O que significa ser um radical?
Monthly Review Volume 54, Number 6 (November 2002) |
Tradução / No início deste ano, Stephen Jay Gould desenvolveu um câncer no pulmão que se alastrou tão rapidamente que já não havia qualquer esperança de sobrevivência. Faleceu em 20 de maio de 2002, aos 60 anos. Vinte anos antes escapara à morte por um mesotelioma, induzido, como supomos, por alguma exposição ao amianto. Ainda que a sua cura tenha sido completa, nunca perdeu a consciência da sua mortalidade dando a sensação, pelo menos aos seus amigos, de uma quase bem disposta aceitação do inevitável. Tendo sobrevivido a um câncer que foi provavelmente consequência de um envenenamento ambiental, sucumbiu a outro.
A vida pública, intelectual e política de Steve Gould foi extraordinária, senão única. Primeiro, foi um biólogo evolucionário e historiador da ciência cujo trabalho intelectual teve um impacto maior na nossa visão do processo evolutivo. Segundo, foi, de longe, o divulgador científico mais amplamente conhecido. Terceiro, foi um ativista político consistente no apoio ao socialismo e na oposição a todas as formas de colonialismo e opressão. A figura que mais se lhe aproxima neste aspecto foi a do biólogo britânico da década de 30, J. B. S. Haldane, um dos fundadores da moderna teoria genética da evolução, um maravilhoso ensaísta sobre ciência para o público genérico, e um marxista peculiar, colunista no Daily Worker que acabou por se afastar do Partido Comunista devido à exigência de que o seu trabalho científico seguisse a doutrina partidária.
O que caracteriza o trabalho de Steve Gould é o seu radicalismo consistente. A palavra radical tornou-se sinônimo de extremista no uso corrente: a Monthly Review é uma publicação radical para os leitores do Progressive; Steve Gould submeteu-se a uma cirurgia radical quando os tumores foram removidos do seu cérebro; e um radical é alguém que está abertamente no campo da esquerda (ou da direita). Mas uma breve incursão ao Oxford English Dictionary recorda-nos que a origem da palavra radical é, de facto, radix , a palavra latina para raiz. Ser radical é considerar as coisas desde a sua raiz, ir à origem do paradigma, tentar reconstituir a ação e as ideias desde os primeiros princípios. O impulso para ser radical é o impulso para perguntar, “Como sei aquilo?” e “Porque estou a seguir este percurso ao invés de outro?” Steve Gould possuía esse impulso radical e seguia-o onde era importante.
O que caracteriza o trabalho de Steve Gould é o seu radicalismo consistente. A palavra radical tornou-se sinônimo de extremista no uso corrente: a Monthly Review é uma publicação radical para os leitores do Progressive; Steve Gould submeteu-se a uma cirurgia radical quando os tumores foram removidos do seu cérebro; e um radical é alguém que está abertamente no campo da esquerda (ou da direita). Mas uma breve incursão ao Oxford English Dictionary recorda-nos que a origem da palavra radical é, de facto, radix , a palavra latina para raiz. Ser radical é considerar as coisas desde a sua raiz, ir à origem do paradigma, tentar reconstituir a ação e as ideias desde os primeiros princípios. O impulso para ser radical é o impulso para perguntar, “Como sei aquilo?” e “Porque estou a seguir este percurso ao invés de outro?” Steve Gould possuía esse impulso radical e seguia-o onde era importante.
Primeiro, Steve era radical na sua ciência. A sua mais conhecida contribuição para a biologia evolucionária foi a teoria do equilíbrio pontuado que desenvolveu com o seu colega Niles Eldridge. A teoria padrão da mudança da forma de organismos no tempo evolutivo é que ela ocorre constantemente, paulatinamente e gradualmente com mudanças mais ou menos iguais a acontecerem em iguais intervalos de tempo. Esta parece ter sido a visão de Darwin, embora a prosa de Darwin no século XIX admita quase qualquer leitura. A genética moderna mostrou que qualquer mudança hereditária no desenvolvimento que seja provável sobreviver causará apenas uma ligeira alteração no organismo, que tais mutações ocorrem a uma taxa razoavelmente constante em períodos de tempo longos e que a força da seleção natural devidas a essas pequenas mudanças são também de pequena magnitude. Todos estes fatos apontam para uma mudança mais ou menos constante e lenta nas espécies durante longos períodos.
