11 de janeiro de 2001

As maravilhas de Walter Benjamin

J. M. Coetzee


January 11, 2001 issue

Resenhas:

Selected Writings, Volume 1: 1913-1926 Edmund Jephcott, Harry Zohn, and others.
by Walter Benjamin, edited by Marcus Bullock, edited by Michael W. Jennings. Translated from the German by Rodney Livingstone, Stanley Corngold,

Selected Writings,Volume 2: 1927-1934
by Walter Benjamin, edited by Michael W. Jennings, edited by Howard Eiland, edited by Gary Smith. Translated from the German by Rodney Livingstone and others.

The Arcades Project
by Walter Benjamin, Translated from the German and French by Howard Eiland and Kevin McLaughlin

I

A história já é tão conhecida que quase não precisa ser contada. O cenário é a fronteira franco-espanhola, em 1940. Fugindo da França ocupada, Walter Benjamin apresenta-se para a esposa de um certo Fittko, que conhecera num campo de detenção. Soube, diz ele, que Frau Fittko poderia guiá-lo com seus companheiros na travessia dos Pireneus para a Espanha neutra. Ela o leva em uma caminhada para fazer o reconhecimento das melhores rotas; ele carrega uma pasta pesada. A pasta é mesmo necessária? — pergunta ela. Contém um manuscrito, ele responde. "Não posso correr o risco de perder isto. Precisa ser salvo. É mais importante do que eu". 

No dia seguinte atravessam as montanhas, Benjamin parando a cada poucos minutos por causa do coração fraco. Na fronteira, são detidos. Os papéis não estão em ordem, diz a polícia espanhola; têm de voltar para a França. Em desespero, Benjamin toma uma overdose de morfina. A polícia faz um inventário dos pertences do morto. No inventário não há nenhum registro de um manuscrito. 

O que havia na pasta e como desapareceu, só podemos especular. Gershom Scholem, amigo de Benjamin, sugeriu que era a última revisão do inacabado Passagen-Werk [Trabalho das passagens], conhecido em inglês como Arcades project. ("Para grandes escritores", escreveu Benjamin, "uma obra terminada pesa menos que aqueles fragmentos em que trabalharam a vida inteira".) O esforço heróico, embora inútil, de salvar seu manuscrito das fogueiras do fascismo, levando-o a salvo para a Espanha e em seguida para os Estados Unidos, torna Benjamin um ícone do scholar para o nosso tempo. 

A história tem uma virada feliz. Uma cópia do manuscrito deixada em Paris fora escondida na Bibliotèque Nationale por George Bataille, amigo de Benjamin. Recuperado depois da guerra, foi publicado em 1982 em sua forma original, isto é, em alemão e com enormes trechos em francês. Agora temos a magnum opus de Benjamin em tradução integral para o inglês, e estamos ao menos em posição de fazer a pergunta: por que tanto interesse por um tratado sobre compras na França do século XIX? 

Benjamin nasceu em 1892, em Berlim, numa família judia assimilada. O pai era um bem-sucedido leiloeiro de arte que expandiu suas atividades para o ramo de investimento em propriedades; para a maioria dos padrões, os Benjamin eram abastados. Aos 12 anos, depois de uma infância doentia e cercada de cuidados, Benjamin foi enviado para um colégio interno progressista no campo, onde sofreu a influência de um de seus diretores, Gustav Wyneken. Após deixar a escola, militou por muito tempo no movimento juvenil antiautoritário de retorno à natureza liderado por Wyneken, e só o deixou quando este declarou apoio à I Guerra Mundial. 

Em 1912 Benjamin matriculou-se na Universidade de Freiburg como estudante de filologia. Ao concluir que o ambiente intelectual não lhe apetecia, lançou-se no ativismo pela reforma educacional. Quando a guerra eclodiu, furtou-se ao serviço militar primeiro fingindo um problema de saúde e depois mudando-se para a Suíça neutra. Ali ficou até 1920, lendo filosofia e trabalhando em uma dissertação de doutoramento para a Universidade de Berna. Sua esposa reclamava que eles não tinham vida social. 

Benjamin tinha atração por universidades assim como Kafka por companhias de seguro, observou seu amigo Theodor Adorno. Apesar dos escrúpulos, Benjamin cumpriu todos os passos exigidos para obter a Habilitation (doutorado superior) que lhe permitiria tornar-se professor, e em 1925 submeteu à Universidade de Frankfurt sua dissertação sobre o drama barroco alemão. Surpreendentemente, a dissertação não foi aceita: ficava entre as cadeiras de literatura e filosofia, e Benjamin não contava com um orientador preparado para encaminhar o seu caso. Fracassados seus planos acadêmicos, Benjamin lançou-se numa carreira de tradutor, radialista e jornalista free-lance. Uma das suas encomendas foi a tradução de À Ia recherche de Proust; três dos sete volumes foram terminados. 

