30 de maio de 2013

A bomba não venceu o Japão. Stálin o fez.

70 anos de política nuclear foram baseados em uma mentira?

Ward Wilson


As ruínas do Salão de Promoção Industrial da Prefeitura após o bombardeio de Hiroshima, visto aqui em uma foto tirada em setembro de 1945. O salão foi posteriormente preservado como o Memorial da Paz de Hiroshima. IMAGENS AFP/GETTY

Tradução / O emprego de bombas atômicas pelos EUA contra o Japão na 2ª Guerra Mundial há muito tempo é objeto de discussão apaixonada. De início, alguns questionaram a decisão do presidente Truman, de despejar duas bombas atômicas sobre Hiroxima e Nagasaki. Mas em 1965, o historiador Gar Alperovitz argumentou que, por mais que as bombas tenham apressado o fim da guerra, os líderes japoneses já havia decidido render-se com bomba ou sem, e provavelmente o teriam feito antes da invasão norte-americana planejada para 1º de novembro. A bomba portanto não foi fator decisivo e pode ter sido desnecessária. Obviamente, se as bombas não fossem necessárias para vencer a guerra, não há como ‘salvar’ a ideia dos ataques atômicos contra Hiroxima e Nagasaki. Nos 48 anos seguintes, muitos outros embarcaram na discussão: alguns ecoando o argumento de Alperovitz e denunciando os bombardeios; outros a repetir apaixonadamente que os bombardeios teriam sido morais e necessários, e “salvaram vidas”.

Contudo, ambas as escolas de pensamento assumem, isso sim, que os bombardeios de Hiroxima e Nagasaki com armas novas e mais poderosas, forçaram o Japão a render-se logo dia 9 de agosto. Mas não questionam, em primeiro lugar, a utilidade ‘necessária’ das bombas, vale dizer, não perguntam, em essência, se as bombas ‘funcionaram’. A ideia ortodoxa é que, sim, claro que funcionaram. Os EUA bombardearam Hiroxima dia 6 de agosto; e Nagasaki dia 9 de agosto, quando o Japão finalmente sucumbiu à ameaça de novos bombardeios e rendeu-se. Essa narrativa tem encontrado apoio profundo.

Mas sempre subsistem três problemas graves nessa narrativa, os quais, considerados em grupo, minam consideravelmente a credibilidade dessa interpretação tradicional da rendição japonesa.

O timing

O primeiro problema quanto à interpretação oficial é o momento do bombardeio, o timing. E é problema sério. A interpretação tradicional segue um cronograma simples: a Força Aérea dos EUA bombardeou Hiroxima com uma bomba nuclear dia 6 de agosto, três dias depois bombardeou Nagasaki com outra bomba e, dia seguinte, os japoneses sinalizaram a intenção de se renderem. Nem se podem culpar os jornais norte-americanos por terem estampado manchetes como: “Paz no Pacífico: nossa bomba conseguiu!”

Sempre que a história de Hiroxima é repetida na maioria das histórias dos EUA, o dia do bombardeio – 6 de agosto – é o clímax da narrativa. Todos os elementos da história apontam aquele momento: a decisão de construir a bomba; as pesquisas secretas em Los Alamos, o primeiro e impressionante teste; e a culminação em Hiroxima. Há, em outras palavras, toda uma história da bomba. Mas não se pode analisar a decisão do Japão, de render-se, no contexto dessa história da bomba. Apresentar as coisas numa “História da Bomba” é pressupor que a bomba teria sido protagonista.

Do ponto de vista dos japoneses, o dia mais importante naquela segunda semana de agosto não foi 6 de agosto, mas 9 de agosto. Foi quando o Conselho Supremo reuniu-se – pela primeira vez naquela guerra – para discutir a rendição incondicional. O Conselho Supremo era formado dos seis mais altos membros do governo – uma espécie de gabinete interno –, que efetivamente governava o Japão em 1945. Antes daquele dia, os líderes japoneses nunca haviam considerado seriamente a possibilidade de o país render-se. A rendição incondicional (como os Aliados estavam exigindo) era remédio amargo de engolir. EUA e Grã-Bretanha já estavam organizando julgamentos de crimes de guerra na Europa. O que aconteceria se resolvessem pôr o Imperador – divino, para muitos japoneses – no banco dos réus? E se se livrassem do Imperador e mudassem completamente a forma de governo? Mesmo considerando a gravidade da situação no verão de 1945, os líderes do Japão não estavam dispostos a ceder todas as suas tradições, crenças e o próprio modo de vida. Isso, até 9 de agosto.

