19 de junho de 2003

Um roteiro para onde?

No início de maio, em sua visita a Israel e aos Territórios Ocupados, Colin Powell se encontrou com Mahmoud Abbas, o novo primeiro-ministro palestino, e separadamente com um pequeno grupo da sociedade civil...

Edward Said


Vol. 25 No. 12 · 19 June 2003

No início de maio, em sua visita a Israel e aos Territórios Ocupados, Colin Powell se encontrou com Mahmoud Abbas, o novo Primeiro-Ministro Palestino, e separadamente com um pequeno grupo de ativistas da sociedade civil, incluindo Hanan Ashrawi e Mostapha Barghuti. De acordo com Barghuti, Powell expressou surpresa e leve consternação com os mapas computadorizados dos assentamentos, o muro de oito metros de altura e as dezenas de postos de controle do Exército israelense que tornaram a vida tão difícil e o futuro tão sombrio para os palestinos. A visão de Powell sobre a realidade palestina é, para dizer o mínimo, defeituosa, apesar de sua posição augusta, mas ele pediu materiais para levar consigo e, mais importante, ele assegurou aos palestinos que o mesmo esforço feito por Bush no Iraque estava agora indo para a implementação do "mapa do caminho". O mesmo ponto foi levantado nos últimos dias de maio pelo próprio Bush no curso de entrevistas que ele deu à mídia árabe, embora, como de costume, ele tenha enfatizado generalidades em vez de algo específico. Ele se encontrou com os líderes palestinos e israelenses na Jordânia, depois de ver os principais governantes árabes, excluindo Bashar al-Assad da Síria, é claro. Tudo isso é parte do que agora parece um grande avanço americano. Que Ariel Sharon tenha aceitado o roteiro (embora com reservas suficientes para minar essa aceitação) parece ser um bom presságio para um estado palestino viável.

A visão de Bush (a palavra dá uma nota estranha e sonhadora no que se pretende ser um plano de paz definitivo e pragmático) deve ser realizada pela reestruturação da Autoridade Palestina, a eliminação de toda violência e incitação contra israelenses e a instalação de um governo que atenda às exigências de Israel e do chamado Quarteto (EUA, ONU, UE e Rússia) responsável pelo plano. Israel, por sua vez, se compromete a melhorar a situação humanitária, aliviando as restrições e suspendendo os toques de recolher, embora onde e quando não sejam especificados. A Fase Um também deve ver o desmantelamento de 60 assentamentos no topo das colinas (os chamados "assentamentos de postos avançados ilegais" estabelecidos desde que Sharon chegou ao poder em março de 2001), embora nada seja dito sobre a remoção dos outros, que respondem por cerca de 200.000 colonos na Cisjordânia e Gaza, para não falar dos mais 200.000 em Jerusalém Oriental anexada. A Fase Dois, descrita como uma transição, é focada estranhamente na "opção de criar um estado palestino independente com fronteiras provisórias e atributos de soberania" - nenhum é especificado - e deve culminar em uma conferência internacional para aprovar e então "criar" um estado palestino, mais uma vez com "fronteiras provisórias". A Fase Três é acabar com o conflito completamente, também por meio de uma conferência internacional cujo trabalho será resolver as questões mais espinhosas de todas: refugiados, assentamentos, Jerusalém, fronteiras. O papel de Israel em tudo isso é cooperar: o ônus real é colocado sobre os palestinos, que devem continuar apresentando os bens enquanto a ocupação militar permanece mais ou menos em vigor, embora aliviada nas principais áreas invadidas durante a primavera de 2002. Nenhum elemento de monitoramento é previsto, e a simetria enganosa da estrutura do plano deixa Israel muito responsável pelo que - se alguma coisa - acontecerá a seguir. Quanto aos direitos humanos palestinos, atualmente não tanto ignorados quanto suprimidos, nenhuma retificação específica está incluída no plano: aparentemente, cabe a Israel decidir se continua como antes ou não.

Pela primeira vez, todos os comentaristas habituais dizem que Bush está oferecendo esperança real para um acordo no Oriente Médio. Vazamentos calculados da Casa Branca sugeriram uma lista de possíveis sanções contra Israel se Sharon for muito intransigente, mas isso foi rapidamente negado e logo parou de ser mencionado. Um consenso emergente da mídia apresenta o conteúdo do documento — muitos deles familiares de planos de paz anteriores — como resultado da confiança recém-descoberta de Bush após seu triunfo no Iraque. Como na maioria das discussões sobre o conflito palestino-israelense, clichês manipulados e suposições absurdas, em vez das realidades do poder e da história vivida, moldam o fluxo do discurso. Céticos e críticos são descartados como antiamericanos, enquanto uma parcela considerável da liderança judaica organizada denunciou o roteiro como exigindo muitas concessões israelenses. Mas a imprensa estabelecida continua nos lembrando que Sharon falou de uma "ocupação", que ele nunca admitiu até agora, e na verdade anunciou sua intenção de acabar com o governo israelense sobre 3,5 milhões de palestinos. Mas ele está ciente do que propõe acabar? O comentarista do Haaretz, Gideon Levy, escreveu em 1º de junho que, em comum com a maioria dos israelenses, Sharon não sabe de nada

sobre a vida sob toque de recolher em comunidades sitiadas há anos. O que ele sabe sobre a humilhação dos postos de controle, ou sobre pessoas sendo forçadas a viajar por estradas de cascalho e lama, arriscando suas vidas, para levar uma mulher em trabalho de parto ao hospital? Sobre a vida à beira da fome? Sobre uma casa demolida? Sobre crianças que veem seus pais espancados e humilhados no meio da noite?

Outra omissão assustadora do roteiro é o gigantesco "muro de separação" que está sendo construído na Cisjordânia por Israel: 347 quilômetros de concreto de norte a sul, dos quais 120 já foram erguidos. Ele tem oito metros de altura e dois metros de espessura; seu custo é estimado em US$ 1,6 milhão por quilômetro. O muro não divide Israel simplesmente de um suposto estado palestino com base nas fronteiras de 1967: ele realmente ocupa novos trechos de terra palestina, às vezes cinco ou seis quilômetros de cada vez. Ele é cercado por trincheiras, fios elétricos e fossos; há torres de vigia em intervalos regulares. Quase uma década após o fim do apartheid sul-africano, esse muro racista medonho está sendo erguido sem que a maioria dos israelenses ou seus aliados americanos o escutem, gostem ou não, que vão pagar pela maior parte dele. Os 40.000 habitantes palestinos da cidade de Qalqilya vivem de um lado do muro, a terra que cultivam e da qual realmente vivem fica do outro. Estima-se que quando o muro estiver concluído — presumivelmente enquanto os EUA, Israel e os palestinos discutem sobre o procedimento por meses a fio — quase 300.000 palestinos serão separados de suas terras. O roteiro não fala sobre isso, assim como sobre a recente aprovação de Sharon de um muro no lado leste da Cisjordânia, que, se construído, reduzirá a quantidade de território palestino disponível para o estado dos sonhos de Bush para cerca de 40 por cento da área. É isso que Sharon tinha em mente o tempo todo.

Uma premissa não declarada fundamenta a aceitação fortemente modificada do plano por Israel e o evidente comprometimento dos EUA com ele: o sucesso relativo da resistência palestina. Isso é verdade, quer se lamentem ou não alguns de seus métodos, seu custo exorbitante e o alto preço que isso causou a mais uma geração de palestinos que se recusaram a desistir diante da esmagadora superioridade do poder israelense-americano. Todos os tipos de razões foram dadas para o surgimento do roteiro: que 56 por cento dos israelenses o apoiam, que Sharon finalmente se curvou à realidade internacional, que Bush precisa de cobertura árabe-israelense para suas aventuras militares em outros lugares, que os palestinos finalmente caíram em si e trouxeram Abu Mazen (o nome de guerra muito mais familiar de Abbas, por assim dizer), e assim por diante. Parte disso é verdade, mas ainda afirmo que, se não fosse pela recusa obstinada dos palestinos em aceitar que são "um povo derrotado", como o Chefe do Estado-Maior israelense os descreveu recentemente, não haveria plano de paz. No entanto, qualquer um que acredite que o roteiro oferece algo parecido com um acordo, ou que ele aborda as questões básicas, está errado. Como grande parte do discurso de paz predominante, ele coloca a necessidade de contenção, renúncia e sacrifício diretamente sobre os ombros palestinos, negando assim a densidade e a pura gravidade da história palestina. Ler o roteiro é confrontar um documento não situado, alheio ao seu tempo e lugar.

O roteiro, na verdade, não é um plano para a paz, mas sim um plano para a pacificação: trata-se de pôr fim à Palestina como um problema. Daí a repetição do termo "desempenho" na prosa de madeira do documento — em outras palavras, a maneira como se espera que os palestinos se comportem. Sem violência, sem protestos, mais democracia, melhores líderes e instituições — tudo isso com base na noção de que o problema subjacente tem sido a ferocidade da resistência palestina, e não a ocupação que lhe deu origem. Nada comparável é esperado de Israel, exceto que os pequenos assentamentos dos quais falei anteriormente, conhecidos como "postos avançados ilegais" (uma classificação inteiramente nova que sugere que algumas implantações israelenses em terras palestinas são legais), devem ser abandonados e, sim, os principais assentamentos "congelados", mas certamente não removidos ou desmantelados. Nenhuma palavra é dita sobre o que, desde 1948, e novamente desde 1967, os palestinos têm sofrido nas mãos de Israel e dos EUA. Nada sobre o des-desenvolvimento da economia palestina. As demolições de casas, o arrancamento de árvores, os prisioneiros (pelo menos 5.000 deles), a política de assassinatos seletivos, os fechamentos desde 1993, a ruína total da infraestrutura, o número incrível de mortes e mutilações - tudo isso e muito mais passa sem uma palavra.

A agressão truculenta e o unilateralismo obstinado das equipes americana e israelense já são bem conhecidos. A equipe palestina inspira pouca confiança, composta como é de coortes recicladas e envelhecidas de Arafat. De fato, o roteiro parece ter dado a Yasser Arafat outra vida, apesar de todos os esforços estudados de Powell e seus assistentes para evitar visitá-lo. Apesar da política israelense estúpida de tentar humilhá-lo ao prendê-lo em um complexo gravemente bombardeado, ele ainda está no controle das coisas. Ele continua sendo o presidente eleito da Palestina, ele tem os cordões da bolsa palestina em suas mãos (a bolsa está longe de estourar) e, quanto ao seu status, ninguém da atual equipe de "reforma" pode igualar o velho em carisma e poder.

Veja Abu Mazen. Eu o conheci em março de 1977, na minha primeira reunião do Conselho Nacional no Cairo. Ele fez de longe o discurso mais longo, na maneira didática que ele deve ter aperfeiçoado como professor de escola secundária no Catar, e explicou aos parlamentares palestinos reunidos as diferenças entre o sionismo e os dissidentes sionistas. Foi uma intervenção notável, já que a maioria dos palestinos naquela época não tinha noção real de que Israel era composto não apenas de sionistas fundamentalistas que eram anátemas para todos os árabes, mas também de vários tipos de pacifistas e ativistas. Em retrospecto, o discurso de Abu Mazen lançou a campanha da OLP de reuniões, a maioria delas secretas, entre palestinos e israelenses: esses longos diálogos na Europa sobre a paz tiveram um efeito considerável em suas respectivas sociedades na formação dos círculos eleitorais que tornaram Oslo possível.

