The New York Review of Books
July 17, 2003 |
Calem-se raios e trovões, comoções e espantos. O pó, as cinzas, a névoa, o fogo, fumaça, areia, sangue e uma boa parte dos resíduos passam agora aos bastidores. O palco, no entanto, continua ocupado. A pergunta formulada quando se levantou o pano não foi respondida. Por que fomos à guerra? Se não encontrarem armas de destruição maciça, a pergunta irá converter-se num grito.
Ou, se descobrirem algumas armas no Iraque, é provável que haja ainda mais, transferidas para novos esconderijos para além da fronteira iraquiana. Se ocorrerem horrendos acontecimentos, podemos contar com uma reação previsível: "Bons, honestos, inocentes estadunidenses morreram hoje devido aos malvados terroristas do al-Qaeda". Sim, escutaremos a voz do presidente até antes de pronunciar essas palavras. (Aqueles de nós a quem George W. Bush não agrada poderiam reconhecer que viver com ele no Salão Oval é como estar casado com alguém que diz sempre exatamente aquilo que se sabe que ele ou ela vão dizer, o que ajuda a compreender porque mais da metade dos EUA atualmente parece adorá-lo.)
A pergunta chave continua a ser: por que fomos à guerra? Não foi respondida. A multidão de respostas já produziu uma salada cognitiva. Mas neste momento o ingrediente isolado mais doloroso é, naturalmente, o descobrimento das fossas de cadáveres. Livrámos o mundo de um monstro que assassinou quantidades incalculáveis, mega-quantidades, de vítimas. Ninguém sublinha que muitos dos cadáveres eram de xiitas do sul do Iraque que foram dizimados repetidamente durante os últimos doze anos por se terem atrevido a rebelar-se contra Saddam no período que se seguiu à Guerra do Golfo. Naturalmente, fomos nós que os estimulámos a levantarem-se e a seguir não os ajudámos. Por que? Pode ter havido uma discussão na primeira administração Bush em que terminaram por vencer aqueles que consideram que uma vitória xiita sobre Saddam podia gerar uma multidão de imãs iraquianos que poderiam fazer causa comum com os ayatolas iranianos. Xiitas a unirem-se com xiitas! Hoje em dia, do ponto de vista dos restantes xiitas iraquianos, seria difícil para nós provar-lhes que não foram vítimas de uma traição. Assim, podem contemplar as tumbas que estamos tão felizes de termos libertado como se fossem vozes sepulcrais a exigirem que compartilhemos a culpa. O que, naturalmente, é algo que não faremos.
Sim, nossa culpa por grande parte desses cadáveres continua a ser um imenso texto anexo e Saddam esteve a criar fossas comuns durante todos os anos 70 e 80. Matou comunistas em massa nos anos 70, o que não nos incomodou em nada. A seguir massacrou dezenas de milhares de iraquianos durante a guerra com o Irão – quando o apoiávamos. Inumeráveis fossas comuns que estão a ser descobertas procedem desse período. Os verdadeiros assassinos, é claro, nunca olham para trás.
A administração, contudo, preocupou-se só acerca da aceleração da guerra. Apressaram-se a encontrar razões justificativas. Os iraquianos constituíam uma ameaça nuclear, estavam carregados de armas de destruição maciça, trabalhavam em estreita ligação com al-Queda, haviam sido até os génios malvados por trás do 11 de Setembro. As razões oferecidas ao público estadunidense resultaram ser superficiais, não-verificáveis e em função da realpolitik da nossa necessidade de dominar o Médio Oriente por muitas razões, além de Israel e Palestina. Tivemos que fazer engolir a guerra através de fraudes.
A enormidade da falsificação poderia ser melhor interpretada como um reflexo do imenso prejuízo que o 11 de Setembro causou à moral dos EUA, particularmente aos seu núcleo – a corporação. Toda a gente da organização: superiores e inferiores, gerentes, chefes de divisão, secretárias, vendedores, contadores, especialistas de marketing, toda a colecção de estadunidenses escriturários de empresas, além de todos os que tinham parentes, amigos ou colegas de escola que trabalhavam nas Torres Gémeas – a comoção afectou os fundamentos da psique estadunidense. E a classe trabalhadora dos EUA identificou-se com os que morreram a combater o incêndio: os bombeiros e os polícias, todos instantaneamente enobrecidos.
