Edward Said
Um tanque israelense (parcialmente obscurecido) destrói uma casa palestina em Gaza em retaliação a dois ataques suicidas a bomba em agosto de 2001. |
Tradução / Nos Estados Unidos, onde Israel tem sua principal base política, e de quem recebeu mais de 92 bilhões de dólares em ajuda desde 1967, o atentado a bomba de quinta-feira num restaurante de Jerusalém e o desastre de segunda-feira em Haifa, ambos acontecimentos que tiveram um terrível custo humano, são rapidamente explicados dentro de um quadro já familiar: Arafat não fez o suficiente para controlar seus terroristas; extremistas suicidas islâmicos estão em toda a parte, fazendo mal a “nós” e aos nossos principais aliados, impulsionados por puro ódio; Israel, portanto, deve defender sua segurança. Um indivíduo ponderado poderá acrescentar: essas pessoas têm lutado incansavelmente por milhares de anos, de qualquer forma; a violência deve parar; os dois lados têm sofrido demais, embora a maneira como os palestinos mandam seus filhos para a batalha seja outro sinal do quanto Israel tem tido de aguentar. E então, exasperado, mas ainda assim moderado, Israel invade Jenin, cidade sem fortificações nem defesas, com tratores e tanques, destruindo vários edifícios, entre os quais os da polícia da Autoridade Palestina. Depois manda seus propagandistas dizerem que era uma mensagem para Arafat controlar seus terroristas. Enquanto isso, Arafat e seu círculo estão suplicando pela proteção norte-americana, sem dúvida se esquecendo de que Israel é o aliado que goza da maior proteção dos Estados Unidos e que tudo que vai conseguir, pela enésima vez, é apenas uma ordem para parar a violência.
O fato é que Israel praticamente já ganhou a guerra de propaganda nos Estados Unidos, país onde está para colocar vários milhões de dólares numa campanha de relações públicas (usando astros como Zubin Mehta, Yitzhak Pearlman e Amos Oz) para melhorar ainda mais sua imagem. Mas consideremos o que Israel conseguiu com sua guerra implacável contra o indefeso, basicamente desarmado e mal conduzido povo palestino. A disparidade de poder é tão grande que dá vontade de chorar. Equipados com o poder aéreo mais moderno, não só produzido como presenteado gratuitamente pelos Estados Unidos, os israelenses possuem helicópteros com canhoneiras, mísseis, incontáveis tanques e uma marinha excelente, assim como um serviço de inteligência extremamente eficiente. Ou seja, Israel é uma potência nuclear abusando de um povo sem tanques, artilharia, força aérea (sua única e patética pista de decolagem em Gaza é controlada por Israel), marinha ou exército: nenhuma das instituições de um Estado moderno. A contínua e estarrecedora história dos trinta e quatro anos de ocupação militar de terra palestina ilegalmente conquistada (a segunda mais longa da história moderna) tem se apagado da memória pública quase em toda a parte, assim como a destruição da sociedade palestina em 1948 e a expulsão de 68% da população local, da qual 4,5 milhões de pessoas continuam vivendo como refugiados nos dias de hoje. Por trás das resmas de propaganda, as características evidentes da pressão diária de Israel, por várias décadas, sobre um povo que tem como maior pecado por acaso estar vivendo lá, no meio de seu caminho, são chocantemente perceptíveis em seu sadismo desumano. O confinamento fantasticamente cruel de 1,3 milhão de pessoas, apertadas como sardinhas humanas na Faixa de Gaza, além dos quase 2 milhões de residentes palestinos da Cisjordânia, não tem paralelos nos anais do apartheid ou do colonialismo. Caças F-16 nunca foram usados para bombardear lares sul-africanos. Mas são usados contra as cidades e vilarejos palestinos. Todas as entradas e saídas são controladas por Israel (Gaza está completamente cercada por uma cerca de arame farpado), que também detém todo o fornecimento de água. Dividida em aproximadamente sessenta e três cantões não contíguos, completamente cercada e sitiada por tropas israelenses, pontuada por cento e quarenta assentamentos (muitos deles construídos durante o governo Ehud Barak), com uma rede de estradas própria, de acesso proibido aos “não judeus”, como são chamados os árabes, juntamente com outros epítetos depreciativos, como ladrões, cobras, baratas e gafanhotos, os palestinos sob ocupação, agora, foram reduzidos a 60% de desemprego e uma taxa de pobreza de 50% (metade das pessoas de Gaza e da Cisjordânia vive com menos de dois dólares por dia); eles não podem viajar de um lugar para outro; são obrigados a esperar em longas filas em postos de controle israelenses, que detêm e humilham os idosos, os doentes, os estudantes e os religiosos por horas a fio; cento e cinquenta mil de suas oliveiras e árvores cítricas foram arrancadas como punição; duas mil de suas casas, demolidas; muitos hectares de suas terras foram destruídos ou expropriados para servirem de assentamentos militares.
Desde que a Intifada da Al-Aqsa começou, no final do último setembro [de 2000], 609 palestinos foram assassinados (quatro vezes mais que as mortes de israelenses) e 15 mil feridos (doze vezes mais que do outro lado). Os assassinatos regulares realizados pelo exército israelense foram de supostos terroristas escolhidos indiscriminadamente. Na maior parte das vezes, mataram civis inocentes como moscas. Na última semana, 14 palestinos foram assassinados pelas forças israelenses que usavam mísseis e canhoneiras de helicópteros; os palestinos assassinados, portanto, foram “impedidos” de matar israelenses no futuro, apesar de, nessa ocasião, pelo menos duas crianças e cinco inocentes também terem perdido a vida, para não dizer nada sobre outros tantos civis feridos e diversos edifícios destruídos – parte do efeito colateral, de alguma forma aceitável para os israelenses. Sem nome nem rosto, as vítimas palestinas diárias de Israel raramente são mencionadas nos noticiários americanos, apesar de – por razões que eu simplesmente não consigo entender – Arafat ainda estar esperando que os americanos resgatem a si e ao seu regime em desintegração.
E isso não é tudo. O plano de Israel não é apenas manter a terra e povoá-la com colonos armados assassinos que, protegidos pelo exército, levam a destruição aos pomares, às crianças em idade escolar e aos lares palestinos; o projeto israelense é, como afirmou a pesquisadora americana Sara Roy, fazer regredir a sociedade palestina, tornar a vida impossível para a população local, com o objetivo de obrigar os palestinos a sair, a desistir de sua terra de alguma forma ou a fazer algo insano, como explodir a si mesmos. Desde 1967, líderes foram presos e deportados pelo regime de ocupação de Israel, pequenos negócios e fazendas tornaram-se inviáveis, ao serem confiscadas e simplesmente destruídas, estudantes foram impedidos de estudar, universidades foram fechadas (em meados dos anos 1980, as universidades palestinas na Cisjordânia foram fechadas por quatro anos). Nenhum agricultor ou empresário palestino pode exportar diretamente a um país árabe; seus produtos devem passar por Israel. Impostos também são pagos ao Estado israelense. Depois que o processo de paz de Oslo começou, em 1993, a ocupação foi simplesmente remodelada: apenas 18% da terra foi entregue à Autoridade Palestina liderada por Arafat, uma organização corrupta e similar ao governo Vichy, já que sua função parece ter sido somente a de policiar e cobrar impostos de seu povo para o agrado de Israel. Após oito infrutíferos e miseráveis anos desde as negociações de Oslo, arquitetadas por uma equipe americana de antigos lobistas israelenses, como Martin Indyk e Dennis Ross, Israel continua a controlar as terras, a ocupação apresentada mais eficientemente e a frase “processo de paz” criou uma aura de consagração que permite mais abusos, mais assentamentos, mais prisões e mais sofrimento palestino que antes. Incluindo um leste de Jerusalém “judaizado”, com a Orient House ocupada e seu conteúdo saqueado (como havia feito com os arquivos da OLP em Beirute, em 1982, Israel roubou os registros, títulos de terra, mapas valiosos do local), o governo israelense implantou não menos de 400 mil colonos em solo palestino. Chamá-los de espreitadores e bandidos não é um exagero.
Vale a pena lembrar que duas semanas após a visita desnecessariamente arrogante de Sharon a Haram Al-Sharif, em Jerusalém, em 28 de setembro, acompanhado de mil soldados e seguranças fornecidos pelo primeiro-ministro Barak, Israel foi condenado unanimemente por essa ação pelo Conselho de Segurança da ONU. Depois, como até mesmo uma criança poderia ter previsto, a rebelião anticolonial irrompeu, tendo como suas primeiras vítimas oito palestinos assassinados. Sharon foi levado ao poder essencialmente para “subjugar” os palestinos, dar-lhes uma lição, livrar-se deles. Seu histórico como matador de árabes data de trinta anos, antes dos massacres de Sabra e Shatila, supervisionados por suas forças em 1982 e pelos quais foi indiciado numa corte belga. Ainda assim, Arafat quer negociar com ele e chegar, talvez, a um arranjo cômodo para salvaguardar a própria Autoridade sob seu comando, que Sharon sistematicamente está desmantelando, destruindo, arrasando.
