Hoje eleitorado revela, segundo cientista política, racionalidade similar a democracias mais desenvolvidas
Marta Arretche
Folha de S.Paulo
Folha de S.Paulo
Ilustração: Ana Elisa Egreja |
Rios de tinta foram dedicados ao comportamento desviante dos eleitores da América Latina. Com a possível exceção da Argentina e do Uruguai, aqui, os eleitores mais pobres pareciam não se revelar propensos a votar em partidos com plataformas redistributivas. Estes catalisavam com mais frequência a simpatia de eleitores progressistas mais escolarizados.
Haveria, portanto, algo radicalmente distinto no perfil do eleitor latino-americano que o impediria de se comportar como o das democracias avançadas, nas quais a renda e a escolaridade seriam bons indicadores das preferências partidárias.
Lá, à esquerda e à direita corresponderiam bases eleitorais distintas. Pobres votariam em partidos que prometem melhorar seu bem-estar ao passo que os mais afortunados votariam em partidos que prometem reduzir os impostos.
Na América Latina, diferentemente, a fragilidade programática do sistema partidário se combinaria à irracionalidade do eleitorado, que não votaria de acordo com seus interesses materiais. Há quem culpe os partidos, por não apresentarem claramente suas plataformas. Há quem culpe o eleitor, por não saber escolher seus candidatos. Mas, causas à parte, os diagnósticos convergem para afirmar nossa inferioridade em relação às democracias avançadas.
O voto econômico —isto é, preferências partidárias alinhadas à renda dos eleitores— parece ser mais evidente em países em que a desigualdade é menor, tais como as democracias europeias. Onde a desigualdade é maior, como na América Latina, não é claro que quanto mais baixa a renda dos eleitores, maior a probabilidade de voto em partidos cujas plataformas eleitorais priorizam o bem-estar da maioria.
De fato, no Brasil, partidos clientelistas obtiveram por longo tempo sucesso eleitoral nos distritos com maior concentração de população vulnerável. O fenômeno não é restrito à região Nordeste. Redutos eleitorais de partidos conservadores abunda(ra)m nas regiões mais ricas. Alguma forma de irracionalidade ou de desinformação acometeria esses eleitores, concluem os analistas.
Mas, por que apenas os eleitores latino-americanos e brasileiros se comportariam desse modo? Por que a irracionalidade seria um atributo dos trópicos? Falta de escolaridade, respondem prontamente alguns observadores.
De fato, a ciência política acumulou fartas evidências da relação positiva entre níveis de escolaridade e informação política. Mas o fato é que o apoio aos partidos com plataformas redistributivas na Europa começou a ocorrer ainda no século 19, sob baixos níveis de escolaridade.
Na democracia limitada de 1946, bem como no regime democrático atual, a associação entre renda e preferências partidárias dos eleitores ocorreu de modo gradual, à medida que a operação regular do sistema politico se adensava, também sob baixos níveis de escolaridade.
Estudo sobre as preferências dos eleitores latino-americanos publicado neste ano na World Politics por Alisha C. Holland, da Universidade Princeton, nos apresenta uma proposição útil para melhor entender o quadro eleitoral —da eleição em curso e muito provavelmente de eleições futuras.
Eleitores que não recebem benefícios sociais apresentam expectativas deprimidas. Não acreditam que seu voto poderá se converter em políticas que aumentarão seu bem-estar. Os indivíduos precisam experimentar políticas que lhes trazem benefícios tangíveis para apoiar plataformas redistributivas.
Logo, a diferença entre a América Latina e as democracias avançadas não estaria no eleitor, mas na credibilidade de que os eleitos de fato entreguem as políticas que prometem.
A Constituição de 1988 mudou muito o desenho das políticas sociais brasileiras. Até ali, só tinha direito a aposentadoria e a assistência médica quem tivesse carteira assinada, cerca de 40% da força de trabalho no final dos anos 80. Até ali, o mundo escolar era praticamente inacessível para a maioria da população.