Quando olhamos para registos fósseis, no entanto, as mudanças observadas são muito mais irregulares. Verificam-se maiores ou menores mudanças abruptas na forma entre fósseis que se sucedem no tempo geológico sem muita evidência dos supostos registos intermédios entre eles. A explicação usual é a de que os fósseis são relativamente raros e estamos apenas a observar instantâneos ocasionais da evolução real dos organismos. Esta é uma teoria perfeitamente coerente, mas Eldridge e Gould recuaram ao paradigma e questionaram se a taxa de mudança sob a seleção natural seria realmente constante como todos assumiam. Examinando algumas séries de fósseis com um registo temporal mais completo do que o normal, encontraram evidência de longos períodos de virtualmente nenhuma mudança pontuados por curtos períodos durante os quais parecia ocorrer a maior parte da mudança na forma. Eles generalizaram esta descoberta numa teoria em que a evolução ocorre repentina e abruptamente e apresentaram várias possíveis explicações, incluindo aquela em que muito da evolução verificou-se após súbitas grandes alterações no ambiente. Steve Gould foi mesmo mais longe na sua ênfase acerca da importância de grandes acontecimentos irregulares na história da vida. Deu grande importância às súbitas extinções em massa de espécies após colisões de grandes cometas com a Terra e na subsequente repovoação do mundo vivo a partir de um grupo restrito de espécies sobreviventes. Deve-se resistir à tentação de ver alguma conexão simples entre a teoria de Gould da evolução episódica e a sua adesão à teoria marxista das etapas históricas. A conexão é muito mais profunda. Ela reside no seu radicalismo.
Outro aspecto do radicalismo de Gould em ciência foi a forma da sua abordagem geral à explicação evolucionária. A maioria dos biólogos preocupados com a história da vida e a sua atual distribuição geográfica e ecológica assume que a seleção natural é a causa de todas a características dos organismos vivos ou extintos sendo que a tarefa do biólogo, na medida em que tem de fornecer explicações, é aparecer com uma narrativa razoável da razão porquê certas características particulares de uma espécie foram favorecidas pela seleção natural. Se, quando a espécie humana perdeu a maior parte do seu pelo corporal ao evoluir dos seus ancestrais macacos, ainda assim manteve olhos castanhos, então olhos castanhos deve ser uma coisa boa. Uma grande ênfase dos escritos científicos de Steve Gould era no sentido de rejeitar este adaptacionismo Panglossiano simplista e voltar à diversidade fundamental dos processos biológicos na busca das causas da mudança evolutiva. Ele argumentou que a evolução foi resultado tanto de forças aleatórias como seletivas e que as características podem ser subprodutos físicos da seleção por outros atributos. Também argumentou fortemente a favor da contingência histórica da mudança evolutiva. Alguma coisa pode ser selecionada por alguma razão num determinado momento, e depois por uma razão completamente diferente em outro momento, de modo que o produto final é o resultado de toda a história de uma linha evolutiva e não pode tornar-se compreensível pelo seu significado adaptativo no presente. Deste modo, por exemplo, os humanos são como são porque os vertebrados terrestres reduziram muitas formas de barbatanas a quatro membros, os corações dos mamíferos tendem a posicionar à esquerda, enquanto os dos pássaros à direita, os ossos do ouvido interior eram parte do maxilar dos nossos antepassados reptilianos, e aconteceu uma seca na África oriental num tempo crucial da nossa história evolutiva. Portanto, se uma vida inteligente nos visitar vinda de algures do universo, não devemos esperar que tenham forma humana ou sofram de uma hierarquia sexista, ou tenha um posto de comando nas suas naves espaciais.
Gould enfatizou igualmente a importância de relações de desenvolvimento entre diferentes partes de um organismo. Um caso famoso foi o seu estudo do alce irlandês, enorme e extinto, com enormes chifres, muito maiores em proporção relativamente ao tamanho do animal do que é visto no moderno veado. A história adaptacionista inventada foi que os chifres de veados machos estão sob constante seleção natural para o seu aumento pois os machos usam-nos em combate com outros quando competem para aceder às fêmeas. O alce irlandês impulsionou a evolução desta forma de machismo demasiado longe e os seus chifres tornaram-se tão pesados que não puderam cumprir as tarefas da sua vida diária e extinguiu-se. O que Steve mostrou foi que para o veado em geral, espécies com um corpo maior possuem chifres que são mais do que proporcionais no tamanho – uma consequência da taxa de aumento diferencial do tamanho do corpo e do tamanho dos chifres durante o desenvolvimento. De fato, o alce irlandês tinha chifres exatamente do tamanho que seria de prever para a dimensão do seu corpo e nenhuma história especial de seleção natural é requerida.
Nenhum dos argumentos de Gould sobre a complexidade da evolução rejeita Darwin. Não existe nenhum novo paradigma mas sim uma perfeitamente respeitável “ciência normal” que acrescenta excelência ao esquema original darwiniano. Eles tipificam a sua regra radical para a compreensão: ir sempre aos processos biológicos básicos e ver aonde isso conduz.
