Historiador e poeta fala sobre sua relação longeva com a "Missa em Si Menor", do compositor
Alberto da Costa e Silva
Deve ter sido em 1948. Eu tinha 17 anos. E estava distraído a folhear um livro, com o rádio a tocar ao lado. De repente, a música me puxou para dentro dela e fui tomado pelo espanto da mais alta beleza.
Era a primeira vez que ouvia a “Missa em Si Menor”, de Johann Sebastian Bach, e me ficou para sempre a lembrança de tudo o que naquele instante me ganhou a alma.
O historiador e poeta Alberto da Costa e Silva, 87, em sua casa no Rio de Janeiro - Ricardo Borges/Folhapress |
Nos dias seguintes, procurei em vão, nas lojas de discos, uma gravação da “Missa”. Só uns dois anos mais tarde consegui comprar a versão do maestro Hermann Scherchen. Passei algumas semanas ouvindo-a quase que diariamente, com assombro cada vez maior.
E, depois, durante toda a vida, quando sentia que os dias se apequenavam, buscava na “Missa em Si Menor” o júbilo da adoração e a pureza da prece. Somava o coro de “Et Resurrexit” à ária do “Agnus Dei”.
Desde menino, deixou-me a fé. Por isso, penso que não posso emocionar-me e comover-me com a mesma intensidade de quem, sendo católico, ao ouvir essa missa, pede perdão por não ser santo. Quando a escuto, porém, esqueço muitas vezes a minha desesperança de incréu e não resisto a imaginar que Deus existe e que a vida é uma parábola da eternidade.
A grande “Missa” de Bach iluminou a minha juventude. Pus nela o meu horizonte de perfeição, e dela fui aproximando as sucessivas descobertas das muitas formas com que se dá a beleza.
Recordo que, em algumas das revelações daquele tempo, ela se fez presente, a medir o meu arrebatamento.
Assim foi, quando dei com os tercetos dedicados ao Paraíso, na “Divina Comédia”, de Dante, e com o “Walden”, de Henry David Thoreau, e com as traduções de Maurice Betz da poesia de Rainer Maria Rilke, e com o Thomas Mann das “Histórias de Jacó”, da tetralogia de “José e Seus Irmãos”, e com “O Aleph”, de Jorge Luis Borges, e com “A Lúcifer”, de José Severiano de Resende, e com “Húmus”, de Raul Brandão, e com os versos de Mário de Sá-Carneiro, e com os poemas de amor de e. e. cummings.
Anos mais tarde, na catedral de Santiago de Compostela, diante do Portal da Glória, no primeiro encontro que tive com aquele Cristo todo poder e majestade, de mão erguida para a bênção e ladeado por anjos, profetas e santos músicos que, cobertos de restos de cores mansas sobre a pedra de um ouro rosado, pareciam tocar e cantar para mim, o que eles tocavam e cantavam era a “Missa em Si Menor”.
Não a tive sozinha. Ela trouxe para o meu convívio a “Paixão Segundo São Mateus” e a “Paixão Segundo São João”. E amparou-me, quando entrei nos 40 anos, com as duas centenas de cantatas de Bach que se tornaram o meu pão quotidiano.
Até há bem pouco tempo, eu não passava um dia sem reservar meia hora para ouvir uma delas, ainda que consciente de que não as merecia, pois me faltava um pouco que fosse do fervor religioso que inspirara Bach e da contrição dos que as escutavam, nos ofícios luteranos.
Uma cantata me serenava, outra me alegrava, esta me comovia, aquela me deixava penseroso, aquela outra me contristava, uma sexta me punha a dançar, e todas, muitas vezes, me devolviam à “Missa em Si Menor”, que delas parecia ser soma, resumo e culminância.
Ao longo da vida, fui tomado repetidas vezes por deslumbramentos, diante de grandes criações da imaginação e da inteligência.
Nenhum se comparou, contudo, àquele que experimentei aos meus 17 anos, quando ouvi a “Missa em Si Menor” pela primeira vez e pela primeira vez senti ao meu redor o esplendor do mundo.
Alberto da Costa e Silva, historiador, poeta e ensaísta, é membro da Academia Brasileira de Letras e vencedor do Prêmio Camões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário