17 de outubro de 2002

"Nós" sabemos quem "nós" somos

Edward Said sobre o Iraque, a Palestina e "nós"


Vol. 24 No. 20 · 17 October 2002

O Líbano foi fortemente bombardeado por aviões de guerra israelenses em 4 de junho de 1982. Dois dias depois, o Exército israelense invadiu a fronteira sul do país. Menachem Begin era então primeiro-ministro, Ariel Sharon, ministro da Defesa. O motivo imediato da invasão foi a tentativa de assassinato do embaixador israelense na Grã-Bretanha, atribuída por Begin e Sharon à OLP, cujas forças no sul do Líbano estavam observando um cessar-fogo por um ano. Em 13 de junho, Beirute estava sitiada, embora o governo israelense tivesse dito originalmente que planejava não ir além do rio Awali, 35 km ao norte da fronteira, no Líbano. Mais tarde, ficou claro que Sharon estava tentando matar Yasser Arafat bombardeando tudo ao seu redor. Houve um bloqueio de ajuda humanitária; água e eletricidade foram cortadas, e uma campanha de bombardeio aéreo sustentada destruiu centenas de edifícios. Em meados de agosto, quando o cerco terminou, 18.000 palestinos e libaneses, a maioria civis, foram mortos.

A guerra civil entre milícias cristãs de direita e grupos nacionalistas muçulmanos e árabes de esquerda já durava sete anos. Embora Israel tenha enviado seu Exército ao Líbano apenas uma vez antes de 1982, ele foi procurado como aliado pelas milícias cristãs, que cooperaram com as forças de Sharon durante o cerco. O principal aliado de Sharon era Bashir Gemayel, líder do Partido Falange, que foi eleito presidente pelo Parlamento libanês em 23 de agosto. Os palestinos entraram imprudentemente na guerra civil ao lado do Movimento Nacional, uma coalizão frouxa de partidos que incluía Amal, um precursor do Hezbollah (que desempenharia o papel principal em finalmente expulsar os israelenses do Líbano em maio de 2000). Diante da perspectiva de vassalagem israelense após o Exército de Sharon ter efetivamente provocado sua eleição, Gemayel parece ter hesitado e foi assassinado em 14 de setembro. Tropas israelenses ocuparam Beirute, supostamente para manter a ordem, e dois dias depois, dentro de um cordão de segurança fornecido pelo Exército israelense, os extremistas vingativos de Gemayel massacraram dois mil refugiados palestinos nos campos de Sabra e Shatila.

Sob a supervisão da ONU e, claro, dos EUA, as tropas francesas entraram em Beirute em 21 de agosto, após o cerco, e mais tarde se juntaram às forças dos EUA e de outras forças europeias. Os combatentes da OLP foram evacuados do Líbano; e no início de setembro, Arafat e um pequeno grupo de conselheiros e soldados se mudaram para Túnis. O Acordo de Taif de 1989 preparou o caminho para uma solução para a guerra civil no ano seguinte. O antigo sistema confessional — sob o qual diferentes grupos religiosos recebem um número específico de assentos parlamentares — foi mais ou menos restaurado e permanece em vigor até hoje.

No início deste ano, Sharon foi citado como lamentando sua falha em matar Arafat em Beirute. Não por falta de tentativa — dezenas de prédios foram destruídos, centenas de pessoas mortas. Os eventos de 1982 endureceram os árabes comuns, eu acho, para a ideia de que Israel usaria aviões, mísseis, tanques e helicópteros para atacar civis indiscriminadamente, e que nem os EUA nem os governos árabes fariam nada para impedir isso.

A invasão do Líbano foi a primeira tentativa contemporânea em larga escala de mudança de regime por um país soberano contra outro no Oriente Médio. Eu a trago à tona como um cenário confuso para a crise atual. A principal diferença entre 1982 e 2002 é que os palestinos estão agora sob cerco dentro dos territórios palestinos que foram ocupados por Israel desde 1967. A principal semelhança é a natureza desproporcional das ações israelenses: as centenas de tanques e escavadeiras usadas para entrar em cidades e vilas como Jenin ou campos de refugiados como Deheisheh, onde as tropas mais uma vez começaram a matar, vandalizar, obstruir ambulâncias e socorristas, cortar água e eletricidade e assim por diante. Tudo com o apoio dos EUA, cujo presidente chamou Sharon de "homem de paz" durante os piores ataques de março e abril passados. O propósito de Sharon foi muito além de "erradicar o terror": seus soldados destruíram todos os computadores e levaram arquivos e discos rígidos do Escritório Central de Estatísticas e dos Ministérios da Educação, Finanças e Saúde, e vandalizaram escritórios e bibliotecas.

Não quero ensaiar minhas críticas às táticas de Arafat ou aos fracassos de seu regime deplorável durante as negociações de Oslo e depois. Além disso, enquanto escrevo, o homem está apenas se agarrando à sua vida: seus aposentos em ruínas em Ramallah ainda estão sitiados e Sharon está fazendo todo o possível para feri-lo, sem realmente matá-lo. O que me preocupa, em vez disso, é a ideia de mudança de regime como uma noção atraente para indivíduos, ideologias e instituições que são muito mais poderosas do que seus adversários. Agora, parece, é dado como certo que um grande poder militar licencia mudanças políticas e sociais em larga escala, qualquer que seja o dano que isso possa acarretar. E o fato de que o próprio lado não sofrerá muitas baixas parece apenas estimular mais fantasias sobre ataques cirúrgicos, guerra limpa, campos de batalha de alta tecnologia, mudança de todo o mapa, criação de democracia e assim por diante, tudo isso dando origem a sonhos de onipotência.

Na atual campanha de propaganda americana para mudança de regime no Iraque, o povo daquele país, a vasta maioria dos quais sofreu com pobreza, desnutrição e doenças como resultado de dez anos de sanções, sumiu de vista. Isso está inteiramente de acordo com a política dos EUA para o Oriente Médio, que é construída sobre dois pilares poderosos: a segurança de Israel e suprimentos abundantes de petróleo barato. O complexo mosaico de tradições, religiões, culturas, etnias e histórias no mundo árabe está perdido para os planejadores estratégicos dos EUA e de Israel. O Iraque é uma "ameaça" aos seus vizinhos, o que, em sua condição atualmente enfraquecida e sitiada, é uma ideia sem sentido, ou uma "ameaça" à liberdade e segurança dos Estados Unidos, o que é ainda mais absurdo. Nem vou me dar ao trabalho de acrescentar minhas condenações a Saddam Hussein: vou presumir que ele merece ser deposto e punido. Pior de tudo, ele é uma ameaça ao seu próprio povo.

Desde o período anterior à primeira Guerra do Golfo, a imagem do Iraque como um país árabe grande, próspero e diverso foi substituída, tanto na mídia quanto nas discussões políticas, pela de uma terra desértica povoada por gangues brutais lideradas por Saddam. Que a degradação do Iraque quase arruinou a indústria editorial árabe porque o país forneceu o maior número de leitores no mundo árabe; que era o único estado árabe com uma classe média profissional educada e competente de qualquer tamanho; que tem água e terra fértil; que sempre foi o centro cultural do mundo árabe (o Império Abássida com sua grande literatura, filosofia, arquitetura, ciência e medicina formaram a base da cultura árabe); que seu sofrimento tem sido, como o calvário palestino, uma fonte de tristeza contínua para árabes e muçulmanos - nada disso é mencionado. O que é mencionado são as vastas reservas de petróleo do Iraque - e se "nós" as tirássemos de Saddam e colocássemos nossas próprias mãos nelas, não seríamos tão dependentes do petróleo saudita. As reservas de petróleo do Iraque, atrás apenas das da Arábia Saudita, valem aproximadamente US$ 1,1 trilhão — boa parte já prometida por Saddam à Rússia, França e alguns outros países. Boa parte da barganha entre Putin e Bush é sobre a porcentagem desse petróleo que as empresas dos EUA estariam dispostas a prometer à Rússia. Isso lembra assustadoramente os quatro bilhões de dólares oferecidos à Rússia (via Arábia Saudita) por Bush pai. Ambos os Bush são empresários do petróleo e se importam mais com essas coisas do que com os detalhes da política do Oriente Médio — ou com o estado da infraestrutura civil do Iraque.

O passo inicial na desumanização do Outro é reduzi-lo a algumas frases, imagens e conceitos simples repetidos insistentemente. Assim, a palavra "terrorista" foi empregada pela primeira vez sistematicamente por Israel para descrever qualquer ato palestino de resistência em meados da década de 1970. Essa tem sido a regra desde então, efetivamente despolitizando as razões para a luta armada. O processo de desumanização foi intensificado após 11 de setembro. Homens do Instituto Judaico de Assuntos de Segurança Nacional (JINSA) e do Centro de Política de Segurança (CSP) de extrema direita povoam os comitês do Pentágono e do Departamento de Estado, incluindo o Conselho de Política de Defesa, dirigido por Richard Perle (que foi nomeado por Donald Rumsfeld e seu vice Paul Wolfowitz), onde a segurança israelense é equiparada à segurança dos EUA. De acordo com Jason Vest no Nation, o JINSA gasta a "maior parte de seu orçamento levando um bando de generais e almirantes aposentados dos EUA para Israel": quando eles retornam, escrevem artigos de opinião e aparecem na TV vendendo a linha do Likud.

De sua parte, Sharon repetiu entorpecidamente que sua campanha contra o terrorismo palestino é idêntica à guerra americana contra o terrorismo. Osama bin Laden e a Al-Qaeda, ele afirma, são parte do mesmo "terrorista internacional" que inclui muçulmanos em toda a Ásia, África, Europa e América do Norte. Esse "elo" é usado por Sharon para explicar por que todas as principais cidades da Cisjordânia e de Gaza são ocupadas por tropas israelenses que rotineiramente matam ou detêm palestinos sob a alegação de que são "suspeitos" de terroristas e militantes, e demolem casas e lojas com a desculpa de que abrigam fábricas de bombas, células terroristas e locais de reunião para militantes. Nenhuma prova é dada, nenhuma solicitada pela imprensa.

A mistificação está em todo lugar. Terror, fanatismo, violência, ódio à liberdade, insegurança e, claro, armas de destruição em massa: essas são as palavras que usamos para falar do mundo árabe; elas não aparecem em relação a Israel, Paquistão, Índia, Reino Unido ou EUA. O Iraque é potencialmente o inimigo mais temível de Israel por causa de seus recursos econômicos e humanos; os palestinos estão no caminho da hegemonia israelense e da ocupação de terras. Na TV dos EUA neste verão, Uzi Landau, Ministro da Segurança Interna de Israel (e membro do Partido Moledet, que defende a "transferência" de todos os palestinos para fora de Israel e dos Territórios Ocupados), afirmou que toda conversa sobre "ocupação" era um absurdo. Somos um povo voltando para casa, ele disse. Nada disso foi questionado por Mort Zuckerman, apresentador do programa, que também é dono do US News and World Report e preside a Conferência dos Presidentes das Principais Organizações Judaicas. Mas as opiniões de Landau parecem quase moderadas quando comparadas com as de alguns membros do governo Bush. O jornalista israelense Alex Fishman descreveu as ‘ideias revolucionárias’ de Cheney, Rice e Rumsfeld (que também se refere aos ‘chamados territórios ocupados’) como terrivelmente belicosas. Sharon disse que ‘ao lado de nossos amigos americanos’ Effi Eitam – uma das linhas-duras mais implacáveis ​​do Gabinete israelense – é uma ‘pomba total’.

Mais assustadora ainda é a proposição incontestável de que se "nós" não nos anteciparmos ao terrorismo (ou qualquer outro inimigo em potencial), seremos destruídos.* Este é agora o cerne da estratégia de segurança dos EUA e é regularmente martelado em entrevistas e talk shows por Rice, Rumsfeld e o próprio Bush. A declaração formal desta visão apareceu há pouco tempo na Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, um documento oficial preparado como um manifesto para a nova política externa pós-Guerra Fria da Administração. Sua presunção é que vivemos em um mundo excepcionalmente perigoso com uma rede de inimigos que possuem fábricas, escritórios e apoiadores infinitos, e cuja existência é dedicada a nos destruir. A crença de que "nós" devemos pegá-los primeiro é o que enquadra e dá legitimidade à guerra contra o terrorismo e contra o Iraque.

Existem indivíduos e grupos fanáticos que são a favor de, de alguma forma, prejudicar Israel ou os EUA. Por outro lado, Israel e os EUA são amplamente percebidos nos mundos islâmico e árabe, primeiro, como tendo criado os extremistas jihadistas dos quais bin Laden é o mais famoso, e segundo, como ignorando o direito internacional e as Resoluções da ONU na busca de suas próprias políticas hostis e destrutivas nesses mundos. Como David Hirst apontou no Guardian, mesmo os árabes que se opõem aos seus próprios regimes despóticos verão qualquer ataque dos EUA ao Iraque como um "ato de agressão direcionado não apenas ao Iraque, mas a todo o mundo árabe; e o que o tornará supremamente intolerável é que será feito em nome de Israel, cuja aquisição de um grande arsenal de armas de destruição em massa parece ser tão permissível quanto a deles é uma abominação".

Também deve ficar claro que a posição palestina não é idêntica à dos iraquianos ou à da Al-Qaeda. Desde meados da década de 1980, os palestinos estão pelo menos oficialmente dispostos a fazer as pazes com Israel. Comentaristas da mídia no Ocidente misturam e fundem os palestinos e o Iraque para que se tornem uma ameaça coletiva. A maioria das histórias sobre os palestinos que aparecem em publicações influentes nos EUA, como a revista New Yorker e a New York Times, os mostram como fabricantes de bombas, colaboradores, homens-bomba. Nenhum deles publicou nada do ponto de vista árabe desde 11 de setembro.

Dennis Ross (encarregado da equipe dos EUA nas negociações de Oslo, mas tanto antes quanto depois disso associado ao lobby israelense) continua dizendo que os palestinos recusaram uma oferta generosa de Israel em Camp David: na verdade, Israel concedeu apenas áreas palestinas não contíguas que deveriam ter postos de segurança israelenses e assentamentos ao redor delas. Além disso, não deveria haver fronteira comum entre a Palestina e qualquer estado árabe. Por que palavras como "generoso" e "oferta" devem, em qualquer caso, aplicar-se a territórios mantidos por uma potência ocupante em violação ao direito internacional e às Resoluções da ONU, ninguém se preocupa em perguntar. Mas o poder da mídia de repetir, re-repetir e sublinhar afirmações simples, combinado com os esforços incansáveis ​​do lobby israelense, significa que agora está travado no lugar que os palestinos escolheram "terror em vez de paz". O Hamas e a Jihad Islâmica são vistos não como uma parte (equivocada) da luta para se livrar da ocupação militar israelense, mas como parte do desejo geral palestino de aterrorizar, ameaçar e ser uma ameaça. Como o Iraque.

Em todo caso, com a mais nova e bastante improvável alegação da Administração dos EUA de que o Iraque secular tem abrigado e treinado a insanamente teocrática Al-Qaeda, o caso contra Saddam parece ter sido encerrado. O consenso do Governo é que, uma vez que os inspetores da ONU não podem verificar quais armas de destruição em massa ele possui, o que ele escondeu e o que ele ainda pode fazer com elas, ele deve ser atacado e removido. O objetivo de ir à ONU, do ponto de vista dos EUA, é obter uma Resolução tão punitiva que não importará se Saddam Hussein cumpre ou não: ele será incriminado por ter violado o "direito internacional" e sua existência será suficiente para justificar a mudança de regime. No final de setembro, uma Resolução unânime do Conselho de Segurança (a abstenção dos EUA) ordenou que Israel encerrasse seu cerco ao complexo de Arafat em Ramallah e se retirasse do território palestino ilegalmente ocupado desde março (a desculpa de Israel tem sido "autodefesa"). Israel recusou-se a cumprir, mas neste caso a ONU deve ser ignorada – ‘nós’ entendemos que Israel deve defender os seus cidadãos.

Neologismos como "preempção antecipatória" e "autodefesa preventiva" são usados ​​por Rumsfeld e seus colegas em uma tentativa de persuadir o público de que os preparativos para a guerra contra o Iraque ou qualquer outro estado que precise de "mudança de regime" (ou o eufemismo mais raro "destruição construtiva") são apoiados pela noção de autodefesa. O público é mantido em suspense por repetidos alertas vermelhos ou laranja, as pessoas são encorajadas a informar as autoridades policiais sobre comportamento "suspeito" e milhares de muçulmanos, árabes e sul-asiáticos foram detidos, em alguns casos acusados, meramente por suspeita. Tudo isso é realizado a mando do presidente e é considerado uma expressão de patriotismo e amor pela América.

Os Estados Unidos são tão poderosos que não podem ser restringidos por nenhum código de conduta internacional. A discussão sobre se "nós" devemos entrar em guerra contra um país a sete mil milhas de distância continua bem abstrata. A grande maioria dos americanos não teve contato com países ou povos muçulmanos e, portanto, não tem sentimento pelo tecido da vida que uma campanha de bombardeio sustentada (como no Afeganistão) rasgaria em pedaços. E como o terrorismo é explicado meramente como resultado de ódio e inveja, ele encoraja os polemistas a se envolverem em debates extravagantes dos quais a história e a política parecem ter desaparecido. Em uma manifestação fervorosamente pró-Israel em maio, Paul Wolfowitz mencionou o sofrimento palestino de passagem, mas foi vaiado em voz alta e nunca mais se referiu a ele.

Uma política coerente de direitos humanos ou de livre comércio que se ativesse aos princípios infinitamente sublinhados que os EUA são constitucionalmente acreditados para defender seria minada internamente por grupos de interesses especiais (os lobbies étnicos, as indústrias de aço e defesa, o cartel do petróleo, a indústria agrícola, aposentados, o lobby das armas etc.). Cada um dos 435 distritos congressionais representados em Washington contém uma indústria de defesa ou relacionada à defesa, o que explica por que o Secretário de Estado de Bush Sr., James Baker, disse antes da primeira Guerra do Golfo que a verdadeira questão em jogo eram "empregos". Apenas cerca de 25 por cento dos membros do Congresso têm passaportes (cerca de 15 por cento dos americanos viajaram para o exterior); suas opiniões são influenciadas por lobistas e pela necessidade de atrair financiamento de campanha. Dois membros titulares da Câmara, Earl Hilliard do Alabama e Cynthia McKinney da Geórgia, ambos apoiadores do direito palestino à autodeterminação e críticos de Israel, foram recentemente derrotados por candidatos relativamente obscuros que foram financiados principalmente pelo lobby israelense em Nova York. No que diz respeito à política do Oriente Médio, o lobby transformou o braço legislativo do governo dos EUA no que Jim Abourezk, um ex-senador, certa vez chamou de "território ocupado por Israel". O Senado emite periodicamente resoluções não solicitadas que sublinham e reiteram o apoio americano a Israel. Houve uma dessas resoluções em maio, no momento em que as forças israelenses estavam ocupando e destruindo as principais cidades da Cisjordânia. A longo prazo, tudo isso é prejudicial ao futuro de Israel: como Tony Judt argumentou recentemente, Israel não pode permanecer em terras palestinas e está simplesmente adiando a retirada inevitável.

A guerra contra o terrorismo permitiu que Israel e seus apoiadores cometessem crimes de guerra contra a população palestina da Cisjordânia e Gaza, cujos 3,4 milhões de habitantes se tornaram, como diz o jargão atual, "danos colaterais não combatentes". Terje Roed-Larsen, o Administrador Especial da ONU para os Territórios Ocupados, acaba de emitir um relatório acusando Israel de causar uma catástrofe humanitária: o desemprego atingiu 65%, 50% da população vive com menos de dois dólares por dia e a economia foi destruída. Escolas e universidades não podem funcionar. Casas são demolidas, pessoas deportadas, toques de recolher impostos, ambulâncias impedidas de passar por bloqueios de estradas. Nada nesta lista é novo, mas, como a ocupação em si e as dezenas de Resoluções do Conselho de Segurança da ONU que a condenam, essas depredações são mencionadas na mídia dos EUA apenas ocasionalmente, como notas finais para longos artigos sobre debates do governo israelense ou atentados suicidas desastrosos. A frase "suspeito de terrorismo" é tanto a justificativa quanto o epitáfio para quem Sharon escolher matar. Os EUA não se opõem, exceto para dizer, nos termos mais brandos, que as ações de Israel "não são úteis", o que faz pouco para impedir o próximo lote de assassinatos.

Após 11 de setembro, ocorreu uma conjuntura assustadora na qual os preconceitos da direita cristã, do lobby israelense e da beligerância semirreligiosa do governo Bush são racionalizados por falcões neoconservadores comprometidos com a destruição dos inimigos de Israel ou, como às vezes é colocado eufemisticamente, em redesenhar o mapa trazendo mudança de regime e "democracia" para os países árabes que representam o maior perigo para Israel. Egito, Arábia Saudita, Síria e Jordânia foram ameaçados, apesar do fato de que — regimes terríveis como são — eles têm sido protegidos e apoiados pelos EUA desde a Segunda Guerra Mundial, como o Iraque foi até recentemente.

Parece óbvio para qualquer um que saiba alguma coisa sobre o mundo árabe que seu estado precário provavelmente ficará muito pior quando os EUA começarem seu ataque ao Iraque. Os apoiadores do governo ocasionalmente dizem coisas vagas sobre o quão emocionante será quando levarmos a democracia ao Iraque e aos outros estados árabes, sem muita consideração pelo que isso significará para as pessoas que vivem lá. Não consigo imaginar que haja muitos árabes ou iraquianos que não gostariam de ver Saddam Hussein removido, mas tudo indica que a ação militar dos EUA/Israel tornaria as coisas muito piores no terreno.

Pode ser que nem mesmo o Exército iraquiano levante um dedo em nome de Saddam, mas em uma audiência recente no Congresso, três ex-generais do Comando Central dos EUA expressaram sérias e, eu diria, reservas paralisantes sobre toda a aventura. Ninguém nos EUA tem uma ideia real do que pode acontecer no Iraque, na Arábia Saudita ou no Egito, se uma grande intervenção militar ocorrer. Nem se pensou no que aconteceria após uma "vitória" dos EUA: a oposição iraquiana expatriada não tem apoio suficiente para formar um governo e o Exército dos EUA não estará interessado em preencher a lacuna.

A atrocidade inconcebível de 11 de setembro certamente precisa ser confrontada, mas fazer uma resposta contundente é a parte fácil: o que acontece a seguir tem que ser considerado com mais cuidado. Ninguém poderia argumentar hoje que o Afeganistão, mesmo após a derrota do Talibã, é um lugar muito melhor e mais seguro para seus cidadãos. A construção da nação claramente não é a prioridade da Administração dos EUA. Além disso, como os americanos podem reconstruir uma nação com uma cultura e história tão diferentes das suas quanto o Iraque? Tanto o mundo árabe quanto os EUA são lugares muito mais complexos e dinâmicos do que as platitudes da guerra e as frases ressonantes sobre reconstrução permitiriam.

Como alguém que viveu minha vida dentro das duas culturas, estou chocado que o "choque de civilizações", essa noção reducionista e vulgar tão em voga, tenha tomado conta do pensamento e da ação. O que precisamos colocar em prática é uma estrutura universalista para lidar com Saddam Hussein, bem como Sharon, os governantes da Birmânia, Síria, Turquia e uma série de países onde as depredações são suportadas sem resistência suficiente. A única maneira de recriar ou restaurar essa estrutura é por meio da educação, discussão aberta e honestidade intelectual que não terá nenhuma relação com alegações especiais ocultas ou os jargões de guerra, extremismo religioso e "defesa" preventiva.

1 de outubro de 2002

Força e consenso

À medida que a guerra se aproxima novamente no Oriente Médio, quais são os objetivos da administração republicana e até que ponto eles marcam uma ruptura nos objetivos de longo prazo da estratégia global dos EUA? Os elementos mutáveis da hegemonia americana no mundo pós-Guerra Fria.

Perry Anderson

New Left Review


Editorial

Tradução / Enquanto uma nova contagem regressiva para a Guerra começa no Oriente Médio, entre altos níveis de santificação e protesto no mundo atlântico, são os parâmetros implícitos da situação internacional corrente que demandam atenção, não a retórica pulverizada em torno dela, quer a do beligerantismo oficial ou a da oposição ostensiva. Esses parâmetros colocam três questões analíticas principais. Até que ponto a linha da administração republicana em Washington hoje representa uma ruptura com as políticas americanas anteriores? Até o ponto em que ela é uma ruptura, o que explica a descontinuidade? Quais serão as consequências prováveis da mudança? Para responder a essas questões parece necessária uma perspectiva mais longa do que a conjuntura imediata. O papel dos Estados Unidos no mundo se tornou o tópico de uma grande variedade de posturas através do espectro político estabelecido e apenas poucos dos temas complexos que ele impõe podem ser analisados aqui. Mas algumas poucas flechas do arco da teoria socialista clássica podem ser melhores do que nada.

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Os responsáveis pela atual política norte-americana são os herdeiros de tradições jamais rompidas dos cálculos globais do Estado norte-americano que remontam aos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Entre 1943 e 1945, em meio ao apoio às perdas russas e às dívidas britânicas, a administração Roosevelt estabeleceu a estrutura do sistema americano de poder em que podia ver o que a vitória sobre a Alemanha e o Japão trazia. Desde o início, Washington perseguiu dois objetivos estratégicos integralmente conectados. Por um lado, os Estados Unidos decidiram tornar o mundo seguro para o capitalismo. Isso significou dar prioridade absoluta a conter a União Soviética e impedir que a revolução se espalhasse para além de suas fronteiras, onde quer que ela não pudesse competir diretamente pelo espólio da guerra assim como acontecia na Europa Oriental. Com o início da Guerra Fria, o objetivo de longo prazo de luta contra o Comunismo se tornou, mais uma vez, não apenas bloquear o antagonista soviético, como tinha sido no início da intervenção de Wilson em 1919, mas removê-lo do mapa. Por outro lado, Washington estava determinada a garantir a primazia americana incontestável dentro do mundo capitalista. Isso significava, em primeiro lugar, reduzir a Grã-Bretanha à dependência econômica, um processo que tinha começado com o Empréstimo Lease, e estabelecer uma regência militar na Alemanha Ocidental e no Japão. Assim que esta moldura foi estabelecida, o boom do capitalismo norte-americano do período de guerra foi estendido com sucesso, quer para as potências aliadas, quer para as derrotadas, para o benefício de todos os estados da OECD.

Durante os anos da Guerra Fria, havia pouca ou nenhuma tensão entre essesdois objetivos fundamentais da política norte-americana. O perigo do Comunismopara as classes capitalistas em todo lugar, maior ainda na Ásia da Revolução Chine-sa, significou que, virtualmente, todos estavam felizes em ser protegidos, apoiados evigiados por Washington. A França – culturalmente menos próxima do que a Grã-Bretanha e militarmente mais autônoma do que a Alemanha ou o Japão – foi, sob DeGaulle, a única breve exceção. Colocado esse parêntesis de lado, a zona capitalistaavançada foi integrada, sem muito esforço, a um império americano informal cujosmarcos foram Bretton Woods, os planos Marshall e Dodge, a OTAN e o Pacto deSegurança EUA-Japão. No momento devido, o capitalismo japonês e alemão se recu-peraram a ponto de tornarem-se competidores crescentemente sérios dos EstadosUnidos, enquanto o sistema de Bretton Woods se foi sob as pressões da Guerra doVietnã, no começo dos anos setenta. Mas a unidade política e ideológica do MundoLivre foi pouco afetada. O bloco soviético, sempre mais fraco, menor e mais pobre,passou por mais vinte anos de crescimento declinante e de corrida armamentista, mascaiu, por fim, na virada dos anos noventa.

O desaparecimento da União Soviética marcou a vitória completa dos EUA naGuerra Fria, mas esse mesmo marco tornou mais frouxo o nó que atava os objetivosbásicos da estratégia global americana. A mesma lógica não integrava mais seus doisobjetivos em um mesmo sistema hegemônico.3 De uma vez, o perigo comunista foitirado da mesa e a primazia americana cessou de ser um requisito automático dasegurança da ordem estabelecida tout court. Potencialmente, o campo das rivalida-des inter-capitalistas, não mais apenas no nível de empresas, mas de Estados, brotounovamente, já que- em teoria - regimes europeus e do leste asiático poderiam contemplar níveis de independência impensáveis durante a época do perigo totalitário.Ainda havia outro aspecto para esta mudança. Se agora faltavam as mesmas vigasexternas para a estrutura consensual do domínio americano, sua superioridade coer-citiva foi, de um único golpe, abrupta e massivamente acentuada, pois com o desapa-recimento da URSS, não havia mais nenhuma força contrária na Terra capaz deresistir ao poderio militar norte-americano. Os dias em que ele podia ser vencido noVietnã ou sofrer perda por procuração na África sulina tornaram-se passado. Essasmudanças inter-relacionadas eventualmente se uniram para alterar o papel dos Esta-
dos Unidos no mundo. A fórmula química do poder estava em solução.

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No entanto, na prática, os efeitos dessa mudança estrutural no balanço entreforça e consentimento dentro da operação da hegemonia americana permaneceramlatentes por uma década.4 O conflito definitivo dos anos noventa apenas os mascaroucompletamente. A anexação do Kuwait pelo Iraque ameaçou a formação de preçosdos suprimentos petrolíferos para todos os estados capitalistas principais, isso paranão mencionar a estabilidade de regimes vizinhos, permitindo que os Estados Uni-dos, rapidamente, montassem a vasta coalizão do G-7 e dos aliados árabes para arestauração da dinastia Sabah no trono. Ainda mais significante do que a amplidãodos auxílios estrangeiros ou subsídios levantados para a operação Tempestade noDeserto foi a habilidade dos EUA de assegurarem a ampla cobertura das NaçõesUnidas para sua campanha. Com o descarte da URSS, o Conselho de Segurançapodia ser usado, de agora em diante, com confiança crescente, como uma tela ideoló-gica portátil para as iniciativas da única superpotência. Aparentemente, parecia queo alcance do consenso da diplomacia americana era maior do que nunca.

No entanto, o consenso tão ampliado era de um tipo especial. As elites daRússia e – ainda mais cedo – da China, certamente eram suscetíveis ao magnetismodo sucesso cultual e material americano como normas a serem imitadas. Neste senti-do, a internalização por potências subalternas, de certos valores e atributos do Esta-do mais poderoso, o que Gramsci teria pensado como um traço essencial de qualquerhegemonia internacional, começou a acontecer. Mas o caráter objetivo desses regi-mes era ainda muito distante dos protótipos norte-americanos para que tais predispo-sições subjetivas formassem uma garantia confiável para cada ato de complacência no Conselho de Segurança. Para isso, era requerida a terceira alavanca que Gramscicerta vez apontou, intermediária entre força e consentimento, porém mais próximada última: corrupção.5 Há muito tempo usada para controlar votos na AssembléiaGeral, a corrupção agora era estendida acima, para esses possuidores do poder deveto. As induções econômicas para concordar com o desejo dos Estados Unidos seampliaram na Rússia pós-comunista, dos empréstimos do FMI ao financiamento eorganização secretos das campanhas eleitorais de Yeltsin. No caso da China, elasforam centradas no alinhamento ao status de nação preferencial no comércio eacordos econômicos.6 O consentimento comprado nunca é o mesmo que o dado,mas para os propósitos práticos, ele era suficiente para fazer as Nações Unidasvoltarem a algo como os dias alciônicos no início da Guerra da Coréia, quando aposição norte-americana foi quase automaticamente aprovada. O irritante menorde um Secretário Geral que na ocasião fugiu do polegar americano foi removido e,em seu lugar, instalado um substituto da Casa Branca, reconhecido por encobrir ogenocídio de Ruanda enquanto os EUA pressionavam pela intervenção nos Bálcãs.7

Em meados dos anos noventa, as Nações Unidas tinham se convertido virtualmenteem um braço do Departamento de Estado assim como o FMI é um braço do Tesou-ro Norte-Americano.Nessas condições, os planejadores da política externa americana podiamconfrontar o mundo pós-Guerra Fria com liberdade sem precedentes. A primeiraprioridade deles era ter certeza de que a Rússia estava presa, econômica e politi-camente, dentro da ordem global do capital, com a instalação de uma economiaprivatizada e uma oligarquia de negócios ligadas a um sistema eleitoral democrá-tico. Esse foi o objetivo principal da administração Clinton. Uma segunda preo-cupação era assegurar a conquista das duas zonas adjacentes da influênciasoviética: a Europa Oriental e o Oriente Médio. Na primeira, Washington esten-deu a OTAN para as fronteiras tradicionais da Rússia bem antes da expansão daUnião Européia para o Leste e se encarregou de liquidar o Estado iuguslavo. Naúltima, a Guerra pelo Kuwait foi uma ventania que permitiu instalar bases mili-tares avançadas na Arábia Saudita e no Golfo, estabelecer um protetorado noCurdistão e atar o movimento nacional palestino numa zona de proteção sob o controle de Israel. Essas foram, até certo ponto, tarefas emergenciais advindas da própria vitória na Guerra Fria.

