À memória de Daniel Singer, com quem conversei com frequência sobre a insustentabilidade de nossa ordem de desigualdade estrutural.
1
Tradução / Duas proposições intimamente ligadas estão no centro desta
intervenção: se o desenvolvimento no futuro não é desenvolvimento sustentável
não existirá nenhum desenvolvimento significativo, não importando o quanto ele
é urgente; apenas tentativas frustradas para realizar a quadratura do círculo,
como as realizadas nas últimas décadas, marcadas por ainda maiores
inapreensíveis teorias e práticas de “modernização”, condescendentemente
prescritas para o chamado Terceiro Mundo pelos porta-vozes das antigas potências
coloniais. Como corolário temos que a busca do desenvolvimento sustentável é
inseparável da progressiva realização da igualdade substantiva . Deve também
ser sublinhado neste contexto que os obstáculos a superar dificilmente poderiam
ser maiores. Visto que até aos nossos dias a cultura da desigualdade
substantiva permanece dominante, apesar dos usuais esforços indiferentes para
contrariar o impacto devastador da desigualdade social pela institucionalização
de alguns mecanismos de estritamente formal igualdade na esfera política.
Bem podemos colocar a questão: o que aconteceu no decurso
subsequente do desenvolvimento histórico às nobres ideias proclamadas ao tempo
da Revolução Francesa de liberdade, fraternidade e igualdade, e genuinamente
defendidas por muitos durante muitos anos? Porque foram descartadas em
conjunto, frequentemente com não dissimulado desprezo a fraternidade e a
igualdade com a liberdade reduzida ao frágil esqueleto do “democrático direito
a votar”, exercida por um número de pessoas cada vez mais céticas e diminutas
nos países que se descrevem a eles próprios como “o modelo da democracia”? [1]
E isso está longe de constituir todas as más notícias. Pois, como a história do
século XX amplamente demonstra, mesmo as fracas medidas de igualdade formal são
frequentemente consideradas como insuportáveis luxos para serem praticados, ou
abertamente perseguidos por intervenções ditatoriais.
Após mais de um século de promessas de eliminação, ou pelo menos,
de redução, a desigualdade através da “taxa progressiva” e de outras medidas
(desse modo assegurando as condições de viabilidade social do desenvolvimento),
a realidade é de uma ainda maior desigualdade. O fosso tem aumentado não apenas
entre o “norte desenvolvido” e o “sul subdesenvolvido” mas também no interior
dos países capitalistas avançados. Um recente relatório do Congresso
norte-americano (que não pode ser acusado de “inclinação para o campo da
esquerda”) admitiu que os ganhos de 1 por cento da população norte-americana
excedem agora os de 40 por cento [2] das camadas mais desfavorecidas; número
que nas últimas duas décadas duplicou em “apenas” 20%, escandaloso como é,
mesmo no seu número mais baixo. Estes desenvolvimentos regressivos caminharam
de par com a falsa oposição entre “igualdade de resultados” e “igualdade de
oportunidades”, e depois mesmo votado ao abandono com a adulação da (nunca
realizada) ideia de “igualdade de oportunidades”. Este resultado não pode ser
considerado surpreendente. Por uma vez o “resultado” socialmente desafiante é
arbitrariamente eliminado do quadro e substituído pela “oportunidade”, sendo
esta ultima desprovida de todo o conteúdo. O termo totalmente vazio de
resultados (e pior: negação de resultados), “igualdade” é volvido numa
justificação ideológica da negação prática efetiva de todas as reais
oportunidades de todos os que delas precisam.
Houve um tempo em que os pensadores progressistas da ascendente
burguesia previram otimisticamente que a dominação de um ser humano por outro
seria recordado no futuro como um sonho mau. Henry Home, uma grande figura da
histórica escola escocesa do Iluminismo, vaticinou que “a Razão, reassumindo a
sua autoridade soberana, banirá toda a perseguição, e no próximo século será
pensado como estranho que a perseguição tivesse prevalecido entre os seres
humanos. Talvez seja mesmo posto em dúvida se alguma vez ela foi realmente
colocada em prática”. [3]
Ironicamente, à luz em que as coisas se tornaram, o que parece
difícil de acreditar é que os representantes intelectuais da burguesia
ascendente alguma vez possam ter raciocinado nestes termos. Um gigante do
Iluminismo francês do século XVIII, Denis Diderot, não hesitou em fazer a
afirmação radical, “se o trabalhador diário é miserável a nação é miserável”.