Em 1924 Benjamin visitou Capri, na época o reduto de férias favorito dos intelectuais alemães. Lá conheceu Asja Lacis, diretora de teatro da Letônia e comunista engajada. O encontro foi decisivo. "Toda vez que experimentei um grande amor, passei por uma transformação tão fundamental que assombrava a mim mesmo", escreveu em retrospecto. "Um amor genuíno me faz ficar parecido com a mulher que eu amo." Nesse caso, a transformação implicou uma mudança de rumo político. "Para pessoas progressistas em seu juízo perfeito, o caminho do pensamento leva a Moscou, não à Palestina", disse-lhe Lacis incisivamente. Todos os traços de idealismo do seu pensamento, para não falar do seu flerte com o sionismo, tiveram de ser abandonados. Seu amigo do peito Scholem já havia emigrado para a Palestina e esperava que ele o seguisse. Benjamin achou uma desculpa para não ir; ficou dando desculpas até o fim. 

Em 1926 Benjamin viajou a Moscou para um encontro com Lacis. Ela não o recebeu calorosamente (estava envolvida com outro homem). Em seu registro da visita Benjamin revolve o seu infeliz estado de espírito, bem como se pergunta se deveria ou não se filiar ao Partido Comunista e submeter-se à sua linha. Dois anos depois eles se reuniram brevemente em Berlim: viviam juntos e freqüentavam as reuniões da Liga dos Escritores Revolucionários-Proletários. A ligação precipitou a ação de divórcio em que Benjamin se comportou com notável mesquinharia para com sua mulher. 

Na viagem a Moscou, Benjamin manteve um diário que depois revisou para publicação. Ele não falava russo. Em vez de recorrer a intérpretes, tentou ler Moscou a partir de fora — o que depois designaria como seu "método fisiognômico" —, esquivando-se de abstração ou julgamento e apresentando a cidade de uma tal forma que "toda factualidade já é teoria" (a frase é de Goethe). Algumas das proposições de Benjamin sobre a experiência "histórico-mundial" que ele vê em curso na União Soviética hoje parecem ingênuas. Mesmo assim, permanece o seu olhar afiado. Muitos dos novos moscovitas ainda são camponeses — observa — vivendo vidas de aldeia em ritmos de aldeia; a distinção de classes pode ter sido abolida, mas dentro do Partido está se engendrando um novo sistema de castas. Uma cena num mercado de rua capta o status degradado da religião: um ícone à venda flanqueado por retratos de Lênin "como um prisioneiro entre dois policiais". 

Embora Asja Lacis seja uma constante presença de fundo no "Diário de Moscou" e Benjamin insinue que suas relações sexuais eram problemáticas, dá-se ali pouca idéia da pessoa física de Lacis. Como escritor, Benjamin não tinha o dom de evocar as pessoas. Nos escritos de Lacis temos uma impressão muito mais viva do próprio Benjamin: seus óculos como pequenos refletores, suas mãos desajeitadas. Pelo resto de sua vida Benjamin se intitulou como um comunista ou um companheiro de viagem. Mas quão profundo terá sido o seu caso com o comunismo? 

Durante anos depois de conhecer Lacis, Benjamin repetiria sentenças marxistas sem ter lido Marx — "a burguesia [...] está condenada ao declínio em razão de contradições internas que se tornarão fatais à medida que se desenvolverem". "Burguesa" tornou-se o seu anátema para uma mentalidade — materialista, acomodada, egoísta, pudica e acima de tudo autocomplacente — à qual ele era visceralmente hostil. Proclamar-se comunista era um ato de se postar, moral e historicamente, contra a burguesia e sua própria origem burguesa. "Uma coisa [...] jamais poderá ser consertada: ter deixado de fugir de meus pais", escreve Benjamin em Rua de mão única, a coleção de anotações de diário, relatos de sonhos, aforismos, mini-ensaios e mordazes observações sobre a Alemanha de Weimar com a qual se deu a conhecer em 1928 como um intelectual free-lance. Não ter fugido de casa cedo o bastante significava que ele estava condenado a fugir de Emil e Paula Benjamin pelo resto da vida: ao reagir contra a prontidão de seus pais em se assimilar à classe média alemã, ele se igualava a muitos judeus germanófonos de sua geração, inclusive Kafka. O que incomodava os amigos de Benjamin em seu marxismo era que parecia haver nele algo de forçado ou meramente reativo. 

As primeiras incursões de Benjamin pelo discurso da esquerda são deprimentes de se ler. Há um deslize para o que só se pode chamar de estupidez voluntária quando ele tece rapsódias sobre Lênin (cujas cartas têm "a melodiosidade da grande épica", diz em um texto não incluído nos Selected writings da Harvard) ou recita os execráveis eufemismos do Partido: 

O comunismo não é radical. Portanto, não tem intenção de simplesmente abolir as relações familiares. Ele meramente põe à prova essas relações para determinar sua capacidade de mudança. Ele pergunta a si mesmo: a família pode ser desmantelada de modo que seus componentes possam ser socialmente refuncionalizados?

Essas palavras vêm de uma resenha de uma peça de Brecht, que Benjamin conheceu por intermédio de Lacis e cujo "pensamento rude", despido de amenidades burguesas, atraiu Benjamin por algum tempo. "Esta rua se chama Asja Lacis em honra daquela que como um engenheiro a abriu através do autor", diz a dedicatória de Rua de mão única. A comparação tem um intento elogioso. O engenheiro é o homem ou mulher do futuro, aquele que, impaciente com palavrório e provido de conhecimento prático, age, e age decisivamente para transformar a paisagem (Stálin também admirava os engenheiros: para ele os escritores deviam se tornar engenheiros das almas humanas, no sentido de tomar como tarefa sua "refuncionalizar" a humanidade de dentro para fora). 

