13 de dezembro de 2001

O sujeito da revolução

Ibrahim Abu-Lughod, ex-professor de ciência política na Northwestern University que mais tarde se tornou vice-presidente da Bir Zeit University na Cisjordânia, morreu aos 72 anos em 23 de maio em...

Edward Said


Vol. 23 No. 24 · 13 December 2001

Ibrahim Abu-Lughod, um ex-professor de ciência política na Northwestern University que mais tarde se tornou vice-presidente da Bir Zeit University na Cisjordânia, morreu aos 72 anos em 23 de maio em sua casa em Ramallah, após uma longa doença. Soube de sua morte quando estava saindo do aeroporto de Tel Aviv a caminho de vê-lo. Ele era meu amigo mais antigo e querido, notável como um pensador introspectivo e um professor e líder político carismático, cuja percepção sustentou uma amizade que durou quase cinquenta anos. Havia centenas de enlutados em seu funeral em Jaffa, e no 'azza - o velório - em sua casa e no Qattan Centre em Ramallah. Vários de seus amigos falaram na comemoração, realizada em um teatro em Ramallah no dia seguinte ao seu sepultamento ao lado de seu pai em um cemitério na encosta com vista para a enseada onde ele costumava levar seus visitantes para nadar - sempre se recusando a visitar o café de praia israelense adjacente, que parecia muito convidativo da mesma forma. Um dos oradores no funeral em Jaffa foi Faisal Husseini, que morreria exatamente uma semana depois em um quarto de hotel no Kuwait.

De todas as formas, a vida rica de Ibrahim e sua morte refletiram e esclareceram a turbulência e o sofrimento que estiveram no cerne da experiência palestina: é por isso que sua vida merece escrutínio. Muito nela confirma a situação palestina em toda a sua irresolução. A única coisa que pareceu se destacar para todos na época de sua morte foi que Abu-Lughod havia encenado seu próprio direito privado de retorno a Jaffa, algo que somente uma pessoa com sua extraordinária vontade poderia ter feito. Ninguém deixou de comentar sobre o fato de seu retorno à Palestina em 1992, após uma ausência de 44 anos, nem sobre a década que ele passou lá completando sua vida como professor, intelectual público e fundador de instituições.

Apesar dessa conclusão teatral, uma vasta instabilidade permaneceu. Ele ainda estava insatisfeito e inquieto. O retorno não o mudou, embora ele estivesse mais contente em casa do que no exílio. Para ele, a Palestina era um interrogatório que nunca é respondido completamente - ou mesmo articulado adequadamente. Tudo em sua personalidade confirmava essa inquietação, desde sua sociabilidade até sua introspecção temperamental, desde seu otimismo e energia até o sentimento imobilizador de impotência que reivindicou tantos de nós. Sua vida expressa simultaneamente derrota e triunfo, abjeção e realização, resignação e determinação. Em suma, era uma versão da Palestina, vivida em toda sua complexidade por um dos melhores palestinos de nosso tempo.

Ibrahim — um homem implacavelmente articulado — será lembrado menos por sua escrita, que era relativamente escassa, do que por sua capacidade de organizar pessoas e estabelecer instituições que lhes permitiam desempenhar um papel mais eficaz do que poderiam ter feito como indivíduos. Na América, ele foi fundamental na fundação da AAUG (Associação de Graduados Universitários Árabes-Americanos), do United Holy Land Fund, do Institute of Arab Studies, do Arab Studies Quarterly e da Medina Press. Ele foi o principal impulsionador da planejada Universidade Aberta Palestina, que deveria ter sua sede em Beirute até que a guerra de 1982 no Líbano acabasse com a ideia. Na Cisjordânia, ele projetou um centro para reforma curricular e, em seguida, o Qattan Center for Research on Education. Mesmo assim, ele parecia saber que a luta pela Palestina não poderia ser vencida nem pela fundação de instituições desse tipo nem mesmo pela repatriação e retorno. Elas eram, no final, estruturas reflexivas e autorreferenciais, e seriam minadas pela desapropriação, luta e perda sem fim. Como um herói conradiano, Ibrahim parecia estar sempre tentando resgatar significado e orgulho dos dramas que aconteciam ao seu redor, bem como de suas próprias fraquezas.

Considere os dramas que cercaram sua vida. Na época de sua morte, uma intifada poderosa, mas sem direção, estava se desenrolando do lado de fora de sua janela. Em 1982, foi o cerco de Beirute, cujos resultados foram os massacres de Sabra e Shatila e a evacuação do Líbano (tanto dele quanto da OLP); em 1948, foi a queda de Jaffa, a dispersão de sua família, o início de seu longo exílio americano e sua franqueza na defesa da causa palestina; eventualmente, em 1992, seu retorno abrupto à Cisjordânia. Quase todo árabe-americano que luta contra os estereótipos raciais, o racismo ideológico sofrido pelos palestinos e o antagonismo perene ao islamismo, deve a Ibrahim uma dívida tremenda. Ele começou a luta e, para a maioria de nós, ele tornou a luta possível em primeiro lugar.

Depois de quase quarenta anos de luta na América do Norte, houve de fato algum tipo de retorno – ou ‘awda – mas ele trouxe Ibrahim de volta apenas a um substituto falho: não a uma Palestina libertada, mas à Área A de Oslo e, com seu passaporte americano, a uma Jaffa muito sob controle israelense. Ele teria sido o primeiro a notar que o retorno palestino estava sujeito ao poder israelense mesmo na época de sua morte (pessoal anônimo da inteligência ameaçou cancelar seu funeral), assim como ele foi o primeiro a notar que em 1988 o Conselho Nacional Palestino e a OLP haviam se transformado de um movimento de libertação em um movimento de independência nacional – algo muito menor, como Oslo revelaria.