[4] Igualmente Rousseau, com extremo radicalismo e cortante sarcasmo, descreveu
a ordem prevalecente de dominação e subordinação social deste modo: o homem
pode ser resumido em poucas palavras: "Tu precisas de mim, porque eu sou
rico e tu és pobre. Chegamos então a um acordo. Eu te permitirei ter a honra de
me servires, com a condição de me outorgares o pouco que te sobra em troca do
sofrimento que terei ao te dirigir.” [5]
No mesmo espírito progressista, o grande filósofo italiano
Giambattista Vico insistiu que o culminar do desenvolvimento histórico é “a
idade do homem na qual todos se reconhecem como iguais na natureza humana” [6].
E muito tempo antes Thomas Müntzer, o líder Anabatista da revolução camponesa
alemã prega no seu panfleto contra Lutero a causa fundamental do avanço do mal
social em termos muito tangíveis, diagnosticando-o como o culto da
vendibilidade e alienação. Ele conclui o seu discurso dizendo o quanto
intolerável era “que todas as criaturas possam ser transformadas em propriedade
– os peixes na Água, os pássaros no ar, as plantas na terra.” [7] Isto
constituiu uma perspicaz identificação do que foi o desenrolar em todo o seu
poder do curso da história nos três séculos seguintes. Como convém à realização
paradoxal das antecipações utópicas prematuras, ela oferece, do ponto de vista
vantajoso de um capitalismo muito menos estruturado em início de
desenvolvimento, uma visão muito mais clara dos perigos que se aproximam do que
o que se torna visível para os participantes diretamente envolvidos nas fases
mais avançadas. Por uma vez a tendência social da vendibilidade universal
triunfa em sintonia com a interna necessidade de formação social do capital, o
que aparece a Müntzer como uma violação grosseira da ordem natural
das coisas (e, como sabemos, em ultima instância, coloca em perigo a própria
existência da humanidade), parece agora natural, inalterável, e aceitável aos
pensadores que incondicionalmente se identificam com a ordem social
historicamente desenvolvida (e em principio passível de remoção) dos constrangimentos
do capital.
Portanto muita coisa se torna opaca e ofuscada pela alteração do
ponto histórico em que vemos a história. Mesmo o termo crucial de “liberdade”
sofre uma redução ao seu núcleo alienado. Em oposição às restrições políticas
da ordem feudal a liberdade é saudada como a conquista do “poder de livremente
nos vendermos”, através do pretenso “contrato entre iguais”, enquanto a
sepultura material dos constrangimentos sociais da nova ordem são ignorados e
mesmo idealizados. Por consequência, o significado original tanto da liberdade
como da igualdade é alterado em determinações abstratas e auto-sustentadas [8],
tornando a ideia de fraternidade – o terceiro membro de uma nobre aspiração
então proclamada – completamente redundante de fato.
2
É o espírito de alienação que deve ser agora confrontado, a menos
que estejamos dispostos a resignar-nos à aceitação do status quo e com ele à
perspectiva de uma contínua paralisação social e autodestruição final do Homem.
Aqueles que são os beneficiários do sistema dominante de desigualdades
gritantes entre partes do mundo “desenvolvidas” e “subdesenvolvidas”, não
hesitam em impor, com o maior cinismo, as consequências da sua
irresponsabilidade ao resto do mundo (como recentemente fizeram ao
demarcarem-se do Protocolo de Kyoto e de outros imperativos ambientais). Isto é
justificado pela insistência de que os países do “Sul” devam permanecer presos
ao seu atual nível de desenvolvimento, de outro modo iriam sofrer de um
tratamento “iniquamente preferencial”. Aqui as potências dominantes têm o
descaramento de falar em nome da igualdade! Em simultâneo aqueles que
beneficiam do sistema recusam ver que a divisão “Norte/Sul” é a maior
deficiência estrutural de todo o sistema, afetando cada país, mesmo os deles
próprios, mesmo se no momento presente de uma forma menos extrema do que os
chamados países do Terceiro-Mundo. Não obstante, a tendência em questão está
longe de ser animadora mesmo para os países capitalistas mais avançados. Como
ilustração podemos lembrar o alarmante crescimento de crianças pobres na
Grã-Bretanha: nas últimas duas décadas, de acordo com as mais recentes
estatísticas, o número de crianças vivendo abaixo da linha de pobreza foi
multiplicado por três , e continua a aumentar todos os anos.
