29 de agosto de 2013

Vaidade e venalidade: o impasse europeu

A moeda única se transformou em um estrangulamento monetário, forçando uma faixa de economias - mais da metade da população da zona do euro - a uma recessão perpétua.

Susan Watkins

London Review of Books

Vol. 35 No. 16 · 29 August 2013

Un New Deal pour l'Europe 
by Michel Aglietta and Thomas Brand.
Odile Jacob, 305 pp., £20, March 2013, 978 2 7381 2902 4

Gekaufte Zeit: Die vertagte Krise des demokratischen Kapitalismus 
by Wolfgang Streeck.
Suhrkamp, 271 pp., £20, March 2013, 978 3 518 58592 4

The Crisis of the European Union: A Response 
by Jürgen Habermas, translated by Ciaran Cronin.
Polity, 120 pp., £16.99, April 2012, 978 0 7456 6242 8

For Europe! Manifesto for a Postnational Revolution in Europe 
by Daniel Cohn-Bendit and Guy Verhofstadt.
CreateSpace, 152 pp., £9.90, September 2012, 978 1 4792 6188 8

German Europe 
by Ulrich Beck, translated by Rodney Livingstone.
Polity, 98 pp., £16.99, March 2013, 978 0 7456 6539 9

The Future of Europe: Towards a Two-Speed EU? 
by Jean-Claude Piris.
Cambridge, 166 pp., £17.99, December 2011, 978 1 107 66256 8

Au Revoir, Europe: What if Britain Left the EU? 
by David Charter.
Biteback, 334 pp., £14.99, December 2012, 978 1 84954 121 3

Tradução / Nada de novo no front do euro? Visto de Berlim, o continente europeu parece finalmente sob controle, depois da guerra macrofinanceira dos últimos três anos. Uma nova autoridade, conhecida como "Troika", patrulha os países que se meteram em encrencas; os governos estão obrigados a manter a boa administração doméstica. Novas medidas ainda serão necessárias em favor dos bancos - mas cada coisa a seu tempo. O euro sobreviveu; a ordem foi restaurada. O novo status quo já é uma conquista e tanto.

Vista dos parlamentos sitiados de Atenas e Madri, das lojas fechadas e das casas com janelas pregadas em Lisboa e Dublin, a moeda única se converteu numa coleira de estrangulamento, condenando várias economias - mais da metade da população europeia – a uma recessão perpétua. A economia grega perdeu um quinto do seu tamanho, os salários locais caíram 50% e dois terços dos jovens gregos estão desempregados. Na Espanha, hoje, é comum que três gerações sobrevivam à custa de um único salário, ou da pensão do avô ou da avó: o desemprego está em torno de 26%, os salários volta e meia deixam de ser pagos e a remuneração do trabalho autônomo caiu a 2 euros por hora. A Itália está em recessão há dois anos, ao fim de uma década de estagnação econômica, e 42% dos seus jovens não têm emprego. Em Portugal, dezenas de milhares de pequenos negócios familiares, a coluna vertebral da economia do país, estão fechados; e mais da metade dos que ficaram sem trabalho não tem direito a seguro-desemprego. Como ocorre na Irlanda, os jovens de 20 e poucos anos agora procuram emprego no exterior, um retorno aos padrões de emigração que ajudaram a manter seus países atolados no conservadorismo e no subdesenvolvimento por tanto tempo. Por que a crise assumiu uma forma tão grave na Europa?

Parte da resposta reside nos defeitos constitutivos da própria União Europeia. Embora os americanos tenham sido duramente atingidos pela grande recessão, o sistema político dos Estados Unidos não foi abalado. Em contraste com a maioria dos governantes europeus, Obama teve uma reeleição das mais fáceis. Foi só em bolsões isolados como Detroit que governos eleitos foram substituídos por tecnocratas. Na Europa, os níveis da dívida privada e pública eram geralmente mais baixos antes da crise financeira. Mas a organização política da União Europeia é improvisada, concebida na década de 50 para favorecer a associação industrial entre duas grandes nações, a França e a Alemanha, cada uma com uns 50 milhões de habitantes, e seus três vizinhos menores [Bélgica, Holanda e Luxemburgo]. O bloco foi sendo pouco a pouco ampliado para incorporar quase trinta Estados, dois terços dos quais adotaram uma moeda comum no auge da globalização - projeto que, em parte, visava evitar que uma Alemanha reunificada acabasse predominando sobre os demais países.

Figuram na constituição da União Europeia, entre muitas outras coisas, um Conselho Europeu (reuniões de cúpula dos chefes de seus 28 governos), com poder de decisão, a Comissão Europeia, órgão executivo com trinta diretorias gerais e amplos poderes, dotada de uma burocracia própria, um Parlamento Europeu, que discute as propostas da Comissão, e um tribunal superior criado para dirimir as disputas. E os princípios estabelecidos para a implantação do euro na década de 90 produziram uma nova camada de confusão, pois não têm qualquer relação inteligível com as instâncias descritas acima.

“O euro é essencialmente uma moeda estrangeira para todos os países da eurozona”, afirmam o economista francês Michel Aglietta e seu coautor, Thomas Brand, no livro Un New Deal pour l’Europe. “Ela os mantém presos a taxas de câmbio rigidamente fixadas sem consideração por suas realidades econômicas específicas, despojando esses países da autonomia monetária.” Para Aglietta, qualquer moeda é essencialmente um contrato social: por trás dela se encontra um fiador soberano, com o poder de taxar seus cidadãos em troca de bens e serviços públicos que lhes proporciona.

Porém, o euro não conta com esse arcabouço; baseia-se apenas numa “promessa de soberania” que nunca foi respeitada. Un New Deal pour l’Europe compara o esquema do euro, consubstanciado em 1992 no Tratado de Maastricht, com o Plano Werner para a união monetária, uma tentativa franco-alemã de proteger as economias europeias do impacto das taxas de câmbio flutuantes no início dos anos 70, quando os Estados Unidos se retiraram do sistema de Bretton Woods [que havia criado, para manter a estabilidade no pós-guerra, um sistema de taxas de câmbio administradas].

O projeto mais antigo previa que os então seis membros da Comunidade Econômica Europeia definiriam uma política fiscal comum, marcada por uma forte preocupação social. Mas a moeda única pactuada em Maastricht não era apoiada em cidadãos-contribuintes; sua meta era a estabilidade dos preços, garantida por um Banco Central Europeu independente, concebido para operar “em esplêndido isolamento”. A ideia era que o euro daria rédeas à liberalização financeira em todo o continente: a eficiência do mercado cuidaria de provocar o melhor reinvestimento possível da poupança, dando origem a uma convergência generalizada entre as economias da zona do euro.

Aglietta e Brand atribuem a diferença entre os dois planos à mudança do clima intelectual nas décadas transcorridas entre um e outro, com o triunfo do monetarismo e da teoria da escolha racional. A Europa de hoje, dizem eles, é prisioneira da decisão que seus governantes tomaram de inscrever no “mármore das instituições” o conceito falho de um banco central voltado unicamente para o cumprimento da meta de inflação.

E o contexto internacional foi igualmente importante. A moeda única podia ter funcionado para o núcleo de economias bem alinhadas entre si – a França, a Alemanha, os países do Benelux –, contemplado pelo Plano Werner. Já a arquitetura da zona do euro, rabiscada às pressas como reação à queda do Muro de Berlim, acabou fatalmente associada ao projeto de ampliação da União Europeia. Quando finalmente tomou forma, em meados da década de 90, a moeda única foi declarada ao alcance de qualquer país que alegasse atender aos critérios mínimos de convergência, num espírito de expansionismo geopolítico fortemente apoiado por Washington e Londres. O resultado, depois da conjunção entre a vaidade das maiores potências do continente e a venalidade dos Estados menores, foi um conjunto heterogêneo de dezessete economias com dinâmicas diferentes, atado a uma taxa de câmbio única e gozando de uma única avaliação de risco.

Em vez de ajudá-las a convergir, a moeda comum exacerbou as diferenças entre essas economias. A indústria nacional dos países mediterrâneos foi sufocada, na ponta mais barata, pelas importações vindas da China – têxteis, cerâmica, artigos de couro –, enquanto as empresas alemãs conquistavam uma fatia cada vez maior do mercado na outra ponta: carros, máquinas, produtos químicos. Ao mesmo tempo, o crédito fácil da bolha da globalização criou a ilusão de que a Europa se nivelava por cima, à medida que o consumo no sul era alimentado por empréstimos dos bancos do norte.


Quando a crise chegou, em setembro de 2008, os governos da União Europeia alinharam-se lealmente às diretrizes do G20, comprometendo recursos públicos para salvar os bancos e manter as economias à tona. A “Iniciativa de Viena”, em 2009, cobriu as posições expostas dos grandes bancos alemães e austríacos na Europa Central e Oriental com recursos dos governos e do Fundo Monetário Internacional. No início de 2010, o resgate dos bancos, combinado às recessões exacerbadas pelo estouro das bolhas imobiliárias, tinha ampliado os déficits e multiplicado as dívidas dos governos. As agências de classificação começaram a baixar a nota dos países mais endividados – Grécia, depois Irlanda, Portugal, Itália e Espanha. As especulações em torno de uma saída desses países da zona do euro ou de um colapso da moeda única ajudaram a levar a níveis impagáveis o custo de rolamento das dívidas desses países.

O que se seguiu foi um cabo de guerra de trinta meses entre os mercados financeiros e o governo Obama, de um lado, e Berlim e o Banco Central Europeu, de outro, ao fim do qual a Alemanha acabou concordando, a contragosto, em garantir as dívidas dos outros Estados-membros, à condição de poder ditar as linhas mestras de seus orçamentos. “Só damos garantias se tivermos o controle”, declarou Angela Merkel. De fato, a Alemanha é que acabou ocupando o lugar do poder soberano ausente de que fala Aglietta.

Toda vez que o pânico quase prevaleceu – em maio e novembro de 2010 com o resgate da Grécia e da Irlanda, em novembro de 2011 com as quedas dos governos da Grécia e da Itália, no verão de 2012 com as eleições gregas e o espectro de um colapso da banca espanhola –, Berlim sempre acabou cedendo às exigências do Tesouro dos Estados Unidos.

A única tentativa feita por Merkel de forjar um caminho independente, o Acordo de Deauville, de outubro de 2010, visando forçar os credores da Grécia a abrir mão de receber uma parte dos seus empréstimos, foi rapidamente esmagada. O governo americano mostrou-se sempre disposto a aceitar as medidas alemãs de austeridade – o próprio Obama telefonou ao premiê espanhol Zapatero em maio de 2010 para passar-lhe um sermão sobre a necessidade de cortes de gastos –, com a condição de que os elos que ligam as dívidas europeias a Wall Street continuassem devidamente garantidos.