Ninguém sabia melhor do que Ibrahim como transformar os escombros da derrota em algum tipo de conquista. Mas ele nunca se contentou com triunfos puramente morais. Ele era muito realista em sua compreensão do poder militar bruto para ser enganado, por exemplo, pela sobrevivência de Arafat aos cataclismos de Beirute em 1982. "Não temos tanques", ele dizia, "não temos poder real. É por isso que foi tão fácil para os israelenses destruir nossas instituições e matar todas aquelas pessoas."

Conheci Ibrahim em Princeton em 1954. Não havia estudantes estrangeiros na universidade naquela época; nem afro-americanos, nem mulheres: apenas jovens brancos da alta sociedade que receberam uma excelente educação clássica e foram levados a sentir que tinham o direito de governar o mundo. Mais tarde, muitos deles o fizeram. Um morador rico da cidade deu dinheiro ao Departamento de Música para fornecer ingressos para o respeitável programa de concertos de Princeton aos estudantes de pós-graduação. Pediram para eu distribuir os ingressos. Em uma tarde especialmente quente e lenta de setembro, um jovem de maneiras rápidas, olhos azul-esverdeados penetrantes e um forte sotaque entrou, pediu ingressos, me mostrou sua carteira de identidade rapidamente (não tive chance de ver seu nome, apenas de registrar que ele era um estudante de pós-graduação) e então, quando ele estava saindo, virou-se e perguntou qual era meu nome. Quando eu disse novamente, ele voltou para o escritório e me perguntou de onde eu era. Eu disse algo como sou do Egito agora, mas antes eu era da Palestina. Seu rosto se iluminou: Eu também sou da Palestina, ele disse, de Jaffa. Ibrahim estava estudando com Philip Hitti, um imigrante libanês que havia estabelecido um departamento líder de "Estudos Orientais" — significando principalmente história e cultura árabes. Ele me apresentou aos outros estudantes de pós-graduação árabes, e em pouco tempo eu tinha um pequeno grupo de amigos mais velhos com quem eu podia falar árabe e lamentar a presença sionista em Princeton, que foi particularmente evidente durante a crise de Suez.

Nós dois deixamos Princeton em 1957 — ele com um PhD, eu com um BA — e voltei para o Egito por um ano. Eu via Ibrahim e sua esposa Janet regularmente no Cairo, onde ele estava trabalhando para a Unesco. Naquela época, havia poucos sinais das atividades políticas que estavam reservadas para nós dois. Eu fui para a pós-graduação em Harvard e via os Abu-Lughods com menos frequência, embora eu soubesse que eles tinham retornado aos EUA para começar suas carreiras de ensino. Então, o raio de 1967 nos atingiu e, inesperadamente, Ibrahim me enviou uma carta perguntando se eu contribuiria para uma edição especial do Arab World, o periódico mensal da Liga Árabe publicado em Nova York, editado por ele como convidado, e pretendia olhar para a guerra de uma perspectiva árabe. Aproveitei a ocasião para olhar para a imagem dos árabes na mídia, literatura popular e representações culturais que remontam à Idade Média. Esta foi a origem do meu livro Orientalism, que dediquei a Janet e Ibrahim.

Nos anos que se seguiram, embora os Abu-Lughods vivessem em Chicago e eu em Nova York, nos tornamos mais próximos, atraídos pela política. Testemunhamos no Congresso, nos encontramos com George Shultz em 1988, criamos o Instituto de Estudos Árabes em Boston, criamos o Arab Studies Quarterly e participamos de sessões do Conselho Nacional Palestino no Cairo, Amã e Argel. Durante aqueles anos de grande atividade, Ibrahim demonstrou um gênio para descobrir indivíduos talentosos nos EUA e no mundo árabe, a quem ele apresentou uns aos outros e ajudou a trabalhar juntos. Em junho de 1982, após um ano em Paris, ele se mudou para Beirute para iniciar a Universidade Aberta Palestina, na qual havia trabalhado com a Unesco e a OLP. Dois dias após sua chegada, as IDF invadiram o Líbano e, quase imediatamente depois disso, seu novo apartamento foi destruído por um foguete israelense. Ele passou os dois meses seguintes sitiado em Beirute, morando na casa da minha mãe com seu bom amigo Soheil Miarri. Nós nos comunicamos regularmente durante aquelas semanas difíceis, na maioria das vezes a pedido de Arafat, que usou várias pessoas, inclusive eu, como intermediários com a Administração dos EUA.

Beirute foi talvez uma experiência mais importante para Ibrahim do que qualquer outra antes ou depois. Ensinou-lhe, em primeiro lugar, que mesmo as melhores instituições podem ser minadas pela mediocridade e pela instabilidade brutal da política e da sociedade no Oriente Médio. Em segundo lugar, ensinou-lhe a dinâmica real do poder, tanto no que diz respeito a quem o tem, quanto a quem não o tem. Terceiro, e talvez o mais importante, ensinou-lhe que sempre se pode seguir em frente, mesmo que o fracasso se aproxime. Esse era o verdadeiro Ibrahim: o homem que entendia que a única coisa era seguir em frente, permanecendo otimista e leal aos seus camaradas (e aproveitando ao máximo o seu senso de humor, por mais macabro que fosse).