O que pode ter acontecido, que levou os japoneses a mudar de ideia tão repentinamente e tão completamente? O que os fez sentar e pôr-se a discutir seriamente a rendição, pela primeira vez depois de 14 anos de guerra?

Não pode ter sido Nagasaki – que só foi bombardeada no final da manhã do dia 9 de agosto, depois de o Conselho Supremo já estar reunido para discutir a rendição; e os líderes japoneses só foram informados do bombardeio no início da tarde – depois que o Conselho Supremo já se reunira e todo o gabinete já fora convocado para oficializar a decisão. Se se considera a cronologia real, Nagasaki não pode ter sido fator que motivou os japoneses.

Mas Hiroxima também não é aposta em que se possa jogar. Aconteceu 74 horas – mais de três dias antes da rendição. Que tipo de crise demora três dias para vir à tona? Crise é evento sobre o qual necessariamente pesa o risco de desastre iminente; e o desejo imperioso de agir depressa. Como os líderes japoneses poderiam ter suposto que Hiroxima seria ponto final de uma crise… mas esperar três dias para começar a discutir o problema?

O presidente John F. Kennedy estava sentado na cama lendo os jornais da manhã, mais ou menos às 8h45 do dia 16/10/1962, quando McGeorge Bundy, seu conselheiro de segurança nacional chegou para informá-lo de que a União Soviética estava instalando mísseis nucleares, secretamente, em Cuba. Em duas horas e 45 minutos já estava constituída uma comissão especial, membros escolhidos, trazidos todos para a Casa Branca e sentados à volta da mesa do gabinete para decidir o que fazer.

Dia 25/6/1950, o presidente Harry Truman descansava em Independence, Missouri, quando tropas da Coreia do Norte ultrapassaram o paralelo 38 e invadiram a Coreia do Sul. O secretário de Estado Acheson telefonou a Truman na manhã daquele sábado para informá-lo. Em 24 horas Truman já atravessara metade dos EUA e estava sentado na Blair House (Casa Branca estava em reformas), com os principais assessores militares e políticos, decidindo o que fazer. (…) Todos esses líderes tomaram decisões cruciais em curto período de tempo. Como imaginar que os governantes japoneses agiriam de outro modo? Se Hiroxima realmente enfrentava crise que eventualmente levaria o país a render-se depois de 14 anos de guerra... por que demoraria três dias para sentar-se e começar a discutir o problema?

Alguém poderia dizer que seria uma demora lógica. Talvez tenham demorado a entender a importância do bombardeio. Talvez não soubessem o que seria uma bomba atômica e, quando perceberam e compreenderam o tipo de arma que os estava atacando e os efeitos que teria, decidiram render-se, mas não antes disso. Parece lógico, mas não dá conta dos fatos que se conhecem.

Primeiro, o governador de Hiroxima informou Tóquio no mesmo dia em que Hiroxima foi bombardeada, de que cerca de 1/3 da população fora morta no ataque, e que 2/3 da cidade estava em ruínas. Essa informação não mudou ao longo de vários dias seguintes. Vale dizer que o efeito – o resultado final do bombardeio – já era conhecido desde o começo. Os líderes japoneses sabiam dos efeitos do ataque atômico desde o primeiro dia; mas mesmo assim não agiram na direção da rendição.

Segundo, o relatório preliminar preparado pela equipe do Exército que investigou o bombardeio de Hiroxima, e que deu detalhes do que acontecera lá, só veio à tona dia 10 de agosto. Também chegou a Tóquio depois que já estava tomada a decisão de render-se. Embora dia 8 de agosto já circulassem relatos verbais entre os militares, os detalhes do bombardeio só apareceram dois dias depois. É o mesmo que dizer que a decisão dos japoneses, de render-se, não foi consequência de alguma análise a fundo dos horrores em Hiroxima.