Um dos textos mais conhecidos de Benjamin, "O autor como produtor" (1934), demonstra muito claramente a influência de Brecht. Em questão, a velha ladainha da estética marxista: o que é mais importante, forma ou conteúdo? Benjamin propugna que uma obra literária será "politicamente correta somente se for também literariamente correta". "O autor como produtor" é uma defesa da ala esquerdista da vanguarda modernista, tipificada para Benjamin pelos surrealistas, contra a linha do Partido em matéria de literatura, com seu pendor para histórias realistas facilmente compreensíveis e com acentuada propensão progressista. Para defender sua causa, Benjamin se sente obrigado a apelar mais uma vez para o glamour da engenharia: o escritor, como o engenheiro, é um especialista técnico e deveria ter voz em questões técnicas. 

Discutir nesse nível tão tosco não era fácil para Benjamin. Sua fidelidade ao Partido não lhe causava nenhum mal-estar num momento em que a perseguição de artistas por Stálin estava a pleno vapor? (A própria Asja Lacis viria a se tornar uma das vítimas de Stálin, passando anos num campo de trabalho.) Um breve texto do mesmo ano pode fornecer uma pista. Ali Benjamin zomba dos intelectuais que "fazem de ponto de honra ser inteiramente eles mesmos em todas as questões", recusando-se a entender que para ser bem-sucedidos têm de apresentar faces diferentes para públicos diferentes. São, diz ele, como um açougueiro que se recusa a cortar uma carcaça, insistindo em vendê-la inteira. 

Como ler esse texto? Benjamin está ironicamente louvando a antiquada integridade intelectual? Está confessando veladamente que ele, Walter Benjamin, não é o que parece ser? Está fazendo uma colocação prática, mesmo que amarga, sobre a vida do escritor de aluguel? Uma carta a Scholem (a quem no entanto ele nem sempre conta toda a verdade) sugere a última leitura. Ali Benjamin defende seu comunismo como "a óbvia, razoável tentativa de um homem que está completamente ou quase completamente privado de quaisquer meios de produção de proclamar seu direito a eles". Em outras palavras, ele segue o Partido pela mesma razão que move qualquer proletário: porque é de seu interesse material. 

II

Na época em que os nazistas chegaram ao poder, muitos dos companheiros de Benjamin, inclusive Brecht, constataram o inevitável e fugiram. Benjamin, que de qualquer forma há muito se sentia deslocado na Alemanha e passava temporadas na França ou em Ibiza sempre que podia, logo os acompanhou (seu irmão mais novo, Georg, foi menos prudente: preso por atividades políticas em 1934, pereceu em Mauthausen em 1942). Ele se estabeleceu em Paris, onde levou uma existência precária colaborando para jornais alemães (sob pseudônimos que soavam arianos: Detlef Holz, K. A. Stempflinger) e do contrário vivendo de doações. Com a eclosão da guerra ele se viu detido como estrangeiro inimigo. Solto graças a instâncias do PEN francês, imediatamente fez arranjos para fugir para os Estados Unidos, partindo assim em sua viagem fatal rumo à fronteira espanhola. 

Os insights mais agudos de Benjamin sobre o fascismo, esse inimigo que o privou de um lar e de uma carreira e que acabou por matá-lo, dizem respeito ao expediente por ele usado para vender-se ao povo alemão: transformar-se a si próprio em teatro. Esses insights estão mais plenamente expressos em "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tecnológica" (para usar o título preferido pelos tradutores dos Selected writings), de 1936, mas são prenunciados numa resenha de 1930 sobre a coletânea Guerra e guerreiros, organizada por Ernst Jünger. É lugarcomum observar que os comícios de Hitler em Nuremberg, com sua combinação de declamação, música hipnótica, coreografia de massa e iluminação dramática, encontraram seu modelo nas produções de Wagner em Bayreuth. O que é original em Benjamin é a sua proposição de que a política como teatro grandioso, mais que como debate, não era apenas uma armadilha do fascismo, mas fascismo em essência. 

Nos filmes de Leni Riefensthal, assim como nos documentários de atualidades exibidos em todos os cinemas do país, as massas alemãs recebiam imagens de si mesmas conforme seus líderes determinavam que fossem. O fascismo usou o poder da arte do passado — o que Benjamin chama de "arte aurática" — somado ao poder multiplicador das novas mídias pós-auráticas, o cinema sobretudo, para criar seus novos cidadãos fascistas. Para os alemães comuns, a única identidade à mostra, aquela que olhava de volta para eles da tela, era a identidade fascista em uniforme fascista e com posturas fascistas de dominação ou obediência. 

A análise de Benjamin sobre o fascismo como teatro suscita muitas questões. O cerne do fascismo alemão de fato residiria antes na política como espetáculo do que no ressentimento e nas aspirações de revide histórico? Se Nuremberg era política estetizada, por que não o seriam igualmente as extravanganzas e os julgamentos-espetáculo do 1° de Maio de Stálin? Se a marca do fascismo foi a supressão da divisa entre política e mídia, onde estaria o elemento fascista na política midiática das democracias ocidentais? Não haveria diversas modalidades de política estética? 