De vez em quando ele me dizia: somos medíocres, Edward, medíocres, e no final talvez essa mediocridade seja o que vai derrotar os israelenses, apesar de todo o seu brilhantismo. Mas ele sempre acrescentava: somos um povo bom, e teimosos também, mesmo que nem sempre sejamos muito inteligentes. O que o incomodava tanto em Oslo eram as indignidades que isso acarretava para os palestinos. A postura obsequiosa e palhaça de Arafat nos perturbava muito, e tínhamos muita vergonha de termos sido enganados por ele antes de Oslo. Ao contrário de mim, Ibrahim queria estar na parte da Palestina que Oslo havia escavado e parcialmente arrancado dos israelenses — a Área A — e era lá que ele colocava a si mesmo, seus colegas e seus alunos para trabalhar.

Ibrahim acreditava em padrões acadêmicos e intelectuais, seja na cultura árabe ou no Ocidente. Ele ficava exultante quando encontrava alguém em quem discernia promessa ou talento, porque isso lhe daria uma oportunidade de revelar o que estava escondido e fazê-lo brilhar. Há muitas pessoas — eu sou uma delas — que sentem que foram descobertas, apreciadas e subsequentemente alistadas nas fileiras por Ibrahim. Ele era o maior dos encorajadores, protetores, patrocinadores. Não havia nada como um elogio dele (‘você foi ótimo’), e nada tão definitivo quanto quando ele menosprezava alguém (‘ele é um idiota’, o ‘j’ pronunciado com uma forte nota Jaffa). Como professor, ele estava dividido entre o desejo de influenciar e dominar e o desejo de que a igualdade prevalecesse. Como pai de três filhas talentosas e marido de um estudioso muito talentoso, ele era mais tolerante com as mulheres do que o normal para um árabe ou para um homem ocidental. Mesmo quando ele estava sendo paternal, havia uma qualidade fraternal no monitoramento, e você raramente tinha a sensação de que ele era um tirano — embora ele pudesse afetar uma maneira tirânica, geralmente com um propósito muito bom. Havia um coração gentil por trás da certeza estrondosa.

Como muitos de nós, ele nunca se recuperou realmente da perda da Palestina, e seus primeiros dias como refugiado o marcaram indelevelmente. Memórias daquela época, embora nunca explicitadas, pareciam sempre fazer parte de sua raiva com Israel; e ele entendeu que nossa luta seria longa e complexa e não nos daria autodeterminação em nossa vida. De uma forma ou de outra, "a transformação da Palestina" (o título de sua coleção de ensaios mais conhecida e um eufemismo para o roubo do país pelo sionismo) dominou o trabalho de sua vida, mas ele não era um militante irracional, mas sim um intelectual ferozmente independente, muitas vezes corrosivamente crítico. Apesar do fato de que profissionalmente e pessoalmente ele sempre estava trabalhando pela causa, você nunca poderia descrevê-lo como um profissional. Ele era muito amador, movido por amor e comprometimento.

Ibrahim me apresentou ao assunto e à experiência, por assim dizer, da Palestina. Sete anos mais velho que eu, e mais inserido na vida da Palestina Mandatária, ele despertou em mim e em muitos outros o desejo de recapturar memórias há muito enterradas de nossos primeiros dias, antes que a nakba mudasse tudo. Ele tinha um conhecimento enorme, meticulosamente acumulado e articulado de nossa história, bem como uma memória viva de onde tudo e todos vieram, para onde foram, onde estavam vivendo agora ou quando desapareceram.

Jaffa deve ter sido um lugar notável na década de 1940. A escola de Ibrahim, a Amariye, produziu uma coleção surpreendente de adolescentes, que continuaram como refugiados para levar vidas de distinção como ativistas, acadêmicos e empresários. Ibrahim me apresentou a essas pessoas e elas se tornaram amigas íntimas. Entre eles estão seu amigo aventureiro, o fiel orador e membro da OLP Shafik el-Hout, que nunca deixou seu posto em Beirute, mesmo durante a ocupação israelense da cidade no outono de 1982, mas renunciou ao Comitê Executivo como resultado de seu profundo desacordo com Arafat sobre Oslo; e Abdel Mohsen al Qattan, um empresário bem-sucedido, que gastou grande parte de sua fortuna ajudando os palestinos a construir instituições e, como Shafik e Ibrahim, tem criticado abertamente Oslo.

Ibrahim acompanhou suas vidas com o zelo de um cronista medieval. Em reuniões do Conselho Nacional, ou durante encontros na Associação de Bem-Estar, ele me apresentava a um círculo cada vez maior de palestinos, de cujas vidas ele conseguia extrair, na presença um pouco envergonhada dos próprios indivíduos, uma quantidade incrível de informações aprendidas e homilia útil. Professores, advogados, acadêmicos, bancários e engenheiros o apreciavam como parte concreta da história da Palestina. Você podia senti-lo recusando sua evanescência conforme sua história se desenrolava, outro traço conradiano que dava profundidade a tudo o que ele dizia.