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Ideologicamente, os contornos de um sistema pós-Guerra Fria emergiram maisgradualmente, mas as guerras do Golfo e dos Bálcãs ajudaram a cristalizar umadoutrina ainda mais compreensível, ligando mercados livres (a arca do neoliberalismodesde o período Reagan-Thatcher) às eleições livres (o leitmotiv da liberação naEuropa Centro-Oriental) e aos direitos humanos (o grito de guerra no Curdistão e nosBálcãs). Os dois primeiros tinham sempre sido, em tonalidades variadas, parte dorepertório da Guerra Fria ainda que agora eles tenham sido enfatizados com muitomais segurança: uma mudança mais marcante ocorreu no resgate à força do termo“capitalismo”, o qual era tido como indiscreto no auge da Guerra Fria, período emque se preferia usar eufemismos. Era o terceiro, no entanto, a principal inovação doperíodo e que mais fez para alterar a paisagem estratégica. Pois este era o pé de cabrapara abrir a porta da soberania nacional.

Os princípios tradicionais que apoiavam a autonomia das nações em seus ne-gócios domésticos foram, claro, regularmente desrespeitados por ambos os ladosdurante a Guerra Fria, mas, como estavam inscritos na convenção democrática –nada menos do que na própria Carta das Nações Unidas – isto ocorreu por causa dobalanço de forças durante o período de descolonização que deu origem a umamultiplicidade de pequenos Estados, quase sempre fracos, no Terceiro Mundo.8 Ju-ridicamente, a doutrina da soberania nacional pressupunha noções de igualdade entrepovos que permitiam certa proteção contra a ameaça das duas superpotências, cujacompetição garantia que nenhuma podia, abertamente, colocar de lado a doutrina sobo temor de aceitação de muita vantagem moral para a outra. Mas com o fim daGuerra Fria e o desaparecimento de qualquer contrapeso ao acampamento do capital,havia pouca razão para dar tanta atenção para formulações que expressavam outrarelação das forças internacionais, a qual estava morta. A Nova Ordem Mundial,primeiramente proclamada em termos triunfalistas, mas ainda tradicionais, por Bushpai se tornou, sob Clinton, o objetivo legítimo da comunidade internacional da justiçauniversal e dos direitos humanos como condição da paz democrática, onde quer queela estivesse sob ameaça e sem respeitar as fronteiras dos Estados.

De meados dos anos noventa em diante, o cenário no qual a administraçãodemocrata operou foi inusualmente propício. Em casa, estava no auge um boomespeculativo; no exterior, ela aproveitava-se de um grupo de regimes europeus mol-dados segundo sua agenda ideológica doméstica. A versão da Terceira Via do neoliberalismo se encaixava bem com o catequismo da “comunidade internacional” esua devoção comum aos valores humanos universais. Na prática, claro que, ondequer que a lógica da primazia americana topasse com considerações ou objetivosestrangeiros, a primeira prevalecia. Nesses anos, as realidades políticas, sob a retóri-ca multilateral, tornaram-se claras novamente. Os EUA arruinaram os acordos deLisboa em 1992 ao preferirem ditar sua própria ocupação na Bósnia do que aceitaruma iniciativa da União Européia, se necessário ao preço da intensificação da limpe-za racial; impuseram o ultimato em Rambouillet que detonou a Guerra em largaescala no Kosovo; amarraram a OTAN às fronteiras da Belarus e da Ucrânia e deramsua benção para a reconquista russa da Chechênia — com Clinton saldando a “libe-ração de Grozny” depois de um massacre que fez o destino de Sarajevo parecer um piquenique.

De uma forma ou de outra, todos esses movimentos, em seu quintal, ignora-ram ou deram pouca atenção às sensibilidades da União Européia, mas em nenhumcaso eles foram transgressores de forma por demais indelicada ou ostensiva. Real-mente, durante o segundo mandato da administração Clinton, a oficialidade européiase tornou mesmo, se muito, mais profusa e veemente do que Washington em anunciara interconexão de mercados e eleições livres e a necessidade de limitar a soberanianacional em nome dos direitos humanos. Políticos e intelectuais podiam escolher oque eles quisessem dessa mistura. Em um discurso em Chicago, Blair superou Clintonem entusiasmo por um novo humanismo militar enquanto, na Alemanha, um pensa-dor como Habermas via um compromisso desinteressado ao ideal dos direitos huma-nos como uma definição da própria identidade européia, distanciando o continentedos objetivos meramente instrumentais dos poderes anglo-americanos no bombar-deio da Iugoslávia.

No fim da década, os planejadores estratégicos em Washington tinham todarazão para estarem satisfeitos com o balanço geral dos anos 1990. A URSS tinhasido tirada do ringue, a Europa e o Japão colocados em xeque, a China inserida emrelações de comércio crescentes e cada vez mais estreitas, a ONU reduzida a poucomais do que um escritório de permissões e tudo isso conseguido seguindo a maisemoliente das ideologias, segundo a qual cada segunda palavra era compreensãointernacional e boa vontade democrática. A paz, a justiça e a liberdade estavam seespalhando pelo mundo.

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Dois anos depois, a cena parece diferente, mas em quais aspectos? Para come-çar, a chegada da administração Bush mostrou uma certa impaciência com a ficçãode que a “comunidade internacional” era uma aliança de iguais democráticos e uma negligência com relação às hipocrisias associadas com ela, saudando uma opiniãoeuropéia ainda em luto por Clinton. Mas essas mudanças de estilo não significaramnenhuma mudança nos objetivos fundamentais da estratégia global norte-americana,os quais se mantiveram completamente estáveis por meio século. No entanto, doisdesenvolvimentos modificaram radicalmente as formas em que esses têm sido perse-guidos ultimamente.

O primeiro desses, claro, foi o choque de 11 de Setembro. De forma algumauma ameaça séria ao poder americano, os atentados atingiram prédios simbólicos evítimas inocentes — matando virtualmente tantos americanos em um dia quanto elesmatam a si mesmos em uma estação — em um espetáculo calculado para plantar oterror e a fúria em uma população sem experiência de ataque estrangeiro. A retribui-ção dramática, numa escala mais do que proporcional ao massacre, tornar-se-ia au-tomaticamente a primeira obrigação de qualquer governo qualquer que fosse o partidono poder. Neste caso, a nova administração, eleita por uma margem pequena e con-testada de votos, já tinha apresentado sua intenção de colocar uma posição nacionalmais afirmativa no exterior dispensando uma série de fachadas ou placebos diplomá-ticos – Roma, Kyoto, etc – que a administração anterior tinha, mais em termos apa-rentes, aprovado. O 11 de Setembro deu a ela uma chance inesperada de realencar ostermos da estratégia global americana mais decisivamente do que de outra formateria sido possível. Espontaneamente, a opinião doméstica agora estava galvanizadapara uma luta figurativamente comparável à da própria Guerra Fria.

Com isso, um impedimento crítico tinha sido removido. Em condições pós-modernas, a hegemonia do capital não requer mobilização de massa de nenhum tipo.Ao contrário, ela se baseia no oposto — na apatia política e na abstenção de qualquercathexis da vida pública. A abstenção do voto é a marca do cidadão satisfeito, comoo Chanceler Britânico observou depois da última eleição no Reino Unido. Em ne-nhum outro lugar este axioma é mais amplamente aceito do que nos Estados Unidos,onde presidentes regularmente são eleitos por um quarto da população adulta. Mas— aqui está uma distinção essencial — o exercício da primazia americanarequeruma ativação do sentimento popular que vá além do mero consentimento ao statusquo doméstico. Este está longe de ser fácil ou continuamente disponível. A Guerra doGolfo foi aprovada por apenas um punhado de votos no Congresso. A intervenção naBósnia foi postergada por medo de uma reação não entusiasmada do eleitorado. Atémesmo aterrissagens no Haiti tinham que ser muito breves. Aqui sempre houve sériasrestrições ao Pentágono e à Casa Branca — o medo popular das perdas humanas, aignorância generalizada do mundo exterior, a indiferença tradicional com relação aosconflitos estrangeiros. De fato, há uma distância estrutural permanente entre a ampli-tude das operações militares e políticas que o Império Americano precisa para manter sua influência e a mudança de atenção ou comprometimentos dos eleitores ameri-canos. Para terminar, a ameaça de algum tipo é virtualmente indispensável. Nestesentido, assim como Pearl Harbour, os atentados de 11 de Setembro deram a umapresidência que estava de qualquer forma buscando alterar o modus operandi dosEstados Unidos no exterior a oportunidade para uma mudança muito mais rápida eambiciosa do que ela teria executado em outras circunstâncias. O círculo em torno deBush percebeu isso imediatamente, a secretária de segurança Rice comparou o mo-mento com a implementação da Guerra Fria — um equivalente político da Gênesis.9

O segundo desenvolvimento, de significância nada menor, foi germinando des-de meados da década de 1990. A Guerra dos Balcãs, válida como uma demonstraçãodo comando americano na Europa, e o levante na destituição de Miloševic, tambémtinha provido um prêmio de um tipo ainda mais conseqüente. Aqui, pela primeiravez, em condições próximas do ideal, podia ser testada o que especialistas tinhamprevisto como a iminente “revolução nos assuntos militares”. O que a RAM [Revo-lução nos Assuntos Militares] significava era uma mudança fundamental na naturezada Guerra através do uso de avanços eletrônicos nos sistemas de armas e comunica-ções. A campanha da OTAN contra a Iugoslávia ainda era um experimento novo,com erros técnicos e falhas de alvos para a destruição unilateral que essas inovaçõesabriram, mas os resultados eram promissores o suficiente para sugerirem o potencialpara um salto de qualidade na acurácia e efeito do poder de fogo americano. Naépoca em que os planos para a retaliação da Al-Qaeda estavam sendo preparados, aRAM tinha ido muito além. A blitz no Afeganistão, posicionando uma panóplia com-pleta de satélites, mísseis inteligentes, zumbidos, bombardeios secretos e forças espe-ciais apenas mostraram quão imensa tinha se tornado a disparidade tecnológica entreo armamento americano e aquele de todos os outros Estados e quão pequeno seria –para os EUA - o custo humano de futuras intervenções militares pelo mundo. Odesequilíbrio global nos meios de violência que certa vez a URSS tinha apagado temsido, de fato, redobrado, inclinando os constituintes da hegemonia ainda mais emdireção ao pólo de força, pois o efeito da RAM é criar um vácuo de poder de baixorisco em torno dos planos americanos, no qual os cálculos usuais dos riscos ou gan-hos da guerra são diluídos ou suspensos. O sucesso claro da operação afegã sobre umterreno geográfico e cultural proibitivo só podia encorajar qualquer administração amaiores impulsos imperiais.

Estas duas mudanças de circunstância – o estímulo do nacionalismo popularno velório de 11 de Setembro em casa e a nova latitude permitida pela RAM noexterior – foram acompanhadas por uma mudança ideológica. Este é o principal elemento de descontinuidade na estratégia global recente dos EUA. No lugar da retó-rica do regime de Clinton sobre a causa da justiça internacional e da paz democráti-ca, a administração Bush levantou a faixa da guerra ao terrorismo. Essas não sãorazões incompatíveis, mas a ordem de ênfase ligada a cada uma foi alterada. O resul-tado é um contraste forte de atmosfera. A guerra contra o terrorismo orquestrada porCheney e Rumsfeld é muito mais estridente, também irritadiça e gritante do que asdevoções adocicadas dos anos Clinton–Albright. O resultado político imediato decada uma também diferia. A linha nova e mais aguda de Washington foi mal recebidana Europa, onde o discurso dos direitos humanos era e é especialmente valorizado.Aqui, a linha anterior era claramente superior como idioma hegemônico.