Foi um filão de ouro político para Bush na medida em que conseguiu dar aos milhões – ou melhor, às dezenas de milhões –, que se identificavam directamente com os incinerados nas Torres Gémeas, um sentido adequado de vingança. Quando Osama bin Laden não pode ser capturado pelas tropas que enviámos ao Afeganistão, Bush foi devolvido aos problemas internos existentes que não pareciam poder ser solucionados facilmente. A economia afundava-se, o mercado estava de rastos e alguns bastiões clássicos da fé estadunidense (integridade empresarial, o FBI e a Igreja Católica, para mencionar apenas três) haviam sofrido uma perda de prestígio atroz. O aumento do desemprego afundava a moral da nação. Uma vez que é concebível que a nossa administração não estivesse disposta a solucionar nenhum dos sérios problemas que a confrontavam se a solução não produzisse um enriquecimento dos de cima, era natural que a administração se sentisse motivada a lançar-se em empreendimentos mais importantes: acometer-se a uma guerra imperial! Poderíamos dizer que nos lançámos à guerra porque necessitávamos desesperadamente de uma guerra com êxito como uma espécie de rejuvenescimento psíquico. Podia-se utilizar qualquer desculpa de peso – a ameaça nuclear, os ninhos de terroristas, as armas de destruição maciça – pois no final das contas podíamos acabar por utilizar a desculpa de que estávamos a libertar os iraquianos. Quem poderia contestá-lo? Impossível. Só restava perguntar: Qual será o custo para a nossa democracia?
Deixemos estabelecido que a administração sabia algo que muitos de nós não sabíamos – sabia que tínhamos forças armadas muito boas, talvez até extraordinariamente boas, ainda essencialmente não tenham sido postas à prova, militares especializados, disciplinados, bem motivados, concentrados nas suas carreiras e dirigidos por uma equipa de oficiais que era inteligente, eloquente e consideravelmente menos corrupta do que qualquer outro corpo do poder nos EUA.
Numa situação extrema, como não iria utilizá-los a Casa Branca? Levantariam a moral de um elemento essencial da vida dos EUA: essas dezenas de milhões de estadunidenses que haviam sido feridos espiritualmente pelo 11 de Setembro. Também poderiam servir um grupo ainda maior, que fora cerca de 50 por cento da população e que continuava a ser fundamental para a base política do presidente. Esse grupo fora realmente afectado. Quanto ao seu ego colectivo, o bom estadunidense médio, homem e branco, havia vivido muito pouco que reerguesse sua moral após a deterioração do mercado de trabalho, nada, na realidade, a menos que fosse membro das forças armadas. Nesta, a situação era evidentemente diversa. As forças armadas haviam-se convertido no equivalente paradigmático de um grande jovem atleta que desejavam por à prova sua autêntica dimensão. Será que haveria por aí, nos quintos dos infernos, um sujeito feito sob medida e que se nome fosse Iraque? O Iraque tinha a reputação de duro, mas não lhe restava muito conteúdo. Um adversário ideal. Uma guerra do deserto está feito sob medida para uma força aérea cuja condição é comparável em sua perfeição a um modelo de moto de primeira linha sobre uma passarela. Sim, libertaríamos os iraquianos.
Assim, lançámo-nos contra todos os obstáculos – o primeiro era a ONU. Sem sequer olhar de lado, desavergonhadamente, orgulhosamente, eufóricos, pelo menos a metade dos nossos EUA prodigiosamente divididos estava impaciente para que começasse a nova guerra. Compreendemos que o nosso entretenimento na televisão ia ser tremendo. E foi. Estéril mas tremendo – o que, depois de tudo, é exactamente o que se supõe que seja uma boa televisão em cadeia e por cabo.