Em maio de 2010, o Conselho Europeu concordou em criar um organismo temporário, o Fundo Europeu de Estabilização Financeira, com recursos de 440 bilhões de euros, mais tarde suplementado por um organismo permanente, com recursos de 500 bilhões de euros, chamado Mecanismo Europeu de Estabilidade. Subscritas pelas potências da zona do euro (com a ajuda dos bancos Goldman Sachs, BNP Paribas, Société Générale e RBS), essas entidades captariam dinheiro nos mercados a fim de fornecer empréstimos a qualquer país que precisasse de ajuda para honrar os pagamentos de juros sobre a sua dívida nacional, à condição de que o país concordasse com um programa de austeridade fiscal administrado de fora, além de reformas estruturais. Para os mercados financeiros, porém, o que importava não eram as medidas econômicas inspiradas por Berlim, mas uma garantia duradoura do Banco Central Europeu. E isso, por sua vez, envolvia uma mudança de guarda no banco, que para tanto precisaria abandonar seu mandato original, que excluía o salvamento de países endividados.

Por insistência de Angela Merkel, uma cobertura ideológica foi fornecida pelo Tratado de Pacto Fiscal, que obrigou os Estados-membros a incluir em suas constituições um limite de 3% do Produto Interno Bruto para o déficit público [saldo negativo entre receitas e despesas do governo]. Depois que esse acordo foi obtido em dezembro de 2011, o Banco Central Europeu emprestou 1 trilhão de dólares a vários bancos na zona do euro, em longo prazo e com taxas super-reduzidas. Mas nem isso bastaria; foi só em setembro de 2012, quando o banco anunciou que estava disposto a comprar quantidades ilimitadas de títulos dos países-membros – novamente com condições estritas –, que as apostas do mercado contra o euro foram retiradas da mesa e o furor em torno da política monetária europeia se atenuou.


A União Europeia que emergiu desse épico combate é significativamente mais autocrática, dominada pela Alemanha e de direita, além de desprovida de qualquer charme compensatório. É bem verdade que ficou provado que os catastrofistas estavam enganados. Longe de se desintegrar, a zona do euro continua a se expandir. A Letônia irá adotar o euro em 2014, como a Estônia já fez em 2011. A Croácia entrou para a União Europeia nos últimos meses. Mas o bloco não se limitou a se arrastar para fora da lama. Enfunado pelos mercados financeiros, com o Tesouro americano e a Chancelaria alemã no timão, zarpou rumo a uma nova etapa de sua unificação, caracterizada pela mesma combinação que vem orientando seus rumos desde Maastricht:- integração assimétrica associada a um crescimento não igualitário.

Em nível supranacional, “os controles” exigidos por Berlim produziram um diretório econômico ad hoc sem qualquer legitimação além da própria emergência. A Troika – que não tem nome oficial – foi formada às pressas em abril de 2010 para assumir a direção da economia grega, como condição para o primeiro empréstimo feito à Grécia pelo Fundo de Estabilização. Formada por funcionários da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do FMI, ela hoje governa Portugal, Irlanda, Chipre e Grécia, e foi inscrita em caráter permanente no Mecanismo Europeu de Estabilidade.

A Troika emite memorandos de entendimento seguindo o modelo de atuação do FMI, ditando cada detalhe dos programas que os Estados-membros devem aprovar em seus Legislativos: “O governo assegura que a legislação” – prevendo cortes na saúde e na educação e de gorduras do setor público, além de reduções nas aposentadorias pagas pelo Estado – “será apresentada ao Parlamento no Trimestre 3 e aprovada pelo Parlamento no Trimestre 4”; “o governo apresentará um Plano de Privatização ao Parlamento e cuidará para que seja aprovado sem demora”; e até, “o governo deverá apresentar ex ante, para discussão, a adoção de quaisquer medidas não previstas neste Memorando”.

Os resultados da administração econômica da Troika foram chocantes. Previa-se que o PIB da Grécia fosse cair 5% entre 2009 e 2012; já caiu 17%, e continua desabando. O desemprego não deveria superar 15% em 2012; já ultrapassou 25%, e segue em alta. Ninguém foi considerado responsável por essa verdadeira debacle. Novas rodadas de cortes estão previstas para 2013, sem que se conheçam suas razões econômicas. Outros 15 mil trabalhadores do setor público ainda precisam ser demitidos para que as metas do atual trimestre sejam atingidas; todos os funcionários da emissora estatal grega de rádio e televisão foram dispensados. Os gastos hospitalares devem sofrer um corte de 5%, depois dos 8% de 2012, e a Troika pretende ver uma redução ainda mais substancial no número total de leitos hospitalares disponíveis no país.

O componente mais agressivo da Troika é a Diretoria de Assuntos Econômicos e Financeiros da Comissão Europeia. Sua face pública é o louro e corpulento Olli Rehn, geralmente fotografado admoestando legisladores mediterrâneos, como um vice-rei. Em sua Finlândia natal ele é comparado a Bobrikov, o detestado governador-geral da época czarista que tiranizou o país nos primeiros anos do século XX até ser abatido a tiros por um patriota.

Como muitos outros comissários europeus, Rehn tinha sido sumariamente rejeitado pelos eleitores de seu próprio país. Formado nos Estados Unidos e na Universidade de Oxford, no Reino Unido, ingressou no Parlamento de Helsinki em 1991, aos 29 anos, e logo foi cedido ao gabinete de Esko Aho, o primeiro-ministro do Partido do Centro. O governo de Aho era detestado devido aos radicais cortes de despesas que impôs, exacerbando a recessão já grave do início da década de 90. Quando o partido se viu transferido para a bancada oposicionista nas eleições de 1995, Rehn acabou a caminho de Bruxelas, onde obteve o excelente emprego de chefe de gabinete do representante finlandês na Comissão Europeia, cujos sapatos viria finalmente a calçar em 2004. (Aho tornou-se vice-presidente executivo da Nokia.)

Sua primeira missão foi a ampliação do bloco; Romênia e Bulgária foram admitidas no rebanho em 2007 (indícios maciços de corrupção política e econômica nesses países foram varridos para debaixo do tapete). Discípulo ardoroso do ministro das Finanças de Merkel, Wolfgang Schäuble, e de sua postura linha dura em relação à disciplina orçamentária, Rehn foi promovido à Diretoria de Assuntos Econômicos e Financeiros no momento em que a crise grega entrava em erupção, em 2010.

Desde então, o Conselho Europeu prorrogou várias vezes o mandato da Comissão Europeia para “controle e decisão econômicos”. Primeiro veio o Semestre Europeu (2010), um novo processo em que Bruxelas definiu metas para todos os Estados-membros, cujos orçamentos, a partir de então, passaram a ser submetidos ao gabinete de Rehn antes de apresentados aos respectivos parlamentos. Países considerados “em risco” ficaram sujeitos aos “procedimentos de déficit excessivo”, e podem ser multados em até 0,2% do respectivo PIB. Uma série de acordos intergovernamentais (o Pacto Euro Plus em 2011, o Pacto Fiscal de 2012) e regras da União Europeia (conhecidas em seu jargão medonho como “pacote de seis” e “pacote de dois”) a eles superpostas deram à Comissão poderes ainda maiores de intervenção caso algum Estado persistisse em desobedecer a suas instruções estritas para reduzir salários, aumentar a flexibilidade do mercado de trabalho e proceder aos cortes orçamentários prescritos.


Os novos poderes da Comissão Europeia e da Troika assinalam uma diminuição real do controle democrático. Antes da crise, a União Europeia deixava as decisões mais importantes sobre impostos, aposentadorias, seguro-desemprego, gastos públicos, saúde e educação por conta dos governos nacionais, considerando que essas questões eram sensíveis e demandavam legitimação parlamentar. Hoje, na prática, elas só dependem dos ditames dos funcionários da União Europeia. As aparências constitucionais só foram preservadas, até agora, porque as maiorias parlamentares cuidaram de aprovar as medidas de emergência.

Nos países onde o desemprego e as dificuldades econômicas só fazem crescer, porém, os congressistas só conservam o apoio de uma minoria dos eleitores. Na Grécia, menos de 30% do eleitorado total votou em favor da coalizão de centro-direita vitoriosa em junho de 2012; esses eleitores eram na maioria pensionistas e moradores do campo, preocupados com suas economias, enquanto nas cidades maiores e entre os menores de 55 anos a maioria votava a favor do partido Syriza, contrário ao Memorando da Troika. Na Espanha, o Partido Popular, atualmente no governo, só tem 32% de apoio nas pesquisas, os socialistas de centro-esquerda estão ainda mais fracos e o aperto no orçamento decidido em Madri é ferozmente contestado pela Catalunha. Na Itália, mais da metade dos eleitores optou por partidos “eurocéticos” em fevereiro de 2013.

Será a democracia eleitoral compatível com o tipo de política econômica que a União Europeia – apoiada a distância por Washington e Wall Street – pretende impor? Eis a questão que propõe o sociólogo Wolfgang Streeck, que vive em Colônia, na Alemanha, em Gekaufte Zeit, um livro que vem provocando grande polêmica em seu país. Segundo Streeck, depois que as taxas de crescimento da economia ocidental começaram a cair na década de 70, tornou-se cada vez mais difícil para os políticos ajustarem as exigências de lucratividade às do sucesso eleitoral; as tentativas de fazê-lo (de “ganhar” ou “comprar tempo” – Gekaufte Zeit significa “tempo comprado”) resultaram em déficits no gasto público e no crescimento das dívidas privadas.

A crise levou a extremos o conflito de interesses entre os mercados financeiros e a vontade popular: sempre que se aproxima uma eleição, os investidores especulam com o “risco”. Na Europa, a saída, segundo Streeck, será capitalista ou democrática, nunca as duas coisas ao mesmo tempo; dado o equilíbrio de forças atual, tudo indica que é a primeira que irá prevalecer. Ao alcance dos cidadãos só restarão as palavras – ou as pedras do calçamento.

A reação de Bruxelas ao encolhimento da democracia tem sido propor um “aumento equivalente” para o papel do Parlamento Europeu, o que emprestaria legitimidade democrática aos poderes aumentados da Comissão; mas nesse ponto esbarramos numa limitação constitucional do Parlamento Europeu. Seu processo eleitoral não pode ter o resultado que os eleitores esperam de eleições parlamentares – ou seja, não determina a composição de um governo.

A primeira encarnação do Parlamento Europeu, a Assembleia Comum, foi criada em 1951 a partir de uma reunião de congressistas dos parlamentos nacionais, de modo a criar um conselho teoricamente democrático para a Alta Autoridade da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, órgão precursor da Comissão Europeia. A Assembleia tinha o poder de destituir a Alta Autoridade e aprovar seu orçamento. Desde o início, porém, essas duas instituições tinham uma relação de cooperação estreita, porque isso reforçava seu poder de barganha diante dos governos nacionais, representados no Conselho de Ministros e mais tarde no Conselho Europeu.