Foi Ibrahim quem apresentou os árabes na América ao mundo das lutas de libertação nacional e da política pós-colonial. Longe de ser um nacionalista palestino provinciano, ele tinha uma ampla perspectiva alimentada por uma ambição invejável de ver o mundo inteiro. Ele falava de forma emocionante sobre lugares que eu nunca tinha pensado em visitar, incluindo Peru, China e Rússia. Ele amava estar na cidade grande e frequentemente passava um tempo em Paris, Cairo e Chicago. Mais importante, ele estava alerta para o potencial — e os limites — da capacidade das pessoas de ajudar a causa da Palestina. Uma década antes de mim, por exemplo, ele entendeu que C.L.R. James se via como um ocidental e não conseguia se identificar facilmente com os árabes. Da mesma forma, como diretor do Programa de Estudos Africanos da Universidade Northwestern, ele tinha um conhecimento impressionante dos movimentos de libertação da África, muitos dos quais ele conhecia e convidou para a Northwestern. Ele estava anos à frente de seu tempo ao apreciar figuras como Amílcar Cabral e Oliver Tambo, ao distinguir seus movimentos e o tipo de colonialismo ou sistema de opressão contra o qual lutavam, bem como ao encontrar paralelos com a situação na Palestina. Por meio dele, também se encontravam as grandes figuras do discurso nacionalista árabe, como Mohammed Hassanein Haykal e Munif el Razzaz.

Foi graças a Ibrahim que, em 1970, conheci Eqbal Ahmad, o outro camarada de armas cuja morte prematura me deixou tão diminuído. Como Ibrahim, Eqbal era (para usar um dos mais altos termos de elogio de Ibrahim) asil, um "autêntico", com o mesmo dom de eloquência infinitamente fértil e incansável. Ficar acordado até tarde da noite com os dois era ser lentamente intimidado ao silêncio, enquanto eles desenvolviam longas dissertações, análises eruditas e até mesmo arcanas, nunca totalmente livres de zelo competitivo. Nenhum dos meus gurus foi mesquinho com seu tempo, e nenhum deles — talvez pelo mesmo motivo — se importava muito com a relativa parcimônia da impressão. Estilistas da palavra proferida, plurilíngues, generosos com ideias e histórias, eles me sustentaram durante minha doença de maneiras que o constrangimento me impede de relatar aqui. O que me consterna é que eles deveriam ter morrido antes de mim — principalmente agora, quando suas vozes teriam sido tão reveladoras e humanamente informativas.

Escrevendo sobre Eqbal na época de sua morte, dois anos atrás, e agora sobre Ibrahim, achei difícil dar conta de suas realizações essencialmente performáticas. Ambos os homens deixaram uma impressão duradoura em todos que conheceram; seu memorial não está incorporado em um corpo de trabalho, no entanto, mas espalhado por várias sociedades, grupos, associações e famílias, todos os quais foram alterados visivelmente, e imperceptivelmente, pela natureza desses homens e suas realizações.

Ambos retornaram para seus últimos anos aos seus países de origem: Eqbal, um nativo de Bihar, para Islamabad; Ibrahim, um nativo de Jaffa, para Ramallah. Mas eles não voltaram para casa de fato. Ao tentar capturar sua memória, alguém a confina e solidifica, e nesse sentido a trai: o que esses homens representavam era energia, mobilidade, descoberta e risco. Na história que se desenrola na Palestina, Ibrahim, eu acredito, permanecerá um modelo do que é ter se dedicado a uma ideia – não como algo a que se curvar, mas a viver e a reexaminar constantemente. Entendê-lo adequadamente é reencenar o drama da luta e do princípio no qual ele estava envolvido, não copiando-o, mas vivendo-o de novo, e ao fazê-lo, deixando-o aberto para revisão futura e reflexão crítica.

2 de dezembro de 2001

O desafio do desenvolvimento sustentável e a cultura da igualdade substantiva

István Mészáros

Monthly Review Volume 53, Number 7 (December 2001)

À memória de Daniel Singer, com quem conversei com frequência sobre a insustentabilidade de nossa ordem de desigualdade estrutural.

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Tradução / Duas proposições intimamente ligadas estão no centro desta intervenção: se o desenvolvimento no futuro não é desenvolvimento sustentável não existirá nenhum desenvolvimento significativo, não importando o quanto ele é urgente; apenas tentativas frustradas para realizar a quadratura do círculo, como as realizadas nas últimas décadas, marcadas por ainda maiores inapreensíveis teorias e práticas de “modernização”, condescendentemente prescritas para o chamado Terceiro Mundo pelos porta-vozes das antigas potências coloniais. Como corolário temos que a busca do desenvolvimento sustentável é inseparável da progressiva realização da igualdade substantiva . Deve também ser sublinhado neste contexto que os obstáculos a superar dificilmente poderiam ser maiores. Visto que até aos nossos dias a cultura da desigualdade substantiva permanece dominante, apesar dos usuais esforços indiferentes para contrariar o impacto devastador da desigualdade social pela institucionalização de alguns mecanismos de estritamente formal igualdade na esfera política.

Bem podemos colocar a questão: o que aconteceu no decurso subsequente do desenvolvimento histórico às nobres ideias proclamadas ao tempo da Revolução Francesa de liberdade, fraternidade e igualdade, e genuinamente defendidas por muitos durante muitos anos? Porque foram descartadas em conjunto, frequentemente com não dissimulado desprezo a fraternidade e a igualdade com a liberdade reduzida ao frágil esqueleto do “democrático direito a votar”, exercida por um número de pessoas cada vez mais céticas e diminutas nos países que se descrevem a eles próprios como “o modelo da democracia”? [1] E isso está longe de constituir todas as más notícias. Pois, como a história do século XX amplamente demonstra, mesmo as fracas medidas de igualdade formal são frequentemente consideradas como insuportáveis luxos para serem praticados, ou abertamente perseguidos por intervenções ditatoriais.