A dificuldade para nós é que ver estes assuntos numa perspectiva
de curto prazo , como os organismos culturais e políticos dominantes
necessariamente os colocam, trás com isso a tentação de seguir a “linha da
menor resistência”, levando a nenhuma mudança significativa. O argumento
associado a este modo de colocar o problema é que “os problemas resolveram-se
no passado; eles estão limitados a fazer o mesmo no futuro”. Nada poderia ser
mais falacioso do que esta linha de argumentação, precisamente se ela é mais conveniente
para os defensores do status quo que não podem enfrentar as contradições
explosivas da nossa perigosa situação a longo prazo. Todavia, como
investigadores do movimento ecológico continuam a lembrar-nos, o longo prazo
não é tão longo como isso, uma vez que as nuvens de uma catástrofe ambiental
estão a ficar mais carregadas no horizonte. Fechar os olhos não constitui
qualquer solução. Nem devemos permitir sermos enganados pela ilusão de que o
perigo de confrontações militares devastadoras pertenceria ao passado, graças
aos bons ofícios da “Nova Ordem Mundial”. Os perigos no que concerne a esta
matéria são tão grandes como no passado, senão maiores, tendo em conta que
nenhuma das contradições e antagonismos fundamentais foi resolvida com a
implosão da União Soviética. Os recentes acordos do passado, e o prosseguimento
aventureiro do pesadelo da “filha da guerra das estrelas,” com a mais coxa
justificação possível de instalação de tais armas “contra estados párias”,
representam decididos alertas a este respeito.
Durante muito tempo fomos induzidos a acreditar que todos os
nossos problemas seriam felizmente resolvidos através de um “desenvolvimento” e
“modernização” socialmente neutra. Era suposto que a tecnologia ultrapassasse
todos os obstáculos e dificuldades. Na melhor das hipóteses esta foi uma ilusão
imposta àqueles que, não possuindo qualquer papel ativo nas decisões,
continuaram a ter esperança de que melhorias nas suas condições de existência
seriam uma realidade, como prometido. Através de uma experiência amarga eles
vieram a descobrir que a panaceia tecnológica era uma evasão das contradições
servida por aqueles que detêm as alavancas do controlo social. A “revolução
verde” na agricultura era suposto resolver de uma vez por todas o problema da fome
e da má nutrição. Em vez disso, criou corporações monstruosas como a Monsanto,
incrementando o seu poder por todo o mundo de tal modo que pesticidas mais
poderosos se tornam necessários para a erradicar. Ainda assim, a ideologia do
remédio estritamente tecnológico continua a ser propagandeada. Recentemente,
alguns governos, incluindo o inglês, começaram a falar sobre a vindoura
“revolução industrial verde”, o que quer que isso possa significar. O que é
claro, todavia, é que esta nova defesa da panaceia tecnológica é planeada,
novamente, como uma fuga às inerradicáveis dimensões sociais e políticas dos
cada vez mais intensos perigos ambientais.
Não é exagero afirmar que no nosso tempo os interesses daqueles
que não podem nem imaginar uma alternativa de curto prazo à ordem estabelecida,
e a uma singular projeção de correções estritamente tecnológicas compatível com
ela, colide diretamente com os interesses da sobrevivência da própria
humanidade. No passado, o termo mágico para julgar da saúde do nosso sistema
social era crescimento , e mesmo hoje ele permanece o quadro no qual as
soluções devem ser encontradas. Interrogações de que tipo de crescimento e para
que fim são precisamente as que são evitadas pela glorificação incondicional do
crescimento. Este é especialmente o caso já que a realidade do crescimento sem
restrições sob as nossas condições de reprodução social é extremamente
esbanjadora e levam à acumulação de problemas que as futuras gerações deverão
enfrentar – por exemplo, um dia, elas irão ter que enfrentar as consequências
da energia nuclear (pacífica e militar). Primo do crescimento, o conceito de
desenvolvimento, deve também ser alvo de uma análise crítica. Em tempos ele era
acolhido por todos sem hesitação, e teve grande disseminação no chamado mundo
subdesenvolvido a receita norte-americana de “modernização e desenvolvimento”.