Terceiro, os militares japoneses sabiam, pelo menos em termos gerais, o que eram bombas atômicas. O Japão teve programa de bombas nucleares. Vários militares japoneses registram em diários, desde o primeiro dia, que Hiroxima fora destruída em ataque por bomba atômica. O general Anami Korechika, ministro da Guerra, chegou até a consultar o programa de armas nucleares do Japão, na noite de 7 de agosto. A ideia de que os comandantes japoneses não soubessem das bombas nucleares é absolutamente inverossímil.

Por fim, há mais um fato relacionado ao timing que gera problema grave. Dia 8 de agosto, o ministro do Exterior Togo Shigenori foi ao primeiro-ministro Suzuki Kantaro e pediu que o Conselho Supremo fosse convocado para discutir o bombardeio de Hiroxima, mas os membros não aceitaram a convocação. Assim se vê que não é verdade que a crise ter-se-ia agravado dia a dia, até eclodir dia 9 de agosto.

Qualquer explicação das ações dos governantes e militares japoneses que dependa do “choque” ante o bombardeio de Hiroxima tem de dar conta do fato de que consideraram reunir-se dia 8 de agosto e avaliaram que não era evento importante; e depois, de repente, decidiram discutir a rendição, logo no dia seguinte. Das duas uma: ou sucumbiram todos ao mesmo tipo de esquizofrenia coletiva; ou alguma outra coisa aconteceu, que foi a causa real de os japoneses terem decidido discutir a rendição.

A escala

Historicamente, o uso da Bomba pode parecer o evento isolado mais importante de toda a guerra. Mas, do ponto de vista contemporâneo dos japoneses, não parece muito fácil distinguir o evento “Bomba”, de outros eventos da mesma guerra. Afinal é difícil distinguir uma gota de chuva no meio de um furacão.

No verão de 1945, a Força Aérea dos EUA levava a efeito uma das mais intensas campanhas de destruição de cidades habitadas de toda a história do mundo. 68 cidades japonesas estavam sendo atacadas e todas elas estavam ou parcialmente ou completamente destruídas. Estimadas 1,7 milhão de pessoas tinham ficado sem teto, 300 mil mortos e 750 mil feridos. 66 desses raidsforam executados com bombas convencionais, dois com bombas atômicas. A destruição causada pelos ataques convencionais foi tremenda. Noite após noite, durante todo o verão, cidades eram reduzidas a ruínas fumegantes. No meio dessa cascata de destruição, não é surpresa que um ou outro homem ou mulher nem tenha percebido que algum ataque fosse efeito de algum tipo novo de arma.

Qualquer bombardeiro B-29 que decolasse das Ilhas Mariana poderia transportar – dependendo da localização do alvo e da altitude do ataque – algo entre 7 toneladas e 9 toneladas de bombas.Raid típico reunia 500 bombardeiros. Significa que um raid convencional típico deixava cair 4-5 kilotoneladas de bombas sobre cada cidade. (1 kilotonelada = 1.000 toneladas e é a medida padrão do poder explosivo de uma bomba atômica. A bomba de Hiroxima media 16,5 kilotoneladas; a de Nagasaki, 20 kilotoneladas.) Dado que muitas bombas distribuem uniformemente morte e destruição (o que significa “com mais efetividade”), mas uma bomba só, mais poderosa, concentra a maior parte do próprio poder no centro da explosão – com fragmentos que se espalham –, pode-se dizer que alguns dos raids convencionais aproximaram-se muito da destruição que seria causada pelas duas bombas atômicas.

O primeiro dos raids convencionais, um ataque noturno contra Tóquio em 9-10 de março de 1945, ainda é o ataque único mais destrutivo contra uma cidade em toda a história da guerra. Algo como 41,40 quilômetros quadrados da cidade viraram cinza. Estimados 120 mil japoneses morreram – o maior número de baixas de todos os bombardeios contra cidades, em todos os tempos.