Por outro lado, na Rússia e na China, o oposto aconteceu. Lá, a guerra ao terrorismo tem oferecido – de qualquer forma temporariamente — uma base melhor para integrar potências rivais sob a liderança americana do que a retórica dos direitos humanos, a qual apenas irritava os poderosos. No momento, os ganhos diplomáticos alcançados pela cooptação do regime de Putin, na campanha afegã e a instalação de bases americanas pela Ásia Central, podem muito bem ser vistos por Washington como mais substanciais do que os custos da lista sem fim de resmungos sobre ounilateralismo americano que é um traço tão marcado da cena europeia. O TMA[Tratado de Mísseis Antibalísticos] está morto, a OTAN está a caminho dos Estados Bálticos sem a resistência de Moscou e a Rússia está ansiosa para se unir ao concerto ocidental. A China, colocada de lado inicialmente pelo falatório republicano sobre Taiwan, também tem sido reafirmada pela guerra ao terrorismo, a qual dá a ela a cobertura da Casa Branca para a repressão étnica em Xinjiang.

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Se tal foi o balanço quando uma marionete americana foi colocada facilmenteem Kabul diante de aplauso universal — dos mulás iranianos aos philosophes fran-ceses, social-democratas escandinavos a agentes da polícia secreta russa, ONGs in-glesas e generais chineses— o que explica o projeto seguinte no Iraque? Uma políticamais dura com relação ao regime Ba’ath, já era clara durante a campanha eleitoral deBush  e previsível muito antes de 11 de Setembro, num momento em que o já longobombardeio anglo-americano do Iraque estava, de qualquer maneira, se intensifican-do.10 Desde então, sem dúvida, três fatores converteram o que era visto originalmentecomo operações encobertas para destituir Saddam nas propostas correntes para umainvasão pura e simples. O primeiro é a necessidade de algum resultado espetacularconclusivo para a guerra ao terrorismo. A vitória no Afeganistão, satisfatória em simesma, foi conseguida sobre um inimigo amplamente invisível e, até certo ponto, compensada psicologicamente pelos avisos contínuos do perigo de ataques posterio-res dos agentes escondidos da Al-Qaeda. Este tema, apesar de funcional por manterum alto estado de alarme público, carece, no entanto, de alguma resolução libertadora.A conquista do Iraque oferece o drama de um tipo maior e mais familiar cujo fimpoderia carregar um sentimento de que um inimigo-hidra foi realmente colocado forade ação. Para um público americano traumatizado por um novo sentimento de inse-gurança, distinções na taxonomia entre o mal de Kandahar e Baghdad não têm lugar.

No entanto, além dessa atmosfera, o impulso para atacar o Iraque obedece aum cálculo racional de natureza mais estratégica. É claro que o oligopólio nucleartradicional, indefensável em qualquer base, está destinado a ser mais e mais desafia-do na prática enquanto a tecnologia para fazer armas atômicas se torna mais baratae simples. O clube já foi desafiado pela Índia e pelo Paquistão. Para lidar com esteperigo que se aproxima, os EUA precisam tornar-se capazes de lançar ataques pre-ventivos a possíveis candidatos quando eles queiram. A Guerra dos Balcãs proveuum precedente vital para ignorar a doutrina legal da soberania nacional sem nenhumanecessidade de invocar a da autodefesa – algo sancionado anteriormente pela ONU.Na Europa, isso ainda era apresentado com freqüência como uma exceção triste aorespeito normal do direito internacional característico das democracias, exceção aci-onada por uma emergência humanitária. A noção de eixo do mal, por contraste, e aescolha subseqüente do Iraque como alvo, coloca a necessidade de uma guerra pre-ventiva e o reforço da mudança de regime como uma norma, como se o mundo,algum dia, viesse a se tornar seguro.

Por razões óbvias, essa concepção – diferente da batalha contra o terrorismoconstruída de forma mais estreita – pode tornar nervosos todos os centros de poderfora de Washington.  Suspeitas já foram expressas, ainda que não muito categorica-mente, pela França e pela Rússia, mas do ponto de vista de Washington, se o momen-to da guerra ao terrorismo pode ser usado para obrigar a ONU a aceitar de facto – oumelhor ainda, de jure – a necessidade de esmagar Saddam Hussein sem problemasposteriores. Então, ataques preventivos terão sido estabelecidos como parte do reper-tório  regular  da  manutenção  da  paz  democrática  em  escala  global.  Tal  janela  deoportunidade ideológica não deve ocorrer tão cedo. São as possibilidades jurídicasque ela abre para uma nova “constituição internacional”, na qual tais operações setornem parte de uma ordem habitual e legal, que excita tal teórico de intervenções dedireitos humanos anteriores como Philip Bobbitt, um admirador passional e conse-lheiro próximo de Clinton durante os ataques aos Bálcãs — sublinhando a extensãoà qual a lógica da prevenção é potencialmente bipartidária.11 Claro que, o fato de que o Iraque não tem armas nucleares tornaria um ataque a ele uma lição mais efetivapara evitar que outros tentem adquiri-las.

Uma terceira razão para atacar Bagdá é mais diretamente política do que ideológica ou militar. Aqui o risco é significantemente maior. A administração republicana está tão consciente quanto qualquer um na esquerda de que o 11 de Setembronão foi um ato maldoso sem motivação, antes uma resposta ao papel amplamente rejeitado dos Estados Unidos no Oriente Médio. Esta é uma região na qual – diferen-temente da Europa, Rússia, China, Japão ou América Latina – não há regimes comuma base confiável para oferecer pontos efetivos de transmissão para a hegemoniacultural ou econômica americana. Os Estados árabes mistos são dóceis o suficiente,mas eles carecem de qualquer forma de apoio popular baseando-se em redes familia-res e na polícia secreta, os quais compensam tipicamente a servilidade factual aosEstados Unidos com uma boa dose de hostilidade da mídia, isso para não falar dofechamento com relação à América. Realmente, de forma única, o cliente mais vali-oso e dependente de Washington na região, a Arábia Saudita, é o país mais protegidocontra a penetração cultural americana do que qualquer outro país do mundo depoisda Coréia do Norte.

Na prática, enquanto sujeito do poder “duro” americano (empréstimos e exér-citos), a maior parte do mundo árabe forma uma espécie de zona de exclusão para asoperações normais de “poder suave”, permitindo que fermentem todas os tipos deforças e sentimentos aberrantes sob a aparente tampa fechada dos serviços de segu-rança locais, assim como os ataques de 11/09 demonstraram. Vista sob esta luz, a Al-Qaeda poderia ser vista como um aviso dos perigos de confiar em um sistema decontrole por demais externo e indireto no Oriente Médio, uma área que também con-tém o volume principal das reservas de petróleo do mundo e que, portanto, não podeser deixada ao seu próprio cuidado como se fosse uma terra irrelevante como a maiorparte da África abaixo do Saara. Por outro lado, qualquer tentativa de alterar o apoiodo comando americano sobre a região, adulterando com os regimes existentes, pode-ria facilmente levar à queda de governos no estilo de Madame Nhu, o qual não cau-sou nada de bom aos Estados Unidos no Sudeste asiático. Em contraste, tomar oIraque daria a Washington uma plataforma rica em petróleo no centro do mundo árabe, na qual construiria uma versão ampliada da democracia de estilo afegão cria-da para mudar totalmente a paisagem política do Oriente Médio.

Claro, como muitos comentadores melhor dispostos se apressaram a apontar,reconstruir o Iraque pode provar ser um negócio arriscado e caro, mas os recursosamericanos são grandes e Washington pode esperar por um efeito Nicarágua depoisde uma década de mortalidade e desespero sob o cerco da ONU, contando com o fimdas sanções e completa suspensão da exportação de petróleo sob a ocupação ameri-cana,  para  melhorar  as  condições  de  vida  da  maioria  da  população  iraquiana  tãodramaticamente  de  forma  a  criar  o  potencial  para  um  protetorado  americano,  doestilo que já existe mais ou menos no setor Curdo do país. De forma diferente dogoverno sandinista, o regime de Ba’ath é uma ditadura sem piedade com pouca ounenhuma raiz popular. A administração Bush poderia contar com as chances de queum desenvolvimento nicaragüense, no qual uma população exausta troca indepen-dência por alívio material, é muito mais provável em Bagdá do que foi em Manágua.

Em troca, o efeito demonstrativo de um regime no modelo parlamentar sob atutelagem internacional  benevolente – talvez outra Loya Jirga do mosaico étnico nopaís – poderia ser calculado para convencer elites árabes da necessidade de moderni-zarem seus meios e as massas árabes da invencibilidade dos Estados Unidos. Nomundo muçulmano como um todo, Washington já conseguiu a conivência dos cléri-gos iranianos (conservadores e reformistas) para uma repetição do Enduring Freedomna Mesopotâmia. Nesses condições, assim vai o cálculo estratégico, o atrativo dotipo que originalmente trouxe a OLP até Oslo, depois da Guerra do Golfo, poderia setornar irresistível de novo, permitindo um acordo na questão palestina segundo li-nhas aceitáveis para Sharon.

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Este, de forma geral, é o pensamento por trás do plano republicano para ocu-par o Iraque. Ele envolve um risco como todos os empreendimentos geopolíticos quenunca podem confiar em todo agente relevante ou circunstância, mas um cálculo queerra no alvo não é, por isso,  necessariamente irracional. Ele se torna assim apenas seo  contexto  é  clara  e  altamente  contra  ele  ou  se  os  custos  potenciais  ultrapassemdemais os benefícios, mesmo que a oposição seja pequena. Nenhum dos dois parecemse aplicar neste caso. A operação é claramente dentro das capacidades americanas eseus  custos  imediatos,  os  quais  sem  dúvida  seriam  consideráveis,  não  parecemproibitivos. Claro que o que poderia atrapalhar seria a destituição repentina de um oumais dos regimes clientes dos Estados Unidos por multidões indignadas ou oficiaisraivosos. Segundo a natureza das coisas, é impossível dominar tais coups de théâtre,mas, como as coisas estão no momento, parece que Washington não tem sido irrealista ao descontar tal eventualidade. O regime do Iraque atrai muito menos simpatia doque a causa palestina e, ainda assim, as massas árabes foram incapazes de levantarum dedo para ajudar a segunda Intifada durante o esmagamento televisado por partedo ISF do levante nos territórios ocupados.