No entanto, ninguém duvidou que Arafat havia autorizado o discurso de Abu Mazen e a campanha subsequente, que custou a vida de homens corajosos como Issam Sartawi e Said Hammami. E enquanto os participantes palestinos emergiram do centro da política palestina (ou seja, Fatah), os israelenses vieram de um pequeno grupo marginalizado de odiados apoiadores da paz, cuja coragem era louvável por esse mesmo motivo. Durante os anos da OLP em Beirute, entre 1971 e 1982, Abu Mazen ficou estacionado em Damasco, mas depois se juntou ao exilado Arafat e sua equipe em Túnis pela próxima década ou mais. Eu o vi lá várias vezes e fiquei impressionado com seu escritório bem organizado, sua maneira burocrática silenciosa e seu interesse evidente na Europa e nos Estados Unidos como arenas onde os palestinos poderiam fazer um trabalho útil promovendo a paz. Após a conferência de Madri em 1991, ele teria reunido funcionários da OLP e intelectuais independentes na Europa e os formado em equipes para preparar arquivos de negociação sobre assuntos como água, refugiados, demografia e fronteiras antes do que se tornariam as reuniões secretas de Oslo, embora, até onde sei, nenhum dos arquivos tenha sido usado, nenhum dos especialistas palestinos tenha se envolvido diretamente nas negociações e nenhum dos resultados dessa pesquisa tenha influenciado os documentos finais que surgiram.

Em Oslo, os israelenses colocaram em campo uma série de especialistas apoiados por mapas, documentos, estatísticas e pelo menos 17 rascunhos anteriores do que os palestinos acabariam assinando, enquanto os palestinos infelizmente restringiram seus negociadores a três homens da OLP, nenhum dos quais sabia inglês ou tinha experiência em direito internacional (ou qualquer outro tipo de direito). A ideia de Arafat parece ter sido que ele estava colocando em campo uma equipe principalmente para se manter no processo, especialmente após sua saída de Beirute e sua decisão desastrosa de ficar do lado do Iraque durante a Guerra do Golfo de 1991. Se ele tinha outros objetivos em mente, então ele não se preparou para eles efetivamente, como sempre foi seu estilo. Nas memórias de Abu Mazen, Through Secret Channels: The Road to Oslo (1995), e em outros relatos anedóticos das discussões de Oslo, o subordinado de Arafat é creditado como o "arquiteto" dos Acordos, embora ele nunca tenha saído de Túnis; Abu Mazen chega a dizer que levou um ano após as cerimônias de Washington (onde ele apareceu ao lado de Arafat, Rabin, Peres e Clinton) para convencer Arafat de que ele não tinha um estado de Oslo. No entanto, a maioria dos relatos das negociações de paz enfatiza o fato de que Arafat estava puxando todos os cordões. Não é de se admirar, então, que as negociações de Oslo tenham piorado bastante a situação geral dos palestinos. (A equipe americana liderada por Dennis Ross, um ex-funcionário do lobby israelense — um trabalho para o qual ele agora retornou — apoiou rotineiramente a posição israelense que, após uma década inteira de negociação, consistia em devolver 18 por cento dos Territórios Ocupados aos palestinos em termos altamente desfavoráveis, com as IDF encarregadas da segurança, fronteiras e água. Naturalmente, o número de assentamentos mais que dobrou desde então.)

Desde o retorno da OLP aos Territórios Ocupados em 1994, Abu Mazen permaneceu como uma figura de segunda categoria, conhecido universalmente por sua "flexibilidade" em relação a Israel, sua subserviência a Arafat e sua falta de uma base política organizada, embora seja um dos fundadores do Fatah e um membro de longa data e secretário-geral de seu Comitê Central. Até onde sei, ele nunca foi eleito para nada, e certamente não para o Conselho Legislativo Palestino. A OLP e a Autoridade Palestina sob Arafat são tudo menos transparentes. Pouco se sabe sobre a maneira como as decisões foram tomadas, ou como o dinheiro é gasto, onde ele está e quem além de Arafat tem alguma palavra a dizer sobre o assunto. Todos concordam, no entanto, que Arafat, um microgerenciador diabólico e maníaco por controle, continua sendo a figura central em todos os aspectos significativos. É por isso que a elevação de Abu Mazen ao status de primeiro-ministro reformador, que tanto agrada os americanos e israelenses, é vista pela maioria dos palestinos como, bem, uma espécie de piada, a maneira do velho de se manter no poder inventando um novo truque. Abu Mazen é visto geralmente como incolor, moderadamente corrupto e sem nenhuma ideia clara própria, exceto que ele quer agradar o homem branco.

Como Arafat, Abu Mazen nunca viveu em nenhum outro lugar exceto no Golfo, Síria e Líbano, Tunísia e agora na Palestina ocupada; ele não conhece nenhuma outra língua além do árabe, e não é um grande orador ou presença pública. Em contraste, Mohammed Dahlan — a outra figura muito anunciada em quem os israelenses e americanos depositam grande esperança — é mais jovem, mais inteligente e bastante implacável. Durante os oito anos em que ele comandou uma das 14 ou 15 organizações de segurança de Arafat, Gaza era conhecida como Dahlanistão. Ele renunciou no ano passado, apenas para ser recrutado novamente para o cargo de "chefe de segurança unificado" pelos europeus, americanos e israelenses, embora ele também sempre tenha sido um dos homens de Arafat. Agora, espera-se que ele reprima o Hamas e a Jihad Islâmica: uma das reiteradas demandas israelenses por trás da qual está a esperança de que haverá algo parecido com uma guerra civil palestina, um brilho nos olhos dos militares israelenses.

Em todo caso, parece-me claro que, não importa quão assiduamente e flexivelmente Abu Mazen "atue", ele será limitado por três fatores. Um, é claro, é o próprio Arafat, que ainda controla o Fatah. Outro é Sharon (que presumivelmente terá os EUA por trás dele o tempo todo). Em uma lista de 14 "comentários" sobre o roteiro publicado no Haaretz em 27 de maio, Sharon sinalizou os limites muito estreitos para qualquer coisa que possa ser interpretada como flexibilidade por parte de Israel. O terceiro é Bush e sua comitiva; a julgar por seu manejo do Afeganistão e do Iraque do pós-guerra, eles não têm estômago nem competência para a construção de nações. A base cristã de direita de Bush no Sul já protestou ruidosamente contra a pressão sobre Israel, e o poderoso lobby pró-Israel americano, com seu dócil adjunto, o Congresso dos EUA, já entrou em ação contra qualquer indício de coerção contra Israel, embora seja crucial agora que uma fase final começou.

Pode parecer quixotesco para mim dizer que, mesmo que as perspectivas imediatas sejam sombrias de uma perspectiva palestina, elas não são todas sombrias. Volto à teimosia que mencionei e ao fato de que a sociedade palestina — devastada, quase arruinada, desolada de tantas maneiras — é, como o tordo de Hardy em sua pluma enfeitada pela explosão, ainda capaz de lançar sua alma sobre a crescente escuridão. Nenhuma outra sociedade árabe é tão turbulenta e saudavelmente indisciplinada, e nenhuma é mais cheia de iniciativas cívicas e sociais e instituições funcionais (incluindo um conservatório musical milagrosamente vital). Embora sejam em sua maioria desorganizados e, em alguns casos, levem vidas miseráveis ​​de exílio e apatridia, os palestinos da diáspora ainda estão energicamente engajados pelos problemas de seu destino coletivo, e todos aqueles que conheço estão sempre tentando, de alguma forma, promover a causa. Apenas uma fração minúscula dessa energia chegou à Autoridade Palestina, que, exceto pela figura altamente ambivalente de Arafat, permaneceu estranhamente marginal ao destino comum. De acordo com pesquisas recentes, o Fatah e o Hamas juntos têm o apoio de aproximadamente 45% do eleitorado palestino, com os 55% restantes desenvolvendo formações políticas bem diferentes e muito mais esperançosas.

Uma em particular me pareceu significativa (e eu me apeguei a ela) na medida em que agora fornece a única formação de base genuína que se afasta tanto dos partidos religiosos e suas políticas fundamentalmente sectárias, quanto do nacionalismo tradicional oferecido pelos antigos (e não jovens) ativistas do Fatah de Arafat. Chama-se Iniciativa Política Nacional (NPI) e sua figura principal é Mostapha Barghuti, um médico formado em Moscou, cujo trabalho principal tem sido como diretor do impressionante Village Medical Relief Committee, que levou assistência médica a mais de 100.000 palestinos rurais. Um antigo defensor do Partido Comunista, Barghuti é um organizador de fala mansa que superou centenas de obstáculos físicos que impedem o movimento palestino ou viagens ao exterior para reunir quase todos os indivíduos e organizações independentes de destaque em um programa político que promete reforma social, bem como libertação entre linhas doutrinárias. Barghuti construiu um movimento de solidariedade invejavelmente bem administrado que pratica o pluralismo e a coexistência que prega. O NPI não desiste da militarização sem direção da intifada. Ele oferece programas de treinamento para desempregados e serviços sociais para os destituídos, alegando que eles respondem às circunstâncias atuais e à pressão israelense. Acima de tudo, o NPI, que está prestes a se tornar um partido político reconhecido, busca mobilizar a sociedade palestina em casa e no exílio para eleições livres – eleições autênticas que representarão os interesses palestinos, em vez dos israelenses ou dos EUA. Esse senso de autenticidade é o que parece tão ausente no caminho aberto para Abu Mazen.

A visão aqui não é um estado provisório fabricado em 40 por cento da terra, com os refugiados abandonados e Jerusalém mantida por Israel, mas um território soberano libertado da ocupação militar por ação em massa envolvendo árabes e judeus sempre que possível. Como o NPI é um autêntico movimento palestino, a reforma e a democracia se tornaram parte de sua prática cotidiana. Reuniões organizacionais já foram realizadas, com muitas outras planejadas no exterior e na Palestina, apesar das terríveis restrições de viagem. É um certo consolo pensar que, enquanto negociações e discussões formais continuam, existe uma série de alternativas informais e não cooptadas, das quais o NPI e uma crescente campanha de solidariedade internacional são agora os principais componentes.

1 de junho de 2003

A cidade do futuro

Após a dilapidação do modernismo urbano, que tipos de cidade e que formas de arquitetura nos aguardam? O autor de The Seeds of Time considera suas flores na obra vertiginosa de Rem Koolhaas, os mega-desenvolvimentos do Delta do Rio das Pérolas e a conceituação de "Junkspace". Retornando à história com um aríete do pós-moderno?

Fredric Jameson 


NLR 21 • May/June 2003

Tradução / O Project on the City (“Projeto sobre a Cidade”)reúne pesquisas de um seminário de  graduação  ainda  em  andamento,  dirigido  por  Rem  Koolhaas,  na Harvard School of Design; seus primeiros dois volumes — Great Leap Foward (“O Grande Salto à Frente), uma análise do desenvolvimento do delta do Rio das Pérolas, entre Hong Kong e Macau, e Guide to Shopping (“Guia do Shopping”) — acabaram de sair em suntuosas edições da Taschen2. Esses extraordinários volumes são totalmente diferentes de tudo o que se pode encontrar na mídia impressa; eles não são livros de fotografia ou textos ilustrados, estão em  movimento  como  um  CD-ROM,  suas  estatísticas  são visualmente  bonitas  e  suas imagens, até certo ponto, legíveis.