Imagina-se frequentemente, por causa do modo como a história é contada, que o bombardeio de Hiroxima tenha sido muito pior. Imaginamos que o número de mortos tenha sido descomunal. Mas se se comparam os números de mortos em todas as 68 cidades bombardeadas no verão de 1945, descobre-se que Hiroxima aparece em segundo lugar em termos de civis mortos. Se se mapeia o número de quilômetros quadrados destruídos, Hiroxima aparece em quarto lugar. Se se considera a porcentagem da cidade que foi destruída, Hiroxima foi a 17ª. Claramente Hiroxima ficou rigorosamente dentro dos parâmetros de todos os ataques convencionais levados a cabo naquele verão.

De nosso ponto de vista, Hiroxima parece singular, extraordinária. Mas se você se põe na pele dos líderes japoneses nas três semanas que levaram ao ataque contra Hiroxima, o quadro muda completamente. Se você fosse um dos membros chaves do governo japonês no final de julho, início de agosto, sua experiência do bombardeamento da cidade seria alguma coisa como a seguinte:

Na manhã de 17 de julho, você teria sido acordado por notícias de que, durante a noite, quatro cidades haviam sido atacadas: Oita, Hiratsuka, Numazu e Kuwana. Dessas, Oita e Hiratsuka tiveram destruída mais de 50% da área. Kuwana, mais de 75%; e Numazu foi atingida ainda mais severamente, com cerca de 90% da cidade reduzida a montes de escombros.

Três dias depois, você seria acordado para ser informado de que mais três cidades haviam sido atacadas. Mais de 80% de Fukui fora destruída. Uma semana adiante, e mais três cidades teriam sido atacadas durante a noite. Mais dois dias e mais seis cidades atacadas numa só noite, inclusive Ichinomiya, 75% da qual foi arrasado. Dia 2 de agosto, você chegaria ao escritório, para ler notícias de que mais quatro cidades haviam sido atacadas. E os relatórios incluiriam a informação de que Toyama (cidade do tamanho de Chattanooga, Tennessee em 1945), havia sido 99,5% destruída. Praticamente toda a cidade posta abaixo. Mais quatro dias, e mais quatro cidades destruídas. Dia 6 de agosto, só uma cidade foi atacada, Hiroxima; os relatórios falavam de grandes danos e de um novo tipo de bomba. Por que esse ataque do dia 6 de agosto ganharia excepcional destaque, no quadro de vasta destruição de cidades que já acontecia há semanas?

Nas três semanas antes de Hiroxima, 26 cidades foram atacadas pela Força Aérea dos EUA. Dessas, oito – quase 1/3 – foram destruídas tão completamente ou até mais completamente que Hiroxima (em termos de porcentagem de área da cidade destruída). O fato de que o Japão teve 68 cidades destruídas no verão de 1945 é desafio quase insuperável a quem deseje apresentar o bombardeamento de Hiroxima como causa da rendição dos japoneses. A questão é: se se renderam porque uma cidade fora destruída… por que não se renderam quando aquelas outras 66 cidades foram destruídas?

Se os líderes japoneses se fossem render por causa de Hiroxima e Nagasaki, seria de esperar que o bombardeio de outras cidades em geral, que os ataques contra tantas cidades os estivessem pressionando na direção da rendição. Nada parece ter acontecido desse modo.

Dois dias antes de Tóquio ser bombardeada, o ministro de Relações Exteriores aposentado Shidehara Kijuro expressou um sentimento que parecia ser partilhado por todos os oficiais de alta patente naquele momento. Shidehara opinou que “as pessoas gradualmente se habituarão a ser bombardeadas diariamente. Com o tempo, a união entre todos e a coragem se fortalecerão.” Numa carta para um amigo, disse que era importante para os cidadãos suportar os sofrimentos, porque “ainda que centenas de milhares de civis sejam mortos, feridos ou fiquem sem comida, ainda que milhões de prédios seja destruídos ou queimados”, ainda assim a diplomacia precisava de mais tempo. E vale lembrar que Shidehara era ministro moderado.