A maior fama de Steve Gould não foi como biólogo mas como divulgador da ciência para o público leigo, em lições, ensaios e livros. A relação entre conhecimento científico e ação social é problemática. O conhecimento científico é esotérico, possuído e compreendido por uma pequena elite, ainda que o uso e controle desse conhecimento pelos poderes privados e públicos tenham enormes consequências para todos. De que modo pode existir nem que seja uma ilusão de um estado democrático quando conhecimento vital está nas mãos de uns poucos? A resposta imediata é que existem instrumentos de popularização da ciência, principalmente o jornalismo científico e os textos de divulgação científica, que criam um público informado. Mas essa popularização é em si mesma um instrumento de ofuscação e de pressão das agendas das elites.
Os jornalistas da ciência sofrem de uma dupla deficiência: primeiro, não importa o quanto são educados, inteligentes e motivados, eles têm que, no fim, acreditar no que os cientistas lhes dizem. Mesmo um biólogo tem que confiar no que um físico afirma sobre a mecânica quântica. Grande parte da reportagem científica começa com uma conferência de imprensa ou uma nota produzida por uma instituição científica. “Cientistas do Blackleg Institute anunciaram hoje a descoberta do gene da susceptibilidade à lesão motora.” Segundo, a mídia para a qual os repórteres científicos trabalham fazem imensa pressão para que escrevam notas dramáticas. Onde estará o editor que concede preciosos centímetros de coluna para um artigo sobre ciência cuja mensagem seria a de que é tudo muito complicado, que não é possível fazer previsões, que existem sérias dificuldades experimentais no caminho que se percorre para a descoberta da verdade, e que podemos nunca vir a saber a resposta? Terceiro, a natureza esotérica do conhecimento científico coloca barreiras retóricas quase insuperáveis entre mesmo o mais sábio jornalista e o leitor. Não é geralmente percebido que uma explanação transparente em termos acessíveis ao leitor leigo requer o mais profundo conhecimento possível do assunto por parte do redator.
Os cientistas, e os seus biógrafos, que escrevem livros para um público leigo estão usualmente preocupados em abraçar acriticamente o romance da vida intelectual, as maravilhas da sua ciência, e a propagandear um ainda maior apoio ao seu trabalho. Onde está o coração empedernido que não possa ser cativado por Stephen Hawking e a sua aventura intelectual? Mesmo quando a intenção é simplesmente informar o público leigo sobre uma área do conhecimento científico, as complicações do atual estado da compreensão são tão grandes que a pressão para contar uma história simples e apelativa são irresistíveis.
Steve Gould foi uma excepção. Os seus trezentos ensaios sobre questões científicas, publicados na sua coluna mensal da Natural History Magazine, muitos dos quais amplamente divulgados em livros, combinam uma exata e sutil explicação dos problemas e achados científicos, com uma técnica de exposição que nem condescende com os seus leitores nem super-simplifica a ciência. Ele disserta sobre a verdade complexa de um modo que os seus leitores leigos o possam compreender, enquanto envolve a sua prosa com referências ao basebol, música coral, e arquitetura de templos. Claro que quando consideramos a escrita para uma audiência popular, temos que ser claros sobre o que queremos dizer por popular. O escritor uruguaio Eduardo Galeano pergunta o que queremos dizer com escrever para “o povo” quando a maior parte do nosso povo é iletrado. No norte há menor iliteracia formal, mas Gould escrevia para uma audiência altamente educada, mesmo que não especialista, para a qual música coral ou arquitetura de templos fornece metáforas mais cheias de significado do que as próprias ideias científicas.
A maior parte dos assuntos que Steve aborda pretende ser ilustrativo da complexidade e diversidade dos processos e produtos da evolução. Apesar da imensa diversidade de matérias sobre as quais ele escreveu, existiu uma linha unificadora: que a complexidade do mundo vivo não pode ser tratada como uma manifestação de algum grande princípio geral, mas que cada caso deve ser entendido por um exame completo e da compreensão das suas muitas relações causais.
Na sua vida política Steve fez parte do movimento geral da esquerda. Foi ativo no movimento contra a guerra no Vietnã, no trabalho da Ciência para o Povo, e na Escola Marxista de Nova York (New York Marxist School). Identificava-se a si mesmo como marxista, mas, tal como o darwinismo, nunca é certo o que essa identificação implica. Apesar da nossa camaradagem estreita em muitas coisas ao longo de muitos anos, nunca tivemos uma discussão sobre a teoria marxista da história ou de economia política. Essencialmente, ao insistir na sua adesão a um ponto de vista marxista, ele aproveitou a oportunidade que lhe era oferecida pela sua imensa fama e legitimidade como um intelectual público para fazer uma difusão pública acerca da validade de uma análise marxista.