Embora a arquitetura seja uma das poucas artes em que ainda existem os grandes auteurs —  e  embora  Koolhaas  certamente  seja  um  deles  —  o  seminário  que  produziu seus  primeiros  resultados  nesses  dois  volumes  não  é  dedicado  à  arquitetura,  mas  sim,  à exploração  da  cidade  nos  dias  de  hoje,  em  todas  as suas  não-teorizadas  diferenças  em relação à estrutura urbana clássica que existiu ao menos até a Segunda Guerra Mundial. Desde  seus  primórdios,  nos  séculos  XVIII  e  XIX,  a  arquitetura  moderna  tem  estado intimamente ligada às questões do urbanismo: a síntese modernista de Siegfried Giedion, Space,  Time  and  Architeture,   por   exemplo,   mesmo   sendo,   essencialmente,   uma celebração de Le Corbusier, começa com a reestruturação barroca de Roma por Sixtus V e  termina  com  o  Rockfeller  Center  e  as  avenidas  de Robert  Moses.  E,  obviamente,  Le Corbusier  foi,  com  as Radiant  Cities, Chandigarh e  o  plano  para  Argel,  tanto  um arquiteto quanto um “planejador urbano”. Mas ainda que o Project testemunhe a favor do compromisso de Koolhaas com a questão da cidade, ele não é um urbanista em nenhum sentido  disciplinar;  tampouco  pode  a  palavra  ser  usada  para  descrever  esses  livros,  que igualmente escapam a outras categorias disciplinares (tais como sociologia ou economia), mas estão mais próximos dos estudos culturais, pode-se dizer.

O  fato  é  que  o  urbanismo  tradicional  —  talvez  seja melhor  dizer  modernista  — chegou a um beco sem saída. Discussões a respeito dos padrões americanos de trânsito ou da divisão  em  zonas  —  e  até  mesmo  debates  políticos  sobre  os  “sem-teto”,  a  gentrificação3(“enobrecimento  urbano”)  e  a  real  política  de  impostos  do  Estado  —  perdem-se  na insignificância  quando  se  considera  a  imensa  expansão  daquilo  que  costumávamos chamar de cidades no Terceiro Mundo: “Em 2025, nos diz Koolhaas num outro volume coletivo,

o número de habitantes de cidade poderá chegar a cinco bilhões de indivíduos...das  trinta  e  cinco  megalópoles  previstas  para  2015, vinte  sete  estarão  localizadas  nos  países  menos  desenvolvidos, incluindo dezenove na Ásia... Tóquio vai ser a única cidade rica a figurar na lista das dez maiores cidades.

Não se trata de um problema a ser resolvido, mas de uma nova realidade a ser explorada: e esta, suponho eu, é a missão do Project on the City, dois volumes complementares de projetos que estão bem distantes: um em Lagos, na Nigéria, e o outro na cidade Romana clássica, como protótipo.

O  primeiro  volume  do Project, Great  Leap  Forward,  interpreta  o  prodigioso “boom” da  construção  na  China  atual  —  quase  nove  mil  prédios  de  grande  altura construídos em Xangai desde 1992 — não tanto em termos de uma virada ou retorno ao capitalismo, mas, sim, nos termos da estratégia de Deng Xiaoping de usar o capitalismo para   construir   uma   sociedade   radicalmente   diferente: infravermelha ao   invés   de vermelha: 

A  ocultação  dos  ideais  comunistas,  vermelhos...  para  salvar  a Utopia  em  um  momento  na  qual  ela  estava  sendo  contestada  de todos  os  lados,  quando  o  mundo  ficava  acumulando  provas  de seus  estragos  e  misérias...  IFRAVERMELHO©,  a  ideologia  da reforma,  é  uma  campanha  para  evitar  o  fracasso  da  Utopia,  um projeto  para  esconder  ideais  do  século  dezenove  no interior  das realidades do século vinte e um.

Aqueles que acreditam que o mercado é uma realidade, ancorada na Natureza e no Ser,  terão  dificuldade  em  apreender  tal  proposição,  que  de  sua  perspectiva  vai  ser dissipada  por  uma  imediata  conversão  ao  capitalismo  ou  pelo  colapso  econômico.  Mas consideremos a perspectiva arquitetônica: testemunhamos milhares e milhares de prédios construídos, ou sendo construídos, que não possuem arrendatários, que jamais poderiam ser pagos sob condições capitalistas e cuja própria existência não pode ser justificada por padrão algum de mercado. Seguimos aqui os princípios das comunidades de habitação da área  do  delta  do  Rio  das  Pérolas,  que  estão  sendo  projetadas  para  um  futuro  bastante distinto  daqueles  pesquisados  pelos  especuladores  ocidentais,  bancos  e  instituições  de financiamento  do  mundo  capitalista.      De  fato,  as  quatro  comunidades  exploradas  aqui são  algo  como  quatro  projeções  utópicas  diferentes:  Shenzhen,  um  tipo  de  substituta  ou duplicata de Hong Kong; Dongguan, uma cidade do prazer; Zhuhai, um paraíso do golf; e o  antigo  centro,  Guangzhou,  um  estranho  tipo  de  palimpsesto,  no  qual  o  novo  está sobreposto num centro econômico tradicional já existente. Trata-se de um extraordinário relato de uma viagem ao futuro, que nos dá uma percepção muito mais concreta da China de hoje e de amanhã do que a maioria dos livros de viagem (e muitas excursões reais).

PROTEUS VAI AO SHOPPING 

O Guide to Shopping é algo de todo diferente, tanto em estilo quanto em intenção. O consumo, sejamos claros, é um tema candente, mas esse não é um estudo convencional sobre ele. Na verdade, a questão a respeito do que é esse livro — um extraordinário livro de fotografias; uma coleção de ensaios sobre vários tópicos urbanistas e comerciais; uma amostra  do  espaço  global  da  Europa  a  Singapura,  da Disney  World  a  Las  Vegas;  um estudo  sobre  o  próprio  shopping-center,  dos  seus  primeiros  ideólogos  até  suas  formas mais  contemporâneas  —  corresponde  à  ambigüidade  mais  geral  de  seu  objeto.  Mesmo que  permaneçamos  com  a  caracterização  inicial  daquele  objeto  como  “shopping”,  que tipo  de  caracterização  é  essa?  Trata-se  de  uma  caracterização  física,  envolvendo  os objetos a ser vendidos? Ela é psicológica, envolvendo o desejo de comprar os objetos em questão? Ou arquitetônica, tendo a ver com a originalidade espacial daquelas galerias — que,  notoriamente,  encontram  seus  ancestrais,  no  século  XIX,  nas  passagens  de  Walter Benjamin;  caso  contrário,  como  sugerem  alguns  dos  gráficos  de  tempo  nesse  livro, em 7.000  A.C.  na  “cidade  de  Catal  Hoyuk,  fundada  para trocas  comerciais”,  ou  talvez  na “invenção” da venda no  varejo na  Lídia5, no século VII A.C.? Ou estamos falando aqui da globalização do consumo (consumismo)? Ou das novas rotas comerciais e das redes de produção e distribuição envolvidas em tal globalização? (Ou dos homens de negócio que as  organizam?)  Mas  e  as  novas  tecnologias  desenvolvidas  para  o  comércio  desde  Catal Hoyuk?  O  prodigioso  aumento  em  tamanho  das  companhias  de  marketing  e  dos conglomerados, alguns deles maiores do que muitos países estrangeiros? O que dizer do shopping e da forma da cidade contemporânea — se é que existe uma? Não por acaso, o projeto coletivo de Koolhaas teve seu nome mudado de “Project for what used to be the city”  (Projeto  para  o  que  costumava  ser  a  cidade)  para o  mais  simples  e  mais  otimista Project on the City. Ao que podemos acrescentar a seguinte questão: está emergindo um novo tipo de espaço — espaço de controle, junkspace? E o que tudo isso implica para a psyque e  a  própria  realidade  humana?  (o  primeiro  teórico  da  publicidade,  Edward Bernays, era sobrinho de Freud). O que isso implica para o futuro e para a Utopia?

Provavelmente  estou  esquecendo  algumas  das  outras  modulações  desse  tema proteano;  mas  vai  ficar  claro  que  ele  mobiliza,  ao lado  das  óbvias  (obviamente antecipadas)  áreas  da  arquitetura  e  do  urbanismo,  disciplinas  tão  heterogêneas  quanto  a psicanálise e a geografia, história e negócios, economia e engenharia, biografia, ecologia, feminismo,  estudos  de  área,  análise  ideológica,  estudos  clássicos,  decisões  jurídicas, teoria  da  crise,  etc.  Talvez  esse  imenso  tipo  de  extensão  disciplinar  não  seja  mais  tão atordoante numa era pós-moderna, em que a lei do ser é a “des-diferenciação”, e na qual estamos  interessados  ao  máximo  em  como  as  coisas  sobrepõe-se  umas  as  outras  e necessariamente escorrem através das fronteiras disciplinares. Ou, se preferirem, no pós-moderno  a  distinção  entre  as  antigas  e  especializadas  disciplinas  está  constitutivamente apagada e, agora, elas retornam umas as outras nos mais interessantes estudos — do Mil Platôs, de Deleuze e Guatarri ao Power Broker, de Caro; do Império ao Rembrant`s Eyes; das Passagens de Benjamin ao Geschichte und Eigensinn, de Negt e Kluge; sem falar em S, M, L, XL ou  mesmo Space, Time and Arquiteture.  Aqui  a  teoria  é  majoritariamente renegada (embora Baudrillard seja mencionado uma vez, se não me engano), mas não se deve deixar que isso nos leve a pensar que se trata de um trabalho de jornalismo cultural não-teórico, menos ainda de um livro de fotografias de mesa de café. Como pode também sugerir  a  enumeração  acima,  é  um  volume  coletivo;  mas  não  no  sentido  em  que  os experts das várias disciplinas a pouco mencionadas são, de algum modo, reunidos e suas contribuições examinadas em seqüência. Isso torna embaraçoso para um crítico destacar nomes  específicos,  embora  Sze  Tsung  Leong  escreva  a  maior  parte  dos  capítulos  ─  e também  os  mais  reflexivos  filosoficamente  ─,  com  Chuihua  Judy  Chung  seguindo  de perto  nas  discussões  mais  concretas.  Quanto  a  Koolhaas,  seu  papel  parece  ter  sido essencialmente  organizacional  (quer  dizer,  como  algumas  versões  do  divino,  em  lugar nenhum e em todos os lugares ao mesmo tempo), salvo uma impressionante aparição em seu próprio nome, que discutiremos no momento oportuno.