Nos mais altos níveis de governo – no Conselho Supremo – as atitudes eram aparentemente as mesmas. Embora o Conselho Supremo discutisse a importância de a União Soviética manter-se neutra, não tiveram discussão final sobre o impacto do bombardeio das cidades. Nos registros que foram preservados, não há sequer qualquer referência a cidades bombardeadas em discussões do Conselho Supremo, exceto em duas ocasiões: uma, em maio de 1945, referência de passagem; e outra na noite de 9 de agosto, durante discussão de temas gerais. Se se consideram as provas que há, é difícil convencer-se e acreditar que algum governante japonês entendesse que o bombardeio daquela cidade – comparado a outras questões prementes de uma guerra em andamento – tivesse qualquer significado maior ou excepcional.

O general Anami, dia 13 de agosto, observou que bombas atômicas não eram mais ameaçadoras que bombas incendiárias que o Japão suportara durante meses. Se Hiroxima e Nagasaki não eram piores que bombas incendiárias, e se governantes japoneses não as consideravam importantes a ponto de serem discutidas em profundidade, como é possível que Hiroxima e Nagasaki tivessem forçado os japoneses a se renderem?

Significação estratégica

Se os japoneses não estavam preocupados com cidades bombardeadas em geral, ou com o bombardeio de Hiroxima em particular, o que, afinal os preocupava? A resposta é simples: a União Soviética.

Os japoneses estavam em situação estratégica relativamente difícil. O fim da guerra se aproximava, e estavam perdendo a guerra. As condições eram péssimas. Mas o Exército ainda permanecia forte e bem suprido. Havia cerca de 4 milhões de japoneses em armas, e 1,2 milhão deles protgiam as ilhas japonesas.

Até os governantes mais linha dura no Japão sabiam que a guerra não podia prosseguir. A questão não era continuar ou não, mas como levar a guerra a uma conclusão sob as melhores condições possíveis. Os aliados (EUA, Grã-Bretanha e outros) – a União Soviética, lembrem, ainda estava neutra) exigiam “rendição incondicional”. Os líderes japoneses tinham esperança de que conseguiriam encontrar um modo de evitar tribunais de crimes de guerra, de manter a própria forma de governo e de preservar alguns dos territórios que haviam conquistado: Coreia, Vietnã, Burma, partes da Malásia e Indonésia, grande porção da China oriental e numerosas ilhas no Pacífico.

Os japoneses tinham dois planos para conseguir melhores condições para a rendição; tinham, em outras palavras, duas opções estratégicas. A primeira era diplomática. O Japão havia assinado um pacto de neutralidade por cinco anos com os soviéticos, em abril de 1941, que expiraria em 1946. Um grupo de líderes, a maioria civis, e liderados pelo ministro de Relações Exteriores Togo Shigenori tinha esperanças de convencer Stálin a mediar um acordo entre, por um lado os EUA e seus aliados, e, por outro, o Japão. Ainda que esse plano fosse coisa de longo prazo, refletia pensamento estratégico consistente e sólido. Afinal, interessava à União Soviética garantir que os termos desse eventual acordo não fossem excessivamente favoráveis aos EUA: qualquer ampliação na influência e poder dos EUA na Ásia significaria diminuição na influência e no poder dos soviéticos.

O segundo plano era militar, e a maioria dos proponentes eram também militares, liderados pelo ministro do Exército Anami Korechika. Esses contavam com as forças terrestres do Exército Imperial para infligir baixas pesadas nas forças norte-americanas quando invadissem. Se fossem bem-sucedidas, sentiam os japoneses, talvez conseguissem que os EUA oferecessem melhores termos. Essa estratégia também era movimento de longo prazo. Os EUA pareciam profundamente empenhados em obter rendição incondicional. Mas, dado que, sim, havia preocupação nos círculos militares dos EUA, para os quais as baixas em grandes números seriam fator impeditivo de qualquer invasão, a estratégia do alto comando japonês não era completamente sem sentido.