E houve outros factores para utilizar nossa perícia militar, menores mas importantes: esses motivos voltam-nos a conduzir ao contínuo mal estar do macho branco estadunidense. Esteve a sofrer uma sova diária durante os últimos 30 anos. Para melhor ou para o pior, o movimento feminino conseguiu êxitos transcendentais e o velho ego do macho branco perdeu seu brilho. Até o consolo de animar sua equipe diante da televisão havia sido perdido. Para muitos, agora dava muito menos prazer do que antes assistir aos desportes, uma perda chave e declarável. As grandes estrelas brancas de antigamente haviam desaparecido na sua maior parte, desaparecido do futebol americano, da bola-ao-cesto, do boxe e semi-desaparecido do beisebol. O génio negro prevalecia agora em todos esses desportes (e os latinos impunham-se depressa, até os asiáticos começavam a impressionar). Para nós homens brancos deixavam-nos agora a metade do ténis (pelo menos sua metade masculina) e também poderia mencionar o hóquei sobre o gelo, o esqui, o futebol, o golfe (com a notável excepção do Tiger), bem como o lacrosse, o atletismo, a natação e a Federação Mundial de Luta – resíduos daquilo que era uma grande e gloriosa aglutinação atlética branca.
É claro que havia entusiastas do desporto que adoravam as estrelas das suas equipes favoritas sem considerarem a sua raça. Por vezes até gostavam mais dos atletas negros. Esses machos brancos tendiam a ser liberais. Não serviam para Bush. Ele tinha que se preocupar com o seu eleitorado mais imediato. Se possuía uma força oculta, era o seu conhecimento das coisas íntimas que mais preocupavam os machos brancos estadunidenses — precisamente os assuntos que nem sempre estavam dispostos a admitir para si próprios. O primeiro foi de que as pessoas na onda do desporto podem ficar afeiçoados à vitória. O desporto, a ética corporativa (a publicidade) e a bandeira dos EUA converteram-se num triunvirato da luta-pela-vitória que desenvolveu muitas conexões psíquicas com os militares.
Apesar de tudo, a guerra foi a extrapolação mais dramática e mais séria do desporto. O conceito da vitória pode ser visto por alguns como a espécie mais nobre de lucros em união com o patriotismo. Assim, Bush sabia que uma grande vitória era um caminho fácil que daria resultado no caso do macho branco estadunidense. Se os negros e os latinos nas fileiras recrutadas eram representativos da sua proporção na população, ainda não constituíam uma maioria e as caras do corpo de oficiais (como as vemos na televisão) sugerem que a porcentagem de brancos aumenta à medida que se eleva a patente. Além disso tínhamos comandos em demolição de tanques, super-Marines e a melhor força aérea que já existiu. Se não podíamos encontrar machismo em qualquer outra parte, certamente podíamos contar com a inter-relação entre combate e tecnologia. Permitam-me que lance a ofensiva sugestão de que pode ter sido uma das razões encobertas mas reais porque desejávamos a guerra. Sabíamos que provavelmente seria algo que nos faria ficar bem.
Enquanto isso, contudo, dentre todos os rápidos acontecimentos dos últimos meses, nossos militares sofreram uma metamorfose. Certamente foi uma transformação do diabo. Passámos, seja como for, da condição de um atleta potencialmente grande a servir como médico interno ao qual se exigia que operasse em alta velocidade para a de um paciente terrivelmente doente cheio de frustração, indignação e violência. Agora, durante o mês passado, inclusive enquanto estão o paciente, apresenta-se uma nova e inquietante pergunta: Foi desenvolvido algum remédio novo para tratar aquilo que parece ser uma série de infecções? Sabemos realmente como tratar supurações arroxeadas? Ou seria melhor continuar a confiar na nossa imensa sorte estadunidense, nossa fé na nossa sorte de pode fazer tudo, divinamente protegidos? Somos, por hábito, belicosos. Se essas supurações forem incontroláveis, ou demasiado custosas quanto a tempo, não poderíamos deixá-las para trás? Poderíamos passar ao próximo destino. A Síria, poderíamos declarar com a nossa melhor voz de John Wayne: Vocês podem correr, mas não podem esconder-se. A Arábia Saudita: Vocês, depósito de graxa, necessitam-nos mais do que nunca? E ao Irão: Cuidado, estamos a vê-los. Vocês dariam uma verdadeira merenda. Pois quando combatemos sentimo-nos bem, estamos prontos para lançar-nos e já verão como é. Já tomámos o gosto. Claro, há um cabaz cheio de milhares de milhões à espera no Médio Oriente, enquanto pudermos escapar dos biliões de dívidas que nos esperam em casa.