Charles de Gaulle zombava da ideia de eleições diretas para a escolha de um órgão consultivo europeu, mas, na década de 70, Giscard D’Estaing autorizou que elas se realizassem. As primeiras eleições europeias ocorreram em 1979, mas a função do Parlamento Europeu ainda era de aconselhamento. Seus membros não eram legisladores; sua tarefa consistia apenas em emitir um parecer sobre as diretrizes traçadas pela Comissão Europeia e aprovadas pelo Conselho.

A ampliação das atribuições do Parlamento Europeu nos últimos vinte anos dotou-o da capacidade de propor emendas às propostas da Comissão – que o Conselho ainda assim pode vetar. A cooperação inicial persiste: a vasta maioria das diretrizes é acertada de antemão em “triálogos” informais entre representantes da Comissão, do Conselho e do Parlamento europeus. A condição para que um membro do Parlamento tenha uma emenda adotada é que ela seja considerada aceitável pelas outras duas instituições, e não sua importância para os eleitores da Europa.

A maior parte do trabalho dos parlamentares europeus se dá nas vinte e poucas comissões do Parlamento que cobrem áreas específicas: política externa, agricultura, transporte, Justiça, o Orçamento da União Europeia. As nomeações para as comissões são controladas pelas lideranças dos grupos partidários – o Partido Popular Europeu, de centro-direita; o Socialistas & Democratas, de centro-esquerda; a liberal Aliança dos Democratas e Liberais pela Europa – e distribuídas em base proporcional. Nas plenárias realizadas mensalmente em Estrasburgo, os grupos partidários emitem orientações para guiar seus membros na votação de uma série estonteante de resoluções, que regem do funcionamento dos aeroportos no bloco à produção de rações para animais.

O Partido Popular Europeu e o Socialistas & Democratas controlam dois terços das cadeiras no Parlamento Europeu, de maneira que um acordo entre seus líderes já basta para garantir a maioria dos votos. A Comissão Europeia só teve elogios para a velocidade com que as comissões e os grupos partidários do Parlamento deram sua aprovação às medidas draconianas adotadas para a zona do euro. Numa guinada para conferir algum verniz democrático à Comissão Europeia, nas eleições para o Parlamento previstas para maio de 2014 cada um dos grupos partidários deverá indicar um candidato à presidência da Comissão, sucedendo o desafortunado português Durão Barroso. Se o comparecimento às urnas continuar caindo como vem ocorrendo desde 1979, o vencedor pode terminar tendo o apoio de menos de 10% do total de eleitores europeus. Em suma, o Parlamento Europeu parece encontrar-se além de qualquer possibilidade de reforma.


Uma parte substancial da intelligentsia europeia defendeu a nova rodada de integração ditada pelos parâmetros do mercado como o melhor cenário possível. Jürgen Habermas dedica seu livro Sobre a Constituição da Europa (Unesp, 2012) a demonstrar que o equilíbrio do poder “deslocou-se dramaticamente, dentro da estrutura organizacional, em favor dos cidadãos europeus”. Embora os cidadãos propriamente ditos se mostrem lamentavelmente apáticos em relação a ela, uma democracia pós-nacional está bem encaminhada através do Parlamento Europeu; os meios de comunicação de massa deviam demonstrar maior empenho em fazer seus cidadãos tomarem consciência da importância desse momento.


Num ensaio recente opondo-se a Streeck, Habermas afirma que deixar de dar pleno apoio às medidas emergenciais na zona do euro equivale a uma capitulação ao populismo de direita. Ele espera que as eleições alemãs [deste mês de setembro] produzam uma “grande coalizão” – de democratas cristãos, social-democratas, liberais e verdes – capaz de encaminhar os projetos supranacionais de união fiscal e política da Europa. “Só a República Federal da Alemanha é capaz de responder por uma iniciativa tão difícil”, conclui ele, com o tipo de arrogância provinciana que costumava ser prerrogativa dos ingleses, mas se tornou comum na imprensa alemã.

O manifesto Pela Europa!, escrito a quatro mãos pelo verde alemão Daniel Cohn-Bendit e o liberal belga Guy Verhofstadt, faz afirmações ainda mais ambiciosas. “Só a União Europeia” será capaz de “garantir os direitos sociais de todos os cidadãos europeus e erradicar a pobreza”; “só a Europa” será capaz de resolver os problemas da globalização, das mudanças climáticas e da injustiça social; o “exemplo luminoso” da Europa “inspirou outros continentes a seguirem o caminho da cooperação regional”; “nenhum continente está mais bem equipado para renunciar a seu passado de violência e capitanear a defesa de um mundo mais pacífico”. Cohn-Bendit e Verhofstadt mostram-se ainda mais catastrofistas do que Habermas: se a moeda única fracassar, dizem eles, o mesmo ocorrerá com a União Europeia – e “2 mil anos de história correm o risco de serem simplesmente obliterados”.

Pela Europa! é um hino à disciplina, que emerge – surpreendentemente – como o tema central do liberalismo verde. Uma autoridade “forte” é necessária para “o cumprimento das regras”: “A disciplina é vital para a zona do euro.” Quando um repórter do jornal Libération perguntou-lhe se o Mecanismo Europeu de Estabilidade não seria uma “ditadura tecnocrática”, Verhofstadt preferiu defini-lo como um “estágio de transição” – afinal, os Estados-nação já existiam séculos antes do sufrágio universal.

O livro Das Deutsche Europa [Europa Alemã], do sociólogo Ulrich Beck, da Universidade de Munique, faz soar em seu início uma animadora nota crítica. Começa comentando sua incredulidade ao ouvir um locutor de rádio anunciar, no final de fevereiro de 2012, que “o Parlamento alemão decide hoje o destino da Grécia”. Para Beck, a nova hierarquia entre os países na zona do euro não tem a menor legitimidade democrática, e deriva exclusivamente do poder econômico.

A Espanha, a Grécia e a Itália estão sendo submetidas a medidas de austeridade prescritas por Berlim e planejadas tendo em mente o eleitorado alemão; em razão disso, regiões inteiras estão sendo “condenadas ao declínio social”. As nações devedoras estão sendo transformadas na nova subclasse da União Europeia. Seus direitos democráticos foram reduzidos à escolha entre permanecer na União ou abandoná-la. O que conta, para as medidas tomadas na zona do euro, é saber se irão promover ou não o interesse nacional alemão e a posição de Angela Merkel na política interna. A meta é “um neoliberalismo brutal no resto do mundo, e um consenso com matizes social-democratas dentro do país”.

Beck relaciona o universalismo “arrogante” de Berlim, sua “convicção presunçosa” de que a Alemanha tem o direito de determinar os interesses nacionais dos outros países, à anexação anterior da Alemanha Oriental pela Alemanha Ocidental. Sua atitude “de quem acha que sabe tudo” e sua “ideia quase imperialista de superioridade” em relação aos alemães orientais tornaram-se o molde para a gestão da crise na zona do euro, com a diferença crítica de que, nesse caso, não há lugar para a solidariedade.

Mas a confiança dos mesmos “preceptores da Europa” no pacote neoliberal criado pelo chanceler social-democrata Gerhard Schröder em 2003 está equivocada, afirma Beck, pois seu efeito na Alemanha foi a criação de uma precariedade disseminada: dos novos empregos, 7,4 milhões são “miniempregos” remunerados a 400 euros mensais, 3 milhões são postos temporários, 1 milhão são empregos terceirizados. O crescimento alemão veio principalmente das exportações, inclusive para o sul da zona do euro.

Ainda assim, as prescrições finais de Beck não têm relação com seu diagnóstico. Seu entusiasmo pelas instituições que governam a economia da zona do euro, que não prestam contas a ninguém, é mais reticente que o de Habermas, Cohn-Bendit ou Verhofstadt. Como os outros, porém, ele acredita que elas precisam ser defendidas contra as acusações de se postar “acima da lei”, pois são necessárias para a salvação da ordem europeia.


De maneira talvez contraintuitiva, as discussões alemãs se concentram na política e na sociologia da crise europeia, enquanto as alternativas econômicas mais imaginativas vêm da França. Michel Aglietta e Jean-Luc Gréau apresentam propostas para federações orçamentárias democráticas na zona do euro, enquanto em Les Dettes Illégitimes [As Dívidas Ilegítimas] François Chesnais recorre à experiência da crise da dívida latino-americana em busca de lições que possam ser de alguma utilidade, evocando a bem-sucedida “auditoria da dívida” promovida no Equador, examinando em detalhe quais compromissos foram assumidos em nome do Estado e quais podem ser legitimamente repudiados. Aglietta também esboça um caminho passo a passo que a Grécia poderia seguir para adotar uma nova moeda, por meio de uma reestruturação da dívida e de uma desvalorização controlada, sem para tanto precisar desligar-se da União Europeia. O preço seria caro, mas não mais alto que aquele que os gregos já tiveram de pagar. (Quanto ao efeito de um calote grego nos títulos das dívidas italiana e espanhola, este preço também já foi pago.)

No número de maio do Cambridge Journal of Economics, Jacques Mazier e Pascal Petit imaginam um sistema monetário múltiplo para a Europa: um euro externo único, que flutuaria contra as outras moedas nos mercados internacionais, mas que coexistiria com euros nacionais não conversíveis, que teriam paridades fixas, mas reajustáveis dentro da Europa – uma variante do que a China imagina como um estágio intermediário para a conversibilidade do yuan.

Mas quaisquer que sejam os méritos dessas ideias, ainda faltam forças políticas que as adotem e defendam. Ainda assim, o domínio alemão ao longo de toda a crise europeia dependeu acima de tudo da complacência francesa: sob Nicolas Sarkozy, uma colaboração ativa; sob François Hollande, uma ausência passiva de oposição. Há algo de anômalo na neutralização da França como ator no palco europeu, e é disso que deve advir parte do caráter frágil da hegemonia alemã.

A explicação convencional reza que a economia francesa está sobrecarregada demais por seu legado estatista, e por isso o Palácio do Eliseu não tem como manifestar muita autoridade. Mas essa avaliação não é confirmada pelos números. A França se recuperou mais rápido da crise do que o Reino Unido. Sua dívida pública, incluindo o resgate dos bancos, é menor que a britânica, e seu setor industrial se encontra em melhor situação. O desemprego está mais acentuado, mas a renda média por família é maior, a desigualdade é menor e a infraestrutura e a assistência médica estão em outro patamar. A França tem diante de si os mesmos problemas globais de outras economias avançadas, mas o motivo de ter parado de desempenhar um papel de liderança na Europa deve ser outro – talvez um sistema político esclerosado e um fascínio intelectual pelo liberalismo atlântico, sem contar as encrencas em que os bancos BNP Paribas e a Société Générale se envolveram no estrangeiro.


