Against the Current
Against the Current, No. 77, November/December 1998 |
Tradução / Os economistas marxistas têm fama de prever com exatidão todas as crises econômicas internacionais, menos a última. Talvez por isso muitos deles ultimamente têm tido uma cautela incomum de mais uma vez soar um alarme falso, mesmo que sinais das perturbações econômicas internacionais venham avolumando-se à sua volta.
Hoje, no entanto, a previsão não é mais necessária. A economia internacional, excetuando-se os Estados Unidos e a Europa — talvez 50% do mundo —, já vive um descenso econômico pior do que qualquer outro ocorrido desde a década de 1930. Fora dos Estados Unidos e da Europa, as ações caíram em quase todos os lugares de 50 a 75% entre julho de 1997 e julho de 1998, e os patrimônios líquidos dos mercados emergentes caíram mais 33% só em agosto e setembro. Na Indonésia, a fome já virou um fato do dia-a-dia; na Rússia, onde a expectativa de vida já declinou cinco anos, os padrões de vida foram reduzidos em 50% ou mais; no leste asiático, milhões estão sendo dispensados dos empregos e lançados na pobreza. Na América Latina, que apenas recentemente começou a se recuperar da desastrosa “década perdida” dos anos 80, os mesmos efeitos começaram a se manifestar com crescente intensidade. Para piorar a situação, a economia dos Estados Unidos, que fôra o principal motor do nascente ciclo ascendente internacional, está com sérios problemas. Recentemente, em junho de 1998, Alan Greenspan, chefe do Federal Reserve (Fed)2 dos Estados Unidos, em depoimento ao Congresso, surpreendeu até propagandistas empresariais ao admitir “ser possível que tenhamos (...) ido ‘além da história’”, isto é, transcendido o ciclo econômico e alcançado crescimento perpétuo.
Porém, em meados de outubro, o mesmo Alan Greenspan já havia reduzido a taxa de juros duas vezes, numa tentativa de neutralizar pressões deflacionárias internacionais cada vez mais poderosas. Enquanto isso, o Federal Reserve chocou Wall Street ao coordenar o socorro (bailout) de um fundo de hedge de bilhões de dólares. Greenspan explicou que o Fed fez isso porque, se deixasse o fundo falir, muito provavelmente se desencadearia uma desintegração financeira mundial. A economia dos Estados Unidos hoje está deslizando para a recessão e, se se deixar isso se materializar, a conseqüência poderia ser desastrosa para a economia mundial.
O ponto central é, naturalmente, o seguinte: o que está por trás da crescente turbulência econômica internacional? Deve-se ressaltar que até muito recentemente nem a corrente dominante dos profissionais de economia dos Estados Unidos, nem os apologistas das empresas dos Estados Unidos, nem qualquer um dos meios de comunicação tinham nenhuma resposta a essa questão. Isso porque eles não estavam dispostos a reconhecer a existência de qualquer problema realmente sério com a economia dos Estados Unidos. Isso aconteceu apesar do fato de que — ao contrário da propaganda da mídia — o desempenho econômico dos Estados Unidos tem sido verdadeiramente sofrível, num período longo. Durante os últimos 25 anos, o crescimento anual médio da produtividade do trabalho nos Estados Unidos — Produto Interno Bruto (PIB) por hora — foi menos de 1% ao ano, ou seja, bem menos da metade da média do século anterior. Ao longo destes mesmos 25 anos, entre 1973 e 1998, o aumento salarial real foi menor do que em qualquer momento da história dos Estados Unidos desde a Guerra Civil, incluindo-se a Grande Depressão. Em 1997, o salário real por hora de operários da produção (sem a inclusão dos benefícios) estava no mesmo nível de 1965.