Após mais de um século de promessas de eliminação, ou pelo menos, de redução, a desigualdade através da “taxa progressiva” e de outras medidas (desse modo assegurando as condições de viabilidade social do desenvolvimento), a realidade é de uma ainda maior desigualdade. O fosso tem aumentado não apenas entre o “norte desenvolvido” e o “sul subdesenvolvido” mas também no interior dos países capitalistas avançados. Um recente relatório do Congresso norte-americano (que não pode ser acusado de “inclinação para o campo da esquerda”) admitiu que os ganhos de 1 por cento da população norte-americana excedem agora os de 40 por cento [2] das camadas mais desfavorecidas; número que nas últimas duas décadas duplicou em “apenas” 20%, escandaloso como é, mesmo no seu número mais baixo. Estes desenvolvimentos regressivos caminharam de par com a falsa oposição entre “igualdade de resultados” e “igualdade de oportunidades”, e depois mesmo votado ao abandono com a adulação da (nunca realizada) ideia de “igualdade de oportunidades”. Este resultado não pode ser considerado surpreendente. Por uma vez o “resultado” socialmente desafiante é arbitrariamente eliminado do quadro e substituído pela “oportunidade”, sendo esta ultima desprovida de todo o conteúdo. O termo totalmente vazio de resultados (e pior: negação de resultados), “igualdade” é volvido numa justificação ideológica da negação prática efetiva de todas as reais oportunidades de todos os que delas precisam.

Houve um tempo em que os pensadores progressistas da ascendente burguesia previram otimisticamente que a dominação de um ser humano por outro seria recordado no futuro como um sonho mau. Henry Home, uma grande figura da histórica escola escocesa do Iluminismo, vaticinou que “a Razão, reassumindo a sua autoridade soberana, banirá toda a perseguição, e no próximo século será pensado como estranho que a perseguição tivesse prevalecido entre os seres humanos. Talvez seja mesmo posto em dúvida se alguma vez ela foi realmente colocada em prática”. [3]

Ironicamente, à luz em que as coisas se tornaram, o que parece difícil de acreditar é que os representantes intelectuais da burguesia ascendente alguma vez possam ter raciocinado nestes termos. Um gigante do Iluminismo francês do século XVIII, Denis Diderot, não hesitou em fazer a afirmação radical, “se o trabalhador diário é miserável a nação é miserável”. [4] Igualmente Rousseau, com extremo radicalismo e cortante sarcasmo, descreveu a ordem prevalecente de dominação e subordinação social deste modo: o homem pode ser resumido em poucas palavras: "Tu precisas de mim, porque eu sou rico e tu és pobre. Chegamos então a um acordo. Eu te permitirei ter a honra de me servires, com a condição de me outorgares o pouco que te sobra em troca do sofrimento que terei ao te dirigir.” [5]

No mesmo espírito progressista, o grande filósofo italiano Giambattista Vico insistiu que o culminar do desenvolvimento histórico é “a idade do homem na qual todos se reconhecem como iguais na natureza humana” [6]. E muito tempo antes Thomas Müntzer, o líder Anabatista da revolução camponesa alemã prega no seu panfleto contra Lutero a causa fundamental do avanço do mal social em termos muito tangíveis, diagnosticando-o como o culto da vendibilidade e alienação. Ele conclui o seu discurso dizendo o quanto intolerável era “que todas as criaturas possam ser transformadas em propriedade – os peixes na Água, os pássaros no ar, as plantas na terra.” [7] Isto constituiu uma perspicaz identificação do que foi o desenrolar em todo o seu poder do curso da história nos três séculos seguintes. Como convém à realização paradoxal das antecipações utópicas prematuras, ela oferece, do ponto de vista vantajoso de um capitalismo muito menos estruturado em início de desenvolvimento, uma visão muito mais clara dos perigos que se aproximam do que o que se torna visível para os participantes diretamente envolvidos nas fases mais avançadas. Por uma vez a tendência social da vendibilidade universal triunfa em sintonia com a interna necessidade de formação social do capital, o que aparece a Müntzer como uma violação grosseira da ordem natural das coisas (e, como sabemos, em ultima instância, coloca em perigo a própria existência da humanidade), parece agora natural, inalterável, e aceitável aos pensadores que incondicionalmente se identificam com a ordem social historicamente desenvolvida (e em principio passível de remoção) dos constrangimentos do capital.

Portanto muita coisa se torna opaca e ofuscada pela alteração do ponto histórico em que vemos a história. Mesmo o termo crucial de “liberdade” sofre uma redução ao seu núcleo alienado. Em oposição às restrições políticas da ordem feudal a liberdade é saudada como a conquista do “poder de livremente nos vendermos”, através do pretenso “contrato entre iguais”, enquanto a sepultura material dos constrangimentos sociais da nova ordem são ignorados e mesmo idealizados. Por consequência, o significado original tanto da liberdade como da igualdade é alterado em determinações abstratas e auto-sustentadas [8], tornando a ideia de fraternidade – o terceiro membro de uma nobre aspiração então proclamada – completamente redundante de fato.

2

É o espírito de alienação que deve ser agora confrontado, a menos que estejamos dispostos a resignar-nos à aceitação do status quo e com ele à perspectiva de uma contínua paralisação social e autodestruição final do Homem. Aqueles que são os beneficiários do sistema dominante de desigualdades gritantes entre partes do mundo “desenvolvidas” e “subdesenvolvidas”, não hesitam em impor, com o maior cinismo, as consequências da sua irresponsabilidade ao resto do mundo (como recentemente fizeram ao demarcarem-se do Protocolo de Kyoto e de outros imperativos ambientais). Isto é justificado pela insistência de que os países do “Sul” devam permanecer presos ao seu atual nível de desenvolvimento, de outro modo iriam sofrer de um tratamento “iniquamente preferencial”. Aqui as potências dominantes têm o descaramento de falar em nome da igualdade! Em simultâneo aqueles que beneficiam do sistema recusam ver que a divisão “Norte/Sul” é a maior deficiência estrutural de todo o sistema, afetando cada país, mesmo os deles próprios, mesmo se no momento presente de uma forma menos extrema do que os chamados países do Terceiro-Mundo. Não obstante, a tendência em questão está longe de ser animadora mesmo para os países capitalistas mais avançados. Como ilustração podemos lembrar o alarmante crescimento de crianças pobres na Grã-Bretanha: nas últimas duas décadas, de acordo com as mais recentes estatísticas, o número de crianças vivendo abaixo da linha de pobreza foi multiplicado por três , e continua a aumentar todos os anos.