Em 1980, 26% da população adulta brasileira era analfabeta. Ou seja, cerca de um quarto do eleitorado (potencial) não sabia ler ou escrever. Quase 22% tinham até três anos de estudo. Eram analfabetos funcionais. De cada 100 jovens que entravam na escola, apenas 55 completavam quatro anos de estudo antes dos 16 anos de idade. As chances de uma criança de origem pobre concluir o ensino fundamental eram muito menores do que aquelas das famílias de maior renda.
Em suma, as políticas sociais do regime militar produziam uma legião de excluídos permanentes. Mais que isso, esta exclusão era cumulativa. Baixa escolaridade, inserção precária no mercado de trabalho, exclusão da assistência médica e do direito a aposentadoria se superpunham sobre os mesmos indivíduos. Este era o Brasil de 40 anos atrás!
A Constituição de 88 foi o resultado de um processo inclusivo de redemocratização que erodiu alguns dos pilares desta histórica exclusão. Ao criar o SUS, eliminou as vantagens conferidas apenas aos trabalhadores com carteira assinada. Ao criar o Benefício de Prestação Continuada, garantiu um ganho ao fim da vida para trabalhadores pouco qualificados que tiveram inserção irregular no mercado de trabalho.
Ao estabelecer um piso para os benefícios previdenciários, produziu um patamar, a ser definido politicamente por ocasião da elaboração do Orçamento, abaixo do qual nenhum idoso deveria viver.
Sob os dispositivos da Constituição, incremental e sistemática incorporação foi alcançada nos últimos 30 anos. Os outrora 60% excluídos e seus familiares obtiveram ganhos incrementais de acesso ao atendimento em saúde, via SUS.
Cerca de 25% dos eleitores (estimativa para 2015) foram progressivamente incorporados à politica do salário mínimo, seja via aposentadorias ou benefícios assistenciais, seja via mercado de trabalho. Os níveis de escolaridade modificaram muito. Entre 1980 e 2010, os concluintes do fundamental completo saltaram de 3,3 milhões para 12,5 milhões; os concluintes do ensino médio passaram de 3,8 milhões para 29 milhões e o mundo universitário incluiu mais de 20 milhões de jovens.
Parece muito distante, mas precisa ser lembrado: em 1980, quase metade dos eleitores brasileiros era analfabeta ou semianalfabeta e 60% não tinha direito à assistência médica ou aposentadoria. A situação atual é muito ruim, mas sua dramaticidade deriva de uma métrica móvel. Nossas expectativas se elevam à medida que ganhos civilizatórios são obtidos.
A Constituição de 88 não foi obra dos partidos de esquerda, que eram francamente minoritários na Assembleia Constituinte. Foi resultado da percepção, também entre os conservadores, de que a democracia não seria sustentável no Brasil sem que um mínimo de proteção social fosse provida à massa de excluídos.
É muito razoável supor que a incremental inclusão inaugurada pela Constituição de 1988 tenha alterado as expectativas dos eleitores brasileiros, em particular os de baixa renda. Assim, a distribuição de preferências do eleitorado na eleição atual estaria revelando a mesma racionalidade que orienta o eleitor das democracias desenvolvidas.
Eleitores pobres tendem a preferir candidatos que apresentam plataformas orientadas ao bem-estar ao passo que eleitores mais ricos temem ser expropriados caso estes candidatos sejam eleitos.
Neste caso, a Constituição e as políticas que lhe sucederam contribuíram para minimizar expectativas deprimidas. Estas últimas seriam compatíveis com as políticas excludentes do regime militar, mas incompatíveis com algumas poucas décadas de progressiva incorporação a padrões mínimos de vida civilizada.
Sem dúvida, a gravidade de nosso quadro fiscal imporá definição de prioridades, do que decorrerá frustração de expectativas. Não é possível atender a todas as demandas. Mas a experiência das democracias avançadas, confirmada pelo insucesso do governo Temer, demonstra que políticas de austeridade requerem governos com créditos políticos para queimar. Governos com baixa legitimidade não podem se dar a este luxo.
Por isso, é certamente um equívoco interpretar esta reta final da campanha presidencial como um quadro de polarização eleitoral, entre extremos do espectro ideológico que se equivalem em termos de compromisso com os padrões de uma sociedade civilizada.