Talvez o mais estarrecedor, durante o ciclo ascendente dos anos 90, quando a economia dos Estados Unidos entrou ostensivamente numa “Nova Era” e supostamente demonstrou, sem dúvida, a superioridade do “modelo anglo-saxônico” sobre todos os demais, foi que a performance econômica dos Estados Unidos foi, com base em quase todo indicador macroeconômico padrão — crescimento da produção, investimento, produtividade e salários — pior do que em qualquer ciclo ascendente da época pós-guerra. Economistas, apologistas das empresas e os meios de comunicação foram capazes de desviar os olhos do medonho desempenho da economia real dos Estados Unidos porque a inflação havia sido diminuída de acordo com as necessidades do setor financeiro, as taxas de lucro haviam tido uma recuperação significativa (se bem que incompleta), após um longo período de severa depressão, e sobretudo porque o mercado de ações estava batendo todos os recordes.
Uma ruptura no Consenso de Washington
Não obstante, durante os últimos meses, houve uma importante ruptu-ra no Consenso de Washington. Com a crise asiática catalisando o colapsorusso e ameaçando tragar a economia mundial, importantes economistas dopróprio coração do establishment político e econômico dos Estados Unidos— inclusive alguns daqueles que, como Jeffrey Sachs, haviam pressionadoinsistentemente a favor da “terapia de choque” e da liberalização generaliza-da — estão correndo em busca de abrigo. Estes economistas, um tanto sur-preendentemente, estão jogando a culpa pela conflagração desenfreada noque foi chamado de complexo formado pelo Tesouro dos Estados Unidos epelo Fundo Monetário Internacional. Estão defendendo dois argumentos afins.
Um é que a intervenção do FMI no leste asiático foi desastrosamentecontraprodutiva. Argumentam que, no rastro da fuga maciça de capital quecatalisou a crise na Ásia, era necessária uma injeção de recursos para evitarque a crise de liquidez destruísse as bases das economias. Isso teria sido omesmo tipo de injeção de dinheiro barato em larga escala que o Federal Re-serve e os japoneses haviam feito na época da quebra do mercado de açõesem 1987. Porém, o que o FMI forneceu foi o contrário. A exemplo do queHerbert Hoover fizera em 1929, ao exigir o equilíbrio orçamentário no rastroda quebra da bolsa de valores, o FMI impôs taxas de juros altas e austerida-de econômica, como faz rotineiramente. O resultado foi a intensificação dopânico de investidores internacionais, acelerando sua fuga e, ao mesmo tem-po, assegurando a ocorrência de uma catastrófica reação em cadeia de falên-cias de empresas, que impossibilitavam o pagamento de empréstimos e au-mentavam o desemprego, levando a mais falências, etc.
Para além disso, esses economistas argumentam que adesregulamentação dos movimentos de capital de curto prazo está na origemda crise internacional. O dinheiro correu para o leste asiático quando as pers-pectivas pareciam boas, porém sumiu ainda mais rapidamente quando o cli-ma de negócios parecia piorar. Isso precipitou uma depressão na base realdas economias, que agora ameaça se espalhar para o resto do mundo. Ora, éóbvio que, no longo prazo, é o próprio desdobramento da crise que maiscontribuirá para transformar as visões de mundo neoliberais, tanto de inte-lectuais, quanto dos cidadãos em geral. É igualmente evidente que esses eco-nomistas do “sistema” só estão vendo a ponta do iceberg.
No entanto, penso que mesmo suas análises muito parciais e superfici-ais não devem ser ignoradas pela esquerda. Em primeiro lugar, a crítica quefazem do mercado livre para o empréstimo de curto prazo é correta, dentro deseus limites. Os fluxos maciços e não regulados de capital de curto prazorealmente exacerbaram de modo radical a crise do leste asiático, mesmo queeles não tenham sido sua origem última. Em segundo lugar, a crítica destes às condições de empréstimo impostas pelo FMI no leste asiáticoajuda a chamar a atenção para o caráter claramente imperialista da interven-ção do FMI naquela região. Essa intervenção não se destinava apenas a im-por altas taxas de juros e austeridade. Tinha o objetivo, mais notadamente naCoréia, de destruir um sistema de regulação e proteção econômica que aju-dara a viabilizar uma das mais espetaculares trajetórias de crescimento nahistória mundial. Mas, exatamente porque as economias do leste asiáticohaviam sido tão bem sucedidas mesmo pelos próprios critérios do FMI, ochamado programa de reformas do FMI expôs o Fundo, talvez de maneiramais claramente do que nunca antes, como instrumento do capital internaci-onal, ao impor à força a abertura neoliberal às economias do leste asiáticopara a penetração dos grandes bancos e multinacionais. Em terceiro lugar, etalvez mais importante, a crítica feita por esses economistas tem uma boadose de significado ideológico. Isso porque implicitamente, e sem dúvida nãointencionalmente, eles estão desafiando o que se tornou o dogma central denossa época: o de que se pode esperar que o mercado livre seja, em geral,capaz de garantir o melhor de todos os resultados possíveis.