Levou algum tempo até que pudesse ser percebido que existia alguma coisa
fatalmente defeituosa no modelo recomendado. Pois se o modelo norte-americano –
com o qual 4 por cento da população mundial gasta 25 por cento da energia e
recursos estratégicos mundiais, e polui o mundo em cerca de 25 por cento –
fosse seguido em todo o lado, sufocaríamos num instante. Daí a necessidade de
qualificar todo o desenvolvimento futuro como desenvolvimento sustentável , de
modo a construir o conceito com um conteúdo realmente factível e socialmente
desejável.
3
O maior desafio do desenvolvimento sustentável, que agora devemos
enfrentar, não pode ser devidamente tratado sem a remoção dos constrangimentos
paralisantes de caráter adverso do nosso sistema de reprodução. Esta é a razão
porque não pode ser evitada a questão da igualdade substantiva no nosso tempo
como o foi no passado. Por sustentabilidade significamos o estar realmente no
controle dos processos culturais, econômicos e sociais vitais através dos quais
os seres humanos não só sobrevivem mas também podem encontrar satisfação, de
acordo com os objetivos que colocam a si mesmos, em vez de estarem à mercê de
imprevisíveis forças naturais e quase-naturais determinações socioeconômicas. A
ordem social existente é edificada no antagonismo estrutural entre o capital e
o trabalho, requerendo portanto o exercício de um controle externo sobre todas
as forças insubmissas. Adversariedade é o acompanhante necessário de tal
sistema, não interessando quão elevados são os desperdícios humanos e
econômicos para a sua manutenção.
O imperativo de eliminação de desperdícios está claramente nos
nossos horizontes como a maior exigência do desenvolvimento sustentável. A
economia a longo prazo deve ir de mãos dadas com um racional e humano propósito
de economia , como é próprio ao núcleo do conceito. Mas o caminho de economia
racional de modo a regular o nosso processo de reprodução social na base de um
controle interno/auto-dirigido, como oposição ao externo/de-cima-para-baixo
atualmente prevalecente, é radicalmente incompatível com a desigualdade
estrutural e adversariedade.
Nas nossas sociedades as determinações entrincheiradas e garantes
de desigualdade material são altamente reforçadas pelo modo como os indivíduos
interiorizam o seu “papel na sociedade”, mais ou menos consensualmente
resignando à sua categoria de subordinação aos que tomam decisões sobre as suas
vidas. Esta cultura foi constituída em paralelo com a formação das novas
estruturas de desigualdade do capital, sobre as fundações iníquas do passado.
Houve uma interação recíproca entre as estruturas materiais reprodutivas e a
dimensão cultural, criando um círculo vicioso que prendeu a esmagadora maioria
dos indivíduos no seu estritamente contido domínio de ação. Se consideramos uma
alteração qualitativa para o futuro, como devemos, o papel vital do processo
cultural não pode ser subestimado. Pois não pode haver uma fuga ao círculo vicioso,
a menos que desenvolvamos alguma espécie de interação – mas desta vez numa
direção emancipatória – que caracterizou o desenvolvimento social no passado.
Nenhuma mudança instantânea pode ser considerada do presente – a longo prazo
insustentável – modo de reprodução social para um que não mais carregue
tendências destrutivas intrínsecas. O sucesso requer a constituição de uma
cultura de igualdade substancial, com o envolvimento ativo de todos, e a
consciência da nossa própria partilha de responsabilidade implícita na operação
de um tal modo de tomada de decisões sem-adversariedade.
Compreensivelmente, mesmo os maiores e mais iluminados pensadores
da burguesia ascendente, como filhos do seu tempo e classe, estavam implicados
na criação da longamente estabelecida cultura de desigualdade substantiva.
Deixem-me ilustrar este ponto com a luta de Goethe com o significado da
fantasia de Fausto, pretendendo representar a busca da humanidade na realização
do seu destino. Como sabemos, de acordo com o pacto do insatisfeito Fausto com
o Diabo, ele está a um passo de perder a sua aposta (e a sua alma) no momento
em que encontra realização e satisfação na vida. E é deste modo que esse
momento é saudado por Fausto:
Visse eu esse bulício efervescente,P'ra solo livre pisar com livre gente!A um momento tal então diria:Suspende-te, tu que és tão belo!O rasto dos trabalhos e dos dias,Nem eternidades podem apagá-lo. –Na presciência de tão feliz eventoDesfruto agora do supremo momento.