Digamos de forma bem clara: os motivos que orientam os principais actos históricos de uma nação provavelmente não se elevam mais alto do que o entendimento espiritual da sua liderança. Ainda que George W. não saiba tanto quanto como acredita saber sobre as disposições da bendição divina, continua da mesma forma a conduzir-nos a alta velocidade — um homem ao volante cuja vaidade mais legítima será provavelmente que sabe como converter a propriedade parcial de uma equipe de beisebol da liga nacional numa vitória na eleição para governador do Texas. E poderemos chegar a esquecê-lo algum dia? — foi catapultado, mediante astúcias legais e fraudes, a um pedestal — agora um tanto maculado, mas ainda todo-poderoso: Viva o Chefe!
Não, não ascenderemos mais alto que o entendimento espiritual dos nossos dirigentes. E agora que o ardor da vitória começou a arrefecer, alguns verão que tinha falhas. Porque somos vítimas uma vez mais de todas essas ciências da publicidade que dependente da falsidade e da manipulação. Fomos iludidos sobre os verdadeiros motivos para esta guerra, puxados e empurrados por alguns dos melhores especialistas na arte de enganar a fim de que acreditássemos que vencemos uma luta nobre e necessária. Quando, na realidade, o adversário era um imbecil esvaziado cujas monstruosidades degeneravam para a senilidade.
Talvez não fosse tão velho. Talvez Saddam tenha tomado a decisão de passar à clandestinidade com toda a riqueza que havia subtraído e financiar a al-Qaeda ou algum apêndice em algum tipo de cooperação com Osama bin Laden — uma nova equipe clandestina, os Gémeos Terroristas Incompatíveis. É uma hipótese tão insana como o mundo no qual começamos a viver.
A democracia, mais que qualquer outro sistema político, depende de um vislumbre de honradez. Em última instância está em grande parte à mercê de um líder nunca se pôs a si próprio numa situação embaraçosa. O que dizer de alguém que passou dois anos na Força Aérea da Guarda Nacional (para não ter que ir ao Vietname) e que actuou como muitos outros filhotes do papá, mimados e ricos — sem se darem ao incómodo de se apresentarem para cumprir o dever no seu segundo ano de serviço? A maioria de nos tem episódios de juventude podem dar vergonha quando pensamos neles. É um sinal de amadurecimento não tentarmos aproveitar nossas falhas e vícios de juventude e sim fazermos o possível por aprender com eles. Bush, contudo, tratou de converter sua declaração do fim da campanha iraquiana num impressionante desfile de fantasias. Escolheu para cenário a cobertura do porta-aviões Abraham Lincoln, chegando num Viking jet S-3B que fez uma aterragem dramática com o tail hook baixado. O porta-aviões estava bem dentro do raio de acção de um helicóptero a partir de San Diego, mas G.W. não teria podido exibir-se em roupagens de voo e portanto não teria podido demonstrar como ficava bem no uniforme que não havia honrado. Jack Kennedy, um herói da guerra, sempre andava em traje civil quando era comandante em chefe. O mesmo fazia o general Eisenhower. George W. Bush, que teria podido, se estivesse só no mundo, ser um modelo masculino de classe mundial (uma vez que nunca sai mal numa foto) tratou de por o capacete de aviador e brilhar no traje de voo. Ali esteve para a sua sessão fotográfica, vendo-se como mais outro tipo sensacional entre tipos sensacionais. Esperemos que a nossa democracia sobreviva a esse bombardeio de sujidade no seu próprio ninho.