Seja a violência sofrida pelo candidato à presidente que está a frente nas pesquisas eleitorais, seja a violência que este próprio incita em seu eleitorado nos fazem duvidar de que a promessa civilizatória da Constituição de 1988 tenha sido uma conquista irreversível.
Marta Arretche é professora titular do Departamento de Ciência Politica da USP e diretora do Centro de Estudos da Metrópole.
Haveria, portanto, algo radicalmente distinto no perfil do eleitor latino-americano que o impediria de se comportar como o das democracias avançadas, nas quais a renda e a escolaridade seriam bons indicadores das preferências partidárias.
Lá, à esquerda e à direita corresponderiam bases eleitorais distintas. Pobres votariam em partidos que prometem melhorar seu bem-estar ao passo que os mais afortunados votariam em partidos que prometem reduzir os impostos.
Na América Latina, diferentemente, a fragilidade programática do sistema partidário se combinaria à irracionalidade do eleitorado, que não votaria de acordo com seus interesses materiais. Há quem culpe os partidos, por não apresentarem claramente suas plataformas. Há quem culpe o eleitor, por não saber escolher seus candidatos. Mas, causas à parte, os diagnósticos convergem para afirmar nossa inferioridade em relação às democracias avançadas.
O voto econômico —isto é, preferências partidárias alinhadas à renda dos eleitores— parece ser mais evidente em países em que a desigualdade é menor, tais como as democracias europeias. Onde a desigualdade é maior, como na América Latina, não é claro que quanto mais baixa a renda dos eleitores, maior a probabilidade de voto em partidos cujas plataformas eleitorais priorizam o bem-estar da maioria.
De fato, no Brasil, partidos clientelistas obtiveram por longo tempo sucesso eleitoral nos distritos com maior concentração de população vulnerável. O fenômeno não é restrito à região Nordeste. Redutos eleitorais de partidos conservadores abunda(ra)m nas regiões mais ricas. Alguma forma de irracionalidade ou de desinformação acometeria esses eleitores, concluem os analistas.
Mas, por que apenas os eleitores latino-americanos e brasileiros se comportariam desse modo? Por que a irracionalidade seria um atributo dos trópicos? Falta de escolaridade, respondem prontamente alguns observadores.
De fato, a ciência política acumulou fartas evidências da relação positiva entre níveis de escolaridade e informação política. Mas o fato é que o apoio aos partidos com plataformas redistributivas na Europa começou a ocorrer ainda no século 19, sob baixos níveis de escolaridade.
Na democracia limitada de 1946, bem como no regime democrático atual, a associação entre renda e preferências partidárias dos eleitores ocorreu de modo gradual, à medida que a operação regular do sistema politico se adensava, também sob baixos níveis de escolaridade.
Estudo sobre as preferências dos eleitores latino-americanos publicado neste ano na World Politics por Alisha C. Holland, da Universidade Princeton, nos apresenta uma proposição útil para melhor entender o quadro eleitoral —da eleição em curso e muito provavelmente de eleições futuras.
Eleitores que não recebem benefícios sociais apresentam expectativas deprimidas. Não acreditam que seu voto poderá se converter em políticas que aumentarão seu bem-estar. Os indivíduos precisam experimentar políticas que lhes trazem benefícios tangíveis para apoiar plataformas redistributivas.
Logo, a diferença entre a América Latina e as democracias avançadas não estaria no eleitor, mas na credibilidade de que os eleitos de fato entreguem as políticas que prometem.
A Constituição de 1988 mudou muito o desenho das políticas sociais brasileiras. Até ali, só tinha direito a aposentadoria e a assistência médica quem tivesse carteira assinada, cerca de 40% da força de trabalho no final dos anos 80. Até ali, o mundo escolar era praticamente inacessível para a maioria da população.
Em 1980, 26% da população adulta brasileira era analfabeta. Ou seja, cerca de um quarto do eleitorado (potencial) não sabia ler ou escrever. Quase 22% tinham até três anos de estudo. Eram analfabetos funcionais. De cada 100 jovens que entravam na escola, apenas 55 completavam quatro anos de estudo antes dos 16 anos de idade. As chances de uma criança de origem pobre concluir o ensino fundamental eram muito menores do que aquelas das famílias de maior renda.