Pensando num prazo mais longo, não existe escassez de propostas para a “união econômica” e a “união política” da Europa, tópicos que cobrem uma ampla variedade de arranjos. Todos os esquemas se apoiam na premissa de que a política econômica deverá estar voltada para a redução do gasto público e do custo da mão de obra; todas veem a união política como um meio para a adoção dessas políticas; quase todas apontam o Parlamento Europeu como o mecanismo que pode conferir-lhes “legitimidade”. Onde as propostas diferem é no peso maior que atribuem aos organismos intergovernamentais ou às agências supranacionais, e nas suas versões minimalistas ou maximalistas.

As decisões dependerão não só do equilíbrio de forças entre os diversos países, mas também de choques externos, como demonstram as negociações em curso sobre a união bancária. Uma supervisão supranacional dos bancos pelo Banco Central Europeu causa pouca controvérsia; mas Berlim lidera a resistência às propostas da Comissão Europeia em favor de um seguro de depósitos vigente em todo o bloco e de uma autoridade supranacional que teria o poder de intervir em bancos alemães falidos. Ainda assim, um novo abalo financeiro poderia provocar a criação improvisada de algum mecanismo de emergência que, como a Troika, acabaria depois fazendo parte do sistema da União Europeia.

As versões minimalistas do modelo intergovernamental de união econômica e política – esboçadas no relatório do Conselho Europeu de junho de 2012 e hoje endossadas por Angela Merkel – tendem para a adoção de “estruturas integradas”, por meio das quais os governos concordam em coordenar suas políticas orçamentária e econômica, sob a supervisão da Comissão Europeia. Um modelo intergovernamental maximalista, apoiado por Schäuble, o ministro das Finanças da Alemanha, prevê uma coordenação explícita das políticas apenas para a zona do euro, com os ministros das Finanças formando um quase gabinete.

Os modelos supranacionais ou “federalistas” de união política e econômica concentram-se no fortalecimento da Comissão Europeia, atribuindo importância maior ao Parlamento Europeu. Entre as variantes maximalistas supranacionais encontram-se o relatório enviado por Durão Barroso em setembro de 2012 ao Parlamento Europeu e o “Projeto de uma união econômica e monetária profunda e genuína” que a Comissão divulgou em novembro de 2012, formulando planos de longo prazo para um orçamento autônomo da zona do euro e um mercado para os eurobônus, condicionados a controles centrais mais rigorosos sobre os gastos nacionais.

O problema são os cidadãos da Europa. Um aumento substancial dos poderes dos organismos supranacionais ou intergovernamentais exigiria um novo tratado, que por sua vez exigiria referendos para sua ratificação em pelo menos dois países-membros – na prática, um convite aos eleitores para exprimirem sua insatisfação. Na Espanha, a proporção dos consultados que manifestam “desconfiança” em relação à União Europeia aumentou de 23% para 72% nos últimos cinco anos; na Alemanha, na França, na Áustria e na Holanda, esse número fica em torno de 60%. Hoje, menos de um terço dos europeus “confia” no bloco; a maioria aponta o desemprego e o estado da economia como suas maiores preocupações.

Ainda assim, muita coisa pode ser feita sem o envolvimento dos eleitores, como afirma Jean-Claude Piris em The Future of Europe: Towards a Two-Speed eu? [O Futuro da Europa: Uma União Europeia em Duas Velocidades?]. Piris foi o principal advogado do bloco por duas décadas, tendo respondido pelos detalhes técnicos dos tratados de Maastricht, Amsterdã, Nice, Constitucional e de Lisboa antes de aposentar-se em 2010. Piris é um crítico severo de seu próprio trabalho: a expansão privou a União Europeia de sua coerência e identidade; o Parlamento Europeu não conseguiu conquistar a confiança dos eleitores; a Comissão Europeia é intelectualmente deficiente; o Conselho Europeu, obstruído pelas exigências de unanimidade; e a desilusão dos eleitores impede um recomeço necessário para essas instituições. Como alternativa, afirma Piris, o artigo 136 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia confere aos países da zona do euro uma ampla margem para a coordenação fiscal e econômica; um núcleo de países poderia usar uma declaração política para atribuir-se uma identidade coerente e um projeto para o futuro.


O que será dos países da União Europeia fora da zona do euro? Em Au Revoir, Europe: What if Britain Left the eu? [E se a Grã-Bretanha se Retirasse da ue?], David Charter, jornalista doTimes de Londres, afirma que a combinação do euroceticismo no Reino Unido com sua integração crescente à zona do euro significa que ou Londres terá de negociar alguma forma de participação de segunda linha no bloco – já foi proposta a criação de um círculo exterior mais frouxo da União Europeia, que poderia incluir a Turquia e os países balcânicos, além da Grã-Bretanha – ou deverá abandonar a União Europeia por completo.

E pode-se ver por que essa possibilidade seria bem recebida por muita gente na Europa. A Grã-Bretanha cumpriu fielmente a profecia de De Gaulle, de que serviria de cavalo de Troia para os interesses americanos na Europa. Ultimamente, Cameron não tem poupado esforços em manter suas instituições que negociam derivativos – na maioria, subsidiárias de bancos americanos – fora do alcance das regras da União Europeia, e mais ainda de seus impostos, ao mesmo tempo que apoia os programas mais ferozes de austeridade e insiste com a Alemanha para que não hesite em cumprir o seu papel.


A história traçada por Charter da relação entre o Reino Unido e a Europa é um lembrete útil de que muito do que as pessoas mais detestam na União Europeia foi resultado da intervenção britânica. As pesquisas mostram que a maioria seria favorável a um mercado único – o sonho de Thatcher – sem todo o acúmulo de regras do bloco, mas essas últimas são uma pré-condição para a existência do primeiro. No início da década de 80, todas as economias industriais avançadas tinham construído seus próprios emaranhados de regras de saúde e segurança, e não sem motivo: especificações para a rotulagem de produtos; exigências de segurança para aparelhos elétricos; padrões para produtos alimentares e agências de inspeção de matadouros; restrições a substâncias tóxicas, tais como tintas à base de chumbo em brinquedos.

As tarifas nacionais de importação podiam ser removidas por uma simples decisão, mas para a criação de um mercado único essas “barreiras não tarifárias ao comércio” precisaram ser harmonizadas, setor a setor. Naturalmente, os comitês de Bruxelas encarregados da tarefa transformaram-se em alvo de lobistas das grandes empresas. Então, a partir de 2006, a pretensão da União Europeia de se tornar uma líder global da regulação ambiental – avidamente apoiada por Blair, que esperava usar a fama de verde para limpar sua reputação – ajudou a produzir uma pletora de novos editos, tratando de tudo, de plásticos a lâmpadas elétricas.

Au Revoir, Europe apresenta uma análise sumária do custo-benefício do que representaria para a Grã-Bretanha deixar a União Europeia. As conclusões de Charter quanto aos efeitos econômicos coincidem em termos gerais com as da revista The Economist, que se declarou contrária à retirada britânica do bloco num artigo de dezembro de 2012. Já na suposição plausível de que o Reino Unido conseguiria negociar um acordo bilateral de comércio com a União Europeia, os efeitos de médio prazo seriam irrisórios. O impacto de curto prazo sobre o investimento seria mais dramático, comparável talvez ao momento da crise financeira, quando os investimentos estrangeiros no Reino Unido caíram de 196 bilhões de libras para 46 bilhões entre 2007 e 2010. No médio prazo, o investimento se recuperaria juntamente com o crescimento, assim que os acertos pós-União Europeia tivessem se consolidado.

Retirar-se da União Europeia permitiria ao Reino Unido adotar um sistema rígido de controle de vistos para os demais europeus; cidadãos do bloco constituem 40% da imigração líquida no Reino Unido, e no momento lhes é concedida entrada livre por até três meses, com licença de permanência indefinida se conseguirem um emprego ou começarem a trabalhar como autônomos. Por outro lado, os ingleses estariam sujeitos a barreiras equivalentes para entrar na União Europeia; cerca de 1 milhão de britânicos residem em outros países do bloco, especialmente na Espanha, onde podem receber suas pensões do Reino Unido nas agências locais dos Correios e gozar gratuitamente de assistência médica.

Depois da saída da União Europeia, a repatriação dos velhinhos da Costa Brava aumentaria os custos sociais no Reino Unido; a recalibragem demográfica precisaria de ajustes para incluir mais velhos e mais dependentes, além da exclusão de poloneses e romenos jovens e saudáveis. Para The Economist, o trabalho barato dos imigrantes é uma das principais razões para a permanência britânica na União Europeia (além de poder mostrar utilidade a Washington e manter voz ativa na regulação do setor financeiro); Charter sugere que os custos e benefícios nesta área se anulam uns aos outros.

Au Revoir, Europe foi publicado antes de Cameron prometer realizar um referendo em 2017 para decidir se o Reino Unido continua ou não na União Europeia, mas Charter já antecipa alguma coisa nessa direção. Esboça uma trajetória de retirada que se distribuiria ao longo dos próximos dez anos. O quanto essa projeção é plausível? A gratidão de Edward Miliband, o líder dos trabalhistas, pela orientação da Casa Branca no caso – uma consulta popular sobre a União Europeia foi contrarrecomendada secamente por Obama, que a considerou “pouco útil” – garante que o tema não irá aparecer na campanha eleitoral do partido em 2015. Os liberais-democratas não tiveram qualquer escrúpulo em deixar de lado seu compromisso anterior com o referendo ao formarem a coalizão de governo com os conservadores em 2010. Assim, o referendo ficaria dependendo de uma vitória nítida dos conservadores em 2015, o que no momento parece altamente improvável.

Se a consulta fosse realizada, porém, o resultado mais provável seria a confirmação do status quo. A atual ascensão do Partido Independente do Reino Unido não se deve a uma erupção súbita de euroceticismo na Inglaterra depois da crise, mas ao colapso do apoio eleitoral aos seus três maiores partidos. Pelos primeiros quinze anos de sua existência, o Partido Independente sempre precisou lutar muito para obter 3% dos votos nas eleições nacionais. A mudança só ocorreu nas eleições de 2004 para o Parlamento Europeu. À medida que os demais partidos caíam a níveis sem precedentes – os trabalhistas por causa do apoio à guerra no Iraque, os conservadores ainda perdidos no deserto pós-Thatcher –, o Partido Independente conquistou 16% dos votos e elegeu doze representantes ao Parlamento Europeu, um sexto de todo o contingente do Reino Unido, cujos generosos salários, assessores e recursos puderam ser canalizados para a construção local do partido.