Ou, se descobrirem algumas armas no Iraque, é provável que haja ainda mais, transferidas para novos esconderijos para além da fronteira iraquiana. Se ocorrerem horrendos acontecimentos, podemos contar com uma reação previsível: "Bons, honestos, inocentes estadunidenses morreram hoje devido aos malvados terroristas do al-Qaeda". Sim, escutaremos a voz do presidente até antes de pronunciar essas palavras. (Aqueles de nós a quem George W. Bush não agrada poderiam reconhecer que viver com ele no Salão Oval é como estar casado com alguém que diz sempre exatamente aquilo que se sabe que ele ou ela vão dizer, o que ajuda a compreender porque mais da metade dos EUA atualmente parece adorá-lo.)
A pergunta chave continua a ser: por que fomos à guerra? Não foi respondida. A multidão de respostas já produziu uma salada cognitiva. Mas neste momento o ingrediente isolado mais doloroso é, naturalmente, o descobrimento das fossas de cadáveres. Livrámos o mundo de um monstro que assassinou quantidades incalculáveis, mega-quantidades, de vítimas. Ninguém sublinha que muitos dos cadáveres eram de xiitas do sul do Iraque que foram dizimados repetidamente durante os últimos doze anos por se terem atrevido a rebelar-se contra Saddam no período que se seguiu à Guerra do Golfo. Naturalmente, fomos nós que os estimulámos a levantarem-se e a seguir não os ajudámos. Por que? Pode ter havido uma discussão na primeira administração Bush em que terminaram por vencer aqueles que consideram que uma vitória xiita sobre Saddam podia gerar uma multidão de imãs iraquianos que poderiam fazer causa comum com os ayatolas iranianos. Xiitas a unirem-se com xiitas! Hoje em dia, do ponto de vista dos restantes xiitas iraquianos, seria difícil para nós provar-lhes que não foram vítimas de uma traição. Assim, podem contemplar as tumbas que estamos tão felizes de termos libertado como se fossem vozes sepulcrais a exigirem que compartilhemos a culpa. O que, naturalmente, é algo que não faremos.
Sim, nossa culpa por grande parte desses cadáveres continua a ser um imenso texto anexo e Saddam esteve a criar fossas comuns durante todos os anos 70 e 80. Matou comunistas em massa nos anos 70, o que não nos incomodou em nada. A seguir massacrou dezenas de milhares de iraquianos durante a guerra com o Irão – quando o apoiávamos. Inumeráveis fossas comuns que estão a ser descobertas procedem desse período. Os verdadeiros assassinos, é claro, nunca olham para trás.
A administração, contudo, preocupou-se só acerca da aceleração da guerra. Apressaram-se a encontrar razões justificativas. Os iraquianos constituíam uma ameaça nuclear, estavam carregados de armas de destruição maciça, trabalhavam em estreita ligação com al-Queda, haviam sido até os génios malvados por trás do 11 de Setembro. As razões oferecidas ao público estadunidense resultaram ser superficiais, não-verificáveis e em função da realpolitik da nossa necessidade de dominar o Médio Oriente por muitas razões, além de Israel e Palestina. Tivemos que fazer engolir a guerra através de fraudes.
A enormidade da falsificação poderia ser melhor interpretada como um reflexo do imenso prejuízo que o 11 de Setembro causou à moral dos EUA, particularmente aos seu núcleo – a corporação. Toda a gente da organização: superiores e inferiores, gerentes, chefes de divisão, secretárias, vendedores, contadores, especialistas de marketing, toda a colecção de estadunidenses escriturários de empresas, além de todos os que tinham parentes, amigos ou colegas de escola que trabalhavam nas Torres Gémeas – a comoção afectou os fundamentos da psique estadunidense. E a classe trabalhadora dos EUA identificou-se com os que morreram a combater o incêndio: os bombeiros e os polícias, todos instantaneamente enobrecidos.