O conceito-chave que Benjamin inventa (embora no seu diário insinue que na verdade foi idéia original da livreira e editora Adrienne Monnier) para descrever o que acontece com a obra de arte na era de sua reprodutibilidade tecnológica (principalmente a era da câmera: Benjamin tem pouco a dizer acerca dos processos de impressão) é o da perda da aura. Até meados do século XIX, diz ele, persistia uma relação propriamente intersubjetiva entre a obra de arte e seu espectador: o espectador olhava e a obra de arte, por assim dizer, olhava de volta. "Perceber a aura de um fenômeno [significa] investi-lo da capacidade de nos olhar de volta." Há assim algo de mágico na aura, derivado de elos remotos, ora evanescentes, entre arte e ritual religioso. 

Benjamin fala pela primeira vez em aura na sua "Pequena história da fotografia" (1931), em que tenta explicar por que (a seus olhos) os primeiríssimos retratos fotográficos — incunábulos da fotografia, por assim dizer — têm aura, ao passo que as fotografias da geração posterior a perderam. Em "A obra de arte" a noção de aura é um tanto temerariamente estendida das velhas fotografias para as obras de arte em geral. O fim da aura, diz Benjamin, será mais que compensado pelas capacidades emancipatórias das novas tecnologias de reprodução. O cinema substituirá a arte aurática. 

Até mesmo os amigos de Benjamin achavam difícil apreender a aura. Brecht, a quem Benjamin expusera o conceito durante longas visitas à sua casa na Dinamarca, escreve o seguinte em seu diário: 

[Benjamin] diz: quando você sente o olhar de alguém pousar em você, mesmo às suas costas, você reage (!). A expectativa de que tudo o que você olha está olhando para você cria a aura [...]. Tudo muito místico, apesar das atitudes antimísticas dele. E assim que a abordagem materialista da história é adaptada! Isso é um tanto chocante. 

Outros amigos não foram mais encorajadores. 

Ao longo dos anos 1930 Benjamin se empenhou para desenvolver uma definição plausivelmente materialista de aura e perda de aura. O filme é pós-aurático, diz ele, porque a câmera, sendo um instrumento, não pode ver (uma asserção questionável: os atores certamente reagem à câmera como se ela estivesse olhando para eles). Numa revisão posterior, Benjamin sugere que o fim da aura pode ser fixado no momento da história em que as multidões urbanas ficam tão densas que as pessoas — os passantes — não mais retribuem o olhar alheio. No Trabalho das passagens ele insere a perda da aura num processo histórico mais amplo: a propagação de uma desencantada conscientização de que a unicidade, inclusive a da obra de arte tradicional, converteu-se numa mercadoria como outra qualquer. Aponta nessa direção a indústria da moda, dedicada à fabricação de trabalhos manuais únicos — "criações" — destinados à reprodução em massa. 

Benjamin não estava especialmente interessado no romance como gênero. Como evidenciado pelos relatos pessoais incluídos no segundo volume dos Selected writings, ele não tinha talento como escritor de narrativas. Seus escritos autobiográficos são construídos a partir de momentos intensos e descontínuos. Seus dois ensaios sobre Kafka tratamno mais como um parabolista e professor de sabedoria do que como um escritor. Mas a hostilidade mais insistente de Benjamin era reservada para a história narrativa: "A história se decompõe em imagens, não em narrativas", escreveu. A história narrativa impõe causalidade e determinação a partir de fora, e as coisas deveriam ter uma chance de falar por si mesmas. 

"Infância em Berlim por volta de 1900", a obra autobiográfica mais interessante de Benjamin, inédita durante sua vida, aparecerá no terceiro volume dos Selected writings. O que temos no volume 2 é a anterior "Crônica berlinense", também escrita à sombra de Proust. Apesar do título, esse texto não é construído cronologicamente, mas como uma montagem de fragmentos do passado intercalados com reflexões sobre a natureza da autobiografia, de modo que se trata mais das vicissitudes da memória do que de eventos reais da sua infância. Benjamin usa uma metáfora arqueológica para explicar sua oposição à autobiografia como a narrativa de uma vida. O autobiógrafo deveria pensar em si mesmo como um escavador, diz ele, cavando mais e mais fundo nos mesmos poucos lugares em busca das ruínas enterradas do passado. 

Além do "Diário de Moscou" e da "Crônica berlinense", os dois volumes em pauta contêm algumas outras peças autobiográficas: um relato mais propriamente literário sobre ficar esperando uma amante que não aparece, registros de experiências com haxixe, transcrições de sonhos, fragmentos de diário (Benjamin estava preocupado com o suicídio em 1931 e 1932) e um diário de Paris trabalhado para publicação, que inclui uma excursão a um bordel masculino freqüentado por Proust. Entre as revelações mais surpreendentes, uma admiração por Hemingway ("uma lição de como pensar direito por escrever correto") e uma antipatia por Flaubert (arquitetônico demais). 