Em suma, as políticas sociais do regime militar produziam uma legião de excluídos permanentes. Mais que isso, esta exclusão era cumulativa. Baixa escolaridade, inserção precária no mercado de trabalho, exclusão da assistência médica e do direito a aposentadoria se superpunham sobre os mesmos indivíduos. Este era o Brasil de 40 anos atrás!
A Constituição de 88 foi o resultado de um processo inclusivo de redemocratização que erodiu alguns dos pilares desta histórica exclusão. Ao criar o SUS, eliminou as vantagens conferidas apenas aos trabalhadores com carteira assinada. Ao criar o Benefício de Prestação Continuada, garantiu um ganho ao fim da vida para trabalhadores pouco qualificados que tiveram inserção irregular no mercado de trabalho.
Ao estabelecer um piso para os benefícios previdenciários, produziu um patamar, a ser definido politicamente por ocasião da elaboração do Orçamento, abaixo do qual nenhum idoso deveria viver.
Sob os dispositivos da Constituição, incremental e sistemática incorporação foi alcançada nos últimos 30 anos. Os outrora 60% excluídos e seus familiares obtiveram ganhos incrementais de acesso ao atendimento em saúde, via SUS.
Cerca de 25% dos eleitores (estimativa para 2015) foram progressivamente incorporados à politica do salário mínimo, seja via aposentadorias ou benefícios assistenciais, seja via mercado de trabalho. Os níveis de escolaridade modificaram muito. Entre 1980 e 2010, os concluintes do fundamental completo saltaram de 3,3 milhões para 12,5 milhões; os concluintes do ensino médio passaram de 3,8 milhões para 29 milhões e o mundo universitário incluiu mais de 20 milhões de jovens.
Parece muito distante, mas precisa ser lembrado: em 1980, quase metade dos eleitores brasileiros era analfabeta ou semianalfabeta e 60% não tinha direito à assistência médica ou aposentadoria. A situação atual é muito ruim, mas sua dramaticidade deriva de uma métrica móvel. Nossas expectativas se elevam à medida que ganhos civilizatórios são obtidos.
A Constituição de 88 não foi obra dos partidos de esquerda, que eram francamente minoritários na Assembleia Constituinte. Foi resultado da percepção, também entre os conservadores, de que a democracia não seria sustentável no Brasil sem que um mínimo de proteção social fosse provida à massa de excluídos.
É muito razoável supor que a incremental inclusão inaugurada pela Constituição de 1988 tenha alterado as expectativas dos eleitores brasileiros, em particular os de baixa renda. Assim, a distribuição de preferências do eleitorado na eleição atual estaria revelando a mesma racionalidade que orienta o eleitor das democracias desenvolvidas.
Eleitores pobres tendem a preferir candidatos que apresentam plataformas orientadas ao bem-estar ao passo que eleitores mais ricos temem ser expropriados caso estes candidatos sejam eleitos.
Neste caso, a Constituição e as políticas que lhe sucederam contribuíram para minimizar expectativas deprimidas. Estas últimas seriam compatíveis com as políticas excludentes do regime militar, mas incompatíveis com algumas poucas décadas de progressiva incorporação a padrões mínimos de vida civilizada.
Sem dúvida, a gravidade de nosso quadro fiscal imporá definição de prioridades, do que decorrerá frustração de expectativas. Não é possível atender a todas as demandas. Mas a experiência das democracias avançadas, confirmada pelo insucesso do governo Temer, demonstra que políticas de austeridade requerem governos com créditos políticos para queimar. Governos com baixa legitimidade não podem se dar a este luxo.
Por isso, é certamente um equívoco interpretar esta reta final da campanha presidencial como um quadro de polarização eleitoral, entre extremos do espectro ideológico que se equivalem em termos de compromisso com os padrões de uma sociedade civilizada.
Seja a violência sofrida pelo candidato à presidente que está a frente nas pesquisas eleitorais, seja a violência que este próprio incita em seu eleitorado nos fazem duvidar de que a promessa civilizatória da Constituição de 1988 tenha sido uma conquista irreversível.
Sobre a autora
Marta Arretche é professora titular do Departamento de Ciência Politica da USP e diretora do Centro de Estudos da Metrópole.
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