Foi um filão de ouro político para Bush na medida em que conseguiu dar aos milhões – ou melhor, às dezenas de milhões –, que se identificavam directamente com os incinerados nas Torres Gémeas, um sentido adequado de vingança. Quando Osama bin Laden não pode ser capturado pelas tropas que enviámos ao Afeganistão, Bush foi devolvido aos problemas internos existentes que não pareciam poder ser solucionados facilmente. A economia afundava-se, o mercado estava de rastos e alguns bastiões clássicos da fé estadunidense (integridade empresarial, o FBI e a Igreja Católica, para mencionar apenas três) haviam sofrido uma perda de prestígio atroz. O aumento do desemprego afundava a moral da nação. Uma vez que é concebível que a nossa administração não estivesse disposta a solucionar nenhum dos sérios problemas que a confrontavam se a solução não produzisse um enriquecimento dos de cima, era natural que a administração se sentisse motivada a lançar-se em empreendimentos mais importantes: acometer-se a uma guerra imperial! Poderíamos dizer que nos lançámos à guerra porque necessitávamos desesperadamente de uma guerra com êxito como uma espécie de rejuvenescimento psíquico. Podia-se utilizar qualquer desculpa de peso – a ameaça nuclear, os ninhos de terroristas, as armas de destruição maciça – pois no final das contas podíamos acabar por utilizar a desculpa de que estávamos a libertar os iraquianos. Quem poderia contestá-lo? Impossível. Só restava perguntar: Qual será o custo para a nossa democracia?
Deixemos estabelecido que a administração sabia algo que muitos de nós não sabíamos – sabia que tínhamos forças armadas muito boas, talvez até extraordinariamente boas, ainda essencialmente não tenham sido postas à prova, militares especializados, disciplinados, bem motivados, concentrados nas suas carreiras e dirigidos por uma equipa de oficiais que era inteligente, eloquente e consideravelmente menos corrupta do que qualquer outro corpo do poder nos EUA.
Numa situação extrema, como não iria utilizá-los a Casa Branca? Levantariam a moral de um elemento essencial da vida dos EUA: essas dezenas de milhões de estadunidenses que haviam sido feridos espiritualmente pelo 11 de Setembro. Também poderiam servir um grupo ainda maior, que fora cerca de 50 por cento da população e que continuava a ser fundamental para a base política do presidente. Esse grupo fora realmente afectado. Quanto ao seu ego colectivo, o bom estadunidense médio, homem e branco, havia vivido muito pouco que reerguesse sua moral após a deterioração do mercado de trabalho, nada, na realidade, a menos que fosse membro das forças armadas. Nesta, a situação era evidentemente diversa. As forças armadas haviam-se convertido no equivalente paradigmático de um grande jovem atleta que desejavam por à prova sua autêntica dimensão. Será que haveria por aí, nos quintos dos infernos, um sujeito feito sob medida e que se nome fosse Iraque? O Iraque tinha a reputação de duro, mas não lhe restava muito conteúdo. Um adversário ideal. Uma guerra do deserto está feito sob medida para uma força aérea cuja condição é comparável em sua perfeição a um modelo de moto de primeira linha sobre uma passarela. Sim, libertaríamos os iraquianos.
Assim, lançámo-nos contra todos os obstáculos – o primeiro era a ONU. Sem sequer olhar de lado, desavergonhadamente, orgulhosamente, eufóricos, pelo menos a metade dos nossos EUA prodigiosamente divididos estava impaciente para que começasse a nova guerra. Compreendemos que o nosso entretenimento na televisão ia ser tremendo. E foi. Estéril mas tremendo – o que, depois de tudo, é exactamente o que se supõe que seja uma boa televisão em cadeia e por cabo.