Ao nível das lutas políticas reais, a sua mais importante atividade foi no combate ao criacionismo e na campanha para destruir a legitimidade do determinismo biológico, incluindo a sociobiologia e o racismo. Argumentou perante o poder legislativo do estado do Arkansas que diferenças entre evolucionistas ou problemas evolucionistas não resolvidos não punham em causa a demonstração da evolução como um princípio organizador para entender a vida. Foi um dos autores originais do manifesto desafiando a pretensão da sociobiologia de que existe uma natureza humana derivada e determinada pela evolução que garante a perpetuação da guerra, do racismo, da desigualdade de sexos e do capitalismo empresarial. Através de toda a sua carreira continuou a atacar esta ideologia e mostrou a superficialidade das suas supostas raízes na genética e na evolução. A sua mais significativa contribuição para deslegitimação do determinismo biológico, no entanto, foi a sua muitíssimo lida exposição do racismo e da desonestidade de proeminentes cientistas, A falsa medida do homem (The Mismeasure of Man). Aqui, mais uma vez, Gould mostrou a importância de voltar ao paradigma.
Não contente simplesmente em evidenciar o preconceito de classe e o racismo expressos por biólogos, antropólogos e psicólogos americanos, ingleses e europeus anteriores à Segunda Guerra Mundial, ele examinou de fato os dados sobre os quais se baseavam as suas pretensões de cérebros maiores e mentes superiores dos europeus nórdicos. Em todos os casos as amostras haviam sido deliberadamente enviesadas, ou os dados mal representados ou mesmo inventados ou ainda as conclusões mal retiradas. Os dados consistentemente fraudulentos sobre o QI produzidos por Cyril Burt já haviam sido expostos por Leo Kamin, mas isto poderia ter sido rejeitado como uma patologia isolada num corpo saudável de investigação. A evidência produzida por Gould de dados difusos cozinhados por um conjunto de proeminentes investigadores mostrou à evidência que Burt não foi um caso aberrante mas antes típico. É amplamente aceito que compromissos ideológicos podem ter um efeito inconsciente nas direções de investigação e conclusões dos cientistas. Mas fraude deliberada e generalizada no interesse de uma agenda social? Que ataque mais radical sobre as instituições da ciência “objetiva” poderia ser imaginado?
Ser um radical no sentido que enforma este memorial não é fácil pois envolve um constante questionamento das bases das pretensões e ações, não apenas dos outros, mas também de nós próprios. Ninguém, nem mesmo Steve Gould, pôde reivindicar o sucesso em ser consistentemente radical, mas, como escreveu Rabbi Tarfon, “Não é nossa obrigação ter sucesso, nem tão pouco somos livres de desistir da luta.”
Não contente simplesmente em evidenciar o preconceito de classe e o racismo expressos por biólogos, antropólogos e psicólogos americanos, ingleses e europeus anteriores à Segunda Guerra Mundial, ele examinou de fato os dados sobre os quais se baseavam as suas pretensões de cérebros maiores e mentes superiores dos europeus nórdicos. Em todos os casos as amostras haviam sido deliberadamente enviesadas, ou os dados mal representados ou mesmo inventados ou ainda as conclusões mal retiradas. Os dados consistentemente fraudulentos sobre o QI produzidos por Cyril Burt já haviam sido expostos por Leo Kamin, mas isto poderia ter sido rejeitado como uma patologia isolada num corpo saudável de investigação. A evidência produzida por Gould de dados difusos cozinhados por um conjunto de proeminentes investigadores mostrou à evidência que Burt não foi um caso aberrante mas antes típico. É amplamente aceito que compromissos ideológicos podem ter um efeito inconsciente nas direções de investigação e conclusões dos cientistas. Mas fraude deliberada e generalizada no interesse de uma agenda social? Que ataque mais radical sobre as instituições da ciência “objetiva” poderia ser imaginado?
Ser um radical no sentido que enforma este memorial não é fácil pois envolve um constante questionamento das bases das pretensões e ações, não apenas dos outros, mas também de nós próprios. Ninguém, nem mesmo Steve Gould, pôde reivindicar o sucesso em ser consistentemente radical, mas, como escreveu Rabbi Tarfon, “Não é nossa obrigação ter sucesso, nem tão pouco somos livres de desistir da luta.”
Richard C. Lewontin e Richard Levins são colegas e camaradas há 40 anos. São autores de The Dialectical Biologist (Harvard University Press, 1987), e Biology as Ideology: The Doctrine of DNA (HarperCollins, 1992). Lewontin é Research Professor de Biologia em Harvard e deu um curso conjunto com Steve Gould. Levins é responsável pelo programa de Ecologia Humana na Harvard School of Public Health .
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