DEPOIS DA GALERIA COMERCIAL

Tentarei  trazer  a  teoria  de  volta  a  tudo  isso,  mas primeiro  seria  melhor  explorar algo  no  detalhe  das  bases  ou  do stratum do  livro,  cujo  índice  alfabético  de  conteúdos  é bastante enganoso a esse respeito, sendo, deste modo, em si mesmo, um verdadeiro tour de force6.  Porque  algumas  antecipações  sobre  o  shopping  são o  caminho  aqui:  elas  vão retornar, muito mais desenvolvidas, mais adiante, em contextos variados. Pois é como se o  shopping-center  fosse  o  fundamento  espacial  e  arquitetônico  no  interior  desse  imenso tópico. Poucas formas têm sido tão distintivamente novas, tão distintivamente americanas e tardo-capitalistas quanto essa inovação, cujo surgimento pode ser datado de 1956; cuja relação  com  o  bem  conhecido  declínio  do  crescimento  do  subúrbio  dentro  da  cidade  é palpável, ainda que variável; cuja genealogia abre agora uma pré-história física e espacial do shopping de uma maneira que antes seria inconcebível; e cuja proliferação por todo o mundo   pode   servir   como   um   mapa   epidemiológico   da   Americanização,   ou   pós-modernização,  ou  globalização.  O  shopping,  portanto,  concentra  a  investigação  e  serve como a moldura da espantosa ampliação de tudo isso mais tarde. Enquanto isso, páginas de  cronologia,  sistemas  de  referência  cruzada  codificados  por  cor  e  incontáveis  indexes temáticos  já  nos  treinam  na  forma  rizomática  daquela  ampliação;  ao  passo  que  um primeiro  conjunto  de  comparações  entre  as  áreas  de venda  no  mundo  inteiro,  entre  os PIBs  nacionais  e  as  receitas  de  venda  das  maiores  corporações,  nos  ajuda  a  começar  a mapear  o  processo  em  nossas  mentes  e  formar  uma  fotografia,  não  somente  das hierarquias  relativas  da  globalização,  mas,  também,  de  uma  visão  do  shopping  que,  me arrisco  a  dizer,  vai  se  transformar  em  breve  não  apenas  numa  questão  política,  mas também metafísica.

Simultaneamente,  no  entanto,  somos  parados  abruptamente  e  uma  diferença fundamental entre esse livro e a proliferação de novos e excelentes volumes de estudos-culturais sobre shopping-center, galerias, consumismo, e coisas parecidas, torna-se clara. Antes mesmo de abordarmos a própria coisa, nos deparamos com a galeria comercial em crise, perdendo dinheiro, arrendatários e prestes a ser substituída... Pelo o quê? Benjamin tirou sua foto instantânea da galeria do século dezenove no momento de sua decadência —  e  deste  modo  desenvolveu  toda  uma  teoria  da  história,  segundo  a  qual  é  possível compreender melhor o presente do ponto de vista de um passado imediato cujas modas já estavam ligeiramente ultrapassadas. A crise nos permite notar que aqui não temos apenas que lidar com a arqueologia ou a pré-história do shopping, nem mesmo seu presente, mas, sim, com seu futuro. Entretanto, seja qual for o destino da  galeria enquanto tal, “‘existe muito  lixo  lá’.  Muitas  galerias  velhas  e  cavernosas  são  dinossauros  que  não  podem competir  com  a  conveniência  dos  atacadistas  de  valor  aumentado  em  poderosos  centros ou faixas” — aos quais se deve acrescentar agora, sem dúvida, o eBay7.

Em primeiro lugar, alguma coisa  evidentemente  aconteceu com os pré-requisitos para  a  existência  da  galeria.  Mas  quais  eram  esses pré-requisitos?  Como na  causalidade aristotélica, eles aparecem numa variedade de formas e modelos: as pré-condições físicas ou de engenharia nos são apresentadas a um só tempo, na primeiríssima letra desse ABC do shopping: qual seja, o ar-condicionado — ao qual logo retornaremos num lugar mais apropriado.  Quanto  à  pré-história,  certamente  temos  sido  expostos,  em  anos  recentes,  a uma  hoste  de  interessantes  formas  antecedentes,  geralmente  retornando-se  até  mesmo  a Catal  Hoyuk.  Mais  notadamente  a  própria  galeria,  que  se  desenvolve  essencialmente  no início  do  século  XIX  e  se  depara  com  sua  crise  nas décadas  de  1850  e  60  —  no  exato momento em que a próxima forma entre em cena: a moderna loja de departamentos, cujo surgimento  Zola  imortalizou  em Au bonheur dês dames (Ladies’s Delight é  uma  versão em ficção de nomes verdadeiros como Au printemps e La Samaritane, que também foram exaustivamente  estudadas  nos  últimos  anos,  tanto  por  conta  de  suas  implicações urbanísticas  quanto  comerciais:  ao  menos  por  uma  razão,  elas  são  mais  ou  menos contemporâneas  da  imensa  transformação  de  Paris  por  Haussmamm8).  Quanto  a  nossa forma — entrando em seu período de decadência? — chegaremos a ela em um momento; na verdade, vamos inclusive lhe dar nomes e faces. Como um romance ou um poema, ela realmente  tem  um  autor  ou  inventor,  embora  o  inventor  de  todo  um  gênero  seja  um paralelo mais apropriado; algo que não se encontra com freqüência.

TECNOLOGIAS DELIRANTES 

Primeiro,  saltemos  à  frente  para  avaliar  o  propósito  e  as  transformações  dessa forma proteana — em aeroportos, por exemplo, que agora, pelo menos os novos, também se  tornaram  shopping-centers;  em  museus  e,  finalmente,  na  própria  cidade.  O  velho centro   da   cidade   —   devastado   pelos   subúrbios,   pelos   novos   supermercados   e posteriormente  pelos  próprios  shoppings  —  procura  agora,  com  a  pós-modernidade  e  o “enobrecimento   urbano”,   compensar   a   perda:   não   somente   construindo   enormes shoppings em sua própria área, mas transformando-se, a seu modo, num shopping virtual. De fato, algo fundamental começa a acontecer a ele (como assinalado em um volume do Project on the city):

Em 1994, o shopping oficialmente substituiu as funções cívicas do tradicional  centro  da  cidade.  Na  Suprema  Corte  de  Nova  Jersey, num  caso  envolvendo  a  distribuição  de  panfletos  políticos  em shopping-centers,   a   corte   declarou   que   “os   shopping-centers substituíram  os  parques  e  praças  que  “tradicionalmente  eram  a casa  do  livre  discurso”,  se  colocando  ao  lado  dos  manifestantes “que argumentavam que o shopping constitui a Rua Principal dos tempos modernos.

Mas  se  “esse  retorno  do  shopping  à  cidade  não  foi nada  menos  do  que triunfante,” os autores se vêem obrigados a acrescentar: “para serem salvos, os centros da cidade tiveram que receber o beijo da morte do subúrbio.” 

Agora, voltando aos pré-requisitos: poderia o próprio código de barra — o Código de Produto Universal — ser um deles? Analisando suas funções, começamos a ver como as estatísticas que ele imediatamente fornece ao vendedor transformam inteiramente toda a  estrutura  de  cadastro,  reabastecimento,  marketing  e  coisas  do  tipo.  Os  nomes  das marcas podem perfeitamente ser mais uma conseqüência cultural desse tipo de shopping do  que  um  pré-requisito,  pois  suas  áreas,  as  butiques  mais  destacadas,  indicam  “os sagrados  recintos  da  última  religião  global  —  o  consumismo  capitalista.”  Eles  também evidenciam  um  novo  tipo  de  dinâmica,  ela  mesma  consumida  sob  a  “co-opetição9”,  o logotipo de Singapura, que celebra a maré que eleva os navios de todos, incluindo os dos competidores. 

Mas com isso embarcamos numa turnê mundo afora, ou melhor, na turnê mundial do shopping, na medida em que ela alcança um ponto após o outro e é transformada pela cultura  local.  Singapura  é  uma  antiga  paixão  de  Koolhaas  (ver S, M, L, XL),  mas  sua dinâmica   continua   sendo   uma   extraordinária   lição   prática   —   não   apenas   de desenvolvimento,  mas  também  sobre  o  modo  pelo  qual uma  cidade-estado  se  ajusta primeiro à região e posteriormente ao próprio mundo. O Palácio de Cristal uma vez mais nos leva de volta às origens (e à assinatura de um indivíduo, Joseph Paxton10). A Depato, a  loja  de  departamentos  japonesa,  nos  lança  pelo  menos  numa  extraordinária  mutação cultural,  intimamente  ligada  à  lógica  do  crescimento  de  Tóquio  ao  longo  das  inúmeras estradas de ferro privadas que partem da terceira maior cidade do mundo. E finalmente: o próprio Disney, uma vez que nenhum estudo de qualquer das inovações nessa área pode estar completo sem um reconhecimento abrangente de tudo o que foi inventado por Walt: todos os tipos de coisa, de um novo urbanismo a um novo tipo de shopping, um novo tipo de globalização, um novo tipo de indústria do entretenimento e até mesmo um novo tipo de  Utopia.  De  fato,  talvez  Disney  e  a  “Disneyficação”  sejam  melhores  estudados  nesse novo  contexto,  comparatista    e  globalizado,  do  que um  esporte  ou  um singleton¹¹tipicamente americano.

Mas  e  quanto  ao  próprio  shopping,  seu  espaço,  por exemplo?  Existe  uma psicologia do espaço no shopping — a emenda, o corredor, o molde — assim como existe uma  ecologia  da  coisa.  E  aqui  os  pré-requisitos  retornam  fluindo  com  força  total:  não somente   o   ar-condicionado,   com   sua   interessantíssima   história   (mais   inventores fanfarrões  e  sonhadores  criativos  e  obsessivos),  mas  também  a  escada  rolante  —  o elevador  havia  sido  um  operador  crucial  no  primeiro  livro  de  Koolhaas, Nova  York Delirante¹²,   sobre   a   paisagem   do   arranha-céu   —   com   suas   importantíssimas conseqüências para o espaço do shopping e suas possibilidades de construção; toda essa rica  seção  ocupa  umas  trinta  páginas.  E  também,  em algum  momento  mais  tarde,  a clarabóia e o sistema hidráulico contra incêndio; sem falar no modo pelo qual esse novo espaço  pode  manter  escondido  seu  sistema  de  serviços  —  poderíamos  mencionar  até mesmo as “tecnologias” precursoras: o guichê, as vitrines, o espelho e o manequim. 

Mas  permitamo-nos  entrar  nas  ideologias  da  questão,  pois,  aqui,  finalmente  nos elevamos  do  corpo  à  alma:  a  pobre  Jane  Jacobs1³,  por  exemplo,  é  vista  como  algo semelhante  à  astúcia  hegeliana  da  história,  com  toda  a  justiça,  por  defender  os  aspectos fundamentais  de  uma  verdadeira  experiência  da  cidade  contra  os  vários  modernismos urbanísticos  e  arquitetônicos,  enumerando,  dessa  forma,  “os  ingredientes  através  dos quais o shopping pôde substituir a urbanidade e criar uma “luz da cidade” que tornou-se o modelo  para  a  ressurreição  dos  degradados  centros  da  cidade  da  América.”  Isso  parece um pouco duro, mas o certo é que Jacobs — acusada por muitos arquitetos e urbanistas de  acionar  a  revolução  pós-moderna  em  seu  campo  —  não  é  anticapitalista  e  apóia  de forma bastante considerável os (pequenos) negócios.