A partir de 2010, a pregação dos liberais-democratas em favor dos cortes de gastos e da cobrança de mensalidades no ensino criou um consenso tripartidário, fazendo do Partido Independente o receptáculo mais evidente para os votos de protesto. Enquanto isso, a política inglesa deu tamanha guinada para a direita que a plataforma dos independentes – a limitação dos vistos para imigrantes, a demissão de professores e de funcionários públicos locais – se tornou apenas uma versão exagerada da que os outros partidos britânicos defendem. As pesquisas de opinião no Reino Unido indicam que hoje entre 41% e 54% são a favor da saída britânica da União Europeia, com 24% a 38% em favor da permanência e 8% a 30% de eleitores indecisos ou que não sabem. Mas esses números não são precisos, e refletem visões mais imediatistas do que refletidas.

Os Estados Unidos certamente vão exagerar a importância das perturbações financeiras que ocorrerão em curto prazo caso os britânicos optem pela saída do bloco europeu; o medo irá favorecer o status quo. O cavalo de Troia permanecerá em seu posto. Também nessa frente a sorte da Europa não irá melhorar.

Quanto ao futuro imediato, é provável que o eixo Berlim–Bruxelas [a sede da Comissão Europeia fica na capital belga] continue a administrar a crise de acordo com os termos ditados pela Alemanha, pelo menos enquanto seus piores efeitos permanecerem confinados às pequenas economias periféricas – Grécia, Chipre, Portugal e Irlanda. As cifras mais recentes indicam um frágil aumento de 0,3% no crescimento da zona do euro no segundo trimestre deste ano, comparado ao mesmo período de 2012, sustentado quase inteiramente pela Alemanha e França. Mas, se a economia mundial piorar ainda mais, a Espanha e a Itália irão criar problemas de outra escala. O programa de compra de títulos da dívida pelo Banco Central Europeu obrigaria os políticos desses países, já desacreditados, a submeter-se aos ditames da Troika.

Ainda assim, a turbulência no mercado financeiro em resposta a um murmúrio de Ben Bernanke, o presidente do Banco Central americano, falando do fim da expansão monetária nos Estados Unidos foi um lembrete de que a bonança não irá durar para sempre. Cinco anos de taxa de juros zero e 14 trilhões de dólares injetados pelo Banco Central na economia americana produziram apenas um crescimento muito hesitante. A China, que enfrenta a queda de suas exportações, balança à beira de uma quebra dos bancos e dos governos locais, atolados em dívidas. A Europa se mostra vulnerável pelos dois lados: o aumento da taxa de juros irá aumentar o risco de calote dos bancos e dos seus Estados, enquanto as exportações alemãs dependem cada vez mais do boom da construção na China.

Neste verão europeu de 2013, o Banco Central alemão reviu para baixo os prognósticos de crescimento do país em 2014. O regime de austeridade ainda tem que ser testado em sua pátria de origem.

Pombas brancas felizes: O verdadeiro Mo Yan

Em Estocolmo, antes de receber o prêmio Nobel, Mo Yan se manifestou a favor da censura: era, segundo ele, um pouco como a segurança do aeroporto.

Nikil Saval

London Review of Books

Vol. 35 No. 16 · 29 August 2013

Change 
por Mo Yan, traduzido por Howard Goldblatt.
Seagull, 117 pp., £9, outubro 2012, 978 0 85742 160 9

Sandalwood Death 
por Mo Yan, traduzido por Howard Goldblatt.
Oklahoma, 409 pp., £16, janeiro 2013, 978 0 8061 4339 2

Pow! 
por Mo Yan, traduzido por Howard Goldblatt.
Seagull, 440 pp., £19.50, dezembro 2012, 978 0 85742 076 3

Quando a tradução para o inglês do romance Big Breasts and Wide Hips (1996) de Mo Yan foi publicada em 2004, foi vista por alguns críticos como sua tentativa de prestígio literário global. Acertou em cheio: era uma saga histórica da China moderna apresentando uma proliferação de histórias, era incessantemente violenta e desagradável, e quase furou os mitos do Partido. No prefácio, Howard Goldblatt, tradutor e defensor de longa data de Mo Yan, relatou que havia provocado raiva no continente entre os ideólogos por humanizar os soldados japoneses que invadiram a Manchúria, embora não possa ter havido muita raiva porque o romance não foi proibido, ou mesmo expurgado. Jonathan Yardley do Washington Post elogiou Mo Yan por ter "falado corajosamente pela liberdade e pelo individualismo". Aqui estava uma voz liberal na China repressiva. "A Academia Sueca, que aproveita qualquer chance de misturar literatura com política", ele concluiu, "pode muito bem encontrar em Mo Yan o escritor certo para enviar uma mensagem à liderança comunista chinesa."

Ano passado, a Academia realmente deu o prêmio a Mo Yan. Mas desta vez a mistura literatura-política do Nobel saiu totalmente errada. Em vez de encarar isso como uma afronta direcionada, como aconteceu com o Prêmio da Paz concedido a Liu Xiaobo dois anos antes, o Partido Comunista Chinês ficou em êxtase. Li Changchun, ministro da propaganda, escreveu para parabenizar Mo Yan por uma vitória que ‘reflete a prosperidade e o progresso da literatura chinesa, bem como a crescente força nacional e influência da China’. A reputação dissidente de Mo Yan no Ocidente, descobriu-se, era falsa. Ele era uma figura estabelecida no funcionalismo literário chinês. Ele era membro do Partido Comunista desde 1979. Ele era vice-presidente da Associação de Escritores da China. Ele participou de uma cerimônia pública na qual copiou vários caracteres chineses do Zhdanovite de Mao, "Discurso no Fórum Yan'an sobre Literatura e Arte", um texto que declarava a subserviência da literatura à luta de classes. E em Estocolmo, antes de receber o prêmio, Mo Yan se manifestou a favor da censura: era, ele disse, um pouco como a segurança do aeroporto. Os quadros já estavam se movendo rapidamente para transformar sua aldeia ancestral em um parque temático literário.

Entre os autoproclamados guardiões da liberdade de expressão, estava claro o suficiente que o prêmio de Mo Yan não havia enviado nenhuma mensagem ao Partido, exceto talvez uma de afirmação. O clamor que se seguiu ao anúncio pareceu vir de outra época, relembrando os debates sobre a literatura soviética durante a Guerra Fria. Ai Weiwei chamou Mo Yan de "vendido", enquanto uma laureada anterior e ex-moradora do socialismo de estado, Herta Müller, chamou a escolha de "uma catástrofe". No Facebook, Salman Rushdie disse que Mo Yan era como "Mikhail Sholokhov, um bode expiatório do regime" (Rushdie talvez não soubesse que Sholokhov é o escritor russo favorito de Mo Yan). Só que Pankaj Mishra, escrevendo no Guardian, adotou uma abordagem diferente. Ele perguntou por que escritores sob regimes autoritários eram sempre chamados a prestar contas de sua cumplicidade, enquanto escritores em democracias liberais raramente eram acusados ​​do mesmo: o próprio Rushdie era um proponente de um "caso liberal" para a aventura americana no Iraque. O avatar tagarela e volúvel de Rushdie no Twitter descreveu a observação como "o lixo mais recente de Mishra".

Os poucos críticos que realmente leram os romances fizeram a mesma pergunta: Mo Yan condenou abertamente as atrocidades do regime? Ele não o fez, eles disseram. Pelo contrário: ele evitou qualquer menção a elas. Perry Link, um estudioso da literatura chinesa moderna, argumentou que Mo Yan disfarçou atrocidades como a fome do Grande Salto Adiante com episódios cômicos: ele fez piadas sobre camponeses tendo que comer comidas estranhas, mas não disse que trinta milhões morreram de fome. Anna Sun, na Kenyon Review, sugeriu que a própria linguagem de Mo Yan estava "doente" pelo maoísmo, assim como grande parte da escrita chinesa depois de 1949 inevitavelmente estava: até mesmo Ma Jian, um exilado cujos romances abordam tópicos tabu como a política do filho único (em The Dark Road) e os protestos da Praça da Paz Celestial (em Coma de Pequim), foi infectado pelo maoísmo. (O único escritor puro sob essa rubrica foi Ha Jin, que, disse Link, "escreve apenas em inglês, em parte para ter certeza de que mesmo influências subconscientes não afetem sua expressão".)

Os defensores de Mo Yan há muito alegam que sua intenção política não pode ser capturada por conversas sobre dissidência; nem ele faz representações realistas da história chinesa. Charles Laughlin, outro estudioso da literatura chinesa, respondeu a Link argumentando que as provocações jocosas de Mo Yan eram parte de sua inventividade e funcionavam como sátira. A principal reivindicação para a importância de Mo Yan, nessa visão, não é se ele desafia ou conspira com o regime, mas sim a ousadia de sua narração, de cautela ao vento. "Realismo alucinatório" foi a frase que o comitê do Nobel usou em sua citação (a Kenyon Review, menos hospitaleiramente, chamou-a de "confusão de palavras"). Um desrespeito ilimitado ao tom é de fato a assinatura de Mo Yan: evidência, para seus defensores, de sua intenção subversiva. Em cada um de seus livros, e cada vez mais nos romances posteriores e mais longos, a característica de Mo Yan é minar a solenidade com humor grosseiro e sobrepor episódios de paixão sexual com violência lúgubre. Ele se deleita em símiles, estendendo-os até onde eles aparentemente podem ir, então os levando mais longe. Em A República do Vinho: ‘Ding Gou’er podia ver os pelos do nariz do homem, arqueando-se para cima como rabos de andorinha. Uma andorinha negra e maligna deve estar escondida em sua cabeça, onde construiu um ninho, pôs seus ovos e criou seus filhotes. Mirando na andorinha, ele puxou o gatilho. Puxou o gatilho. O gatilho. Pow – pow – pow!’ Mo Yan menciona Faulkner e García Márquez como escritores que o inspiraram, mas ele admite ter ‘lido pouco de suas obras’, uma confissão da qual há poucas razões para duvidar. Suas dívidas com a literatura chinesa — os contos mágicos e animais de Pu Songling do século XVII Strange Tales of Liaozhai, as narrativas de bandidos desconexas incorporadas em Water Margin de Shi Nai'an do século XIV, o picaresco de Journey to the West de Wu Cheng'en do século XVI — são mais aparentes. Todas essas táticas e influências constituem sua escrita autodescrita como "camponesa".