Os fundamentos da filosofia da linguagem de Benjamin foram estabelecidos no começo de sua carreira. No ensaio-chave "Sobre a linguagem enquanto tal e sobre a linguagem do homem" (1916) ele argumenta que a palavra não é um mero signo, um substituto para algo, mas o nome de uma Idéia. Em "A tarefa do tradutor" (1921) ele tenta dar corpo à sua idéia da Idéia recorrendo ao exemplo de Mallarmé e a uma linguagem poética libertada de sua função comunicativa. Não fica claro como um conceito de linguagem simbolista poderia jamais ser reconciliado com o posterior materialismo histórico de Benjamin, mas ele sustentou que uma ponte podia ser construída, "por mais forçada e problemática que essa ponte pudesse ser". Em seus ensaios literários dos anos 1930 ele dá uma idéia sobre com o quê tal ponte poderia se parecer. Em Proust, em Kafka, nos surrealistas, a palavra, diz ele, recua da significação no sentido "burguês" e retoma seu elementar poder gestual. Assim, n'O castelo os dois ajudantes do agrimensor K. projetam seus estados fetais entrelaçando os membros sempre que podem e se embolando um com o outro. O gesto é "a forma suprema em que a verdade pode nos aparecer numa era desprovida de doutrina teológica". 

No tempo de Adão, a palavra e o gesto de nomear eram a mesma coisa. Desde então a linguagem sofreu uma longa queda, da qual Babel foi apenas um estágio. A tarefa da teologia é recuperar a palavra, em todo o seu poder mimético originário, dos textos sagrados em que ela foi preservada. A tarefa da crítica não é essencialmente diferente, pois linguagens decaídas ainda podem, na totalidade de suas intenções, nos apontar para a linguagem pura. Daí o paradoxo de "A tarefa do tradutor": uma tradução é superior a seu original, no sentido de que remete à linguagem anterior a Babel. 

Benjamin escreveu diversos textos sobre astrologia, os quais constituem importantes apêndices a seus escritos sobre a filosofia da linguagem. A ciência astrológica que temos hoje, diz ele, é uma versão degenerada de um corpo de conhecimento de tempos remotos, quando a faculdade mimética, sendo muito mais vigorosa, permitia correspondências realmente imitativas entre as vidas dos seres humanos e os movimentos das estrelas. Hoje só as crianças preservam e aplicam um poder mimético comparável. 

Em ensaios datados de 1933 Benjamin esboça uma teoria da linguagem baseada na mimese. A linguagem adâmica era onomatopaica, diz ele. Sinônimos de línguas diferentes, embora possam não soar ou parecer semelhantes (a teoria pretende funcionar tanto para a linguagem escrita quanto para a falada), têm semelhanças "não-sensoriais" com o que significam, conforme sempre o reconheceram teorias da linguagem "místicas" ou "teológicas". Embora superficialmente diferentes, as palavras pain, Brot e xleb são semelhantes num nível mais profundo ao corporificarem a Idéia de pão. (Persuadir-nos de que essa proposição não é tão vã quanto parece demanda o máximo das capacidades de Benjamin.) A linguagem, que constitui o desenvolvimento supremo da faculdade mimética, carrega consigo um arquivo dessas semelhanças não-sensoriais. A leitura tem o potencial de se tornar uma espécie de experiência onírica que dá acesso a um inconsciente humano comum, o lugar da linguagem e das Idéias. 

A abordagem de Benjamin acerca da linguagem está em total descompasso com a ciência lingüística do século XX, mas lhe propicia um majestoso acesso ao mundo do mito e da fábula, particularmente ao primevo, quase pré-humano, "mundo pantanoso" de Kafka, conforme ele o concebe. Uma intensiva leitura de Kafka iria deixar marcas indeléveis nos últimos — e pessimistas — escritos de Benjamin. 

III 

A história do Trabalho das passagens é mais ou menos a seguinte. No final dos anos 1920 Benjamin concebeu uma obra inspirada nas passagens de Paris, que trataria da experiência urbana. Seria uma versão da história da Bela Adormecida, um conto de fadas dialético narrado surrealisticamente por meio de uma montagem de textos fragmentários: como o beijo do príncipe, a obra despertaria as massas européias para a verdade de suas vidas sob o capitalismo. Ao se preparar para redigir o que imaginava como algo em torno de cinqüenta páginas, Benjamin começou a copiar citações de suas leituras sob títulos como Tédio, Moda, Poeira. Mas à medida que ele as articulava ao texto as páginas se dilatavam cada vez mais com novas citações e notas. Ele discutiu seus problemas com Adorno e Horkheimer, que o convenceram de que não podia escrever sobre o capitalismo sem um domínio adequado de Marx. A idéia da Bela Adormecida perdeu o brilho. 

Em 1934 Benjamin tinha um novo plano, filosoficamente mais ambicioso: usando o mesmo método de montagem, remeteria a superestrutura cultural da França do século XIX às mercadorias e seu poder de se tornar fetiches. Uma vez que suas notas se avolumavam, passou a dispô-las num complexo sistema de arquivo baseado em 36 "convolutas" (do alemão Konvolut: maço, dossiê) com palavras-chave e referências cruzadas. Sob o título "Paris, capital do século XIX" redigiu um résumé do material que havia reunido, o qual submeteu a Adorno (à época Benjamin recebia um estipêndio — e portanto estava em alguma medida devedor — do Instituto de Pesquisa Social, que Adorno e Horkheimer haviam transferido de Frankfurt para Nova York). Recebeu dele uma crítica tão severa que resolveu deixar de lado o projeto por um tempo e extrair da sua massa de materiais um livro sobre Baudelaire. Adorno leu parte do livro e mais uma vez foi crítico: os fatos eram deixados a falar por si mesmos, disse-lhe — não havia teoria suficiente. Benjamin fez várias revisões, que tiveram uma recepção mais cálida. Baudelaire era figura central para o projeto das Passagens porque n'As flores do mal ele pela primeira vez teria revelado a cidade moderna como um assunto para poesia. (Benjamin parece não ter lido Wordsworth, que cinqüenta anos antes de 