No entanto, com suprema ironia, Goethe mostra que o grande entusiasmo de Fausto está deslocado. Pois o que ele saúda como o grande trabalho de conquista de terra aos pântanos é os Lémures cavando a sua sepultura. E apenas uma intervenção celeste pode, no fim, salvar Fausto, resgatando a sua alma das garras do Diabo. A grandeza de Goethe é evidente na forma como indica o porquê da busca de Fausto ter que acabar em ironia e insolúvel ambiguidade, mesmo se Goethe não se pôde distanciar da visão do mundo do seu herói, apanhado pela concepção de “desigualdade iluminada”. Este é a súmula da visão faustiana:
Apresso-me a dar corpo ao que pensei,Só a voz do amo efeito produz.Erguei-vos todos, escravos, trabalhai!Fazei que se veja o que imaginei.Tomai a ferramenta, enxada, pá!O planejado tem de ser feito, e já.A clara ordem, o esforço sem detença,Merecem a mais bela recompensa;E se queres consumar a obra ingente,Para mil braços é bastante uma mente.
Claramente a consigna da esmagadora maioria da humanidade para desempenhar o papel de “mãos”, pedir que “Tomai a ferramenta” ao serviço de “uma mente”, e obedecer “a voz do amo” respeitando “A clara ordem, o esforço sem detença”, é absolutamente insustentável a longo prazo, não importando o quanto faz lembrar o atual estado das coisas. Como podemos considerar os seres humanos confinados a tal papel de “P'ra solo livre pisar com livre gente!”? As instruções dadas por Fausto ao capataz sobre o modo de controlar os trabalhadores levam diretamente às atuais formas, refletindo o mesmo espírito insuportável:
- Como puderes,Contrata-me trabalhadores,Prende-os com chicote ou favores,Força-os, e paga o que quiseres!Quero notícias dia a dia, e a tempo,De como vai a escavação do campo.
E que significado podemos nós dar ao “grande plano em favor da humanidade” de Fausto quando sabemos que a ordem social do capital é radicalmente incompatível com o planejamento necessário para a própria sobrevivência da humanidade? Como Mefistófeles descreve a perspectiva que se nos apresenta com brutal realismo:
De que serve tanta coisa criada?O que se cria desfaz-se logo em nada!"Acabou-se!" Qual é disto o sentido?Os “mil braços” ao serviço de “uma mente” não nos oferece, obviamente, nenhuma solução. Nem o místico coro de anjos na última cena do Fausto de Goethe a contrariar a ameaça de Mefistófeles de “O que se cria desfaz-se logo em nada!” [9]
Num tempo diferente Balzac, em uma das suas grandes novelas, Melmoth Reconciled, retoma o tema de Fausto, socorrendo de um modo muito diferente Melmoth/Fausto – que, graças ao seu pacto com o diabo, aproveita de uma saúde ilimitada ao longo da sua vida. Neste caso não há necessidade de intervenção divina. Pelo contrário, a solução é oferecida com extrema ironia e sarcasmo. Melmoth com muita habilidade salva a sua própria alma – quando sente a morte a aproximar-se e quer romper o pacto com o diabo – ao realizar um acordo com outro homem, Castanier, em apuros por desfalque, trocando a sua alma em perigo com este, que não hesita em entrar no negócio que lhe confere saúde ilimitada. E a garantia de Castanier, quando por sua vez chega à ideia de como se escapar do ultimo problema, é através da obtenção de uma outra alma em troca da sua, comprometida com o diabo, continuando de um modo intricado o sarcasmo de Balzac, o que nos leva até ao profético diagnóstico de Thomas Müntzer da alienação usurpadora. Castanier dirige-se ao mercado de títulos, absolutamente convencido que terá êxito em encontrar alguém cuja alma possa obter em troca da dele, dizendo que no mercado de títulos “mesmo o Espírito Santo tem a sua cotação” (O Banco do Espírito Santo do Vaticano na lista dos grandes bancos). [10]
No entanto, é suficiente seguir, nem que seja por uns dias os
distúrbios dos mercados de títulos de modo a apercebermos que a solução de
Melmoth/Castanier não é mais realista hoje do que a intervenção celestial de
Goethe. O nosso desafio histórico de obtenção de condições de um
desenvolvimento sustentável deve ser resolvido de um modo muito diferente.