Ao falar sobre si mesmo, Mo Yan enfatiza rotineiramente sua própria inocência, sua inocência intransigente quando se trata de forma literária: tudo resultado de uma infância difícil, na qual ele foi privado de educação, mas foi incutido com respeito pelas tradições rurais de contar histórias orais. Crescendo no nordeste rural da China — em Gaomi Township, o cenário de grande parte de sua ficção — Guan Moye (Mo Yan é um pseudônimo que significa "não fale") suportou longos períodos de fome durante a fome do final dos anos 1950. Durante a Revolução Cultural, ele foi expulso da escola primária por uma brincadeira (porque ele vinha de uma família de proprietários de terras de classe média, ele não foi autorizado a voltar) e entrou no mercado de trabalho. Imagens de fome — assim como seu oposto moral, a gula — são abundantes em seu trabalho, e apesar das alegações de Link, há uma série de referências em seus escritos aos terríveis custos do Grande Salto Adiante. Na história "Criança de Ferro", por exemplo, os jovens protagonistas, por falta de mais nada para comer, aprendem a gostar de mastigar barras de metal e parafusos. Um ponto de virada para Mo Yan veio quando ele se juntou ao Exército de Libertação Popular (ELP) em 1976, ano em que Mao morreu, e foi posteriormente admitido no Colégio de Arte do ELP, onde no clima mais aberto da década de 1980 ele ouviu palestras de escritores famosos. "Ganhei muito durante aquele semestre", ele escreveu. "Só então eu soube o que "literatura" significava." E ainda assim, por seu próprio relato, ele parece não ter aprendido completamente. Embora ele tenha feito um mestrado em escrita na Universidade Normal de Pequim, ele continuou a professar sua ignorância de "teoria". "Sou um escritor sem treinamento teórico", ele escreve, "mas possuo uma imaginação fértil... Posso ser ignorante de conceitos literários elevados, mas sei como contar uma história fascinante, algo que aprendi quando criança com meu avô, minha avó e uma variedade de contadores de histórias de aldeia. Os críticos que baseiam suas visões da literatura em teorias científicas de um tipo ou outro não pensam muito de mim. Mas vamos vê-los escrever uma história que capture a imaginação do leitor." Toda a persona cuidadosamente administrada de Mo Yan está nessas frases: a defensiva ferida sobre suas capacidades de contar histórias e origens camponesas, combinada com uma leve arrogância sobre sua falta de cultivo e infantilidade. Sua mensagem parece projetada para antecipar até mesmo a possibilidade de interpretação crítica.

Quando sua primeira obra de ficção significativa, a novela Red Sorghum, foi publicada na revista People’s Literature em 1986, foi muito bem recebida na China. Uma saga de uma família Gaomi resistindo aos invasores japoneses na década de 1930, teve alguns floreios modernistas, com mudanças repentinas para frente e para trás na cronologia. Mas suas principais atrações eram sua violência sensacionalista e seu desrespeito às convenções temáticas. O "romance histórico revolucionário" (geming lishi xiaoshuo) sobre a resistência heróica aos japoneses era de rigueur durante a Revolução Cultural, mas os heróis padrão eram partidários comunistas austeros, em vez dos bandidos e foras da lei que povoavam Red Sorghum. Os personagens de Mo Yan sucumbem a forças mágicas: em uma seção, um personagem é possuído pelo espírito de uma doninha. Ao contrário dos heróicos comunistas, eles não eram severamente celibatários e pareciam ter relações sexuais estranhamente etéreas: "Sua alma tremeu enquanto ela olhava para seu torso nu... ela tremia da cabeça aos pés, uma bola de fogo amarela e perfumada crepitava e chiava diante de seus olhos... Eles araram as nuvens e espalharam chuva no campo, adicionando uma pátina de vermelho brilhante à rica e variada história do Nordeste de Gaomi Township." Frase por frase, esta cena é uma mistura difícil: aquela alma vibrante e o "torso nu" ressoam como versos de um romance; a bola de fogo "perfumada", com sua curiosa sinestesia, é uma estranheza espacial; a "rica e variada história do Nordeste de Gaomi Township" serviria para um guia. Mo Yan é melhor quando há violência envolvida, como quando um homem é golpeado com baionetas pelos japoneses em um pântano congelado, e ‘o sangue de seus ferimentos perfurou o gelo abaixo dele com seu calor’. No resto do tempo, seu interesse pelo solo se manifesta em sua atenção aos caules onipresentes do sorgo, sua rigidez e vermelhidão criando um símbolo com um excesso de obviedade: em um ponto, os caules do sorgo ‘estão rindo de coração, eles estão chorando lamentavelmente. Suas lágrimas são gotas de chuva batendo contra o banco de areia desolado de seu coração’.

Red Sorghum é um livro conservador: ele destrói uma tradição sobre a resistência apenas para sustentar uma mais primitiva. É um panegírico para tipos camponeses robustos e vigorosos, e um lamento pela degeneração dos homens chineses. Os jovens da geração do avô do narrador eram tão "resistentes quanto o sorgo do Nordeste Gaomi", ele diz, "o que é mais do que pode ser dito sobre nós, fracos, que os sucedemos". Apesar da violência casual da vida rural, Mo Yan nunca deixa de celebrar a bondade essencial do camponês, ou de condenar os males feminilizantes da modernidade e da urbanização: "Agora eu estava diante do túmulo da Segunda Avó, afetando a exibição hipócrita de afeição que aprendi na alta sociedade, com um corpo imerso por tanto tempo na imundície da vida urbana que um fedor fétido escorria dos meus poros." Discussões ansiosamente esperançosas sobre as perspectivas de um "modernismo" chinês (xiandai pai) proliferaram no início dos anos 1980 e a literatura assumiu um aspecto correspondentemente utópico. Na segunda metade da década, com as reformas urbanas vacilantes e a corrupção se espalhando na burocracia do Partido, muitas tentativas autoconscientes de criar um modernismo chinês pareceram falsas aos críticos: elas passaram a ser condenadas como "pseudomodernismo". Um impulso de retorno às raízes - o movimento xungen - tomou conta. Mas Red Sorghum estava confuso o suficiente para ser visto como sintetizador de ambas as preocupações. Parecia modernista, do mesmo modo que Cem Anos de Solidão (publicado em chinês em 1984) era modernista; mas ao elogiar a inatacável cordialidade dos camponeses chineses, também buscava as raízes de um passado mais simples antes do comunismo. O próprio Mo Yan parecia não saber qual modo estava seguindo, e não pela última vez sua ingenuidade ajudou seu livro a se tornar um sucesso.

O romance que se seguiu, The Garlic Ballads (1988), era diretamente político, uma obra de protesto, uma anomalia. Seu enredo foi inspirado por um incidente real: na província de Shandong, autoridades corruptas fizeram os fazendeiros cultivarem alho, mas depois os forçaram a deixar a colheita apodrecer em vez de vendê-la no mercado. Os fazendeiros responderam atacando a sede local do Partido e queimando-a até o chão. Vários incendiários foram presos. Mo Yan preencheu o conto com personagens, adicionou uma história de amor e a realocou para Gaomi; ele escreveu o romance em um mês, em um acesso de raiva. As imagens de sofrimento são mais profundas do que antes. Em um caso, um manifestante é algemado a uma árvore e rói "freneticamente a casca, que esfregou seus lábios até que a árvore ficou manchada com seu sangue... Ele engoliu a mistura amarga de saliva e suco de casca, que trouxe um frescor notável à sua garganta". Comer casca era uma das imagens comuns da fome ("Nenhuma árvore no mundo sofreu tanto quanto as de nossa aldeia", escreveu Mo Yan sobre sua infância), e ele deixa claro aqui que a era da reforma não mudou a opressão do campesinato. Mas seu momento político não durou muito. Ele entrou na Universidade Normal de Pequim em 1988, em uma época - após a expulsão do reformador Hu Yaobang pelo Partido em 1986 - quando um movimento estudantil estava começando a crescer. Em seu livro de memórias, de outra forma evasivo, Change, Mo Yan deixa escapar que "com as tensões aumentando diariamente... poucos de nós sentimos vontade de ir às aulas". Qual papel ele desempenhou no movimento além disso não está claro. Após a repressão de 1989, The Garlic Ballads foi temporariamente banido. Mas, diferentemente de muitos dos manifestantes, Mo Yan ainda estava livre e trabalhando em um novo romance totalmente diferente.

Em 1992, ele publicou The Republic of Wine, ainda seu livro mais ambicioso. Ele apareceu pela primeira vez em Taiwan antes de encontrar uma editora no continente. Howard Goldblatt sugere que esse fato revela o quão "extremamente subversivo" o romance era considerado — uma alegação tendenciosa, já que as autoridades no continente poderiam facilmente ter suprimido o romance se o tivessem considerado realmente subversivo. Qualquer protesto que Mo Yan pretenda registrar contra sua sociedade em The Republic of Wine, ele se afoga completamente em novas táticas: piadas escatológicas proliferantes, conceitos metaficcionais árduos, alusões infinitas à retórica chinesa e comunista clássica. Afogamento é um motivo importante e ponto da trama: o protagonista, Ding Gou’er, um investigador oficial enviado à província mítica de Liquorland (jiuguo) para investigar acusações de canibalismo comercial organizado pelos quadros locais, termina o romance ignominiosamente, sufocado em um tanque de vômito e excremento enquanto grita: ‘Eu protesto, eu pro—.’ A República do Vinho é dividida entre seu enredo principal, um pastiche de história de detetive, e uma segunda metanarrativa na qual ‘Mo Yan’, um autor que vive em Pequim, corresponde-se com Li Yidou, um estudante de doutorado em ‘Estudos de Bebidas’ em Liquorland. O primeiro enredo segue a narrativa habitual de Mo Yan sobre o declínio masculino. Ding Gou’er falha quase imediatamente em cumprir sua tarefa: ele se permite ficar bêbado em um banquete oferecido por Diamond Jin, o oficial que ele deveria estar investigando, e não se abstém de comer o que parece ser um bebê servido a ele por Jin (o romance deliberadamente retém qualquer evidência firme de que o canibalismo esteja realmente ocorrendo); ele se perde em um caso com uma mulher que parece ser uma motorista de caminhão, mas acaba sendo uma agente dos oficiais de Liquorland; e prestes a pegar os canibais em flagrante, ele se afoga em merda. Em todos os outros capítulos, Li Yidou discute a arte da ficção com 'Mo Yan', enquanto também o enche de contos, cada um dos quais parece embutido no romance. As primeiras histórias são deliberadamente ruins, discursos digressivos, embora com o tempo elas se transformem em histórias um pouco melhores sobre canibalismo, alegorias veladas para a descida do homem à barbárie. Na seção final, 'Mo Yan' chega em Liquorland e bebe até ficar em estupor, sua narração arrastando-se em um longo e não pontuado monólogo Molly Bloomesco (uma referência que ele não conseguiu omitir: "Droga, alguns dirão que estou obviamente imitando o estilo de Ulisses nesta seção. Quem se importa que eu esteja bêbado.")