Baudelaire escrevera sobre como era fazer parte de uma multidão de rua, bombardeado por olhares de todos os lados, aturdido com anúncios.) Contudo, Baudelaire expressara sua experiência da cidade em alegoria, um modo literário fora de moda desde o período barroco. Em "O cisne", por exemplo, ele alegoriza o poeta como um nobre pássaro patinando comicamente no chão pavimentado do mercado, incapaz de abrir as asas e levantar vôo. Por que Baudelaire optou pelo modo alegórico? Benjamin usa O capital de Marx para responder à sua própria pergunta. 

A promoção do valor de mercado a única medida de riqueza, diz Marx, reduz a mercadoria a nada mais do que um signo — o signo do valor pelo qual será vendida. Sob o reinado do mercado as coisas têm a ver com seu valor real tão arbitrariamente quanto, por exemplo, uma caveira tem a ver com a sujeição do homem ao tempo na emblemática barroca. Emblemas assim fazem uma inesperada reaparição no palco histórico na forma de mercadorias, que sob o capitalismo não são mais o que parecem, mas, como advertiu Marx, sobejam "em sutilezas metafísicas e amenidades teológicas". A alegoria, argumenta Benjamin, é o modo exatamente certo para uma era de mercadorias. 

Enquanto trabalhava no jamais terminado livro sobre Baudelaire, Benjamin continuava tomando notas para o projeto das Passagens e a acrescentar novas convolutas. Os papéis recuperados do seu esconderijo na Bibliothèque Nationale depois da guerra somavam cerca de novecentas páginas de extratos, sobretudo de autores do século XIX mas também de contemporâneos de Benjamin, agrupados sob títulos e com comentários intercalados, além de uma variedade de planos e sinopses. Esse material foi publicado em 1982 na Alemanha como Passagen-Werk, com edição de Rolf Tiedemann. O Arcades project da Harvard usa o texto de Tiedemann mas omite muito de seu material de fundo e seu aparato crítico. Traduz todo o francês para o inglês e acrescenta notas de apoio, além de uma profusão de ilustrações. É um belo livro e um triunfo de engenhosidade tipográfica no trato com as complexas referências cruzadas de Benjamin. 

A história do Trabalho das passagens — uma história de procrastinações e falsas largadas, de perambulações por labirintos arquivísticos na busca de exaustividade tão característica do temperamento colecionador, de fundamentações teóricas movediças, de crítica exercida precipitadamente e, em termos gerais, de um Benjamin que não sabia aonde queria chegar — denota que o livro que nos restou é radicalmente incompleto: incompletamente concebido e dificilmente composto em qualquer acepção convencional. Tiedemann o compara aos materiais de construção de uma casa. Na hipotética casa terminada esses materiais teriam sido juntados pelo pensamento de Benjamin. Retemos boa parte desse pensamento na forma das interpolações de Benjamin, mas nem sempre podemos ver como o pensamento encaixa ou abrange os materiais. Sob tais condições, diz Tiedemann, talvez tivesse sido melhor publicar apenas as palavras de Benjamin, deixando de fora as citações. Mas a intenção de Benjamin, por mais utópica que fosse, era que em algum ponto o seu comentário seria discretamente removido, deixando o material citado sustentar todo o peso da estrutura. 

As passagens de Paris, diz um guia de 1852, 

são bulevares internos [...], corredores com teto de vidro e painéis de mármore que se estendem por quarteirões inteiros de edifícios [...]. Ladeando ambos os lados [...] estão as lojas mais elegantes, de forma que uma tal passagem é uma cidade, um mundo em miniatura.

A arquitetura aérea de vidro e aço logo foi imitada em outras cidades do Ocidente. O auge das passagens se estendeu até o final do século, quando foram eclipsadas pelas lojas de departamentos. O livro das Passagens nunca foi pensado como uma história econômica (embora parte de sua ambição fosse funcionar como corretivo para toda a disci- plina da história econômica). Um esboço inicial sugere algo muito mais parecido com "Infância em Berlim": 

Sabia-se de lugares na Grécia antiga onde o percurso conduzia ao mundo inferior. Nossa existência em vigília é igualmente uma terra que, em certos pontos ocultos, conduz ao mundo inferior — uma terra repleta de lugares inconspícuos de onde brotam os sonhos. O dia inteiro, sem nada suspeitar, passamos por eles, mas tão logo vem o sono nos vemos ansiosamente tateando o caminho de volta para nos perder em seus escuros corredores. Durante o dia, o labirinto de moradas urbanas parece com a consciência; as passagens [...] fluem despercebidas para as ruas. A noite, porém, sob a tenebrosa massa das casas, sua escuridão carregada projeta-se como uma ameaça e o pedestre noturno passa depressa — a menos porém que o tenhamos imbuído de ousadia para enveredar pelo caminho estreito. 

Dois livros serviram de modelo a Benjamin: Un paysan de Paris [Um camponês de Paris], de Louis Aragon, com seu afetuoso tributo à Passage de l'Opéra, e Spazieren in Berlin [Passeando em Berlim], de Franz Hessel, que enfoca a Kaisersgalerie e seu poder de evocar a sensação de uma era passada. Em seu livro Benjamin tentaria captar a "fantasmagórica" experiência do parisiense vagando entre vitrines de mercadorias, uma experiência ainda recuperável em seus dias, quando "as passagens pontilham a paisagem metropolitana como cavernas que contêm os restos fossilizados de um monstro desaparecido: o consumidor da era pré-industrial do capitalismo, o último dinossauro da Europa". 

A grande inovação do Trabalho das passagens estaria em sua forma. Funcionaria sobre o princípio da montagem, justapondo fragmentos textuais do passado e do presente na expectativa de que eles, faiscando entre si, iluminassem uns aos outros. Assim, por exemplo, se o item 2.1 da convoluta L, que se refere à abertura de um museu de arte no Palácio de Versalhes em 1837, for lido em conjunção com o item 2.4 da convoluta A, que delineia a transição das passagens para as lojas de departamentos, então a analogia "o museu está para a loja de departamentos como a obra de arte para a mercadoria" idealmente irá lampejar na mente do leitor. 

Segundo Max Weber, o que marca o mundo moderno é a perda de crença, o desencantamento. Benjamin tem um ângulo diferente: o capitalismo pôs as pessoas para dormir, e elas só despertarão de seu encantamento coletivo quando forem levadas a entender o que lhes aconteceu. A inscrição da convoluta N vem de Marx: "A reforma da consciência consiste tão-somente em [...] despertar o mundo de seu sonho sobre si mesmo". Os sonhos da era capitalista estão corporificados nas mercadorias. Estas, em seu conjunto, constituem uma fantasmagoria, constantemente mudando de forma de acordo com as marés da moda e oferecidas a multidões de idólatras encantados como a corporificação de seus desejos mais profundos. A fantasmagoria sempre esconde as suas origens (que residem no trabalho alienado). A fantasmagoria em Benjamin é, assim, um pouco como a ideologia em Marx — um tecido de mentiras públicas sustentadas pelo poder do capital —, mas está mais para o trabalho do sonho freudiano operando em âmbito coletivo, social. 

"Não preciso dizer nada. Apenas mostrar" — diz Benjamin. E em outro ponto: "As idéias estão para os objetos como as constelações estão para as estrelas". Se o mosaico de citações é construído corretamente deve emergir um padrão, um padrão que é mais que a soma de suas partes mas não pode existir independentemente delas: essa é a essência da nova forma de composição materialista histórica que Benjamin acreditava estar praticando. O que desalentava Adorno quanto ao projeto era a fé de Benjamin em que uma mera assemblage de objetos (no caso, citações descontextualizadas) pudesse falar por si mesma: Benjamin estava "na encruzilhada entre magia e positivismo", escreveu ele em 1935. Adorno teve a oportunidade de ver todo o corpus das Passagens em 1948, e mais uma vez expressou dúvidas sobre a densidade da sua teorização. 

A reação de Benjamin a críticas desse tipo foi inventar a noção de imagem dialética, e para isso voltou-se à emblemática do barroco — idéias representadas por imagens — e à alegoria baudelairiana — a interação de idéias substituída pela interação de objetos emblemáticos. A alegoria, sugeriu ele, poderia assumir o papel do pensamento abstrato. Os objetos e figuras que habitam as passagens — jogadores, prostitutas, espelhos, poeira, figuras de cera, bonecas mecânicas — são (para Benjamin) emblemas, e suas interações geram significados que não precisam da intromissão da teoria. Na mesma linha, fragmentos de textos tomados do passado e colocados no campo carregado do presente histórico são capazes de se comportar à maneira dos elementos de uma imagem surrealista, interagindo espontaneamente para fornecer energia política. ("Os eventos que cercam o historiador e nos quais ele toma parte", escreveu Benjamin, "fundamentariam sua representação como um texto escrito com tinta invisível.") Assim é que os fragmentos constituem a imagem dialética, movimento dialético momentaneamente congelado, aberto à inspeção, "dialética em suspenso". "Apenas imagens dialéticas são imagens genuínas." 

Não é preciso dizer mais sobre a teoria, engenhosa como é, à qual apela o livro profundamente antiteórico de Benjamin. Mas para o leitor não convencido pela teoria, o leitor para quem as imagens dialéticas nunca ganham vida como deveriam, o leitor talvez não receptivo à narrativa mestra sobre o longo sono do capitalismo seguido pela aurora do socialismo, o que o Trabalho das passagens tem a oferecer? A mais breve das listas incluiria o seguinte: um rico tesouro de informações curiosas sobre Paris, uma profusão de citações intencionalmente provocantes, a coleta de uma mente aguda e idiossincrática passando sua rede de pescar por milhares de livros, observações sucintas, polidas a um alto grau de lustro aforístico, sobre uma série de assuntos caros ao autor (exemplo: "A prostituição pode ter pretensões a ser considerada 'trabalho' no momento que o trabalho se torna prostituição") e lampejos de Benjamin brincando com uma nova maneira de ver a si mesmo — como colecionador de "palavras-chave num dicionário secreto", compilador de uma "enciclopédia mágica". Inesperadamente, esse leitor esotérico de uma cidade alegórica parece próximo de seu contemporâneo Jorge Luis Borges, fabulista de um universo reescrito. 