Obviamente, esses economistas limitam a crítica ao mercado de investi-mentos de curto prazo. Não obstante, uma vez que deixa de ser possível simples-mente aceitar como natural o princípio primeiro de que a alocação proporciona-da pelo mercado livre em si sempre dará o melhor resultado possível, o caminhoé aberto para se questionar a adequação desta alocação em todos os setores davida econômica — alocação dos investimentos de longo prazo, das mercadoriase, naturalmente, de maneira mais central, da força de trabalho pelo mercado.
A esquerda, em outras palavras, recebeu uma abertura intelectual peque-na, porém importante, para começar, mais uma vez, a tarefa fundamental, masmuito difícil, de sustentar nossa afirmação central — uma afirmação na qualmuitos perderam a confiança, na esteira do colapso do comunismo e da emergên-cia do neoliberalismo. Trata-se da afirmação da indispensabilidade do socialismo— isto é, de controle social, democrático sobre a economia pela classe trabalha-dora, a partir de baixo — para qualquer ordem societária humana.
A visão consensual da esquerda
Ora, a resposta consensual da esquerda a essa corrente dominante deeconomistas, seria que eles oferecem uma análise superficial e muito parcial aoexplicar a crise econômica internacional tendo como referência apenas a liber-dade e a irresponsabilidade do investimento de curto prazo. Obviamente, aliberdade dos movimentos de curto prazo do capital é parte integrante do pro-grama neoliberal muito mais amplo, que vem ganhando força desde o final dosanos 70. Este programa consiste em, de um lado, tornar o mundo o mais livrepossível para o deslocamento de capital e mercadorias, e, de outro lado, destruir as proteções aos trabalhadores duramente conquistadas ao mercado e ofe-recidas pelo Welfare State (Estado de Bem Estar Social). Seria consensual naesquerda que este abrangente programa neoliberal deve ser, de fato, responsabilizado por muitos dos problemas que atualmente afligem a economia mundi-al, e que a crise atual é, em importante medida, resultado de sua implementação.O que poderia ser chamado de argumento consensual da esquerda se-ria mais ou menos o seguinte: a tendência central a que vimos assistindo,especialmente desde o final dos anos 70, é a dominação crescente do capitalfinanceiro. A lógica das políticas neoliberais tem sido, pois, de garantir, pro-teger e expandir o campo de obtenção de lucro para o capital financeiro e asmultinacionais. Porém, as políticas necessárias para garantir os interesses docapital financeiro foram implementadas às expensas das bases da economia,em geral, e da classe trabalhadora, em particular.Em primeiro lugar, para proteger os rendimentos dos empréstimos con-tra os estragos da inflação, os Estados capitalistas implementaram políticasmacroeconômicas permanentemente restritivas, com contenção do crédito eequilíbrio orçamentário. Porém, essas mesmas políticas foram causas cen-trais do crescimento lento e alto desemprego que dominaram as economiasmundiais desde o final dos anos 70.Em segundo lugar, para possibilitar os melhores rendimentos ao capi-tal financeiro, foram reduzidas as barreiras à mobilidade do capital, permi-tindo sua entrada e saída rápidas dos mercados. Entretanto, essa mobilidadedo capital dificultou ainda mais a implementação de políticas nacionais decrescimento e, em particular, a adoção de políticas de estímulo de financia-mento do deficit público com empréstimos (deficit spending) e crédito fácilpara ajudar a combater o desemprego.