Mas ele tampouco é um bobo. A cada ato de resistência palestina, suas forças aumentavam a pressão um pouco mais, apertando cada vez mais o cerco; tomando mais terra; tornando um hábito incursões mais profundas e em maior número, em cidades palestinas como Jenin e Ramallah; cortando mais suprimentos; abertamente assassinando líderes palestinos; tornando a vida mais intolerável; redefinindo os termos das ações do seu governo, que certa vez fez “concessões generosas” enquanto “defendia” a si mesmo; que “previne” o terrorismo; que dá “segurança” a certas áreas; que “restabelece” o controle; e assim por diante. Ao mesmo tempo, ele e seus lacaios atacam e desumanizam Arafat, chegando a ponto de dizer que ele é um “arquiterrorista” (apesar de ele literalmente não poder se mover sem a permissão de Israel), e que “nós” não estamos em nenhuma guerra contra o povo palestino. Que dádiva para aquele povo! Com tal “comedimento”, por que uma invasão maciça, cuidadosamente divulgada para aterrorizar os palestinos ainda mais sadicamente, seria necessária? Israel sabe que pode retomar seus edifícios à vontade (como mostram o roubo em grande escala da Orient House de Jerusalém, assim como o de mais nove outros edifícios, escritórios, bibliotecas e arquivos, lá e em Abu Dis), da mesma maneira pela qual quase já eliminou os palestinos como povo.
Essa é a verdadeira história da pretensa “vitimização” de Israel, construída há vários meses com cuidado premeditado e má intenção. A linguagem foi separada da realidade. Não tenham pena dos inaptos governos árabes que não podem e não farão nada para deter Israel: tenham pena do povo que carrega as feridas na pele e no corpo descarnado de seus filhos, alguns dos quais acreditam no martírio como a única saída. E Israel, presa numa campanha sem futuro, agredindo a torto e a direito, sem piedade? Como disse, em 1925, James Cousins, o poeta e crítico irlandês, o colonizador está nas garras de “preocupações falsas e egoístas, que impedem que dê atenção à evolução natural de seu próprio gênio nacional, e o desvia do caminho de aberta retidão para tortuosos atalhos do pensamento, discurso e ação desonestos, na defesa artificial de uma falsa posição”. Todos os colonizadores seguiram esse caminho, sem nada aprender e sem nada que os detenha. No final, quando os israelenses deram as costas a vinte e dois anos de ocupação do Líbano, saíram de seu território, deixando para trás um povo exausto e mutilado. Se o objetivo era atender às aspirações dos judeus, por que exigiu tantas vítimas de outro povo que não tinha absolutamente nada a ver com a perseguição e o exílio judeu?
Com Arafat e companhia no comando, não há esperança. O que faz esse homem, grotescamente se refugiando no Vaticano, em Lagos e em outros lugares distintos, pleiteando, sem dignidade nem inteligência, por observadores imaginários, por ajuda árabe, por apoio internacional, em vez de ficar com seu povo, tentando ajudá-lo com suprimentos médicos, medidas para levantar seu moral e agindo como uma verdadeira liderança? O que precisamos é de uma liderança unificada, com pessoas que estejam na região, que estejam de fato resistindo, que estejam realmente com o povo e que façam parte do povo e não de burocratas gordos, que fumam charutos, que querem seus acordos de negócios preservados, que seus passes VIP sejam renovados e que perderam todo traço de decência ou credibilidade. Uma liderança unificada que tome posição e planeje ações destinadas não a promover um retorno a Oslo (pode-se imaginar a loucura dessa ideia?), mas a ir em frente com a resistência e a libertação, em vez de confundir as pessoas com conversas sobre negociações e o estúpido Plano Mitchell.
Arafat está acabado: por que não admitimos que ele não pode nem liderar, nem planejar, nem fazer nada que faça diferença, exceto para ele próprio e seus amigos de Oslo, que se beneficiaram materialmente da miséria de seu povo? Todas as pesquisas mostram que sua presença impede que qualquer avanço se torne possível. Precisamos de uma liderança unificada para tomar decisões e não simplesmente para se humilhar diante do papa e do estúpido George W. Bush, mesmo que os israelenses estejam matando nosso heroico povo impunemente. Um líder deve liderar a resistência, refletir as realidades na área, responder às necessidades de seu povo, planejar, pensar, se expor aos mesmos perigos e dificuldades que todos vivenciam. Lutar pela libertação da ocupação israelense é a posição de todo palestino que tem algum valor: Oslo não pode ser reconstituído ou reelaborado, como Arafat e companhia poderiam querer. O tempo acabou para eles, e o quanto antes fizerem as malas e se forem, melhor será para todos.
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