Um modo de aferir se foi o bombardeio de Hiroxima ou a invasão e declaração de guerra pelos soviéticos, que levou o Japão a render-se, é comparar o modo como esses eventos afetaram a situação estratégica. Depois que Hiroxima foi bombardeada dia 8 de agosto, as duas possibilidades continuavam abertas. Ainda seria possível pedir que Stálin fizesse alguma mediação (e as entradas do dia 8 de agosto no diário de Takagi mostram que pelo menos alguns líderes japoneses ainda cogitavam de tentar envolver Stálin). Também permanecia possível tentar combater uma última e decisiva batalha, para infligir aos EUA número pesado de baixas. A destruição de Hiroxima em nada reduziu a prontidão dos soldados japoneses entrincheirados nas praias das ilhas japonesas. Havia, sim, uma cidade a menos na retaguarda, mas os soldados continuavam em suas trincheiras, ainda tinham munição e aquela força militar não sofrera qualquer redução relevante. O bombardeio e a destruição de Hiroxima em nada alterou as opções estratégicas com as quais o Japão trabalhava.

Muito diferente disso, contudo, foi o impacto da declaração de guerra e a invasão, pelos soviéticos, da Mandchúria e da Ilha Sakhalin. Tão logo a União Soviética declarasse guerra, Stálin deixaria de poder atuar como mediador – passava a ser força beligerante. Equivale dizer que a opção diplomática foi varrida do mapa pelo movimento dos soviéticos. O efeito sobre a situação militar foi igualmente dramático. Muitas das melhores tropas do Japão haviam sido deslocadas para a parte sul das ilhas japonesas. Os militares haviam estimado corretamente que o primeiro alvo de uma invasão norte-americana seria a ilha de Kyushu, no extremo sul. O orgulhoso exército Kwangtung na Mandchúria, por exemplo, não passava de uma sombra do que fora, porque suas melhores unidades haviam sido deslocadas para defender o próprio Japão.

Quando os russos invadiram a Mandchúria, cortaram como manteiga o que um dia fora um exército de elite e muitas unidades russas só pararam de avançar quando ficaram sem combustível. O 16º Exército Soviético – 100 mil soldados – invadiu pela metade sul da Ilha Sakhalin. Tinham ordens para destruir a resistência japonesa ali e depois – dentro de 10 a 14 dias – estar preparados para invadir Hokkaido, a mais setentrional das ilhas japonesas. A força japonesa encarregada de defender Hokkaido, o Exército da 5ª Área, fora reduzida para duas divisões e duas brigadas, e ocupava posições fortificadas no lado leste da ilha. O plano de ataque dos soviéticos mandava invadir Hokkaido pelo oeste.

Não é preciso ser gênio militar para compreender que, por mais que fosse possível combater batalha decisiva com uma grande potência que invadisse de um lado, jamais seria possível combater duas grandes potências que invadissem de duas diferentes direções. A invasão soviética invalidou a estratégia da batalha decisiva dos militares, tão completamente como invalidou também a estratégia diplomática. Num só golpe, evaporaram-se todas as opções com que o Japão vinha trabalhando.

A invasão soviética foi estrategicamente decisiva – derrubou as duas opções do Japão. O ataque a Hiroxima nem tangenciou as estratégias japonesas, que permaneceram, depois do ataque, exatamente como estavam antes dele.

A declaração de guerra pelos soviéticos também alterou o cálculo de quanto tempo ainda havia para manobrar. A inteligência japonesa previa que as forças dos EUA dificilmente invadiriam nos meses seguintes. As forças soviéticas, por sua vez, podiam estar dentro do Japão em coisa de dez dias. A invasão soviética, sim, tornou extremamente urgente a necessidade de decidir sobre o fim da guerra.

E os líderes japoneses já sabiam bem disso já alguns meses. Numa reunião do Conselho Supremo, em junho de 1945, já haviam dito que “a entrada dos soviéticos nessa guerra determinará o destino do Império”. Kawabe, vice-comandante geral do Exército, disse, naquela mesma reunião, que “para a continuação da guerra, é absolutamente imperativo manter a paz nas relações entre O Império e a União Soviética.”

Os líderes do Japão, mostraram consistentemente absoluto desinteresse pelo bombardeio que estava destruindo suas cidades. Ainda que isso possa não ter sido bem verdade quando o bombardeio começou em março de 1945, certamente já era plena verdade quando Hiroxima foi atacada: os estrategistas japoneses viam o bombardeio de cidades como um show colateral sem importância, em termos de impacto estratégico.