Terceiro, como até Jeffrey Sachs e companhia começaram a admitir,ao possibilitar que o capital entre rapidamente num campo, quando as perspectivas parecem favoráveis, e saia, de modo igualmente rápido, quando sur-ge o menor sinal de problema, a liberação dos mercados de capital dificultoua sustentação de qualquer processo de desenvolvimento econômico de prazomais longo, especialmente no Terceiro Mundo. Isso porque o desenvolvimen-to econômico depende, obviamente, do compromisso de longo prazo de re-cursos produtivos em determinadas linhas de produção e não agüenta as sú-bitas retiradas de capital que se tornaram fatos corriqueiros na ordemneoliberal.Excesso de capacidade e de produçãoOra, a meu ver, essa análise da atual situação econômica faz muitosentido, com certas ressalvas. Porém, sem certas qualificações — sem umacontextualização maior — pode ser potencialmente equivocada.
Para colocar o argumento mais cruamente: a ascensão do capital finan-ceiro e do neoliberalismo deve ser vista muito mais como conseqüência do quecausa da crise econômica internacional — mesmo que eles a tenham exacerba-do significativamente. A crise, por seu vez, tem suas raízes profundas numacrise secular da lucratividade que resultou do excesso constante de capacidadee de produção do setor manufatureiro internacional. Em primeiro lugar, o gran-de deslocamento do capital para as finanças foi a conseqüência da incapacida-de da economia real, especialmente das indústrias de transformação, de propor-cionar uma taxa de lucro adequada. Assim, a aparição do excesso de capacida-de e de produção, acarretando perda de lucratividade nas indústrias de transfor-mação a partir do final da década de 1960, foi a raiz do crescimento aceleradodo capital financeiro a partir do final da década de 1970.Em segundo lugar, a guinada para o neoliberalismo, também iniciadano final dos anos 70, só começou a acontecer depois de as políticas keynesianasde controle da demanda (demand management) terem demonstrado incapaci-dade de restaurar a lucratividade e reacender a acumulação de capital. Do ponto de vista do capital, o monetarismo e o neoliberalismo de maneira mais geralforam uma resposta ao fracasso da primeira opção, os gastos com o financia-mento do déficit por meio de empréstimos (deficit spending) na linha keynesiana.
Terceiro, embora as políticas de restrição de crédito e de equilíbrioorçamentário ressaltadas no programa neoliberal tenham sido motivadas emparte pelo desejo de defender os lucros do capital financeiro, a sua lógicainicial e primeira foi, mediante a redução do crescimento da demanda, pro-mover, de duas maneiras, a recuperação da lucratividade no âmbito do sistema: 1) aumentando o desemprego, para enfraquecer o trabalho e reduzir ocrescimento salarial; 2) forçando um rearranjo (shakeout) no conjunto defirmas de custos elevados e lucros baixos, para deixar apenas empresas decustos baixos e lucros altos no controle dos mercados, elevando, assim, ataxa média de lucro.
Finalmente, no entanto, mesmo que a ascensão do capital financeiro edo neoliberalismo deva ser entendida mais como conseqüências do que comocausas da estagnação e instabilidade econômica de longa duração, a adoçãointegral do programa neoliberal no âmbito de todo o sistema teve um papelfundamental na determinação da transição dos problemas de lucratividade delonga duração e da estagnação secular para a intensa crise atual. Isso sóaconteceu nos anos 90, quando a mudança da política de financiamento dodéficit recorde por meio de empréstimos de Reagan para a de equilíbrio orça-mentário de Clinton preparou o caminho para problemas muito maiores decrescimento e instabilidade.No restante deste texto, pretendo oferecer comprovação adicional dasproposições precedentes apresentando um relato esquemático do surgimento, persistência e exacerbação do excesso de capacidade e de produção fabril emescala mundial e delineando seu papel na crise atual.As raízes profundas da estagnaçãoO meu argumento é que as raízes da estagnação de longa duração e dacrise atual estão na compressão dos lucros do setor manufatureiro que seoriginou no excesso de capacidade e de produção fabril, que era em si aexpressão da acirrada competição internacional.