Mas  com  Victor  Gruen¹4  estamos  nas  origens  (não  podemos  mais  chamá-la  de “grau zero”; e o gênio Harold-Bloomiano?). Pois o shopping foi sua invenção original, e é certo que a nossa experiência contemporânea do espaço ou não-espaço americano é, em alguma  medida,  “desalienada”  ao  descobrirmos  que  foram  as  idéias  de  alguém  que geraram  tudo  isso,  e  que  não  se  trata  apenas  de  um estranho  acúmulo  de  acidentes históricos de mercado, mas do resultado da produção humana. Para começo de conversa, enfatizar a façanha de Gruen, entretanto, é também, e a um só tempo, salientar a reação canônica  e  recordar,  voluntariamente  ou  não,  que  poucos  dos  grandes  modernistas chegaram  a  planejar  tais  coisas,  que  dirá  teorizá-las  (por  outro  lado  elas  se  tornaram matéria-prima  dos  pós-modernistas).  É  também  motivar  uma  reflexão  sobre  o auteurcontemporâneo, que é o pomposo equivalente da cultura de massa de todos esses projetos estéticos superiores e, com toda a justiça, um verdadeiro fenômeno: Jon Jerde, construtor do  Horton  Palace  em  San  Diego  e  muitos  outros.  Como  em  todos  os  outros  ramos  da cultura contemporânea, a separação entre grande arte e cultura de massa também aqui se torna inevitável. 

Mas  exatamente  quando  estamos  prestes  a  refletir  um  pouco  sobre  disso,  e avançar  na  direção  de  outros  fenômenos  globais  relacionados  —  o  Grupo  Lippo  na Indonésia;  um  retorno  à  velha  noção  de  Venturi-Scott-Brown  em Learning from Las Vegas e uma rica entrevista com os autores; também o feminismo (mulheres e shoppings constituem um velho e ofensivo tópico); paisagens artificiais; a relação de tudo isso com a  psicologia  e  a  psicanálise;  a  resistência  européia  ao  shopping  e  suas  conseqüências americanizantes; e muitos outros temas interessantes levantados pela segunda metade do alfabeto — inesperadamente nos deparamos com um buraco negro,  gerando prodigiosas energias em todas as direções.  

ABAIXO O VÍRUS DO JUNKSPACE 

Junkspace   (“Espaço-lixo”),   a   contribuição   de   Rem   Koolhaas,   é   um   texto extraordinário,  que  tanto  é  um  artefato  pós-moderno  característico  quanto  uma  estética totalmente  nova,  talvez,  se  não  toda  uma  nova  visão  da  história.  À  luz  desse  texto concatenado,  precisamos  fazer  uma  pausa  e  repensar o  projeto  inteiro.  Mas  primeiro temos que examinar o próprio texto, cuja combinação de repulsa e euforia é única para o pós-moderno  e  instrutiva  sob  vários  aspectos.  Sabíamos  que  Koolhaas  era  um  escritor interessante   —   nisso,   comparável   a   um   bom   número   de   destacados   arquitetos contemporâneos; seus livros, em particular Nova York Delirante e S, M, L, XL, combinam inovação  formal  com  sentenças  incisivas  e  posições caracteristicamente  provocativas. Mas nem um único texto desses livros nos preparou para essa performance ininterrupta e continuada do espaço construído, não apenas da cidade contemporânea, mas de todo um  universo  no  ponto  de  fusão  num  tipo  de  magma  indeterminado  e  de  incontáveis utilidades. 

Isso  vai  muito  além  das  querelantes  reclamações  da crítica  cultural  acerca  da estandardização   (ou   americanização).   Ela   começa   com   o   lixo   (junk)   como   o remanescente   clássico   (o   que   permanece   depois   da   dialética   ou   depois   da   cura psicanalítica):  se  o  lixo-espacial  (space-junk)  é  o  escombro  humano  que  desarruma  o universo, o “espaço-lixo” (junk-space) é o resíduo que a humanidade deixa no universo.” Muito rapidamente, no entanto, o junkspace torna-se um vírus que se espalha e prolifera por todo o macrocosmo: 

restos  geométricos  angulares  invadindo  imensidões  estreladas;  o espaço real editado para uma suave transmissão no espaço virtual, o engonço  crucial  num  infernal  circuito  de  realimentação...a  vastidão do junkspace estendeu-se às beiradas do Big Bang. 

Mas isto, por si mesmo, seria pouco mais do que Baudrillard ou teoria da televisão — a crítica da virtualidade como uma promessa (como a crítica de passagem do “fluxo” deleuziano):ao  invés  disso,  o  propósito  do  exercício  é  encontrar  sinônimos,  centenas  e centenas de sinônimos teóricos, martelados uns sobre os outros e derretidos juntos numa colossal e aterrorizante visão, com cada uma das “teorias” do “pós-moderno” (ou a época atual)  tornando-se  metafóricas  umas  para  as  outras numa  única  e  ofuscante  olhadela  na parte de baixo: 

O  “espaço-lixo”  expõe  o  que  as  gerações  passadas  mantiveram encoberto:   estruturas   emergem   como   molas   de   um   colchão, escadas  de  saída  balançam  num  trapézio  didático,  sondas  são arremessadas no espaço para fornecer trabalhosamente aquilo que é  de  fato  onipresente,  ar  livre,  acres  de  vidro  pendurados  por cabos aracnídeos, peles tensamente esticadas cercadas por flácidos não-eventos. 

Como  tendência,  o  “espaço-lixo”  já  existe  há  algum tempo,  não-reconhecido  no começo; como um vírus não detectado, novamente: 

Primeiramente   os   arquitetos   pensaram   no   “espaço-lixo”   e   o denominaram   Megaestrutura,   a   solução   final   para   seu   enorme impasse. Como múltiplas Babéis, as imensas estruturas durariam por  toda a eternidade, irrompendo inúmeros subsistemas provisórios que iriam  se  modificar  com  o  tempo,  fora de  seu  controle.  No “espaço-lixo”,  as  mesas  estão  viradas:  não  mais  do  que  subsistemas,  sem superestrutura, partículas órfãs à procura de uma base ou modelo. 

Seria  simples  demais  dizer  que  aqui  espaço  e  arquitetura  são  metáforas  para qualquer outra coisa, mas isso não é mais teoria da arquitetura, tampouco se trata de um romance cujo ponto de vista é o do arquiteto. Antes, é a nova linguagem do espaço que está falando através dessas frases que se perpetuam produzindo réplicas de si mesmas, o próprio  espaço  tornando-se  o  código  dominante  ou  linguagem  hegemônica  desse  novo momento  da  História  —  o  último?  —  cuja  matéria-prima,  em  sua  decomposição,  o condena à extinção: 

Envelhecer  no  “Espaço-lixo”  é  algo  inexistente  ou  catastrófico;  por vezes  um  “Espaço-lixo”  inteiro  ─  uma  loja  de  departamentos,  um clube noturno, um apartamento de solteiro ─ se transforma, da noite para  o  dia  e  sem  aviso,  numa  favela:  o  consumo  de  eletricidade diminui imperceptivelmente, letras caem das placas, aparelhos de ar-condicionado    começam    a    pingar,    aparecem    rachaduras de terremotos   que,   do   contrário,   não   seriam   registrados;   partes apodrecidas  não  são  mais  viáveis,  mas  permanecem  unidas  à  carne do corpo principal através de passagens gangrenosas. 

Essas alarmantes “deteriorações de tipo Alzheimer” são realizações dos momentos de  pesadelo  em  Philip  K.  Dick,  quando  a  realidade  começa  a  curvar-se  como  numa alucinação por droga e sofrer vertiginosas transmutações, revelando os mundos privados nos quais estamos aprisionados para além do tempo. Mas esses momentos não são mais aterrorizantes;  agora  eles  são,  de  fato,  bem  estimulantes,  e  é  precisamente  essa  nova euforia que permanece por ser explicada. 

O IMPÉRIO DA MANCHA

Sejamos  claros,  Koolhaas  reivindica  nada  menos  do  que  a  renovação  perpétua, não apenas a demolição do velho, mas também a reciclagem perpétua a qual foi reduzida a uma vez nobre (e até mesmo megalomaníaca) vocação de Mestre Construtor: “Qualquer coisa esticada — limusines, partes do corpo, aviões — tem seu conceito original ultrajado e  se  transforma  em  ‘espaço-lixo’.  Restaurar,  rearranjar,  remontar,  reformular,  renovar, revisar, recuperar, redesenhar, retornar — os mármores do Partenon — refazer, respeito, alugar  (Rent):  verbos  que  começam  com re —  produzem  ‘espaço-lixo’.”  Trata-se,  sem dúvida, do desaparecimento de todos os “originais”, e, junto com eles, da própria história: 

a  única  certeza  é  a  conversão  —  contínua  —  seguida,  em  raros casos, por uma “restauração”, o processo que exige sempre novas partes  da  história  como  “espaço-lixo”.  A  história  corrompe,  a história  absoluta  corrompe  absolutamente.  Cor  e  matéria  são eliminadas  desses  enxertos  sem  sangue;  o  insípido  tornou-se  o único ponto de encontro do velho e do novo.

Estamos  de  agora  em  diante  no  domínio  do  “sem-forma”  (Rosalind  Kraus, partindo  de  Bataille);  mas  “a  ausência  de  forma  é  ainda  uma  forma  e  o  ‘sem-forma’ também é uma tipologia.” Não se trata do “vale tudo” da nova geração de “arquitetos de gota”  (Greg  Lynn,  Bem  Van  Berkel)  produzidos  pelo  computador:  “na  verdade,  o segredo do ‘espaço-lixo’ é que ele é tanto promíscuo quanto repressor: na medida em que o ‘sem-forma’ prolifera, o formal murcha, e, com ele, todas as regras, regulamentações e recursos.” Sombras de Marcuse e da tolerância repressiva? 

O  “espaço-lixo”  é  um  triângulo  das  Bermudas  de  conceitos,  uma placa   de   petri   abandonada:   ele   cancela   distinções, solapa resoluções   e   confunde   intenção   com   realização;   substitui   a hierarquia  pela  acumulação,  a  composição  pela  adição.  Mais  e mais,  mais  é  mais.  O  “espaço-lixo”  é,  ao  mesmo  tempo,  maduro demais e subnutrido, um colossal cobertor de segurança que cobre a Terra com uma barreira de proteção intransponível...O “espaço-lixo”  é  como  estar  perpetuamente  condenado  a  uma  Jacuzzi  com milhões  dos  seus  melhores  amigos...Um  felpudo  império  de manchas,  no  qual      unificam-se  o  alto  e  o  baixo,  o público  e  o privado, o reto e o curvado, o estufado e o faminto, para oferecer uma   descosturada   colcha   de   retalhos   do   permanentemente desagregado.

Existem, sem dúvida, “trajetórias” tranqüilas, com seus momentos mágicos:

O  pós-modernismo  acrescenta  uma  zona  de  deformação  de  viral  escaldado que tritura e multiplica a infinita linha de frente de exposição, uma embalagem peristáltica com material termo-retrátil, crucial para todas as trocas comerciais. As trajetórias têm início com ladeira, viram na horizontal sem qualquer aviso, atravessam, abaixam e de repente emergem numa vertiginosa varanda acima de um  grande  vazio.  Fascismo  sem  ditador.  Do  repentino  ponto  sem  saída  onde você foi deixado por uma monumental escada de granito, uma escada rolante te leva para um destino invisível, encarando  uma provisória vista panorâmica de gesso, inspirada por fontes insignificantes.