Por que o prospecto de Guerra causou tal desconforto, não tanto no OrienteMédio em que a gritaria da liga árabe é grandemente pro forma, mas na Europa? Nonível governamental, parte da razão está, como se tem notado com freqüência, nadistribuição oposta das populações judia e árabe nos dois lados do Atlântico. A Eu-ropa não tem nenhum equivalente estrito do poder da AIPAC nos Estados Unidos,mas ela contém milhões de muçulmanos: em cujas comunidades nas quais a ocupa-ção do Iraque poderia provocar mal estar, possivelmente causando, em condiçõesmais livres, turbulência indesejada na via árabe mesma, onde as reações a uma inva-são depois do evento podem se provar mais fortes do que a incapacidade de bloqueá-la  antes  sugeriria.  Os  países  da  União  Européia,  muito  mais  fracos  como  atoresmilitares ou políticos no palco internacional, são inerentemente mais cuidadosos doque os Estados Unidos. Obviamente, a Grã-Bretanha é a exceção e nela uma menta-lidade questionável levou a um outro extremo, caindo mais ou menos automatica-mente nas iniciativas do outro lado do oceano.

Em geral, enquanto os Estados europeus sabem que são subalternos aos Esta-dos Unidos e aceitam seu status, eles não gostam de ver isso exposto publicamente. Arejeição do Protocolo de Kyoto e da Corte Criminal Internacional por parte da admi-nistração Bush também ofenderam um senso de propriedade honestamente ligado àsformas externas da correção política. A OTAN recebeu atenção limitada na campa-nha afegã e tem sido completamente ignorada no caminho ao Tigre. Tudo isso temirritado as sensibilidades européias. Um ingrediente a mais na recepção hostil doplano de atacar o Iraque encontrou na intelligentsia européia – e em menor grau naliberal americana – o medo justificado de que o plano retiraria o véu humanitárioencobrindo as operações Bálcãs e Afegã para revelar nua e cruamente as realidadesimperiais por trás do novo imperialismo. Esta camada investiu muito na retórica dosdireitos humanos e se sente desconfortavelmente exposta pela aspereza do impulsoque está a caminho.

Na prática, tais suspeitas nada constituem além de um argumento de que qual-quer guerra que seja lançada deve ter a benção nominal das Nações Unidas. A admi-nistração republicana tem sido feliz ao ajudar, explicando com perfeito candor, queos Estados Unidos sempre se beneficiam se podem agir multilateralmente, mas, dequalquer forma, se não puderem, agirão unilateralmente. Uma Resolução do Conse-lho de Segurança moldada vagamente o suficiente para permitir um ataque america-no ao Iraque logo após certo tempo de uma espécie de ultimato seria suficiente para apaziguar consciências européias e deixar o Pentágono seguir com a guerra. Um mêsou dois de massagem oficial permanente da opinião em ambos os lados do Atlânticoé capaz de fazer maravilhas. Apesar da imensa manifestação anti-guerra em Londresneste outono [2002], três quartos do público britânico apoiariam um ataque ao Iraque,dando às Nações Unidas sua folha de parreira.12 Neste evento, é bem possível que ochacal francês estará também na matança. Na Alemanha, Schroeder aproximou-seda oposição popular à Guerra para escapar da derrota eleitoral, mas como seu paísnão é membro do Conselho de Segurança, seu gesto não tem custo. Na prática, a República Federal fornecerá todos os postos necessários para uma expedição ao Iraque- um serviço estratégico consideravelmente mais importante para o Pentágono do quea provisão de comandos britânicos ou de paramilitares franceses. Sobretudo, a aqui-escência européia na campanha pode ser tomada como certa.

Isto não significa que haverá um entusiasmo generalizado pela guerra na UniãoEuropéia além da Downing Street. A aceitação factual para um ataque armado é umacoisa, apoio ideológico é outra. A participação na expedição ou, mais provavelmen-te, na ocupação que se seguirá a ela, provavelmente, não cancelará o ressentimentosobre a extensão em que a Europa foi ignorada na empreita. A demonstração dasprerrogativas americanas – “o punho de ferro unilateralista dentro da luva de veludomultilateralista”  como  Robert  Kagan  (2002)  definiu  acidamente  –  pode  procederainda por algum tempo.13

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Isso significa, como protesta um coro de vozes estabelecidas tanto na Europacomo nos Estados Unidos, que a “unidade do Ocidente” corre o risco de ser quebradade forma duradoura pelo autoritarismo de Cheney, Rumsfeld e Rice? Ao consideraresta questão é essencial ter em mente a figura formal de qualquer hegemonia, a qual,necessariamente sempre conjuga um poder  particular com uma tarefa geral de co-ordenação. O capitalismo, como uma ordem econômica abstrata, requer certas con-dições universais para sua operação: direitos estáveis de propriedade privada, normaslegais previsíveis, alguns procedimentos de arbitragem e, crucialmente, mecanismospara garantir a subordinação do trabalho, mas este é um sistema competitivo cujomotor é a rivalidade entre agentes econômicos. Tal competição não tem nenhum teto“natural”: desde que ela se torne internacional a luta darwiniana entre firmas temuma tendência inerente a escalar ao nível dos Estados. No entanto, neste nível, elapode ter conseqüências desastrosas para o próprio sistema, como a história da primeira metade do século XX mostrou repetidamente, pois, no plano das relações inter-Estados, há apenas equivalentes fracos do direito doméstico e nenhum mecanismopara agregar interesses entre diferentes partidos de forma eqüitativa, assim comodentro de democracias eleitorais.

Livre, a lógica de tal anarquia só pode ser a guerra generalizada do tipo queLênin descreveu em 1916. Kautsky, ao contrário, abstraindo os interesses conflitantese a dinâmica dos Estados concretos daquele tempo, chegou à conclusão de que ofuturo do sistema deve, para seu próprio interesse, residir na emergência de mecanis-mos de coordenação capitalista internacional capaz de transcender tais conflitos ou oque ele denominava “ultra-imperialismo”.14 Este era um prospecto que Lênin rejeita-va como utópico. A segunda parte do século produziu uma solução não imaginadapor nenhum pensador, mas vislumbrada por Gramsci, pois, no devido momento, fi-cou claro que o problema de coordenação pode ser resolvido satisfatoriamente ape-nas pela existência de um poder superordenador capaz de impor disciplina no sistemacomo um todo no interesse comum de todas as partes. Tal “imposição” não pode serproduto da força bruta. Ela também deve corresponder a uma capacidade genuína depersuasão: idealmente, uma forma de liderança que pode oferecer o modelo maisavançado de produção e cultura de seu tempo como alvo de imitação para todos osoutros. Esta é a definição de hegemonia como uma unificação geral do campo docapital.

Mas, ao mesmo tempo, a hegemonia deve – pode apenas – ser um Estadoparticulare, como tal, inevitavelmente constituído por uma história diferente e umarede de peculiaridades nacionais que o distinguem de todos os outros. Esta contradi-ção está inscrita desde o início na filosofia de Hegel, na qual a necessidade deencarnação da razão em apenas umEstado histórico-mundial em cada período dadonunca pode apagar inteiramente a multiplicidade de formas políticas em torno dele.15De forma latente, o singular universal sempre se mantém em variância com amultiplicidade empírica. Esta é a posição conceitual em que o “excepcionalismo”americano deveria ser visto. Todos os Estados são mais ou menos excepcionais, nosentido de que eles possuem características únicas. No entanto, por definição, umEstado hegemônico possuirá traços que não poderão ser compartilhados por outros,já que são precisamente esses que o elevam acima do nível dos seus rivais. Mas aomesmo tempo, seu papel requer que ele seja tão próximo do modelo generalizável –isto é, reproduzível – quanto possível. Claro que a quadratura deste círculo é impos-sível no fim, razão pela qual há um coeficiente de fricção em qualquer ordemhegemônica. Estruturalmente, uma discrepância é construída dentro da harmonia que deveria ser instalada. Neste sentido, vivemos em um mundo em que é inseparável –de uma forma que nenhum deles poderia prever – o passado descrito por Lênin e ofuturo antecipado por Kautsky. O particular e o geral estão condenados um ao outro.A união só pode ser compreendida pela divisão.

Nos Cadernos que ele escreveu na prisão, Gramsci teorizou a hegemonia comouma síntese distintiva da “dominação” e da “direção” ou um equilíbrio dinâmico deforça e consentimento. O foco principal de sua atenção foi nas formas variadas emque este balanço podia ser alcançado, ou quebrado, dentro de Estados nacionais, masa lógica da teoria dele, da qual estava consciente, se estendia também para o sistemainternacional. Também neste nível, os elementos de hegemonia são distribuídosassimetricamente.16 A dominação – o exercício da violência como a última moeda dopoder – tende necessariamente em direção ao pólo da particularidade. O Estadohegemônico deve possuir força militar superior, um atributo nacional que não podeser alienado ou compartilhado como a principal condição de sua influência. Por ou-tro lado, a direção ou a capacidade ideológica de ganhar consentimento é uma formade liderança cujo apelo é, por definição, geral. Isso não significa que uma síntesehegemônica requer, portanto, uma estrutura persuasiva que é tão puramente interna-cional como sua estrutura coercitiva deve ser irredutivelmente nacional. O sistemaideológico de um Estado hegemônico não podederivar apenas de sua função decoordenação geral. Ele também refletirá, inevitavelmente, a matriz particular de suaprópria história social.17 Quanto menos marcada a distância entre estas duas, claro,mais efetivo ele será.

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No caso dos Estados Unidos, o grau dessa distância – a proximidade da junção– é um reflexo dos traços principais do passado do país. Uma longa literatura foidesenvolvida sobre a exceção americana, mas a única excepcionalidade que realmen-te interessa, já que todas as nações são, a seu modo, sui generis, é a configuração quefundou sua hegemonia global. Como ela é melhor expressa? Ela se assenta na virtu-almente perfeita relação que o país oferece entre condições geográficas e sociaisótimas para o desenvolvimento capitalista, ou seja, uma escala continental de territó-rio, recursos e mercado, protegidos por dois oceanos, o que nenhum outro Estado-Nação se aproxima de ter; uma população de imigrantes que forma uma sociedadecom virtualmente nenhum passado pré-capitalista além de seus habitantes locais, escravos e credos religiosos, e associados apenas pelas abstrações de uma ideologiademocrática. Aqui são encontrados todos os requisitos para um crescimento econô-mico espetacular, poder militar e penetração cultural. Politicamente, já que o capitalsempre comandou sobre o trabalho num nível desconhecido em outras sociedadesindustriais avançadas, o resultado é uma paisagem doméstica bem à direita delas.

Na Europa Ocidental, por outro lado, virtualmente, todos os termos da equa-ção americana são invertidos. As nações-estado são pequenas ou de porte médio,facilmente cercáveis ou invadidas, as populações freqüentemente remontam à eraneolítica, as estruturas sociais e culturais estão saturadas com traços de origem pré-capitalista, o balanço de forças é menos desvantajoso para o trabalho e mais longe, areligião é uma força agente. Conseqüentemente, o centro de gravidade dos sistemaspolíticos europeus está mais à esquerda do americano, mais socialmente protetor e dobem-estar social, mesmo sob governos de direita.18 Nas relações entre Europa e Esta-dos Unidos há, portanto, material abundante para todos os tipos de fricção, até mes-mo combustão. Não é nenhuma surpresa que fagulhas tenham surgido na situaçãotensa corrente. No entanto, a questão política relevante é se estas prognosticam algu-ma modificação no balanço de poder entre os dois agora que a União Européia adqui-re um senso mais forte de sua própria identidade.