A partir da segunda metade da década de 1960, produtores de custosmenores que surgiram depois, alemães e especialmente japoneses, expandi-ram rapidamente sua produção. Ao impor preços menores aos seus concor-rentes de custo mais alto, as firmas alemãs e japonesas foram capazes deaumentar imediatamente suas fatias dos mercados internacionais de manufa-turas e manter suas taxas de lucro, reduzindo as fatias do mercado e taxas delucro de suas rivais. O resultado foi excesso de capacidade e de produçãofabril, expresso na menor lucratividade agregada no setor manufatureiro daseconomias do grupo dos 7 (G-7) como um todo. Os fabricantes com custosaltos dos Estados Unidos sofreram originalmente o impacto dessa queda, ten-do a lucratividade caído cerca de 40% no setor fabril e 25-30% na economiacomo um todo entre 1965 e 1973. Em 1973, no entanto, tanto o Japão quantoa Alemanha haviam sido forçados a arcar com parte do ônus da crise delucratividade. Isso porque foram obrigados a enfrentar custos cada vez maio-res, em conseqüência da severa valorização de suas moedas em relação aodólar que ocorreu no momento da crise monetária internacional e do colapsoda ordem de Bretton Woods entre 1971 e 1973.Foi a grande queda de lucratividade dos Estados Unidos, Alemanha, Japão e do mundo capitalista adiantado como um todo — e sua incapacidadede recuperação — a responsável pela redução secular das taxas de acumula-ção de capital, que são a raiz da estagnação econômica de longa duração aolongo do último quartel de século. As baixas taxas de acumulação de capitalacarretaram índices baixos de crescimento da produção e da produtividade;níveis reduzidos de crescimento da produtividade redundaram em percentuaisbaixos de aumento salarial. O crescente desemprego resultou do baixo au-mento da produção e do investimento.
A questão fundamental que imediatamente se coloca, no entanto, ésaber o que foi responsável pela perpetuação do excesso de capacidade e deprodução por trás da queda secular de lucratividade. Dito de outra forma: porque, de acordo com as expectativas comuns, as firmas que sofriam a quedade lucratividade em suas linhas não mudaram para outros ramos numa exten-são suficiente para aliviar o excesso de capacidade? A meu ver, há três res-postas gerais a esta questão.
A primeira é que as grandes corporações dos Estados Unidos, Alema-nha e Japão que dominavam o setor fabril mundial pareciam ter perspectivasmuito melhores de manter e aumentar a lucratividade pelo incremento dacompetitividade em suas próprias linhas do que pela transferência para ou-tros setores. Elas contavam com grandes volumes de capital empatado já pagoem suas próprias linhas; tinham relações antigas com fornecedores e clientesque não podiam ser facilmente reproduzidas em outros ramos; haviam cria-do, durante longo período, um saber tecnológico especializado, duramente conquistado, que era útil apenas em suas próprias linhas. Assim, durante eapós a década de 1970, as corporações dos Estados Unidos, Alemanha eJapão geralmente não largaram suas posições a menos que fossem forçadas aisso, e o resultado foi que havia pouca saída e alívio para o excesso de capa-cidade fabril.Em segundo lugar, a despeito da redução de lucratividade nos setoresfabris mundiais, os fabricantes de custos baixos, sediados especialmente noleste da Ásia, acharam lucrativo ingressar em muitos desses setores, da mes-ma forma que fizeram seus predecessores do Japão. Houve, pois, entradas emdemasia, exacerbando mais o excesso de capacidade.