A dificuldade para nós é que ver estes assuntos numa perspectiva de curto prazo , como os organismos culturais e políticos dominantes necessariamente os colocam, trás com isso a tentação de seguir a “linha da menor resistência”, levando a nenhuma mudança significativa. O argumento associado a este modo de colocar o problema é que “os problemas resolveram-se no passado; eles estão limitados a fazer o mesmo no futuro”. Nada poderia ser mais falacioso do que esta linha de argumentação, precisamente se ela é mais conveniente para os defensores do status quo que não podem enfrentar as contradições explosivas da nossa perigosa situação a longo prazo. Todavia, como investigadores do movimento ecológico continuam a lembrar-nos, o longo prazo não é tão longo como isso, uma vez que as nuvens de uma catástrofe ambiental estão a ficar mais carregadas no horizonte. Fechar os olhos não constitui qualquer solução. Nem devemos permitir sermos enganados pela ilusão de que o perigo de confrontações militares devastadoras pertenceria ao passado, graças aos bons ofícios da “Nova Ordem Mundial”. Os perigos no que concerne a esta matéria são tão grandes como no passado, senão maiores, tendo em conta que nenhuma das contradições e antagonismos fundamentais foi resolvida com a implosão da União Soviética. Os recentes acordos do passado, e o prosseguimento aventureiro do pesadelo da “filha da guerra das estrelas,” com a mais coxa justificação possível de instalação de tais armas “contra estados párias”, representam decididos alertas a este respeito.

Durante muito tempo fomos induzidos a acreditar que todos os nossos problemas seriam felizmente resolvidos através de um “desenvolvimento” e “modernização” socialmente neutra. Era suposto que a tecnologia ultrapassasse todos os obstáculos e dificuldades. Na melhor das hipóteses esta foi uma ilusão imposta àqueles que, não possuindo qualquer papel ativo nas decisões, continuaram a ter esperança de que melhorias nas suas condições de existência seriam uma realidade, como prometido. Através de uma experiência amarga eles vieram a descobrir que a panaceia tecnológica era uma evasão das contradições servida por aqueles que detêm as alavancas do controlo social. A “revolução verde” na agricultura era suposto resolver de uma vez por todas o problema da fome e da má nutrição. Em vez disso, criou corporações monstruosas como a Monsanto, incrementando o seu poder por todo o mundo de tal modo que pesticidas mais poderosos se tornam necessários para a erradicar. Ainda assim, a ideologia do remédio estritamente tecnológico continua a ser propagandeada. Recentemente, alguns governos, incluindo o inglês, começaram a falar sobre a vindoura “revolução industrial verde”, o que quer que isso possa significar. O que é claro, todavia, é que esta nova defesa da panaceia tecnológica é planeada, novamente, como uma fuga às inerradicáveis dimensões sociais e políticas dos cada vez mais intensos perigos ambientais.

Não é exagero afirmar que no nosso tempo os interesses daqueles que não podem nem imaginar uma alternativa de curto prazo à ordem estabelecida, e a uma singular projeção de correções estritamente tecnológicas compatível com ela, colide diretamente com os interesses da sobrevivência da própria humanidade. No passado, o termo mágico para julgar da saúde do nosso sistema social era crescimento , e mesmo hoje ele permanece o quadro no qual as soluções devem ser encontradas. Interrogações de que tipo de crescimento e para que fim são precisamente as que são evitadas pela glorificação incondicional do crescimento. Este é especialmente o caso já que a realidade do crescimento sem restrições sob as nossas condições de reprodução social é extremamente esbanjadora e levam à acumulação de problemas que as futuras gerações deverão enfrentar – por exemplo, um dia, elas irão ter que enfrentar as consequências da energia nuclear (pacífica e militar). Primo do crescimento, o conceito de desenvolvimento, deve também ser alvo de uma análise crítica. Em tempos ele era acolhido por todos sem hesitação, e teve grande disseminação no chamado mundo subdesenvolvido a receita norte-americana de “modernização e desenvolvimento”. Levou algum tempo até que pudesse ser percebido que existia alguma coisa fatalmente defeituosa no modelo recomendado. Pois se o modelo norte-americano – com o qual 4 por cento da população mundial gasta 25 por cento da energia e recursos estratégicos mundiais, e polui o mundo em cerca de 25 por cento – fosse seguido em todo o lado, sufocaríamos num instante. Daí a necessidade de qualificar todo o desenvolvimento futuro como desenvolvimento sustentável , de modo a construir o conceito com um conteúdo realmente factível e socialmente desejável.