Observando os dois centros capitalistas comparativamente, o contraste entreseus estilos internacionais é claro o suficiente. A abordagem européia característicacom relação à Nova Ordem Mundial se dá através da experiência interna da integraçãogradual dentro da própria UE: diplomacia baseada em tratados, incremento na sobe-rania em grupo, ligação legalista ao governo formal, preocupação volúvel pelos di-reitos humanos. As práticas estratégicas americanas, baseadas numa concepçãocentro-periferia de relações inter-Estados são mais ásperas e bilaterais. Mas a diplo-macia americana sempre teve duas línguas: uma descende dos axiomas de macho deTheodore Roosevelt, a outra da hipocrisia presbiteriana de Woodrow Wilson.19 Estassão, respectivamente, os idiomas nacional e internacional do poder americano. En-quanto no início do século XX, o último era mais estranho para os europeus, hoje elese tornou a balsa atlântica à qual as suscetibilidades da União Européia se prendemdesesperadamente. Mas ambos são quintessencialmente americanos. Boa parte dacomoção recente no establishment intelectual democrata dentro dos EUA consistiuem um lembrete para a Casa Branca da necessidade de oferecer ao mundo uma mistura mais palatável dos dois.20 A Estratégia de Segurança Nacional entregue porBush no dia 21 de Setembro ao Congresso foi ao encontro da demanda com confian-ça. Nela, para ouvintes em casa ou no exterior, está um dueto perfeito de duas vozesde “um distintivo internacionalismo americano”. A frase é bem escolhida. O exercí-cio da hegemonia requer apenas tal dualidade.

A direção americana do globo, como oposta à dominação, não se assenta,claro, simplesmente em uma crença ideológica. Historicamente, tem sido o poder dosmodelos americanos de produção e cultura que estenderam o alcance de sua hegemonia.Ao longo do tempo, os dois têm se tornado crescentemente unificados na esfera doconsumo para oferecer um único modo de vida como padrão para o mundo, mas,analiticamente, eles deveriam ser mantidos distintos. O poder do que Gramsci teorizoucomo fordismo, o desenvolvimento da administração científica e as primeiras linhasde produção do mundo, está em suas inovações técnicas e organizacionais, as quais,em sua época, já tinham tornado os Estados Unidos a sociedade mais rica existente.Enquanto esta liderança econômica foi mantida, em décadas recentes, ela teve suassubidas e descidas, os EUA podiam figurar num imaginário mundial como o pontofinal da modernidade: aos olhos de milhões de pessoas além dos oceanos, a forma devida que traçava um formato ideal de seus próprios futuros. Essa imagem era, e é,resultado do avanço tecnológico.

Por outro lado, o espelho cultural que os EUA ofereceram ao mundo deve seusucesso a outra coisa. Aqui, o segredo da hegemonia americana repousou em abstra-ção formular, a base da fortuna de Hollywood. Num continente vasto de imigrantesheterogêneos vindos de todos os cantos da Europa, os produtos da indústria culturaltinham que ser, desde o começo, tão genéricos quanto possível para maximizaremsua parte do mercado. Na Europa, cada filme surgia e tinha que lidar com culturascom uma densa sedimentação de tradições particulares, costumes, línguas herdadasdo passado nacional, inevitavelmente gerando um cinema com um conteúdo altamen-te local com pouca chance de viajar. Nos EUA, por sua vez, públicos imigrantes comconexões enfraquecidas com passados heteróclitos só podiam ser agregados por nar-rativas e esquemas visuais despidos aos denominadores comuns mais abstratos erepetitivos. Logicamente, as linguagens cinematográficas que resolveram este pro-blema eram as que continuaram a conquistar o mundo, onde o melhor na simplifica-ção e repetição dramática, entre mercados ainda mais heterogêneos, era ainda maior.A universalidade das formas hollywoodianas - a TV americana quase nunca tem sido capaz de repetir seus sucessos - deriva de sua tarefa originária, ainda que, comoqualquer outra dimensão da hegemonia americana ela retirou força do solo expressa-mente nacional com a criação de gêneros grandemente populares retirados de mitosda fronteira, do submundo, da guerra do Pacífico.

Por fim, mas não por menos, havia a moldura legal da produção e da cultura:desincumbidos de direitos de propriedade, litígios sem limites, a invenção dacorporação. Aqui também, o resultado foi a criação do que Polanyi mais temia: umsistema jurídico liberando o mercado tanto quanto possível dos laços do costume, datradição ou da solidariedade, e a própria abstração deles, mais tarde, provou que,empresas americanas como filmes americanos seriam exportáveis e reproduzíveisatravés do mundo de uma forma que nenhum outro competidor conseguiria se igua-lar.21 A firme transformação do direito mercante internacional e da arbitração emconformidade com padrões norte-americanos é testemunha desse processo. O campopolítico propriamente é outra questão. Não obstante a universalidade formal da ide-ologia da democracia americana, intocada pelas complicações da Revolução France-sa, as estruturas constitucionais do país careceram deste poder de atração.22Permanecendo em sua maior parte atracadas às organizações do século XVIII, estasdeixaram o resto do mundo relativamente frio; porém, com o avanço do dinheiro e dapolítica televisiva, afetados pela sua corrupção.

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Como a União Européia permanece em relação a este complexo? A populaçãoe a produção da UE excedem aquelas dos EUA e compõem um mosaico de modelossociais amplamente considerados mais humanos e avançados do que o americano,mas esses são caracteristicamente embebidos em legados históricos locais de todotipo. A criação de um mercado único e a introdução de uma moeda única estãocomeçando a unificar condições de produção, especulação e consumo, mas continuaa haver pouca mobilidade de trabalho ou de cultura compartilhada, alta ou baixa, nonível do continente. A última década viu um aumento da discussão sobre a necessida-de da União adquirir mais das características de um Estado tradicional e seus povosuma identidade comum. Agora, há até mesmo uma convenção constitucional comstatus aconselhador. Mas o mesmo período também viu paradigmas econômicos,sociais e culturais do Novo Mundo se espalharem firmemente pelo Velho. A extensãodesse processo pode ser exagerada: os dois ainda parecem, e continuam, muito dife-rentes, mas as tendências de mudança são todas em uma única direção. Da flexibilidade do mercado de trabalho, o valor dos acionistas e contribuições definidas para osconglomerados da mídia, contribuição trabalhista e realidade televisiva, a mudançatem sido dos padrões tradicionais para os americanos. Apesar do grande investimen-to europeu nos Estados Unidos, não há nenhuma evidência de alguma influênciarecíproca. Este é o unilateralismo que mais conta, ainda que apareça menos no livrocorrente de reclamações.

Politicamente, por outro lado, onde o sistema americano está petrificado, oeuropeu está, teoricamente, em modificação, mas a União não é um Estado e osprospectos de algo similar emergir estão diminuindo. No papel, o aumento da UEpara o Leste é uma empresa de magnitude mundial e histórica numa escala paraigualar a ambição americana mais heróica. Na prática, seguindo o rastro morto daexpansão americana da OTAN, a empresa parece grandemente um projeto omisso,sem nenhum objetivo constitucional ou geopolítico claros, o que, a partir do que semostra no presente, tende a distender e enfraquecer ainda mais o já semi-paralizadogrupo de instituições em Bruxelas. Na prática, o abandono do aprofundamento fede-rativo só pode levar a uma estratificação de nações, já que a hierarquia de estados-membros existente se torna uma pirâmide aberta sem uma convenção, com um anexosemicolonial ao Leste: a Bósnia obviamente. No topo do próprio sistema, deixado emdescendência, os limites da coerência são colocados por assincronias recorrentes nocírculo político dos países líderes assim como, hoje, os governos de centro-esquerdamandam em Berlin e Londres, centro-direita em Paris, Roma e Madri. Em tais condi-ções, as políticas externas da Comunidade tendem a se tornar pouco mais do que umabusca pelo denominador comum mais alto de vapor ideológico.23 Qualquer que seja alógica da construção pan-européia no longo prazo, hoje, a UE não está em condiçõesde se desviar ou ameaçar qualquer iniciativa maior dos Estados Unidos.

Segue-se que não há mais nenhuma “fórmula orgânica” da hegemonia neoliberalatravessando o todo do mundo capitalista avançado. 24 A conquista republicana daCasa Branca em 2000 não refletiu nenhuma mudança maior da opinião pública nosEstados Unidos, mas, essencialmente, o faux frais da conduta de Clinton para acausa democrata. No poder, a nova administração explorou, habilmentesuperinterpretada, seu arrendamento para dar uma volta rápida na retórica, e atécerto ponto da prática, de seu antecessor. Na Europa, a centro-direita obteve vitóriasconvincentes na Itália, Dinamarca, Holanda e Portugal, enquanto a centro-esquerda manteve-se na Suécia e, sem dúvida, logo ganhará novamente a Áustria. Mas naFrança e na Alemanha, os dois países centrais da União, os resultados eleitoraisopostos que mantiveram Chirac e Schroeder no poder foram igualmente adventícios:um salvo pela sorte da dispersão do voto, o outro pelas águas de um ato de deus. Nema centro-direita na França nem a centro-esquerda na Alemanha têm muita conexãocom a população. Neste cenário tão leve, políticas, freqüentemente, são o inverso dosrótulos. Hoje, o SPD se arvora no corpete de ferro do Pacto de Estabilidade enquantoBerlusconi e Chirac pleiteiam por um afrouxamento keynesiano.

Em outras palavras, como pode ser deduzido do momento contingente vindodos próprios Estados Unidos, não tem ocorrido nem uma extensão da vida da Tercei-ra Via nem uma mudança geral da maré em direção a uma versão mais dura doneoliberalismo no estilo que tomou lugar com Thatcher e Reagan. Nós voltamos àscircunstâncias quadriculadas dos anos setenta, nas quais não havia nenhum padrãoclaro de alinhamentos políticos domésticos na OECD. Nessas condições, podemosesperar que o baixo nível do volume de disputa e recriminação dentro do bloco atlân-tico suba. A distância entre as lâminas de consentimento e força dentro do sistema dahegemonia americana que se tornou possível com o fim da Guerra Fria está se tor-nando mais real.

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Seu sintoma imediato, claro, é o surgimento de protesto entre a intelligentsiaatlântica, poderosa no lado da UE, substancial nos EUA, contra a embaraçosa Guer-ra no Iraque. No momento em que escrevo continuam a se seguir, na mídia, umatorrente de preocupações de que os Estados Unidos esqueceram sua melhor identida-de, invocações das Nações Unidas, elogios aos valores europeus, temores de danosaos interesses ocidentais no mundo árabe, esperanças no general Powell, cumprimen-tos ao Chanceler Schroeder. As guerras do Golfo, dos Balcãs e do Afeganistão nosdão a compreender, foram uma coisa. Essas foram expedições que comandaram oapoio enfático desse estrato — seu aplauso sóbrio acompanhado, claro, pelas gotasde observações críticas que denotam qualquer intelectual que se respeita, mas umataque americano ao Iraque é outra coisa, as mesmas vozes explicam, já que ele nãotem a mesma solidariedade da comunidade internacional e requer uma doutrina in-concebível de prevenção. Ao que a administração republicana não tem nenhuma difi-culdade em responder com as palavras firmes de Sade: “Encore un effort, citoyens”.A intervenção militar para prevenir o risco da limpeza étnica em Kosovo violou asoberania nacional e desobedeceu a carta da ONU quando a OTAN assim decidiu.Então por que não a intervenção militar para prevenir o risco de armas de destruiçãoem massa no Iraque, com ou sem a aquiescência da ONU? O princípio é exatamente o mesmo: o direito, a obrigação mesmo, dos Estados civilizados de eliminar as pioresformas de barbárie dentro de quaisquer fronteiras nacionais onde elas ocorram parafazer do mundo um lugar mais seguro e pacífico.