Por fim, as políticas keynesianas, que se universalizaram nos anos 70e persistiram nos Estados Unidos até o início dos anos 90, contribuíram efe-tivamente para a perpetuação do excesso de capacidade e de produção e,assim, ajudaram a manter baixas as taxas de lucro agregadas. Pelo aumentoda demanda, o financiamento do déficit por empréstimos e o crédito fácilpermitiram, assim, que muitas firmas de custos altos e lucros baixos — que,de outro modo, teriam ido à falência — continuassem em atividade e manti-vessem posições que poderiam, em situação diferente, ser ocupadas por em-presas de custos baixos e lucros altos. O keynesianismo, assim, amenizouinquestionavelmente a longa retração econômica, porém também a prolon-gou, afastando uma depressão semelhante à dos anos 30. Isso, no entanto,teve o preço de reduzir o dinamismo do sistema ao manter em atividade em-presas que obtinham lucros baixos e investiam pouco.
Da estagnação para a crise
O rompimento definitivo com o keynesianismo, cabe ressaltar, real-mente só aconteceu nos anos 90. Quando isso ocorreu, no entanto, pareceter constituído uma condição decisiva para a existência da turbulência eco-nômica de hoje, abrindo o caminho para que a economia internacional pas-sasse de uma estagnação de longa duração para uma crise intensa. Alucratividade menor, decorrente do excesso de capacidade e de produção,vinha obviamente reduzindo a acumulação de capital — daí o crescimentomenor da demanda de investimento desde 1973. Aproximadamente desde a mesma época, em resposta à diminuição da lucratividade, os empregadoresvinham impondo aos trabalhadores um aumento salarial bem menor, o quediminuía o aumento da demanda de consumo. Quando Volker, chefe doFederal Reserve, e Margaret Thatcher impuseram o aperto monetário nofinal dos anos 70, a explosão das taxas de juros reais deprimiu a economiamais ainda. Assim, sem o aumento da demanda governamental resultantedo incremento enorme dos gastos militares promovido por Ronald Reagan,é duvidoso que a economia mundial pudesse ter evitado uma depressão realnos anos 80, especialmente na época da crise internacional da dívida de1981-1982 e depois.Porém, com a ascensão de Bill Clinton, os Estados Unidos passaram aadotar o equilíbrio orçamentário, bem como o aperto monetário, e esta ado-ção definitiva do neoliberalismo parece ter assinalado um ponto de virada.Isso porque pôs um fim ao papel que os Estados Unidos haviam desempenha-do por muito tempo na estabilização da economia internacional, aumentandoa demanda por meio de grandes déficits governamentais.A desaceleração da demanda governamental foi agora agregada ao járeduzido crescimento do consumo e demanda de investimento. Enquanto osdispêndios governamentais nos Estados Unidos cresceram em média 2,4%,por ano, nos 30 anos anteriores, durante os anos 90 elevaram-se apenas 0,1%ao ano. Como os governos europeus vieram também impondo uma austerida-de ainda mais feroz na corrida para a união monetária, o crescimento demercados domésticos em todo o mundo capitalista avançado foi reduzido atéentrar num ritmo de tartaruga. Para compensar, os produtores de todos ospaíses tinham poucas opções a não ser a intensificação radical de sua orien-tação para as exportações. Porém, como as exportações compõem-se na suamaioria de manufaturas, o resultado tem sido a exacerbação do problemasecular do excesso de capacidade fabril.
A maturação da crise atual
É a deterioração do excesso de capacidade fabril que preparou o terre-no para a cadeia de eventos que resultou na crise atual.