3

O maior desafio do desenvolvimento sustentável, que agora devemos enfrentar, não pode ser devidamente tratado sem a remoção dos constrangimentos paralisantes de caráter adverso do nosso sistema de reprodução. Esta é a razão porque não pode ser evitada a questão da igualdade substantiva no nosso tempo como o foi no passado. Por sustentabilidade significamos o estar realmente no controle dos processos culturais, econômicos e sociais vitais através dos quais os seres humanos não só sobrevivem mas também podem encontrar satisfação, de acordo com os objetivos que colocam a si mesmos, em vez de estarem à mercê de imprevisíveis forças naturais e quase-naturais determinações socioeconômicas. A ordem social existente é edificada no antagonismo estrutural entre o capital e o trabalho, requerendo portanto o exercício de um controle externo sobre todas as forças insubmissas. Adversariedade é o acompanhante necessário de tal sistema, não interessando quão elevados são os desperdícios humanos e econômicos para a sua manutenção.

O imperativo de eliminação de desperdícios está claramente nos nossos horizontes como a maior exigência do desenvolvimento sustentável. A economia a longo prazo deve ir de mãos dadas com um racional e humano propósito de economia , como é próprio ao núcleo do conceito. Mas o caminho de economia racional de modo a regular o nosso processo de reprodução social na base de um controle interno/auto-dirigido, como oposição ao externo/de-cima-para-baixo atualmente prevalecente, é radicalmente incompatível com a desigualdade estrutural e adversariedade.

Nas nossas sociedades as determinações entrincheiradas e garantes de desigualdade material são altamente reforçadas pelo modo como os indivíduos interiorizam o seu “papel na sociedade”, mais ou menos consensualmente resignando à sua categoria de subordinação aos que tomam decisões sobre as suas vidas. Esta cultura foi constituída em paralelo com a formação das novas estruturas de desigualdade do capital, sobre as fundações iníquas do passado. Houve uma interação recíproca entre as estruturas materiais reprodutivas e a dimensão cultural, criando um círculo vicioso que prendeu a esmagadora maioria dos indivíduos no seu estritamente contido domínio de ação. Se consideramos uma alteração qualitativa para o futuro, como devemos, o papel vital do processo cultural não pode ser subestimado. Pois não pode haver uma fuga ao círculo vicioso, a menos que desenvolvamos alguma espécie de interação – mas desta vez numa direção emancipatória – que caracterizou o desenvolvimento social no passado. Nenhuma mudança instantânea pode ser considerada do presente – a longo prazo insustentável – modo de reprodução social para um que não mais carregue tendências destrutivas intrínsecas. O sucesso requer a constituição de uma cultura de igualdade substancial, com o envolvimento ativo de todos, e a consciência da nossa própria partilha de responsabilidade implícita na operação de um tal modo de tomada de decisões sem-adversariedade.

Compreensivelmente, mesmo os maiores e mais iluminados pensadores da burguesia ascendente, como filhos do seu tempo e classe, estavam implicados na criação da longamente estabelecida cultura de desigualdade substantiva. Deixem-me ilustrar este ponto com a luta de Goethe com o significado da fantasia de Fausto, pretendendo representar a busca da humanidade na realização do seu destino. Como sabemos, de acordo com o pacto do insatisfeito Fausto com o Diabo, ele está a um passo de perder a sua aposta (e a sua alma) no momento em que encontra realização e satisfação na vida. E é deste modo que esse momento é saudado por Fausto:

Visse eu esse bulício efervescente,P'ra solo livre pisar com livre gente!A um momento tal então diria:Suspende-te, tu que és tão belo!O rasto dos trabalhos e dos dias,Nem eternidades podem apagá-lo. –Na presciência de tão feliz eventoDesfruto agora do supremo momento.

No entanto, com suprema ironia, Goethe mostra que o grande entusiasmo de Fausto está deslocado. Pois o que ele saúda como o grande trabalho de conquista de terra aos pântanos é os Lémures cavando a sua sepultura. E apenas uma intervenção celeste pode, no fim, salvar Fausto, resgatando a sua alma das garras do Diabo. A grandeza de Goethe é evidente na forma como indica o porquê da busca de Fausto ter que acabar em ironia e insolúvel ambiguidade, mesmo se Goethe não se pôde distanciar da visão do mundo do seu herói, apanhado pela concepção de “desigualdade iluminada”. Este é a súmula da visão faustiana:

Apresso-me a dar corpo ao que pensei,Só a voz do amo efeito produz.Erguei-vos todos, escravos, trabalhai!Fazei que se veja o que imaginei.Tomai a ferramenta, enxada, pá!O planejado tem de ser feito, e já.A clara ordem, o esforço sem detença,Merecem a mais bela recompensa;E se queres consumar a obra ingente,Para mil braços é bastante uma mente.

Claramente a consigna da esmagadora maioria da humanidade para desempenhar o papel de “mãos”, pedir que “Tomai a ferramenta” ao serviço de “uma mente”, e obedecer “a voz do amo” respeitando “A clara ordem, o esforço sem detença”, é absolutamente insustentável a longo prazo, não importando o quanto faz lembrar o atual estado das coisas. Como podemos considerar os seres humanos confinados a tal papel de “P'ra solo livre pisar com livre gente!”? As instruções dadas por Fausto ao capataz sobre o modo de controlar os trabalhadores levam diretamente às atuais formas, refletindo o mesmo espírito insuportável:

- Como puderes,Contrata-me trabalhadores,Prende-os com chicote ou favores,Força-os, e paga o que quiseres!Quero notícias dia a dia, e a tempo,De como vai a escavação do campo.