E houve outros factores para utilizar nossa perícia militar, menores mas importantes: esses motivos voltam-nos a conduzir ao contínuo mal estar do macho branco estadunidense. Esteve a sofrer uma sova diária durante os últimos 30 anos. Para melhor ou para o pior, o movimento feminino conseguiu êxitos transcendentais e o velho ego do macho branco perdeu seu brilho. Até o consolo de animar sua equipe diante da televisão havia sido perdido. Para muitos, agora dava muito menos prazer do que antes assistir aos desportes, uma perda chave e declarável. As grandes estrelas brancas de antigamente haviam desaparecido na sua maior parte, desaparecido do futebol americano, da bola-ao-cesto, do boxe e semi-desaparecido do beisebol. O génio negro prevalecia agora em todos esses desportes (e os latinos impunham-se depressa, até os asiáticos começavam a impressionar). Para nós homens brancos deixavam-nos agora a metade do ténis (pelo menos sua metade masculina) e também poderia mencionar o hóquei sobre o gelo, o esqui, o futebol, o golfe (com a notável excepção do Tiger), bem como o lacrosse, o atletismo, a natação e a Federação Mundial de Luta – resíduos daquilo que era uma grande e gloriosa aglutinação atlética branca.
É claro que havia entusiastas do desporto que adoravam as estrelas das suas equipes favoritas sem considerarem a sua raça. Por vezes até gostavam mais dos atletas negros. Esses machos brancos tendiam a ser liberais. Não serviam para Bush. Ele tinha que se preocupar com o seu eleitorado mais imediato. Se possuía uma força oculta, era o seu conhecimento das coisas íntimas que mais preocupavam os machos brancos estadunidenses — precisamente os assuntos que nem sempre estavam dispostos a admitir para si próprios. O primeiro foi de que as pessoas na onda do desporto podem ficar afeiçoados à vitória. O desporto, a ética corporativa (a publicidade) e a bandeira dos EUA converteram-se num triunvirato da luta-pela-vitória que desenvolveu muitas conexões psíquicas com os militares.
Apesar de tudo, a guerra foi a extrapolação mais dramática e mais séria do desporto. O conceito da vitória pode ser visto por alguns como a espécie mais nobre de lucros em união com o patriotismo. Assim, Bush sabia que uma grande vitória era um caminho fácil que daria resultado no caso do macho branco estadunidense. Se os negros e os latinos nas fileiras recrutadas eram representativos da sua proporção na população, ainda não constituíam uma maioria e as caras do corpo de oficiais (como as vemos na televisão) sugerem que a porcentagem de brancos aumenta à medida que se eleva a patente. Além disso tínhamos comandos em demolição de tanques, super-Marines e a melhor força aérea que já existiu. Se não podíamos encontrar machismo em qualquer outra parte, certamente podíamos contar com a inter-relação entre combate e tecnologia. Permitam-me que lance a ofensiva sugestão de que pode ter sido uma das razões encobertas mas reais porque desejávamos a guerra. Sabíamos que provavelmente seria algo que nos faria ficar bem.
Enquanto isso, contudo, dentre todos os rápidos acontecimentos dos últimos meses, nossos militares sofreram uma metamorfose. Certamente foi uma transformação do diabo. Passámos, seja como for, da condição de um atleta potencialmente grande a servir como médico interno ao qual se exigia que operasse em alta velocidade para a de um paciente terrivelmente doente cheio de frustração, indignação e violência. Agora, durante o mês passado, inclusive enquanto estão o paciente, apresenta-se uma nova e inquietante pergunta: Foi desenvolvido algum remédio novo para tratar aquilo que parece ser uma série de infecções? Sabemos realmente como tratar supurações arroxeadas? Ou seria melhor continuar a confiar na nossa imensa sorte estadunidense, nossa fé na nossa sorte de pode fazer tudo, divinamente protegidos? Somos, por hábito, belicosos. Se essas supurações forem incontroláveis, ou demasiado custosas quanto a tempo, não poderíamos deixá-las para trás? Poderíamos passar ao próximo destino. A Síria, poderíamos declarar com a nossa melhor voz de John Wayne: Vocês podem correr, mas não podem esconder-se. A Arábia Saudita: Vocês, depósito de graxa, necessitam-nos mais do que nunca? E ao Irão: Cuidado, estamos a vê-los. Vocês dariam uma verdadeira merenda. Pois quando combatemos sentimo-nos bem, estamos prontos para lançar-nos e já verão como é. Já tomámos o gosto. Claro, há um cabaz cheio de milhares de milhões à espera no Médio Oriente, enquanto pudermos escapar dos biliões de dívidas que nos esperam em casa.