Durante a maior parte dos anos 90, os Estados Unidos foram virtual-mente os únicos que prosperaram entre as principais economias capitalistas,conseguindo uma grande recuperação da lucratividade, se bem que incomple-ta, notadamente no seu setor fabril, em depressão há muito tempo. Porém, arecuperação dos Estados Unidos se deu, principalmente, às custas da econo-mia internacional. Isso porque foi conseguida em grande medida por um cresci-mento acentuado das exportações, possibilitadas por um forte aumento dacompetitividade. Os ganhos dos produtores dos Estados Unidos, tendo em vistao lento crescimento da demanda internacional e, em particular, o excesso de oferta nos mercados industriais, foram obtidos em grande parte às expensas deseus principais rivais naquilo que se transformou, em larga medida, numa lutade soma zero por mercados. Em particular, o setor fabril dos Estados Unidosgarantiu sua revitalização em grande parte com a desvalorização do dólar em40-60% contra o marco e o yen, no decorrer de uma década. Assim, enquantoa economia dos Estados Unidos recuperou-se durante a primeira metade dosanos 90, os fabricantes alemães e especialmente os japoneses encontraram difi-culdades de exportação e viveram suas piores crises da época do pós-guerra.Em 1995, de fato, com o yen cotado a 80 por dólar, quando alcançara 240 pordólar dez anos antes, a economia japonesa estava à beira do colapso. Somenteo acordo dos governos dos Estados Unidos, Alemanha e Japão na primavera de1995 para revalorizar o dólar e desvalorizar fortemente o yen salvou o Japão.Não obstante, o socorro ao Japão teve conseqüências imprevistas — mais par-ticularmente a crise asiática. Isso porque os ganhos de produtores de uma eco-nomia — especialmente uma tão grande e poderosa quanto a do Japão — sópoderiam acontecer com perdas de outros. As economias do leste asiático havi-am sido capazes de crescer tão espetacularmente durante toda a primeira meta-de dos anos 90 conjugadas à dos Estados Unidos — e às expensas de produto-res com base no Japão — somente porque suas moedas haviam sido atreladasao dólar e, por isso, haviam caído juntamente com o dólar em relação ao yen. ACoréia, em particular, havia melhorado constantemente sua competitividadeporque o dólar e, portanto, a moeda coreana, o won, caíra, e o investimento naCoréia disparara, como se não houvesse limite ao mercado. Não obstante, quandoo yen finalmente começou a despencar contra o won e outras moedas do lesteasiático a partir de 1995, constatou-se que a economia coreana e, por seu turno,as demais economias do sudeste asiático haviam investido em demasia. Viram-se às voltas com capacidade extremamente excessiva e, por causa do aumentodos seus custos decorrente das suas moedas revalorizadas, com grande dificul-dade de vender com lucro. Quando, durante a primeira metade de 1997, oscredores internacionais começaram a notar que a lucratividade dos produtoresdo leste asiático desabava e o crescimento de suas exportações declinava emrelação às importações, passaram a correr para a porta de saída. Em conseqü-ência, as moedas do leste asiático rapidamente perderam seu valor, um fatoparticularmente desastroso em vista do seu forte endividamento comfinanciadores internacionais.
A essa altura, o FMI tornou tudo muito pior. Ao impor um acentuadoaumento das taxas de juros, assegurou a exacerbação dos problemas que asfirmas já tinham em pagar suas dívidas, abrindo caminho para uma espiraldescendente de incapacidade para honrar dívidas, ocasionando falências edispensas de empregados, o que acentuou a incapacidade de pagar dívidas,etc. Dessa forma, a crise do leste asiático transformou-se em depressão.
O resto da história é razoavelmente bem conhecido. Em 1996, a re-gião do leste asiático como um todo havia investido o mesmo que os EstadosUnidos, que são muito maiores. Assim, quando entrou em depressão, os re-sultados só poderiam ser cruciais. Os seus mercados entraram em colapso esuas exportações aceleraram. A economia japonesa, que procurara sair dacrise, durante os anos 90, reorientando-se para o leste asiático, viu-se numimpasse, em face da contração dos mercados do leste asiático, e só podia teresperança de se recuperar pelo aumento de suas exportações para outros lu-gares. A Alemanha e, de modo geral, a Europa também tentavam sair darecessão pela via das exportações.