Com suas constantes e abruptas mudanças entre níveis de narração e seu excedente de piadas de peido, o romance é um trabalho árduo. Em parte sobre uma burocracia saturada vivendo às custas de um campesinato pobre, mas mais completamente sobre a decadência de uma sociedade inteira, A República do Vinho exala uma gordura, exaustão e decadência próprias. O livro é cheio de repetições internas: versos que aparecem pela primeira vez como sátira retornam como piadas metaficcionais recônditas, despojadas de sua intenção satírica, ou simplesmente como fracassos. Então Ding Gou'er pensa consigo mesmo (em um uso um tanto irônico da retórica comunista) que "a longa história de homens e mulheres ... era na verdade muito parecida com a história da luta de classes: às vezes os homens são vitoriosos, às vezes as mulheres, mas no final o vencedor também é o vencido". Mas em uma meta-história de Li Yidou, um punhado de páginas depois, a diferença entre a esposa e a sogra do narrador "naturalmente lembrava a luta entre as classes". Em nove casos separados, a crescente conscientização de Ding sobre sua situação é comparada a uma borboleta rastejando para fora de um casulo. A imagem não se torna mais fascinante ao se reencontrar. Se o livro pretendia ser "extremamente subversivo", os pleonasmos e repetições de Mo Yan o encobrem bem.

No entanto, The Republic of Wine teve um efeito catalisador na carreira de Mo Yan. Isso o fez acreditar que poderia escrever romances grandes e ambiciosos do tipo que muitos de sua geração — Yu Hua, Su Tong, Wang Anyi — escreveriam nas décadas de 1990 e 2000. Big Breasts and Wide Hips, uma saga familiar que vai da virada do século XX até o início do período pós-Mao, confirma que essa capacidade estava além dele. Em vez de fugir da morte e da atrocidade, como afirmam os críticos de Mo Yan, o romance é sobrecarregado por elas. Cheio, como um romance chinês clássico, de uma enorme rede de personagens de muitas famílias, Big Breasts and Wide Hips entra em dificuldade narrativa para acompanhá-los todos contra o contexto histórico agitado. O romance começa a descartar pessoas logo no início; mais personagens chegam constantemente como trabalhadores temporários para manter o ritmo enquanto outros são despachados. Em um caso, depois que a mãe do narrador é estuprada em grupo, o pai do narrador, um pastor sueco, se atira de uma torre de sino, despencando "como um pássaro gigantesco com asas quebradas, espirrando seu cérebro como um monte de merda de pássaro quando ele atinge a rua abaixo". Mo Yan imaginou o romance como um hino à maternidade e, em outro de seus prefácios abrangentes, Goldblatt o chama de uma crítica ao "patriarcado fracassado". Mas o caminho de Mo Yan para o épico filogínico de sua imaginação é tipicamente indireto: seu narrador é um homem, Shangguan Jintong, cuja falha fatal é uma fixação pelos seios das mulheres e uma incapacidade de se livrar deles, mesmo na idade adulta. Isso claramente deveria ser uma indicação complicada do desenvolvimento interrompido do narrador, um substituto para a imaturidade de uma nação inteira: o drama da masculinidade murcha da China se repetiu mais uma vez. Mas, na prática, significa simplesmente páginas de seios, "empinados", "arqueados" e "empinados":

Enquanto seu corpo se movia para cima e para baixo, aquelas duas cabaças cheias em seu peito saltavam, me convocando, me passando um sinal secreto. Às vezes, elas jogavam as duas cabeças parecidas com tâmaras juntas, como se estivessem se beijando ou sussurrando uma para a outra. Mas na maioria das vezes elas estavam saltando para cima e para baixo, saltando e chamando, como um par de pombas brancas felizes.

Jintong vê sua irmã Pandi com as roupas molhadas, "grudando na pele"; ele vê que ela também tem "mamilos de tâmara", que ele "mal consegue evitar correr para morder e acariciar". Na década de 1980, Jintong é finalmente nomeado gerente de uma loja de sutiãs. "Fui um idiota todos esses anos", sua mãe chora frustrada, "mas finalmente entendi que é melhor deixar uma criança morrer do que deixá-la se transformar em uma criatura inútil que não consegue tirar a boca do mamilo de uma mulher! ... Eu quero um homem que se levante para mijar!" Mo Yan dedicou o romance à sua mãe.

A obsessão pelos seios não é peculiar a Big Breasts and Wide Hips. Apenas incipiente em Red Sorghum e The Garlic Ballads, o fascínio de Mo Yan começa a atingir a maturidade em The Republic of Wine, finalmente florescendo nos romances subsequentes ("como uma borboleta emergindo", etc.). Os narradores de Mo Yan também são generosos com pênis, geralmente de meninos, sempre chamados (na tradução invariável de Goldblatt) de "pequeno pau". Sorgo Vermelho: ‘Com seu encorajamento, Bela, que se tornaria minha mãe, despertou o pequeno pau ferido, feio e de aparência estranha do Pai.’ The Garlic Ballads: ‘Então ele mirou seu pequeno pau tenso para o céu e disparou um jato de urina amarela para cima.’ Big Breasts and Wide Hips: ‘Ela bagunçou meu cabelo com uma mão ossuda, então beliscou minha orelha, beliscou meu nariz e até mesmo alcançou entre minhas pernas para sentir meu pequeno pau.’ Em The Republic of Wine, Mo Yan acha a imagem de um ‘pequeno pau cutucando como uma crisálida rosa e sinuosa de bicho-da-seda’ digna o suficiente para ser repetida em Big Breast and Wide Hips: ‘O que ela viu foi o pequeno pau em pé como uma crisálida de bicho-da-seda.’ Em Life and Death Are Wearing Me Out, ele nos dá uma combinação de seios e paus: ‘Vou ser honesto com você. Quando ela pressionou minha cabeça contra seu peito, meu pequeno pau enrijeceu.’

Por mais que seus personagens repitam entorpecidamente as falas uns dos outros em sua ficção, os romances recentes de Mo Yan revelam sinais de que seu "dom" de contar histórias deixou de render. Sandalwood Death (2001), um romance histórico sóbrio que o próprio Mo Yan descreve como um ‘passo para trás’ em sua ficção, se passa durante a Rebelião dos Boxers. Ele dedica o episódio mais longo do livro para descrever a tortura de um rebelde pela ‘morte em fatias’, que exige que o carrasco mate o prisioneiro lentamente, com quinhentos cortes, como um espetáculo diante do magistrado nacional. No 51º corte, Mo Yan não deixa de descrever o pênis da vítima sendo jogado fora, e como ‘um cachorro magro e sarnento que surgiu do nada o agarrou e disparou em meio à formação militar, onde começou a latir enquanto os soldados o chutavam.’ Pow! reutiliza a sátira da gula de The Republic of Wine: este narrador também tem um desejo insaciável por carne. Cortando a sátira está a velha obsessão por seios: "Eu esfrego minha barriga ligeiramente protuberante enquanto o som de raposas recém-nascidas sugando as tetas de suas mães chega de fora. O som de gatinhos mamando no tronco da árvore está além do meu alcance auditivo, mas acho que realmente os vejo mamar. O que dá origem a uma forte vontade de mamar. Mas onde há um peito para mim?"

O que ele chama de "regressão de espécies" — um conceito pseudobiológico, como algo saído de Zola — é para Mo Yan uma idée fixe de rigidez particular. Sua noção de crítica social parece exigir que seus livros exemplifiquem a coisa que está sendo criticada de uma forma ou de outra, um impulso que ele parece associar ao seu dom de contar uma "história encantadora". Mas para vê-lo como um escritor político, você tem que interpretar a perturbação de seus romances. Sua China é de fato um lugar aterrorizante: uma terra de mulheres com seios de manga e mamilos com boca de ouriço, cercadas por homens glutões admiradores com pequenos pintos em constante atenção. A terra está em declínio porque seus homens estão cobertos pela sujeira escorrendo da vida urbana. Meninos meio desenvolvidos, ainda mamando, indignos de suas Segundas Avós. Quando não estão procurando um peito, eles comem e bebem em excesso. Se ao menos pudessem aprender a se afastar das mulheres e se tornarem fortes — resistentes como os talos do sorgo. ‘Na superfície’, ele disse sobre seu trabalho, ‘cada um desses romances parece ser radicalmente diferente dos outros, mas em seu cerne eles são muito parecidos; todos eles expressam um anseio pela boa vida de uma criança solitária com medo de passar fome.’ O Nobel está em mãos, e o Partido está atrás dele. A boa vida é dele. Mo Yan não corre perigo de passar fome, ou de se tornar qualquer coisa além de uma criança.

15 de agosto de 2013

Eles sabem muito mais do que você pensa

"A NSA e seus antecessores têm obtido acesso secreto e ilegal às comunicações dos americanos por quase um século."

James Bamford



Tradução / No meio de maio, Edward Snowden, um norte-americano na casa dos vinte anos, caminhou pela entrada de ônix do Mira Hotel na Nathan Road, em Hong Kong, e fez check-in. Carregava uma pequena mala de viagem preta e tinha algumas pastas com laptops penduradas nos seus ombros. Dentro destas pastas havia quatro computadores que continham alguns dos segredos mais preciosos de seu país.

Alguns dias depois dos documentos de Snowden terem aparecido no The Guardian e no The Washington Post, revelando muitos dos inúmeros programas domésticos de vigilância da Agência Nacional de Segurança (National Security Agency, ou NSA), as livrarias notaram um aumento súbito nas vendas do clássico romance distópico de George Orwell, intitulado 1984. Na Amazon.com, o livro foi parar na lista dos “Movers & Shakers” e disparou 6021% em um único dia. Escrito há 65 anos, ele descreve uma sociedade totalitária fictícia, onde um líder sombrio conhecido como “Big Brother” controla sua população através de vigilância invasiva. “As teletelas,” escreveu Orwell, “têm microfones e câmeras escondidos. Estes dispositivos, ao lado de informantes, permitem que a Polícia do Pensamento espione a todos.”

Hoje, como os documentos de Snowden deixam claro, é a NSA que rastreia ligações telefônicas, monitora comunicações e analisa o pensamento das pessoas através de dados mapeados de pesquisas do Google e outras atividades online. “Qualquer som que Winton fizesse, um pouco mais alto que um sussurro, poderia ser captado por eles,” Orwell escreveu sobre seu protagonista Winston Smith.

Não havia, é claro, nenhuma maneira de saber se você estava sendo vigiado em um dado momento. Com qual frequência, ou em qual sistema a Polícia do Pensamento plugaria em qualquer rede individual era um trabalho de adivinhação. Era até concebível que eles espionassem a todos o tempo todo. Mas de qualquer forma, eles poderiam se conectar-se a você quando quisessem. Você tinha que viver – do hábito que virou instinto — na suposição de que todo o som feito era escutado e de que, exceto na escuridão, cada momento era examinado.

É claro que os Estados Unidos não são uma sociedade totalitária e que não há equivalentes do “Big Brother” que a comandem, como mostram as informações de Snowden, que foram espalhadas pelo mundo. Nós sabemos pouco sobre os usos que a NSA faz da maioria das informações que lhe são disponíveis – ela alega ter exposto uma série de conspirações terroristas. Ainda estão por aparecer os efeitos que essas atividades terão nas vidas da maioria dos cidadãos. Comitês do Congresso e uma Corte Federal especial estão encarregadas de inspecionar esses trabalhos, apesar de a Corte estar comprometida com o sigilo e de ela só poder receber apelações do governo.

