e com razão. Elas nos alertam para evitar entender essa virada por meio de linhas puramente economicistas. Esse tem sido há muito tempo o tropo retórico favorito dos políticos neoliberais, que frequentemente insistiam que estavam operando além da ideologia, ou simplesmente deixando as “leis” naturais do mercado seguirem seu curso. Na verdade, o neoliberalismo desde o início foi concebido como um projeto fundamentalmente moral para tornar o mundo mais seguro para a classe proprietária, ao mesmo tempo em que transformava os indivíduos em empreendedores de si mesmos.

Isso às vezes é feito de maneiras comicamente explícitas, como no artigo de Tom Peter de 1997 para a Fast Company, “The Brand Called You” [A Marcada Chamada Você], que incita as pessoas a pararem de pensar em si mesmas como pessoas completas ou mesmo como trabalhadores batendo ponto. Em vez disso, seríamos literalmente uma marca que precisaria de investimentos, ser comercializada e adaptada às novas circunstâncias.

O lado obscuro disso é a responsabilização do indivíduo por todos os seus problemas, mesmo aqueles que não estão sob seu controle. Preocupado com o aquecimento global? Não culpe as grandes empresas petrolíferas, pense em quantas vezes você jogou uma lata no lixo em vez de reciclar. Não consegue obter seguro ou pagar suas contas médicas? Considere cortar o álcool e a comida ruim para economizar dinheiro e melhorar sua saúde. O resultado não foi apenas uma despolitização da vida, mas uma dinâmica de desempoderamento por meio da futilidade. À medida que o 1% internalizou a sensação de que eles eram os únicos responsáveis ​​por seu sucesso, todos os outros também foram levados a se sentir como a causa de seu próprio fracasso.

Isso leva à sensação de futilidade e vazio que Vallelly poderosamente diagnostica como emblemático do capitalismo neoliberal. Comunidades e movimentos políticos são desagregados em indivíduos atomizados. Eles são paradoxalmente levados a sentir que o autoaperfeiçoamento implacável, mas estreito, a busca por riqueza, poder e status dentro do sistema é tudo o que importa, e que eles são impotentes para mudar esse mesmo sistema.

Em certo sentido, o neoliberalismo é definido pelo que Hannah Arendt habilmente chamou de um tipo de grandeza impotente, na qual as pessoas têm autonomia suficiente para satisfazer seus prazeres, mas não o suficiente para reivindicar o mundo ao seu redor. Isso se reflete no que Vallelly chama de “semi-futilidade” da cultura ao nosso redor, que é pela primeira vez marcada por um senso de desesperança permanente diante de sua própria alienação.

Onde os marxistas clássicos acreditavam na chegada histórica inexorável de um amanhã melhor, uma das características mais alienantes do neoliberalismo é como ele naturaliza a história para fora da existência. Como não há “alternativa” para o mundo como ele é, a estética se torna a reciclagem infinita de imagens e símbolos culturais do passado, um pastiche de nostalgia pós-moderna por uma época em que as pessoas realmente podiam fazer a diferença. Até mesmo a linguagem se torna cada vez mais incapaz de suportar a gravidade do significado de que precisamos, à medida que a comunicação é achatada pelo discurso digital e a rica textura do mundo se liquida em duzentos e oitenta caracteres digeríveis.

A política contra a futilidade

Não estou convencido de que Vallelly tenha realmente feito justiça à tradição utilitarista, que, como ele reconhece de má vontade, muitas vezes tinha um lado mais radical do que o que vem à tona em Futilitarismo. O próprio Bentham pode ter sido um cara desajeitado com um péssimo hábito de dizer “cale a boca e calcule”. Mas ele também foi um dos primeiros proponentes da democracia política, da igualdade das mulheres e dos direitos dos animais. Isso flui de forma bastante orgânica do ethos igualitário na base do utilitarismo; afinal, cada um deve contar como um, e ninguém como mais do que um.

O sucessor de Bentham, JS Mill, inovou Bentham de maneiras importantes que Vallelly ignora rápido demais, e até mesmo adotou uma política explicitamente socialista nas últimas décadas de sua vida. De fato, a denúncia de Mill sobre o capitalismo e a responsabilização moralista em seu panfleto Capítulos Sobre o Socialismo ecoa muitos dos argumentos em Futilitarismo. E de fato o individualismo expressivo de Mill e a insistência de que as pessoas desenvolvam muitos lados de sua natureza por meio de experimentos na vida se encaixam muito desconfortavelmente na mania monológica dos mercados neoliberais.

Outra lacuna que merece ser abordada é a ligação entre o neoliberalismo e a direita política mais ampla, que recebe pouca atenção no Futilitarismo. Não devemos adquirir o hábito de assumir que todas as formas de reação e defesas da desigualdade são as mesmas, o que é o gêmeo conceitual de assumir que toda e qualquer resposta a um fenômeno como o neoliberalismo é radical.

O trumpismo, ou o que chamei de “conservadorismo pós-moderno”, é indelevelmente marcado pela era neoliberal, particularmente sua divisão definidora do mundo em vencedores merecedores e perdedores patéticos. Mas também é uma reação ao neoliberalismo que canaliza o ressentimento dos poderosos contra os fracos cada vez mais exigentes de novos caminhos. Isso incluiu o apelo nostálgico aos símbolos pré-neoliberais e ideias românticas, como a nação e a comunidade religiosa conservadora, juntamente com um ataque tênue, mas real, à permissividade e decadência da sociedade de mercado. O argumento de Vallelly seria fortalecido ao abordar essas questões com alguma profundidade.

Mas essas são pequenas reclamações à luz das grandes virtudes do livro. Futilitarismo é um livro raro que fala ao leitor tanto em nível pessoal quanto intelectual. Estamos vivendo em um mundo futilitário, e Vallelly poderosamente nos lembra que merecemos algo muito, muito melhor.

Colaborador

Matt McManus é professor visitante de política no Whitman College. Ele é o autor de "The Rise of Post-Modern Conservatism and Myth" e co-autor de "Mayhem: A Leftist Critique of Jordan Peterson".

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