A lógica é sem resposta e, na prática, o resultado será o mesmo. A Casa Brancanão parece ser passível de ser enganada sobre sua força por quaisquer concessões doregime Ba’ath em Bagdá. Um congresso democrata poderia, até agora, criar mais difi-culdades para ela e, a qualquer momento, uma queda brusca em Wall Street continua aser um risco para a administração, mas a probabilidade continua a ser a guerra; e coma guerra, a certeza é uma ocupação do Iraque, para o aplauso da comunidade interna-cional, incluindo a esmagadora maioria dos comentadores e intelectuais que agorachacoalham suas mãos contra o “unilateralismo” de Bush. Repórteres do New Yorker edo Le Monde, da Vanity Fair e da New York Review of Books, do Guardian e do LaRepubblica, descerão numa Bagdá liberta e, naturalmente, com um realismo alto etodas as qualificações necessárias, saudarão a tímida aurora da democracia árabe,assim como, antes, a dos Balcãs e a afegã. Com a redescoberta que, depois de tudo, aúnica revolução é americana, o poder e a literatura podem cair uns nos braços do outronovamente. A tempestade na xícara de chá atlântica não durará muito.

A reconciliação é ainda mais previsível já que a mudança corrente de ênfase doque é “cooperativamente aliado” do que é “distintivamente americano” dentro da ideo-logia imperial é, por sua natureza, tendente a ter vida curta. A “Guerra ao Terrorismo”é um passo temporário na estrada real que leva aos “direitos humanos e à liberdade”mundo afora. Produtos de uma emergência, seus objetivos negativos não são substitu-tos para os ideais permanentes e positivos que uma hegemonia exige. Funcionalmente,assim que o peso relativo da força aumenta dentro da síntese americana e o consenti-mento declina a importância de uma versão “mais leve” de seu conjunto de justificati-vas aumentará, precisamente para mascarar o desequilíbrio que a versão “dura” ameaçaacentuar. Num futuro não muito distante, as viúvas de Clinton encontrarão consolo.Qualquer que seja o resultado no Oriente Médio, o estalar da economia dos EstadosUnidos, onde, de qualquer forma, se assentam as fundações últimas da hegemoniaamericana, não promete à administração republicana um longo controle.

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É necessário dizer que a guerra, se ela vier a ocorrer, deveria ser combatida? O tecidode crueldades e hipocrisias que justificaram o bloqueio ao Iraque durante uma década, aocusto de centenas de milhares de vidas não requer nenhuma exposição mais aprofundadanestas páginas.25 As armas de destruição em massa do regime Ba’ath são frágeis compara-das com as pilhas acumuladas por Israel e vistas de relance pela “comunidade internacional”; sua ocupação do Kuwait foi uma decorrência do registro do Banco Ocidental; o assas-sinato de seus próprios cidadãos ultrapassou em muito o da ditadura na Indonésia saudadaem Washington ou Bonn até o último dos seus dias. Não são as atrocidades de SaddamHussein que atraíram a hostilidade de sucessivas administrações americanas e de seus vári-os colegas europeus, mas sua ameaça potencial a posições imperiais no Golfo e, maisclaramente, à estabilidade colonial na Palestina. A invasão e a ocupação são um resultadológico do estrangulamento do país desde a operação Tempestade no Deserto. As disputasnas capitais ocidentais sobre proceder a conclusões definitivas ou manter a asfixia até o fimsão diferenças de tática e de tempo, não de humanidade ou princípio.

As administrações republicanas e democratas nos Estados Unidos não são asmesmas no mesmo nível que os governos de centro-direita e centro-esquerda na Eu-ropa. É sempre necessário registrar as diferenças entre elas, mas estas raramente sãodistribuídas num contínuo moral de bem ou mal decrescentes. Os contrastes estãosempre mais próximos da mistura. Assim é hoje. Não há por que lamentar que aadministração Bush desmentiu a charada infeliz da Corte Criminal Internacional oucolocou de lado as folhas de parreira murchas do Protocolo de Kyoto, mas há todarazão para resistir à sua erosão das liberdades civis nos Estados Unidos. A doutrinada ação preventiva é uma ameaça para qualquer Estado que venha a cruzar o cami-nho do Estado hegemônico ou seus aliados, mas não é melhor quando proclamada emnome dos direitos humanos ao invés da não proliferação de armas. O que é molhopara o ganso dos Bálcãs é molho para o ganso da Mesopotâmia. Os protestantes quefingem o contrário merecem menos respeito do que aqueles a quem eles implorampara não agirem segundo premissas comuns. A arrogância da “comunidade interna-cional” e seus direitos de intervenção pelo globo não é uma série de eventos arbitrá-rios ou episódios desconexos. Eles compõem um sistema que precisa ser combatidocom uma coerência não inferior à sua própria.

Referências

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Notas:

1 No que segue, que deve muito a um debate entre Gopal Balakrishnan e Peter Gowan, a noção dehegemonia é tirada de seu uso em Gramsci. O termo recentemente recebeu um outro significado no muitopoderosamente discutido livro de John Mearsheimer Tragedy of Great Power Politics; para o qual consultePeter Gowan, ‘A Calculus of Power’, 2002.

2 O exercício “‘normal’ da hegemonia”, ele escreveu, “é caracterizado pela combinação de força econsentimento, em equilíbrio variado, sem a força predominando muito sobre o consentimento’. Mas emcertas situações, onde o uso da força era muito arriscado, ‘entre consentimento e força fica a corrupção-fraude, que é a enervação e paralisia do antagonista ou antagonistas’”. (GRAMSCI, 1975, p.1638)

3 Os dois casos não são idênticos, mas em cada um, ao lado de considerações pecuniárias, tem havidoum elemento de submissão moral. Num cálculo puramente material de vantagem, os mandatários daRússia e da China fariam melhor se exercessem seus vetos de vez em quando para aumentarem seuspreços. Que eles falharam em ver tal lógica óbvia de venalidade política sugere o grau em que elesinternalizaram a autoridade hegemônica.

4 Para Kofi Annan, veja Colette Braeckman, (2001, p. 145–7); Peter Gowan, (2001, p. 84).

5 Para uma discussão deste passado vide David Chandler (2000, p. 55-60)

6 Veja Bob Woodward, “We Will Rally the World”, Washington Post, 28 January 2002, o qual reporta queRumsfeld pressionou por Guerra contra o Iraque na manhã de 12 Setembro; e para a posição de Rice nasituação, Nicholas Lernann, “The Next World Order”, New Yorker, 1 April 2002, p. 42-8.

7 Para a escalada de ataques aéreos no Iraque sob Clinton e Blair veja Tariq Ali (2001, p. 5–6).

8 O ex-presidente dos EUA Bill Clinton, o Primeiro Ministro Britânico Tony Blair e o Chanceler alemãoGerhard Schroeder, os quais têm sido amplamente criticados em seus respectivos partidos, serão vistoscomo arquitetos tentando uma mudança profunda na ordem constitucional de uma magnitude não menor do que a de Bismarck. Como no escrito, o presidente americano George W. Bush parece estar seguindoo mesmo caminho ...“Nenhuma soberania de Estado é intocável  se ela refuta instituições parlamentarese proteções aos direitos humanos. Quanto maior a rejeição dessas instituições, as quais são os meiossegundo os quais a soberania é concedida pelas sociedades para seus governos, mais agudamente curtoé o manto de soberania que de outra forma protegeria governos da interferência de seus pares. A açãodos EUA contra a soberania do Iraque, por exemplo, deve ser avaliada sob esta luz”: The Shield of Achilles(BOBBIT, 2002, p. xxvii; 680). Esta obra é a teorização mais extensa do imperativo constitucional paraesmagar Estados que não respeitam suficientemente os direitos humanos ou o oligopólio das armasnucleares. A homenagem ao Chanceler Schroeder pode ser ignorada como uma desculpável expectativade sua alta vocação.

9 "Multilateralism, American Style", Washington Post, 14 September 2002.

10 Para a previsão de Kautsky veja o texto Ultra-Imperialism (1970, p. 41-6), o qual ainda é a única tradução[para o inglês].15 Para esta tensão no pensamento de Hegel veja “The Ends of History” (1992, p. 292).

11 For this tension in Hegel’s thought, see ‘The Ends of History’, A Zone of Engagement, London 1992, p. 292.

12 Para a assimetria dentro de qualquer Estado nacional veja Anderson, P. The Antinomies of Antonio Gramsci (1977, p. 41).

13 Em outras palavras, o “Estado universal e homogêneo” imaginado por Alexandre Kojève continua forade alcance. Para sua concepção ver: Kojève (1992, p. 315-9).

14 Assim Berlusconi, epítome da direita mais temida pela esquerda na Europa, poderia de muitas formasser visto como mais à esquerda do que Clinton, o qual construiu muito de sua carreira nos EUA baseadoem políticas, execuções no Arkansas, ceifando o bem-estar social em Washington, que seriam impensáveispara qualquer Primeiro Ministro na Itália.

15 Isto é, claro, um resumo. Uma genealogia mais complexa é oferecida por Walter Russell Mead emSpecial Providence (2001), o qual distingue entre linhas derivando de Hamilton, Jefferson, Jackson eWilson.

16 Para um bom exemplo veja Michael Hirsh (2002, p. 18-43), cheio de protesto sobre a importância daconsulta com aliados, santidade dos acordos internacionais, valor de ideais sublimes enquanto, ao mesmotempo, torna claro que “os aliados dos EUA devem aceitar que certo unilateralismo americano é inevitável,até mesmo desejável. Isso envolve principalmente aceitar a realidade do poder supremo norte-mericano e,com verdade, apreciar como eles são historicamente sortudos por serem protegidos por tal potênciarelativamente benigna”.

17 Para este fenômeno veja as observações em John Grahl (2001, p. 28-30).

18 No máximo, difundindo a peste do presidencialismo em formas caricaturais: a Rússia é o exemploóbvio. Da safra recente de novas democracias, nenhum Estado do Leste Europeu imitou o modeloamericano.

19 Isto é também, claro, uma função da provincialização das culturas européias nos anos recentes. Échocante quão pouco pensamento geopolítico sério de qualquer tipo é produzido na Europa agora. Estamosmuito longe dos dias de Schmitt ou Aron. Virtualmente, todo pensamento deste tipo agora vem dos EstadosUnidos, onde as exigências do império construíram um campo intelectual impositivo nos últimos vinteanos. A última obra de presciência real a aparecer no outro lado do Atlântico foi, provavelmente, o LesEmpires contre l’Europe de Régis Debray, o qual apareceu em 1985. 

20 Para uma discussão dessa noção veja: Anderson (2001, p. 5-22).

21 Para uma discussão completa desses pontos veja o editorial de Tariq Ali, ‘Throttling Iraq’ (2001, p. 5-6).

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