11 de novembro de 2000

Ideologia banida?

André Singer


Por força das regras deste Jornal de Resenhas não pude tomar conhecimento dos argumentos contrapostos à minha réplica por Fábio Wanderley Reis. Como não se quer dar a qualquer dos polemistas o privilégio da última palavra, fico privado da possibilidade de responder ao que você, leitor, acaba de ler.

Compreendo a intenção de manter a equidade, mas é pena que o debate seja interrompido. O tema é relevante e atual, como acabam de demonstrar as eleições municipais, em que o confronto entre esquerda e direita ficou claro em cidades do porte de São Paulo, Curitiba e Recife. Está em jogo nesta discussão saber se a oposição entre esquerda e direita (que envolve também o posicionamento ao centro, uma vez que no Brasil vigora o pluripartidarismo) merece ser levada em consideração como um dos determinantes do voto ou deve ser banida do rol de motivos que influenciam o eleitor.

Sustento no meu livro que parcela significativa do eleitorado, de acordo com pesquisas quantitativas realizadas na primeira metade da década de 90 -e reproduzidas este ano pelo Datafolha, com resultados coerentes-, possui uma percepção intuitiva da existência da divisão dos partidos e candidatos entre esquerda, centro, direita. Indico, ainda, que cerca de 80% dos eleitores aceitam se posicionar numa escala que vai de 1 a 7, sendo 1 mais à esquerda e 7 mais à direita (situação confirmada uma vez mais pelo Datafolha no "survey" divulgado pela Folha em 16/7 passado). Por fim, apresento evidências de que tal posicionamento tende a ser coerente com o voto e com determinadas opiniões, como a de ser contrário ou favorável ao uso de tropas militares para reprimir greves.

A conclusão da análise dos dados é que a variável identificação ideológica deve ser incluída como uma das que têm peso na hora de decidir o voto. Outras variáveis estruturais, como escolaridade, grau de urbanização e identificação partidária, também influenciam o eleitor, sem falar de fatores de curto prazo, como avaliação retrospectiva do governo, propostas de políticas específicas, avaliação do candidato e andamento da campanha.

A proposta que defendo em "Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro" (Edusp) não é, portanto, como disse meu crítico, "considerar "ideológico" o eleitorado brasileiro" (Jornal de Resenhas, 9/9/ 2000), mas incorporar à compreensão do voto uma variável que a ciência política até então deixava de lado.

Já o resenhista acredita que a escala esquerda-direita não tem consistência para o eleitorado, uma vez que este declara não saber o significado dos termos. Seria, assim, um equívoco raciocinar sobre as motivações do eleitor a partir de categorias que não fazem sentido para o próprio eleitor. Além de apontar a baixa capacidade deste, expressa em sua incompetência para verbalizar o significado de esquerda e direita, o crítico esgrime a dimensão cognitiva do conceito de ideologia, que remeteria para uma visão mais estruturada do universo da política, como não sendo compatível com o comportamento da massa dos votantes, cuja percepção é sabidamente fragmentada. A meu ver, nenhuma das razões trazidas à baila justificam a barreira que o resenhista quer opor à inclusão da identificação ideológica como uma das variáveis do comportamento eleitoral. Em primeiro lugar, porque os dados evidenciam que um contigente importante dos eleitores reconhece significados políticos na divisão esquerda-direita quando estimulados a isso. Aceito que o elemento cognitivo seja importante para qualificar corretamente a identificação ideológica, mas não para excluí-la do campo de visão analítica.

Em segundo lugar, o fato de que a ideologia seja uma forma de organizar o pensamento a partir de princípios abstratos, como liberdade e igualdade, utilizada em geral por quem dispõe de maior treino intelectual, não implica que ela não possa ser absorvida como sinalizadora de posicionamentos políticos por parte de uma massa de eleitores chamada a escolher entre grupos que se distribuem ao longo do espectro esquerda-direita. Ou seja, é um erro, a meu ver, desconsiderar, em nome da complexidade das categorias ideológicas, o fato de que elas também ajudam a entender a massa dos eleitores.

Esse é o fulcro da divergência. Reafirmo que, aceita a concepção do meu oponente, deixaremos de lado um dos elementos que orientam o voto nas democracias em geral e também no Brasil. Trata-se de uma discordância científica. Posta em seus devidos termos, cabe ao leitor chegar a uma conclusão.

André Singer é professor do departamento de ciência política da USP e repórter especial da Folha.

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