E que significado podemos nós dar ao “grande plano em favor da humanidade” de Fausto quando sabemos que a ordem social do capital é radicalmente incompatível com o planejamento necessário para a própria sobrevivência da humanidade? Como Mefistófeles descreve a perspectiva que se nos apresenta com brutal realismo:

De que serve tanta coisa criada?O que se cria desfaz-se logo em nada!"Acabou-se!" Qual é disto o sentido?Os “mil braços” ao serviço de “uma mente” não nos oferece, obviamente, nenhuma solução. Nem o místico coro de anjos na última cena do Fausto de Goethe a contrariar a ameaça de Mefistófeles de “O que se cria desfaz-se logo em nada!” [9]

Num tempo diferente Balzac, em uma das suas grandes novelas, Melmoth Reconciled, retoma o tema de Fausto, socorrendo de um modo muito diferente Melmoth/Fausto – que, graças ao seu pacto com o diabo, aproveita de uma saúde ilimitada ao longo da sua vida. Neste caso não há necessidade de intervenção divina. Pelo contrário, a solução é oferecida com extrema ironia e sarcasmo. Melmoth com muita habilidade salva a sua própria alma – quando sente a morte a aproximar-se e quer romper o pacto com o diabo – ao realizar um acordo com outro homem, Castanier, em apuros por desfalque, trocando a sua alma em perigo com este, que não hesita em entrar no negócio que lhe confere saúde ilimitada. E a garantia de Castanier, quando por sua vez chega à ideia de como se escapar do ultimo problema, é através da obtenção de uma outra alma em troca da sua, comprometida com o diabo, continuando de um modo intricado o sarcasmo de Balzac, o que nos leva até ao profético diagnóstico de Thomas Müntzer da alienação usurpadora. Castanier dirige-se ao mercado de títulos, absolutamente convencido que terá êxito em encontrar alguém cuja alma possa obter em troca da dele, dizendo que no mercado de títulos “mesmo o Espírito Santo tem a sua cotação” (O Banco do Espírito Santo do Vaticano na lista dos grandes bancos). [10]

No entanto, é suficiente seguir, nem que seja por uns dias os distúrbios dos mercados de títulos de modo a apercebermos que a solução de Melmoth/Castanier não é mais realista hoje do que a intervenção celestial de Goethe. O nosso desafio histórico de obtenção de condições de um desenvolvimento sustentável deve ser resolvido de um modo muito diferente.

Desprender-nos da cultura da desigualdade substantiva e progressivamente substituí-la por uma alternativa viável é o caminho que necessitamos seguir.

Notas:

1. It is enough to think of two recent examples: (1) the practical disenfranchising of countless millions, due to apathy or manipulation, and the electoral farce witnessed after the last U.S. Presidential election and (2) the lowest ever participation of voters in the June 2001 General Election in Britain, producing a grotesquely inflated parliamentary majority of 169 for the Government party with the votes of less than 25 percent of the electorate. The spokesmen of the winning party, refusing to listen to the British electorate’s clear warning message, boasted that “New Labour” had achieved a “land-slide victory.” Shirley Williams aptly commented that what we were witnessing was not a landslide but a mudslide.
2. David Cay Johnston, “Gap Between Rich and Poor Found Substantially Wider,” New York Times, September 5, 1999.
3. Henry Home (Lord Kames), Loose Hints upon Education, chiefly concerning the Culture of the Heart (Edinburgh & London, 1781), 284.
4. Diderot’s entry on Journalier in the Encyclopédie (emphasis added).
5. Jean-Jacques Rousseau, A Discourse on Political Economy (London: Everyman edition, n.d.), p. 264.
6. Giambattista Vico, The New Science, translated from the third edition (1744) (New York: Doubleday & Co, 1961), 3 (emphasis added).
7. Thomas Müntzer  Hochverursachte Schutzrede und Antwort wider das geistlose, sanftlebende Fleisch zu Wittenberg, welches mit verkehrter Weise durch den Diebstahl der heiligen Schrift die erbärmliche Christenheit also ganz jämmerlich besudelt hat (1524), quoted by Marx in his essay The Jewish Question (emphasis added).
8. In other words, we end up with a double circularity, produced by the most iniquitous actual historical development: “liberty” is defined as (abstractly postulated but in real substance utterly fictitious) “contractual equality,” and “equality” is exhausted in the vague desideratum of a “liberty” to aspire at being granted nothing more than the formally proclaimed but socially nullified “equality of opportunity.”
9. From Part Two, Act 5, of Goethe’s Faust. English translation by Philip Wayne (Harmondsworth, Middlesex: Penguin Classics, 1959). English quotations are taken from pages 267-270 of this volume (emphasis added).
10. The direct inspiration for Balzac’s novella was a long tale by an Irish Anglican clergyman, the descendant of a French Huguenot priest who fled France after the revocation of the Edict of Nantes. This work, by Charles Robert Maturin, the curate of St. Peter’s, Dublin, entitled Melmoth the Wanderer, was first published in Dublin in 1820, and immediately translated into French. (Recent edition by The Folio Society, London, 1993, pp. xvii.+ 506, with an Introduction by Virendra P. Varma.) The big difference is that while Maturin’s wandering Melmoth in the end cannot escape hell, Balzac’s very different way of approaching the Faust legend, with devastating irony and sarcasm, transfers the story on a radically different plane, putting into relief a vital determination of our social order.

Sobre o autor

István MészÁros é autor de Socialism or Barbarism: From the “American Century” to the Crossroads (Monthly Review Press, 2001), e Beyond Capital: Toward a Theory of Transition (Monthly Review Press, 1995).

Este artigo é baseado em uma palestra proferida na "Cúpula sobre Dívida Social e Integração da América Latina" dos Parlamentos Latino-Americanos, realizada em Caracas, Venezuela, de 10 a 13 de julho de 2001.

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