Desprender-nos da cultura da desigualdade substantiva e
progressivamente substituí-la por uma alternativa viável é o caminho que
necessitamos seguir.
Notas:
1. It is enough to think
of two recent examples: (1) the practical disenfranchising of countless
millions, due to apathy or manipulation, and the electoral farce witnessed
after the last U.S. Presidential election and (2) the lowest ever participation
of voters in the June 2001 General Election in Britain, producing a grotesquely
inflated parliamentary majority of 169 for the Government party with the votes
of less than 25 percent of the electorate. The spokesmen of the winning party,
refusing to listen to the British electorate’s clear warning message, boasted
that “New Labour” had achieved a “land-slide victory.” Shirley Williams aptly
commented that what we were witnessing was not a landslide but a mudslide.
2. David Cay Johnston,
“Gap Between Rich and Poor Found Substantially Wider,” New York Times,
September 5, 1999.
3. Henry Home (Lord
Kames), Loose Hints upon Education, chiefly concerning the Culture of the Heart
(Edinburgh & London, 1781), 284.
4. Diderot’s entry on
Journalier in the Encyclopédie (emphasis added).
5. Jean-Jacques
Rousseau, A Discourse on Political Economy (London: Everyman edition, n.d.), p.
264.
6. Giambattista Vico,
The New Science, translated from the third edition (1744) (New York: Doubleday
& Co, 1961), 3 (emphasis added).
7.
Thomas Müntzer Hochverursachte Schutzrede und Antwort wider das
geistlose, sanftlebende Fleisch zu Wittenberg, welches mit verkehrter Weise
durch den Diebstahl der heiligen Schrift die erbärmliche Christenheit also ganz
jämmerlich besudelt hat (1524), quoted by Marx in his essay The Jewish Question
(emphasis added).
8. In other words, we
end up with a double circularity, produced by the most iniquitous actual
historical development: “liberty” is defined as (abstractly postulated but in
real substance utterly fictitious) “contractual equality,” and “equality” is
exhausted in the vague desideratum of a “liberty” to aspire at being granted
nothing more than the formally proclaimed but socially nullified “equality of
opportunity.”
9. From Part Two, Act 5,
of Goethe’s Faust. English translation by Philip Wayne (Harmondsworth,
Middlesex: Penguin Classics, 1959). English quotations are taken from pages
267-270 of this volume (emphasis added).
10. The direct
inspiration for Balzac’s novella was a long tale by an Irish Anglican
clergyman, the descendant of a French Huguenot priest who fled France after the
revocation of the Edict of Nantes. This work, by Charles Robert Maturin, the
curate of St. Peter’s, Dublin, entitled Melmoth the Wanderer, was first
published in Dublin in 1820, and immediately translated into French. (Recent
edition by The Folio Society, London, 1993, pp. xvii.+ 506, with an
Introduction by Virendra P. Varma.) The big difference is that while Maturin’s
wandering Melmoth in the end cannot escape hell, Balzac’s very different way of
approaching the Faust legend, with devastating irony and sarcasm, transfers the
story on a radically different plane, putting into relief a vital determination
of our social order.
Sobre o autor
István MészÁros é autor de Socialism or Barbarism: From the “American Century” to the Crossroads (Monthly Review Press, 2001), e Beyond Capital: Toward a Theory of Transition (Monthly Review Press, 1995).
Este artigo é baseado em uma palestra proferida na "Cúpula sobre Dívida Social e Integração da América Latina" dos Parlamentos Latino-Americanos, realizada em Caracas, Venezuela, de 10 a 13 de julho de 2001.
Sobre o autor
István MészÁros é autor de Socialism or Barbarism: From the “American Century” to the Crossroads (Monthly Review Press, 2001), e Beyond Capital: Toward a Theory of Transition (Monthly Review Press, 1995).
Este artigo é baseado em uma palestra proferida na "Cúpula sobre Dívida Social e Integração da América Latina" dos Parlamentos Latino-Americanos, realizada em Caracas, Venezuela, de 10 a 13 de julho de 2001.
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