No interior dessa atordoante pseudo-temporalidade material, que modifica-se sem parar  à  nossa  volta,  também  existem  momentos  de  rara,  de  deslumbrante  beleza: “estações ferroviárias abrem-se como borboletas de ferro, aeroportos brilham como gotas de  orvalho  ciclópicas,  pontes  freqüentemente  atravessam  bancos  desprezíveis  como versões   grotescamente   ampliadas   de   uma   harpa.   Para cada   riacho   seu   próprio Calatrava15.”  Mas  tais  momentos  são  insuficientes  para  compensar  o  pesadelo,  ou  fazer valer à pena as alucinações. O cyberpunk16parece ser a referência a apreendermos aqui, o qual — como Koolhaas, apenas ambiguamente cínico — parece positivamente revelar em seu  próprio  excesso  (e  no  do  seu  mundo).  Mas  na  realidade  o cyberpunk  não  é apocalíptico, e penso que a melhor coordenada é Ballard17, o Ballard dos múltiplos “fins do   mundo”,   sem   a   melancolia   de   Byron18,   o   rico   pessimismo   orquestral   e   a weltschmerz19. 

Pois, aqui, o que está em jogo é o fim do mundo; e isso poderia ser estimulante se o  apocalipse  fosse  o  único  modo  de  imaginar  o  desaparecimento  desse  mundo  (aqui pouco  interessa  se  temos  de  lidar  com  a  explosão  ou  a  lamúria).  É  o  velho  mundo  que merece  a  irritação  e  a  sátira,  o  novo  é  meramente  sua  própria  auto-aniquilação  e  seu deslizamento no que Dick chamava de kipple ou gubble20, naquilo que Le Guin uma vez descreveu  como  o  derreter  dos  prédios.  “Eles  estavam  ficando  encharcados  e  trêmulos; como  gelatina  deixada  ao  sol.  Os  cantos  já  haviam  se  deteriorado  dos  lados,  deixando grandes manchas gordurentas.” Alguém disse uma vez que é mais fácil imaginar o fim do mundo  do  que  imaginar  o  fim  do  capitalismo.  Podemos  agora  aprimorar  isso  e testemunhar  a  tentativa  de  imaginar  o  capitalismo  com  a  intenção  de  imaginar  o  fim  do mundo. 

ROMPENDO DE VOLTA À HISTÓRIA

Penso que seria melhor caracterizar tudo isso em termos de História: uma História que não podemos imaginar de outra forma se não como fim e cujo futuro parece ser nada mais do que uma monótona repetição do que já está aqui. O problema, portanto, é como localizar  a  diferença  radical,  como  impulsionar  o  sentido  histórico  de  modo  que  ele novamente  comece  a  transmitir  frágeis  sinais  de  tempo,  de  alteridade,  de  mudança  e  de Utopia. O problema a ser resolvido é esse: escapar do presente “sem vento” (windless) do pós-moderno e retornar ao tempo histórico real e a uma história feita por seres humanos. Penso que esse texto é uma maneira de se fazer isso ou, pelo menos, uma tentativa. Sua ficcionalidade científica provém do método secreto desse gênero, o qual, na ausência de um  futuro,  concentra-se  numa  única  tendência  maligna,  que  ele  expande  e  expande  até que  a  tendência  se  torna,  ela  mesma,  apocalíptica  e  explode  o  mundo  no  qual  estamos aprisionados em incontáveis fragmentos e átomos. A aparência distópica é, assim, apenas a extremidade afiada inserida na contínua fita de Möbius21 do capitalismo tardio, a ferida ou obsessão perpétua que não se deixa enganar por um enredo, por qualquer enredo, para seu previsível fim. 

Entretanto, isso apenas não é o suficiente: um rompimento da barreira do som da História deve ser realizado numa situação em que a imaginação histórica está paralisada e encasulada, como que pelo ferrão de um predador: nenhuma possibilidade de lançar-se no futuro, de reconquistar a diferença, muito menos a Utopia, a não ser inscrevendo-se nela, mas  sem  voltar  atrás.  Essa  inscrição  é  a  aríete2,  a  repetição  delirante  que  trabalha arduamente nessa uniformidade, percorrendo todas as formas da nossa existência (espaço, estacionamento,   shopping,   trabalhar,   comer,   construir)   e   esmurrando-as   até   elas admitirem sua própria identidade estandardizada entre si, para além da cor, para além da textura,  a  suavidade  sem  forma  que  não  é  mais  nem  mesmo  o  plástico,  o  vinil  ou  a borracha  do  passado.  As  frases  são  o  estrondo  dessa  insistência  repetitiva,  o  socar  na vacuidade  do  próprio  espaço;  e  agora  sua  energia  antecipa  o  movimento  coletivo  e  o  ar fresco, a euforia de um  alívio, uma aparição orgástica no tempo, na história e no futuro concreto novamente.

Tal  é,  portanto,  o  segredo  dessa  nova  forma  simbólica,  que  Koolhaas  não  é  o único  de  nossos  contemporâneos  a  mobilizar  (mas  poucos  o  fazem  melhor).  Voltar lentamente  agora,  reentrar,  como  que  numa  câmara  de  descompressão,  no  mundo  mais prosaico  do  shopping,  que  foi  o  ponto  de  partida  dessa  aventura  delirante,  significa também  procurar  pelo  acontecimento,  por  aquilo  que o  impulsionou  e  provocou  uma reação tão monumental e verdadeiramente metafísica. Ele nos foi dado, de fato, bem no início,  numa  frase  improvisada  de  Sze  Tsung  Leong, no  final  de  uma  abordagem  mais comedida  e  focada  da  transformação  comercial  do  globo,  que  é,  afinal,  o  tema  do presente volume: “No fim, haverá pouca coisa a se fazer além de comprar.” O mundo no qual estávamos aprisionados é na realidade um shopping-center; a clausura sem vento é a rede subterrânea de túneis destinada à exibição de imagens. O vírus atribuído ao “espaço-lixo”  é,  na  verdade,  o  vírus  do  próprio  shopping;  que,  como  a  “Disneyficação”, gradualmente  se  espalha  pelo  universo  conhecido  como  um  musgo  tóxico.  Mas  o  que  é esse  shopping  do  qual  estamos  tediosamente  falando há  tanto  tempo  (e  os  autores  mais tempo ainda)? 

Teoricamente, ele vem em muitos pacotes (e como era de se esperar, podemos ir a várias  lojas  para  comparar  os  preços  de  nossa  marca  ou  versão  teórica  favorita).  A tradição do marxismo ocidental chamou isso de mercantilização, e nessa forma a análise remonta  pelo  menos  ao  próprio  Marx,  ao  famoso  capítulo  sobre  o  fetichismo  da mercadoria, que abre O Capital. A perspectiva religiosa do século XIX é a meio através do qual Marx põe em primeiro plano uma dimensão especificamente superestrutural das trocas  mercantis  sob  o  capitalismo.  Ele  entendia  “as  sutilezas  metafísicas  e  os  requintes teológicos”  da  mercadoria  como  o  meio  pelo  qual  a  relação  de  trabalho  é  ocultada  do comprador  (do  consumidor?),  e  assim  Marx  apreendeu a  mercantilização  como  uma operação  essencialmente  ideológica,  como  uma  forma de  falsa  consciência  que  tem  a função específica de mascarar  a produção de valor do  consumidor (burguês). História e Consciência  de  Classe,  o  clássico  filosófico  de  Georg  Lukács,  o  texto  inaugural  do chamado  marxismo  ocidental,  desenvolve  essa  análise  no  plano  mais  amplo  da  própria história  da  filosofia,  recolocando  a  mercantilização  no  centro  do  mais  geral  e  extensivo processo social de reificação, tanto física quanto mental.

Não  obstante,  depois  da  Segunda  Guerra  Mundial,  a  orientação  ideológica  desse tema toma um rumo um tanto diferente, num momento em que a venda de mercadorias e artigos  de  luxo,  para  além  daqueles  da  simples  subsistência  ou  reprodução  social, generaliza-se  integralmente  nas  áreas  cada  vez  mais  prósperas  do  Primeiro  Mundo  — Europa  Ocidental,  Estados  Unidos  e,  no  devido  tempo,  Japão.  A  essa  altura,  os situacionistas  e  seu  teórico,  Guy  Debord,  concebem uma  nova  perspectiva  para  a mercantilização  em  seu dictum  de  que  “a  forma  final  do  fetichismo  da  mercadoria é  a imagem.”  Esse  é  o  ponto  de  partida  de  sua  teoria  da  assim  chamada  sociedade  do espetáculo,  na  qual  a  antiga  “riqueza  das  nações”  é  agora  compreendida  como  “uma imensa acumulação de espetáculos.” Com essa perspectiva, estamos muito mais perto de nossas  atuais  suposições  (ou doxa),  a  saber,  de  que  o  processo  de  mercantilização  é menos uma questão de falsa consciência do que um estilo de vida inteiramente novo, que chamamos de consumismo e que se equipara mais a um vício do que a um erro filosófico ou mesmo uma escolha equivocada de partidos políticos. Esse giro é parte da visão mais contemporânea  da  cultura  como  a  substância  mesma  da  vida  cotidiana  (ela  própria  um conceito relativamente novo do pós-guerra, introduzido por Henri Lefebvre). 

As  imagens  do Guide to Shopping são,  portanto,  imagens  de  imagens  e  devem assim  possibilitar  um  novo  tipo  de  distanciamento  crítico,  coisa  que  eles  fazem conceitualmente recolocando a noção de mercadoria em sua situação original nas trocas comerciais.  O  que  nós  fazemos  com  as  mercadorias,  enquanto  imagens,  portanto,  não  é olhar  para  elas.  A  idéia  de  que  compramos  imagens  já  é  uma  “desfamiliarização”  útil dessa  noção;  mas  a  caracterização  de  acordo  com  a  qual  vamos  às  compras  atrás  de imagens  é  ainda  mais  útil,  pois  desloca  o  processo para  uma  nova  forma  de  desejo, situando-o  bem  diante  de  onde  ocorre  a  venda  real  —  quando,  como  se  sabe,  perdemos todo  o  interesse  no  objeto  enquanto  tal.  Quanto  ao consumo,  ele  tem  sido  inteiramente volatizado  nessa  perspectiva,  e,  como  temia  Marx,  tornou-se  completamente  espiritual. Aqui a materialidade é um mero pretexto para o exercício de nossos prazeres mentais: o que  deixou  de  ser  particularmente  material  no  consumo  de  um  carro  novo  e  caro  — lavado e polido com a maior freqüência possível— que alguém dirige pelas ruas locais? 