Aos olhos de hoje, a magnum opus de Benjamin tem um curioso parentesco com outra grande ruína da literatura do século XX, os Cantos de Ezra Pound. Ambas as obras são resultado de anos de leitura babélica. Ambas são construídas a partir de fragmentos e citações e filiam-se à estética de imagem e montagem do alto-modemismo. Ambas têm ambições econômicas e economistas como figuras norteadoras (Marx num caso, Gesell e Douglas no outro). Ambos os autores investiram em corpos de conhecimento antigos cuja relevância para seus tempos superestimaram. Nenhum dos dois sabia quando parar. E ambos foram tragados pelo monstro do fascismo — Benjamin, tragicamente; Pound, vergonhosamente. 

O destino dos Cantos tem sido o de um punhado de excertos reunidos em antologias, o resto sendo placidamente ignorado. O destino das Passagens pode bem ser semelhante. Pode-se prever uma edição condensada para estudantes, extraída sobretudo das convolutas B ("Moda"), H ("O colecionador"), I ("O interior"), J ("Baudelaire"), K ("Cidade de sonho"), N ("Da teoria do conhecimento") e Y ("Fotografia"), na qual as citações serão reduzidas a um mínimo e a maior parte do texto sobrevivente será do próprio Benjamin. E isso não seria de todo mau. 

IV 

É ampla a gama de interesses representada pelos Selected writings de Benjamin. Além dos textos aqui comentados, há uma seleção de seus precoces e diligentemente idealistas escritos sobre educação; numerosos ensaios de crítica literária, incluindo dois textos longos sobre Goethe, uma interpretação d'As afinidades eletivas e um magistral panorama da carreira do poeta; excursões por vários tópicos de filosofia (lógica, metafísica, estética, filosofia da linguagem, filosofia da história); ensaios sobre pedagogia, sobre livros infantis, sobre brinquedos; um cativante texto pessoal sobre o hábito de colecionar livros; uma variedade de peças de viagem e investidas na ficção. O ensaio sobre as Afinidades eletivas se destaca como uma performance particularmente estranha: uma ária prolongada, em prosa supersutil e apurada, sobre o amor e a beleza, o mito e o destino, levada a um alto tom de intensidade pelas semelhanças secretas que Benjamin viu entre a trama do romance e a tragicômica relação erótica a quatro em que ele e sua mulher estavam envolvidos. 

As traduções são excelentes, e entre os vários tradutores merece ser destacado Rodney Livingstone, por sua discreta eficiência em lidar com as mudanças de estilo e tom que marcam a evolução de Benjamin como escritor. As notas explicativas estão próximas do mesmo alto padrão, mas não chegam lá. As informações sobre as figuras relacionadas a/por Benjamin por vezes estão ultrapassadas (como no caso de Robert Walser) ou incorretas: as datas referentes a Karl Korsch (que foi expulso do Partido Comunista Alemão por suas opiniões independentes e a quem Benjamin recorre copiosamente na sua interpretação de Marx) são dadas como 1892-1939 quando na verdade são 1886-1961. Há erros de grego e latim. 

Algumas práticas gerais dos editores e tradutores também são questionáveis aqui. Benjamin tinha o hábito de escrever parágrafos de páginas inteiras: certamente, o tradutor deveria se sentir livre para fracioná-los. Aqui e ali são incluídas duas versões do mesmo texto sem que se esclareça por quê. Para textos em alemão citados por Benjamin usam-se traduções já existentes mesmo quando estas estão claramente abaixo do padrão.

V

Quem foi Walter Benjamin? Um filósofo? Um crítico? Um historiador? Um mero "escritor"? A melhor resposta talvez seja a de Hannah Arendt: ele foi um dos "inclassificáveis [...], cuja obra não se encaixa na ordem existente nem introduz um novo gênero". 

Sua peculiar abordagem — chegar a um assunto não diretamente, mas por um ângulo, movendo-se gradativamente de um sumário perfeitamente formulado para o próximo — é tão imediatamente reconhecível quanto inimitável, apoiada em agudeza de intelecto, em uma erudição levemente desgastada e num estilo de prosa que, depois que ele desistiu de se ver como o Professor Doutor Benjamin, se tornou uma maravilha de acuidade e concisão.

Na base de seu projeto de chegar à verdade dos nossos tempos há um ideal que ele encontrou expresso em Goethe: estabelecer os fatos de tal forma que eles sejam sua própria teoria. O livro das Passagens, seja qual for nosso veredicto sobre ele — ruína, fracasso, projeto impossível —, sugere um novo modo de interpretar uma civilização, tomando por material seus refugos em vez de suas obras de arte, escrevendo a história a partir de baixo em vez de por cima. E seu apelo (nas "Teses sobre o conceito de história") por uma história centrada no sofrimento dos vencidos em vez de nas conquistas dos vencedores é profético do modo como a escrita da história começou a pensar em si mesma em nossos tempos.

JM Coetzee é professor pesquisador da Universidade de Adelaide. É autor de dezessete obras de ficção, além de inúmeras obras de crítica e tradução. Ele recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2003. (Setembro de 2019)

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