Digamos de forma bem clara: os motivos que orientam os principais actos históricos de uma nação provavelmente não se elevam mais alto do que o entendimento espiritual da sua liderança. Ainda que George W. não saiba tanto quanto como acredita saber sobre as disposições da bendição divina, continua da mesma forma a conduzir-nos a alta velocidade — um homem ao volante cuja vaidade mais legítima será provavelmente que sabe como converter a propriedade parcial de uma equipe de beisebol da liga nacional numa vitória na eleição para governador do Texas. E poderemos chegar a esquecê-lo algum dia? — foi catapultado, mediante astúcias legais e fraudes, a um pedestal — agora um tanto maculado, mas ainda todo-poderoso: Viva o Chefe!
Não, não ascenderemos mais alto que o entendimento espiritual dos nossos dirigentes. E agora que o ardor da vitória começou a arrefecer, alguns verão que tinha falhas. Porque somos vítimas uma vez mais de todas essas ciências da publicidade que dependente da falsidade e da manipulação. Fomos iludidos sobre os verdadeiros motivos para esta guerra, puxados e empurrados por alguns dos melhores especialistas na arte de enganar a fim de que acreditássemos que vencemos uma luta nobre e necessária. Quando, na realidade, o adversário era um imbecil esvaziado cujas monstruosidades degeneravam para a senilidade.
Talvez não fosse tão velho. Talvez Saddam tenha tomado a decisão de passar à clandestinidade com toda a riqueza que havia subtraído e financiar a al-Qaeda ou algum apêndice em algum tipo de cooperação com Osama bin Laden — uma nova equipe clandestina, os Gémeos Terroristas Incompatíveis. É uma hipótese tão insana como o mundo no qual começamos a viver.
A democracia, mais que qualquer outro sistema político, depende de um vislumbre de honradez. Em última instância está em grande parte à mercê de um líder nunca se pôs a si próprio numa situação embaraçosa. O que dizer de alguém que passou dois anos na Força Aérea da Guarda Nacional (para não ter que ir ao Vietname) e que actuou como muitos outros filhotes do papá, mimados e ricos — sem se darem ao incómodo de se apresentarem para cumprir o dever no seu segundo ano de serviço? A maioria de nos tem episódios de juventude podem dar vergonha quando pensamos neles. É um sinal de amadurecimento não tentarmos aproveitar nossas falhas e vícios de juventude e sim fazermos o possível por aprender com eles. Bush, contudo, tratou de converter sua declaração do fim da campanha iraquiana num impressionante desfile de fantasias. Escolheu para cenário a cobertura do porta-aviões Abraham Lincoln, chegando num Viking jet S-3B que fez uma aterragem dramática com o tail hook baixado. O porta-aviões estava bem dentro do raio de acção de um helicóptero a partir de San Diego, mas G.W. não teria podido exibir-se em roupagens de voo e portanto não teria podido demonstrar como ficava bem no uniforme que não havia honrado. Jack Kennedy, um herói da guerra, sempre andava em traje civil quando era comandante em chefe. O mesmo fazia o general Eisenhower. George W. Bush, que teria podido, se estivesse só no mundo, ser um modelo masculino de classe mundial (uma vez que nunca sai mal numa foto) tratou de por o capacete de aviador e brilhar no traje de voo. Ali esteve para a sua sessão fotográfica, vendo-se como mais outro tipo sensacional entre tipos sensacionais. Esperemos que a nossa democracia sobreviva a esse bombardeio de sujidade no seu próprio ninho.
Norman Mailer (1923-2007) nasceu em Long Branch, Nova Jersey, e cresceu no Brooklyn, Nova York. Em 1955 ele foi cofundador do The Village Voice. Ele é autor de mais de trinta livros, incluindo The Naked and the Dead; The Armies of the Night, pelo qual ganhou o National Book Award e o Prêmio Pulitzer; The Executioner's Song, pelo qual ganhou seu segundo Prêmio Pulitzer; Harlot's Ghost; Oswald's Tale; The Gospel According to the Son; e The Castle in the Forest.
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