O foco de toda essa exportação só poderia ser a economia que cresce-ra e expandira seu mercado doméstico, ou seja, a economia dos Estados Uni-dos, que, em 1997, finalmente principiara a desfrutar de crescimento domés-tico acelerado, até mesmo com salários reais crescentes, porém só consegui-ra isso pela intensificação das exportações industriais. A continuação destedinamismo foi, pois, imediatamente posta em dúvida, em conseqüência daascensão recente do dólar, que inevitavelmente acompanhou o sucesso eco-nômico dos Estados Unidos. Quando, no decorrer da primeira metade de 1998,ajudadas pelo dólar alto, as importações começaram a invadir os EstadosUnidos e, no mesmo período, prejudicadas pelo dólar alto, as exportaçõesdos Estados Unidos cessaram de crescer devido à contração dos mercadosasiáticos, os lucros industriais dos Estados Unidos tinham de cair e o boomdos Estados Unidos tinha de acabar. Foi o fim do boom do setor fabril dosEstados Unidos — ele próprio resultante da intensificação da concorrênciainternacional por conta do permanente excesso de capacidade e de produçãointernacional — a causa imediata de a economia dos Estados Unidos deslizarpara a recessão ou algo pior. Durante a primeira metade de 1998, após cres-cerem de modo impressionante por vários anos e impulsionarem o boom dosEstados Unidos, os lucros do setor industrial foram comprimidos, com impli-cações de largo alcance para a economia, sendo a explosão da bolha do mer-cado acionário a mais importante. A valorização das ações, fortemente am-parada por crescentes lucros do setor industrial, juntamente com a rápidaexpansão das exportações, alimentara o crescimento dos Estados Unidos aosustentar tanto o aumento dos gastos do consumo quanto a elevação dos in-vestimentos. Com as ações tão valorizadas, os consumidores pensavam quesua riqueza aumentara e portanto não precisavam poupar e, ao reduzir pro-fundamente sua taxa de poupança, haviam, nos últimos anos, elevado acen-tuadamente o índice de consumo. Com as ações tão altas, as empresas eramcapazes de levantar recursos a uma taxa bem mais baixa pela venda de ações,o que levou à aceleração do investimento. Porém, com o mercado acionárioem queda, os chamados “efeitos da riqueza” sofreram uma reviravolta. O Banco Central dos Estados Unidos estima que a perda líquida de riqueza emtodos os produtos financeiros dos Estados Unidos desde o auge do mercadoacionário em julho de 1998 corresponda a cerca de US$ 1,5 trilhão de dóla-res. Como as pessoas percebem que dispõem de uma riqueza bem menor doque pensavam que tinham até muito recentemente, inevitavelmente estão pou-pando mais e consumindo menos. Com a queda das cotações das ações, asempresas estão tendo que pagar mais para levantar recursos, e seus investi-mentos vêm minguando. Para piorar a situação, o fim da bolha do mercado deações trouxe uma tremenda perda de confiança empresarial, e os financiadores,duvidando da capacidade de os devedores3 pagarem os empréstimos e, toma-dos de pânico, estão resgastando seus títulos no ímpeto de obter liquidez (ouseja, risco menor e moeda forte). Um crescente “arrocho do crédito” vemassim tornando difícil para as empresas ou indivíduos obter empréstimos,solapando fortemente tanto a produção nova quanto o consumo novo.
Tampouco há muita esperança de que a crise de exportação, e do setorfabril de modo mais geral, que tem sido a fonte última da desaceleração dosEstados Unidos, possa ser superada. Ao contrário. Na maioria das regiões domundo, a produção continua a recuar, os mercados contraem, o crédito ficacada vez mais difícil, e os próprios produtores locais estão cada vez maisdependentes das exportações para sobreviver.
O fato é que a economia mundial por um bom tempo orientou-se paraa economia dos Estados Unidos para impulsioná-la. Com a expansão dosEstados Unidos chegando ao fim, sob o impacto da invasão mundial de ex-portações industriais, fica difícil ver onde serão encontradas as forças paraneutralizar a grave recessão.
Robert Brenner é editor de Against the Current e autor de "The Economics of Global Turbulence" New Left Review 299. Este artigo é uma versão ligeiramente revisada do discurso de abertura de "The Marx International Congress II: Capitalism, Critique, Resistance, Alternatives", patrocinado pela revista Actuel Marx, com a colaboração do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Foi apresentado em 30 de setembro de 1998, na Sorbonne, em Paris.
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