“No fim, haverá pouca coisa a se fazer além de comprar.” Será que isso não revela uma  extraordinária  expansão  do  desejo  em  todo  o  planeta  e  uma  instância  existencial totalmente nova daqueles que podem pagar por isso e que, agora, há muito familiarizados tanto  com  a  vida  esvaziada  de  sentido  quanto  com  a impossibilidade  de  satisfação, constroem um estilo de vida em que uma nova e específica organização do desejo oferece tão-somente  o  consumo  dessa  impossibilidade  e  dessa  ausência  de  sentido?  De  fato, talvez  esse  seja  o  momento  propício  para  retornarmos  ao  delta  do  Rio  das  Pérolas  e  ao socialismo  pós-moderno  de  Deng  Xiaoping,  no  qual  “ficar  rico”  não  significa,  na verdade,  ganhar  dinheiro,  mas,  sim,  construir  imensos  shopping-centers  —  o  segredo deles está no fato de que o “ir às compras” não exige que você compre, e que a forma do shopping é uma performance que pode ser realizada sem dinheiro, desde que os espaços adequados a ela, em outras palavras, o “espaço-lixo”, tenham sido  providenciados.

1 Chuihua Judy Chung, Jeffrey Inaba, Rem Koolhaas e Sze Tsung Leong, eds, Great Leap Forward, Harvard Design School Project on the City, 722 pp, Colônia 2002; e Guide to Shopping, Harvard Design School Project on the City, 800 pp, Colônia 2002.
2 Mutations, Barcelona 2001.

O militarismo e as guerras vindouras

Os perigos e o imenso sofrimento causados por todas as tentativas de resolver problemas sociais profundamente arraigados por meio de intervenções militares, em qualquer escala, são bastante óbvios. Se, no entanto, olharmos mais de perto a tendência histórica das aventuras militares, torna-se assustadoramente claro que elas mostram uma intensificação cada vez maior e uma escala cada vez maior, de confrontos locais a duas horrendas guerras mundiais no século XX, e à aniquilação potencial da humanidade quando chegarmos ao nosso próprio tempo.

István Mészáros


June 2003 (Volume 55, Number 2)

1

Não é a primeira vez na História, nos nossos dias, que o militarismo pesa na consciência dos povos como um pesadelo. Entrar em pormenores seria demasiado longo. Basta, contudo, remontar ao século XIX, quando o militarismo como importante instrumento da tomada de decisões políticas se afirmou, com a erupção do imperialismo moderno à escala mundial, em contraste com as suas variedades iniciais, muito mais limitadas. No último terço do século XIX, não só os Impérios Britânico e Francês dominavam vastos territórios, como também os Estados Unidos deixaram a sua pesada marca ao tomarem directa ou indirectamente o controlo das antigas colónias do Império Espanhol na América Latina, acrescentando-lhes a sangrenta repressão de uma grande luta de libertação nas Filipinas e instalando-se como dirigentes nessa região de um modo que ainda persiste de uma forma ou de outra. Também não devemos esquecer as calamidades provocadas pelas ambições imperialistas do "Chanceler de Ferro" Bismarck e prosseguidas de forma reforçada pelos seus sucessores, que provocaram o desencadear da Primeira Guerra Mundial e o seu rescaldo profundamente antagónico, trazendo consigo o revanchismo de Hitler e pressagiando assim muito claramente a própria Segunda Guerra Mundial.

Os perigos e sofrimentos imensos causados por todas as tentativas de resolução de problemas sociais profundamente arreigados através de intervenções militares, seja a que escala for, são sobejamente evidentes. Todavia, se observarmos mais de perto a tendência histórica das aventuras militaristas, verificamos de forma assustadoramente clara que elas revelam uma intensificação cada vez maior e uma escala cada vez mais ampla, que vai de confrontos locais até duas terríveis guerras mundiais no século XX e à potencial aniquilação da Humanidade, quando chegar a nossa vez.

É bastante pertinente citar, neste contexto, o distinto oficial prussiano e estratega, não só prático como teórico, Karl Marie von Clausewitz (1780-1831), que morreu no mesmo ano que Hegel, igualmente de cólera. Foi von Clausewitz, Director da Escola Militar de Berlim nos últimos treze anos da sua vida, que, no seu livro publicado a título póstumo — Vom Kriege (“Sobre a Guerra”, 1833) —, deu uma definição clássica e ainda hoje frequentemente citada da relação entre a política e a guerra: “ a guerra é a continuação da política por outros meios”.

Esta famosa definição era sustentável até há muito pouco tempo, mas tornou-se totalmente insustentável nos nossos dias. Pressupunha aracionalidade das acções que estabelecem uma ligação entre os domínios da política e da guerra como continuação uma da outra. Neste sentido, a guerra em causa tinha de ser vencível , pelo menos em princípio, mesmo se se podiam prever erros de cálculo que levassem à derrota a nível instrumental. A derrota em si não podia destruir a racionalidade da guerra como tal, dado que, depois da — todavia desfavorável — nova consolidação da política, a parte derrotada podia planear outra ronda de guerra como continuação racional da sua política por outros meios. Assim, acondição absoluta da equação de von Clausewitz a satisfazer era a vencibilidade da guerra em princípio , de modo a recrear o "eterno ciclo" da política que leva à guerra e desta à política que leva a outra guerra e assim por diante ad infinitum. Os intervenientes nestes confrontos eram os Estados nacionais. Não importava quão monstruosos eram os danos infligidos aos adversários, e mesmo ao seu próprio povo (recordem-se de Hitler!), a racionalidade da acção militar estava garantida se a guerra pudesse ser considerada vencível em princípio.

Actualmente, a situação é qualitativamente diferente. Por dois motivos principais. Primeiro, o objectivo da guerra viável na fase actual de desenvolvimento histórico, em conformidade com os requisitos do imperialismo em termos de objectivo — a dominação mundial pelo Estado mais poderoso do capital, em sintonia com os seus próprios desígnios políticos de “ globalização ” autoritária impiedosa (disfarçada de “comércio livre” num mercado mundial dominado pelos EUA) —, é finalmente não vencível , pressagiando, antes pelo contrário, a destruição da Humanidade. Nem o mais peregrino exercício de imaginação poderia levar a considerar tal objectivo como racional de acordo com o requisito racional estipulado da “continuação da política por outros meios” conduzido por uma nação, ou por um grupo de nações contra outra. Impor agressivamente a vontade de um Estado poderoso a todos os outros, mesmo que por razões tácticas de cinismo a guerra defendida seja absurdamente camuflada como uma “guerra puramente limitada” que conduz a outras “guerras limitadas sem fim determinado”, apenas pode, por conseguinte, ser qualificado deirracionalidade total .

O segundo motivo reforça grandemente o primeiro. No que se refere às armas já disponíveis para vencer a guerra ou guerras do século XXI, existem pela primeira vez na História armas capazes de exterminar não apenas o adversário mas toda a Humanidade. Também não devemos ter a ilusão de que essas armas serão as últimas a serem desenvolvidas. Outras armas, ainda mais eficazmente mortais, poderão surgir amanhã ou depois de amanhã. Além disso, a ameaça de utilização dessas armas é actualmente considerada um instrumento estratégico inaceitável. Assim, juntemos os dois motivos acima expostos e a conclusão é incontornável: encarar a guerra como mecanismo de dominação global no mundo actual demonstra que nos encontramos no precipício da irracionalidade absoluta , do qual não poderemos recuar se aceitarmos o actual curso de desenvolvimento. O que faltava na definição clássica de guerra de von Clausewitz como “continuação da política por outros meios” era a procura das causas subjacentes mais profundas da guerra e a possibilidade de as evitar . O desafio que consiste em enfrentar essas causas é hoje em dia mais urgente do que nunca: a guerra do século XXI que se perfila no horizonte não só não é “vencível em princípio”, mas, pior do que isso, é em princípio não vencível . Por conseguinte, perspectivar o prosseguimento da guerra, tal como o faz o documento de estratégia da administração americana, de 17 de Setembro de 2002, faz com que a irracionalidade de Hitler pareça um modelo de racionalidade.

2

Desde o 11 de Setembro de 2001 que Washington tem vindo a impor as suas políticas agressivas ao resto do mundo de forma claramente cínica. A justificação dada para a pretendida transição da “tolerância liberal” para o que agora se designa por “defesa firme da liberdade e da democracia” é que, em 11 de Setembro de 2001, os EUA se tornaram vítima do terrorismo mundial, e que esta circunstância exige como resposta imperativa vencer uma indefinida e indefinível — mas de facto arbitrariamente definida da forma como convém aos círculos mais agressivos dos EUA — "guerra contra o terrorismo". Considera-se que a expedição militar no Afeganistão não passa da primeira de uma série ilimitada de "guerras preventivas" a empreender no futuro. A próxima na lista é o próprio Iraque, grande aliado favorecido da América até há bem pouco tempo, a fim de permitir a apropriação pelos EUA dos vastos recursos petrolíferos do Médio Oriente — e com o objectivo de assegurar o controlo, estrategicamente crucial, dos mesmos recursos dos potenciais rivais.

Todavia, a ordem cronológica na actual doutrina militar norte-americana é apresentada completamente invertida. Na realidade, está fora de questão uma "mudança de rumo" após o 11 de Setembro de 2001, considerada possível pela dúbia eleição de G. Bush para a Presidência em lugar de Al Gore, dado que o democrata Clinton aplicava o mesmo tipo de políticas que o seu sucessor republicano, embora de uma forma um pouco mais camuflada. Quanto ao ex-candidato democrata à presidência Al Gore, declarou em Dezembro de 2002 que apoiava integralmente a guerra contra o Iraque, porque essa guerra "não significaria uma mudança de regime" mas apenas o "desarmamento de um regime que possui armas de destruição massiva". É possível ouvir algo de mais cínico e hipócrita do que isto?

Há muito que estou firmemente convencido de que, desde o início da crise estrutural do capital nos finais dos anos 60 ou princípios dos anos 70, vivemos numa fase do imperialismo qualitativamente diferente, com os Estados Unidos como força esmagadoramente dominante. Chamei-lhe "a nova fase histórica do imperialismo hegemónico mundial" no meu livro Socialism or Barbarism: From the 'American Century' to the crossroads(Socialismo ou Barbárie: do Século Americano à Encruzilhada).

A crítica do imperialismo norte-americano — em contraste com as fantasias moldáveis do "imperialismo desterritorializado", que não deveria acarretar a ocupação militar dos territórios de outras nações — constitui o tema central do meu livro. O longo capítulo intitulado " The potentially deadliest phase of imperialism" (a fase potencialmente mais mortal do imperialismo ) foi escrito dois anos antes do 11 de Setembro de 2001 e fazia parte de uma palestra proferida em 19 Outubro de 1999, em Atenas. Nesse artigo, sublinhei que "a forma derradeira de ameaçar o adversário no futuro — a nova 'diplomacia de canhoneira' — será a chantagem nuclear ". Desde a data em que estas linhas foram publicadas, pela primeira vez num periódico grego, até à data de publicação do livro, em italiano, em Agosto de 2000, a abominável e prevista mudança de estratégia militar para a derradeira ameaça nuclear — que poderia dar início a uma acção militar que precipitaria a destruição da Humanidade — deixou de ser camuflada, passando a ser a política norte-americana oficial abertamente professada. Também não deveríamos imaginar que a declaração aberta de tal doutrina estratégica é uma tranquila ameaça contra um "eixo do mal" retoricamente propagandeado. No fim de contas, foram os Estados Unidos que utilizaram realmentea arma atómica de destruição massiva contra os habitantes de Hiroshima e Nagasaki.