Quando Truman, em frase que ganhou fama, ameaçou lançar “uma chuva de ruína” sobre cidades japonesas que não se rendessem, poucos, nos EUA, deram-se conta de que, na verdade, restava praticamente nada por destruir. Dia 7 de agosto, quando Truman lançou sua ameaça, restavam ao Japão apenas 10 cidades com mais de 100 mil habitantes que ainda não haviam sido bombardeadas. Depois que Nagasaki foi atacada dia 9 de agosto, restaram só nove. Quatro delas localizavam-se na ilha de Hokkaido, no extremo norte, difícil de bombardear por causa da distância em relação à Ilha Tinian, onde estava a base dos aviões dos EUA. Kioto, a antiga capital do Japão já havia sido retirada da lista de alvos por Henry Stimson, secretário da Guerra, por sua importância religiosa e simbólica. Assim, apesar do rugir da ameaça de Truman, depois que Nagasaki foi bombardeada só restavam quatro cidades importantes que ainda poderiam servir como alvo de bombas atômicas.

A amplidão da campanha da Força Aérea dos EUA no quesito bombardear cidades pode ser aferida pelo fato de que já haviam bombardeado tantas cidades japonesas, que só restavam ‘cidades’ com 30 mil habitantes, ou menos. No mundo moderno, 30 mil habitantes é população de vilarejo.

Claro que sempre seria possível rebombardear cidades já bombardeadas com bombas incendiárias. Mas essas cidades já estavam 50% destruídas, em média. Ou os EUA poderiam ter usado armas atômicas contra cidades menores. Mas só havia seis dessas (com população entre 30 mil e 100 mil habitantes), que ainda não haviam sido bombardeadas. Dado que o Japão já sofrera danos graves causados por bombas em 68 cidades e não se deixara abater, não surpreende que os líderes japoneses tampouco se tenham deixado impressionar muito pela ameaça de mais bombardeios. E não era ameaça estrategicamente crível.

Uma história conveniente

Apesar de haver essas três objeçõe poderosas, a interpretação tradicional ainda domina o pensamento da maioria das pessoas, principalmente nos EUA. Há forte resistência contra considerar os fatos. Mas, afinal, não se pode dizer que essa resistência seja surpreendente. É preciso não esquecermos o quanto é emocionalmente conveniente a versão tradicional para o ataque a Hiroxima – e para os dois lado, para o Japão, como para os EUA. Há ideias que persistem por serem verdadeiras, mas infelizmente também há ideias que persistem porque são emocionalmente confortadoras, vale dizer, porque suprem alguma carência psicológica importante. Por exemplo, ao final da guerra a interpretação tradicional de Hiroxima ajudou os líderes japoneses a alcançar vários importantes objetivos políticos, tanto no cenário doméstico como no cenário internacional.

Ponham-se no lugar do imperador. Você acaba de conduzir o país através de guerra desastrosa. A economia está em frangalhos. 80% das cidades foram bombardeadas e incendiadas. O Exército sofreu uma cadeia de derrotas terrívies. A Marinha foi dizimada e encurralada nos próprios portos. Há fome generalizada. Em resumo, a guerra foi total catástrofe e, pior que tudo, você vem mentindo ao seu povo, já há tempos, e escondeu a real gravidade da situação. O povo ficará chocado com a notícia de que o país rendeu-se. O que você pode ainda tentar? Admitir que fracassou miseravelmente? Emitir uma declaração de que você erros espetacularmente nas suas previsões, repetiu incontáveis vezes os próprios erros e causou dano monstruoso ao país? Ou você escolhe ‘transferir’ as culpas para um terrível novidade científica, uma bomba que ninguém jamais vira e não poderia prever? Num único passo, a possibilidade de transferir a derrota para o ‘evento’ bomba atômica ‘cancelou’ todos os erros de cálculo e de comando dos japoneses durante a guerra e varreu-os todos para baixo do tapete. A Bomba foi a desculpa perfeita por ter perdido a guerra. Além do mais, cancelava todos os tribunais de guerra e correspondentes investigações. Líderes japoneses encontravam na bomba um modo de afastar deles mesmos todas as culpas e responsabilidades.

Mas atribuir à bomba a derrota do Japão também serviu a três outros específicos objetivos políticos. Primeiro, ajudou a preservar a legitimidade do Imperador. Se a guerra fora perdida, não por erros cometidos, mas por ação de uma arma inimiga milagrosa invencível inesperada, nesse caso o povo japonês poderia continuar a apoiar o imperador-instituição.

Segundo, a tragédia gerada pela bomba atômica mobilizou a simpatia internacional. O Japão fizera guerra de agressão, com brutalidade terrível contra povos conquistados – comportamento que as nações com certeza condenariam. Mas poder apresentar o Japão como nação vítima – nação injustamente bombardeada por aquele terrível, horrível, jamais antes visto instrumento de guerra – ajudaria a apagar alguns dos feitos moralmente repugnantes dos militares japoneses. Desviar todas as atenções para as bombas atômicas ajudou a apresentar o Japão sob luz mais simpática e a esvaziar movimentos que pregassem outras punições por crimes de guerra.

E por fim, a versão de que a Bomba vencera a guerra também servia bem a interesses dos vencedores. A ocupação norte-americana só terminou oficialmente em 1952; nesse período, os EUA puderam mudar, ou reconstruir a sociedade japonesa, na direção que mais lhes interessava. Durante os primeiros dias da ocupação, muitos funcionários japoneses preocupavam-se com a ideia de que os norte-americanos estivessem decididos a abolir a instituição do imperador. E preocupavam-se também com o alto risco de serem acusados de terem cometido crimes de guerra e julgados em tribunais especiais (os tribunais para crimes de guerra que julgavam os governantes alemães já estavam em curso na Europa, quando o Japão rendeu-se). Asada Sadao, historiador japonês disse exatamente isso em várias entrevistas que deu depois da guerra, que “os oficiais japoneses (...) estavam obviamente ansiosos, querendo agradar os interrogadores norte-americanos.” Se os norte-americanos tanto queriam crer que a Bomba venceu a guerra, por que desapontá-los?

Atribuir o fim da guerra à bomba atômica serviu em vários sentidos a interesses do Japão. Mas também serviu a interesses dos EUA. Se a Bomba vencesse a guerra, a percepção do poderio militar dos EUA só aumentaria, a influência diplomática dos EUA na Ásia e em todo o mundo também cresceria, e a segurança dos EUA também sairia fortalecida.

Mas se os japoneses só se tivessem rendido quando os soviéticos declararam guerra e invadiram o país, nesse caso os soviéticos diriam que fizeram em quatro dias o que os EUA não conseguiram fazer em quatro anos; e cresceria a percepção do poder militar soviético; e cresceria a influência militar e a influência diplomática dos soviéticos. Com a Guerra Fria já em curso, declarar que o exército soviético fora o fator decisivo seria garantir ajuda e condições de avançar, ao inimigo.

É estranho, dada a discussão que desenvolvemos aqui, perceber o quanto os ‘fatos’ de Hiroxima e Nagasaki estão no cerne de tudo que pensamos sobre armas nucleares. Os eventos de que aquelas duas cidades foram palco são as pedras basilares de tudo que dizemos sobre a importância de armas nucleares. É crucial, para que as bombas atômicas preservem o status especialíssimo que ainda têm, que não se apliquem a elas as regras normais da guerra e das ameaças de guerra: a ameaça feita por Truman, de que faria chover “uma chuva de ruína” sobre o Japão, foi a primeira ameaça nuclear explícita que a história registrou. E é chave para a aura de ‘poder invencível’ que cerca as bombas atômicas e as torna tão importantes nas relações internacionais.

Mas o que fazer dessas conclusões, se a história oficial de Hiroxima está posta em dúvida? Hiroxima sempre foi o centro, o ponto a partir do qual irradiam todos os demais argumentos e conclusões. A história que nos contamos a nós mesmos, contudo, parece muito apartada dos fatos. O que pensar das armas atômicas, se esse descomunal primeiro ‘feito’ – o milagre da repentina rendição do Japão – é desmascarado e exposto como mito?

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