Quando reflectimos nestas questões de extrema gravidade, não nos podemos satisfazer com nenhuma sugestão que aponte para uma conjuntura política particular e de transição. Antes pelo contrário, devemos inseri-las no seu contexto de desenvolvimento estrutural — económica e politicamente necessário — profundamente enraizado. Isto é extremamente importante, se quisermos conceber uma estratégia viável para combater as forças responsáveis pelo nosso perigoso estado de coisas. A nova fase histórica do imperialismo hegemónico mundial não é simplesmente a manifestação das relações existentes da " grande política do poder ", com vantagem esmagadora para os EUA, contra a qual um realinhamento futuro entre os Estados mais poderosos, ou mesmo algumas manifestações bem organizadas na arena política, poderia afirmar-se. Infelizmente, é muito pior do que isso, pois tais eventualidades, mesmo que pudessem resolver algo, deixariam inalteradas as causas e determinações estruturais subjacentes.

Efectivamente, a nova fase de imperialismo hegemónico mundial está preponderantemente sob o controlo dos EUA, ao passo que os outros poderes eventualmente imperialistas no seu conjunto parecem aceitar o papel de se pendurarem na aba do casaco dos norte-americanos, embora de modo algum até à eternidade. Podemos de facto prever sem hesitação, com base nas instabilidades já visíveis, a explosão de pesados antagonismos entre as maiores potências no futuro. Mas será que isso em si, ignorando as determinações causais que estão na raiz dos desenvolvimentos imperialistas, poderá dar uma resposta às contradições sistémicas que estão em jogo? Seria ingenuidade pensar que tal será possível.

Neste ponto, gostaria de sublinhar uma preocupação central, ou seja que a lógica do capital é absolutamente inseparável dos imperativos da dominação do mais fraco pelo mais forte. Mesmo quando se pensa no que em geral se considera o elemento mais positivo do sistema — a competição que dá origem à expansão e ao progresso — o seu companheiro necessário é o caminho para o monopólio e a subjugação ou o extermínio dos concorrentes que se atravessam no caminho do monopólio auto-afirmativo. O imperialismo, por sua vez, é o resultado necessário da marcha inelutável para o monopólio. As diferentes fases do imperialismo personificam e afectam mais ou menos directamente as mudanças do desenvolvimento histórico em curso.

Relativamente à actual fase em que se encontra o imperialismo, dois aspectos estreitamente relacionados assumem extrema importância. O primeiro é que a última tendência material/económica do capital é para a integração mundial que, todavia, não pode assegurar a nível político. Isto deve-se em grande medida ao facto de o sistema capitalista mundial se ter fragmentado ao longo da História sob a forma de uma multiplicidade de Estados nacionais divididos e, na realidade, antagonicamente opostos. Nem sequer as mais violentas colisões imperialistas do passado puderam produzir um resultado duradouro a este respeito. Não puderam fazer com que o Estado nacional mais poderoso impusesse de forma permanente a sua vontade aos Estados rivais. O segundo aspecto do nosso problema, que constitui a outra face da mesma moeda, é que, apesar de todos os esforços, o capital não conseguiu produzir o Estado do sistema capitalista enquanto tal . Isto continua a ser a mais grave complicação para o futuro, não obstante tudo o que se diz da " globalização ". O imperialismo hegemónico mundial dominado pelos EUA é uma tentativa, em última análise condenada, de se impor a todos os outros — mais cedo ou mais tarde recalcitrantes — Estados nacionais como o Estado "internacional" do sistema capitalista enquanto tal. Também neste ponto nos deparamos com uma contradição de peso, pois mesmo os recentes, mais agressivos e abertamente ameaçadores documentos de estratégia dos EUA tentam justificar as suas políticas apelidadas de "universalmente válidas" em nome dos "interesses nacionais americanos", recusando ao mesmo tempo essas considerações aos outros.

3

Aqui podemos ver a relação contraditória entre uma contingência histórica — encontrando-se actualmente o capital americano na sua posição preponderante — e a necessidade estrutural do próprio sistema capitalista. Este último pode ser resumido como o avanço material irreprimível do capital no sentido da integração monopolística mundial seja por que preço for, mesmo que signifique pôr directamente em perigo a própria sobrevivência da Humanidade. Por conseguinte, mesmo que se possa vencer no plano político a força da actualmente prevalecente contingência histórica dos EUA — que foi precedida de outras configurações imperialistas no passado e pode muito bem ser seguida de outras no futuro (se conseguirmos sobreviver aos actuais perigos explosivos) —, a necessidade estrutural ou sistémica emanente da lógica finalmente monopolística mundial continua a ser tão pressionante como sempre. Pois seja qual for a forma específica que uma futura contingência histórica possa assumir, a necessidade sistémica subjacente tem de continuar a ser a marcha para a dominação mundial.

Por conseguinte, a questão não reside apenas em determinados empreendimentos militaristas de alguns círculos políticos, empreendimentos esses que poderiam ser enfrentados e superados ao nível político-militar. As causas são muito mais profundas e não podem ser combatidas sem a introdução de mudanças bastante fundamentais nas determinações sistémicas mais internas do capital como modo de controlo social metabólico — de reprodução global — que abarca não só o domínio político-militar, mas também as mais mediatas inter-relações culturais e ideológicas. Até a expressão "complexo militar-industrial" — introduzida numa acepção crítica pelo Presidente Eisenhower, que sabia algumas coisas sobre esta questão — indica claramente que aquilo que nos preocupa é algo de muito mais firmemente enraizado e tenaz do que algumas determinações (e manipulações) político-militares directas que poderiam, em princípio, ser invertidas a esse nível. A guerra como a "continuação da política por outros meios" ameaçar-nos-á sempre no actual modelo de sociedade, e nos nossos dias com aniquilamento total. Ameaçar-nos-á enquanto não formos capazes de enfrentar as determinações sistémicas na raiz da tomada de decisões políticas, que tornaram as guerras necessárias no passado. Essas determinações encurralavam os vários Estados nacionais no círculo vicioso da política conducente a guerras, e as guerras traziam consigo políticas cada vez mais antagónicas que tinham de explodir em guerras cada vez maiores. Para este debate e de forma um tanto optimista, abstraiamo-nos da contingência histórica do capitalismo americano actual e continuaremos ainda em presença da necessidade sistémica da cada vez mais destruidora ordem de produção do capital, o que realça as mutáveis mas crescentemente perigosas contingências históricas específicas.

A produção militarista, hoje em dia primariamente personificada no "complexo militar-industrial", não é uma entidade independente, regulada por forças militaristas autónomas que são também responsáveis pelas guerras. Rosa Luxemburgo foi a primeira a colocar estas relações na sua perspectiva correcta, já em 1913, na sua obra clássica A Acumulação do Capital, publicada em inglês cinquenta anos mais tarde, e na qual a autora sublinhava profeticamente, há noventa anos, a crescente importância da produção militarista, sublinhando que:

Em última análise, o próprio capital controla este movimento automático e rítmico de produção militarista através da acção legislativa e de uma imprensa cuja função consiste em moldar a chamada "opinião pública". É por isso que este domínio particular da acumulação capitalista parece capaz de expansão ilimitada. (Routledge, London, 1963, p. 466)

Estamos, por conseguinte, preocupados com um conjunto de indeterminações que devem ser encaradas como partes de um sistema orgânico. Se queremos lutar contra a guerra enquanto mecanismo de governo mundial, como o devemos fazer, a fim de salvaguardar a nossa própria existência, temos de situar as mudanças históricas que tiveram lugar nas últimas décadas no seu quadro causal próprio. A concepção de um Estado nacional superpoderoso, que controlaria todos os outros, seguindo os imperativos emanentes da lógica do capital, só pode conduzir ao suicídio da Humanidade. Ao mesmo tempo, deve também reconhecer-se que a contradição aparentemente insolúvel entre aspirações nacionais — que explodem ciclicamente em antagonismos devastadores — e internacionalismo só pode ser resolvida se for regulada numa base totalmente equitativa, o que é completamente inconcebível na ordem hierarquicamente estruturada do capital.

Assim sendo, a fim de conceber uma resposta historicamente viável aos desafios colocados pela actual fase do imperialismo hegemónico mundial, devemos combater a necessidade sistémica do capital de subjugação do trabalho a nível global por meio de qualquer agência social específica que possa assumir o papel que lhe é atribuído nessas circunstâncias. Naturalmente isto só é viável através de uma alternativa — radicalmente diferente — ao caminho do capital para a globalização monopolista/imperialista, no espírito do projecto socialista, incorporada num movimento de massas que desabroche progressivamente. Pois só quando essa “patria es humanidad" — para utilizar as belas palavras de José Martí — se tornar uma realidade irreversível, é que a contradição destrutiva entre desenvolvimento material e relações políticas humanamente compensadoras será definitivamente relegada para o passado.
 

Permitam-me concluir citando o que escrevi há três anos e meio atrás sobre a chamada "terceira via", tão cara aos propagandistas do governo "neo-trabalhista" britânico e outros quejandos. Foi assim que vi a solução e é assim que continuo a vê-lo agora:

Aqueles que falam de "uma terceira via" como solução para o nosso dilema de Socialismo ou Barbárie , afirmando que não pode haver lugar para o renascimento de um movimento de massas radical, ou querem desiludir-nos chamando cinicamente à sua aceitação esclavagista da ordem dominante "a terceira via", ou não conseguem entender a gravidade da situação, colocando a sua fé num resultado que desejam positivo e não conflitual, que vem sendo prometido há quase um século, mas que nunca esteve próximo, nem sequer de mais uma polegada. A inquietante verdade desta questão é que, se não há futuro para um movimento de massas radical na nossa época, tal como alguns dizem, também não pode haver futuro para a própria Humanidade. 
Se eu tivesse de alterar as dramáticas palavras de Rosa Luxemburgo, relativamente aos perigos que enfrentamos hoje, acrescentaria a "socialismo ou barbárie": "barbárie, se tivermos sorte" — no sentido de que o extermínio da Humanidade é a última concomitante da via de desenvolvimento destrutiva do capital. E o mundo dessa terceira possibilidade, para além das alternativas de "socialismo ou barbárie", apenas serviria para as baratas, que se diz serem capazes de aguentar elevados níveis mortais de radiações nucleares. É este o único significado racional de terceira via do capital. 
A terceira fase actualmente operacional e potencialmente mortífera do imperialismo hegemónico mundial, correspondente à profunda crise estrutural do sistema capitalista como um todo no plano político e militar, não nos permite tranquilidade nem nos dá segurança. Pelo contrário, lança a sombra mais negra possível sobre o futuro, se o movimento socialista não for capaz de resolver com êxito os desafios históricos que enfrenta, no espaço de tempo que temos ao nosso alcance. É por este motivo que o próximo século terá de ser o século do "socialismo ou barbárie".

István Mészáros é autor de Socialism or Barbarism: From the "American Century" to the Crossroads (Monthly Review Press, 2001) e Beyond Capital: Toward a Theory of Transition (Monthly Review Press, 1995).

Este ensaio é baseado no prefácio da recente tradução turca de Socialism or Barbarism: From the "American Century" to the Crossroads, de István Mészáros. Foi escrito antes da recente invasão do Iraque pelos Estados Unidos.

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