Mesmo assim, a inteligência norte-americana também parece ter adotado a ideia de Orwell de duplipensar – “estar consciente da veracidade completa,” ele escreveu, “enquanto conta cuidadosamente mentiras construídas.” Por exemplo, James Clapper, o diretor da inteligência nacional, foi perguntado, em uma audiência no Senado realizada em março, se “a NSA coleta algum tipo de informação sobre centenas de milhões de americanos.” A resposta de Clapper: “Não, senhor… Não conscientemente.”

Três meses depois, seguido das revelações do programa de escutas telefônicas no qual a NSA coleta informações sobre ligações – os dois números envolvidos em cada chamada e a duração delas – sobre centenas de milhões de americanos, Clapper repensou o que disse. Ele afirmou que sua resposta anterior não era uma mentira; ele apenas optara responder “da maneira menos inverídica.” Com um conceito tão orwelliano da verdade agora sendo usado, é útil prestar atenção no que o governo Obama vem dizendo publicamente, ao longo dos anos, sobre suas atividades de vigilância; e comparar com o que nós sabemos agora, através de documentos extremamente secretos e outras informações reveladas pelo ex-empregado da NSA, Edward Snowden.

Olhando em retrospectiva, a NSA e seus predecessores obtêm acesso a segredos e monitora ilegalmente as comunicações há quase um século. No dia 1o de Julho de 1920, um homem magro, careca, de trinta e poucos anos mudou-se para uma casa de quatro andares no endereço 141 East 37th Street em Manhattan. Este foi o nascimento da Black Chamber (Câmara Negra), o mais antigo antecessor da NSA e que ficaria escondido em um discreto predinho de tijolos. Mas seu chefe, Herbert O. Yardley, tinha um problema. Para reunir a inteligência para o governo de Woodrow Wilson, ele precisava de acesso aos telegramas que entravam, saíam e que cruzavam o país. Mas por conta de uma versão precária das Leis de Comunicação (Radio Communications Act), tal acesso era ilegal. Com um aperto de mão, no entanto, Yarley convenceu Newcomb Carlton, o presidente da Western Union, a garantir o acesso secreto à Black Chamber diariamente para as mensagens privadas que transitavam em suas redes – a Internet da época.

Por boa parte do século seguinte, a solução seria a mesma: a NSA e seus predecessores entrariam em acordos secretos ilegais com as empresas de telecomunicação para obter acesso às comunicações. Eventualmente com o codinome “Project Shamrock” o programa finalmente chegaria a um impasse que levaria à sua suspensão em 1975, quando um comitê do Senado que estava investigando abusos dos agentes de inteligência descobriu o esquema. O senador Frank Church, o presidente do comitê, disse que o programa da ANS foi “provavelmente o maior programa de interceptação governamental já realizado”.

Como resultado de décadas de vigilância ilegal da ANS, em 1978 foi assinada a Lei de Supervisão da Inteligência Estrangeira (Foreign Intelligence Surveillance Act, FISA). Ela criou a Corte de Supervisão de Inteligência Estrangeira (Foreign Intelligence Surveillance Court, FISC). Seu objetivo era exigir, pela primeira vez, que a NSA tivesse uma aprovação legal para espionar os cidadãos. Embora a corte raramente tenha negado uma requisição — ou “ordem”, como são chamados os pedidos de vigilância — serviu ainda assim como uma salvaguarda razoável, protegendo a população de uma agência com um passado problemático e com tendência de ultrapassar os limites de espionagem, exceto quando verificada.

Durante um quarto de século, as regras foram seguidas e não houve problemas relacionados à NSA. Mas em seguida aos ataques do 11 de Setembro, o governo Bush decidiu desviar-se ilegalmente da corte e começou seu programa de escutas telefônicas ilegais. “Basicamente todas as regras foram jogadas pela janela; qualquer desculpa passou a ser usada para para contornar e corte e espionar cidadãos,” disse-me Adrienne J. Kinne, que em 2001 tinha 24 anos e era operadora de interceptação de voz que conduziu várias das escutas. Nem ela nem seus superiores precisaram de uma permissão para cada interceptação. “Era incrivelmente desconfortável ouvir conversas pessoais privadas,” ela disse. “E é como mexer nas coisas de alguém, encontrar um diário pessoal e lê-lo.”

Durante todo este tempo, o governo Bush dizia à população o oposto: que, a cada vez que um cidadão tornava-se alvo, era preciso obter uma permissão de vigilância. “Sempre que você ouvir o governo americano falando sobre uma escuta, ela requer uma ordem da corte,” disse o Presidente George W. Bush a uma multidão, em 2004. “À propósito, nada mudou. Quando falamos sobre perseguição de terroristas, nós estamos falando em primeiro lugar em obter uma permissão da corte para poder fazê-lo.” Após a exposição da operação no The New York Times em 2005, no entanto, ao invés de fortalecer os controles que orientavam as espionagens da NSA, o Congresso votou para enfreaquecê-los, transformando em lei, como emendas ao FISA, o que anteriormente era ilegal.

Ao mesmo tempo, ao invés de processar os dirigentes de empresas de telecomunicações, por colaborarem ilegalmente com o programa de espionagem, ou pelo menos exigir que prestassem contas publicamente, o Congresso simplesmente garantiu a eles imunidade — não apenas nas acusações criminais, mas também nos processos civis. Assim, há praticamente um século, as companhias de telecomunicação têm tido permissão para violar a privacidade de milhões de norte-americanos impunemente.

Com o início do governo Obama os poderes da NSA continuaram a se expandir, ao mesmo tempo em que os dirigentes da Casa Branca e os da NSA mantinha a população enganada sobre os limites das espionagens. Além da negação de James Clapper, que mencionei, o general Keith Alexander, diretor da NSA, negou de modo enfático que sua agência mantivesse gravações de milhões de americanos. Em março de 2012, a revista Wired publicou uma matéria de capa que escrevi, sobre o novo data center da NSA, de 93 mil m2 que estava sendo construído em Bluffdale, Utah. No artigo, entrevistei William Binney, um ex-official de alta patente da NSA que era largamente responsável por automatizar a rede de escutas globais. Ele saiu da agência em 2001 em protesto, depois ver o sistema pensado principalmente para ameaças estrangeiras voltar-se internamente para a população americana. Na entrevista, contou como a agência estava se infiltrando nas comunicações do país e nas redes de Internet. Também revelou que estavam secretamente obtendo acesso ilitimitado a bilhões de gravações telefônicas de americanos, incluindo as da AT&T e da Verizon. “Eles estão armazenando todas as informações que conseguem,” disse.

Nos meses em que se seguiram, o general Alexander negou repetidas vezes as acusações de Binney. “Não, nós não mantemos informações sobre cidadãos americanos,” ele disse à Fox News. E, em uma conferência no Aspen Institute, afirmou, “Pensar que estamos coletando informações de cada pessoa nos Estados Unidos… isso seria contra a lei.” Ele acrescentou, “O fato é que nós somos uma agência de inteligência estrangeira.”

Mas os documentos apresentados por Edward Snowden mostram que a NSA possui um enorme programa para coletar as gravações de telefone de todos os clientes da Verizon, incluindo ligações locais, e presume-se que haja um acordo semelhante com a AT&T e outras empresas. Registra-se quem ligou para quem e quando, não do conteúdo das conversas, embora a ANS também tenha, por outros métodos, acesso ao conteúdo das chamadas. Mas a ANS tem, diariamente, acesso a praticamente todos os registros telefônicos de todas as pessoas, seja de um aparelhos celulares ou fixos, e pode armazená-los por prospecção de dados (data-mining), mantendo-os indefinidamente. Os documentos de Snowden descrevendo o programa PRISM mostram que a agência também está acessando os dados em nove grandes empresas de Internet nos Estados Unidos, incluindo Yahoo e Google.

As declarações e os documentos de Snowden ampliam em muito a compreensão de como a NSA conduz seus grampos telefônicos e os programas de data-mining e o quão enganosa têm sido tanto a agência quanto o governo Obama, ao descreverem as suas atividades. No vídeo de uma entrevista feita em sua sala no Mira Hotel, Snowden falou sobre a extensão das capacidades da NSA. “Qualquer analista, a qualquer tempo pode rastrear qualquer um, em qualquer lugar,” ele disse.

Se essas comunicações serão captadas, depende do alcance do sensor da rede e com quais autoridades um analista específico está trabalhando. Nem todos os analistas têm o poder de rastrear tudo. Mas eu, sentando à minha mesa, tinha as autorizações que poderiam grampear e rastrear qualquer um, desde você ou seu contador até um juiz federal ou quem sabe até o presidente, se eu tivesse o e-mail pessoal dele.

O que Snowden estava discutindo é a maneira como os analistas na NSA podem colocar tais informações como nomes, números de telefone e endereços de e-mail na lista de alvos, provocando interceptações nas comunicações que possuíssem tais seletores. Ele parecia estar indicando – embora isto continue a ser oficialmente confirmado – que, de acordo com a FISA, seria necessária uma ordem judicial da corte para inserir um cidadão na lista de alvos; mas que um analista tinha a capacidade de contornar unilateralmente o procedimento, sendo necessário apenas listar um nome ou um endereço de e-mail na lista de alvos. Para entender o que Snowden estava dizendo, é necessário discorrer um pouco sobre como a NSA conduz suas escutas telefônicas.

Durante a última década, a agência tem trabalhado secretamente para obter acesso a praticamente todas as mensagens que entram, que saem ou que circulam no país. O motivo principal, de acordo com o rascunho de um relatório geral ultra secreto da NSA, produzido por um inspetor e que vazou através de Snowden, é que aproximadamente um terço de todas as chamadas telefônicas internacionais do mundo são efetuadas, recebidas, ou transitam nos Estados Unidos. “A maioria das chamadas telefônicas internacionais são encaminhadas através de um pequeno número de switchers [interruptores] ou ‘pontos de estrangulamento’ no sistema de comunicação telefônica internacional, no caminho até seu destino final,” diz o relatório. “Os Estados Unidos são uma tremenda encruzilhada no tráfego da telefonia comutada internacional.” Ao mesmo tempo, de acordo com o relatório de 2009, praticamente todas as comunicações na Internet em todo o mundo atravessavam os país. Por exemplo, o relatório observa que durante 2002, menos de 1% da largura da banda da Internet no mundo todo – isto é, a ligação internacional entre a Internet e os computadores — “era entre duas regiões que não incluíam os Estados Unidos.”

O acesso a estas informações é possível através de uma combinação de técnicas. Com a mais efetiva delas, a NSA pode obter acesso direto aos cabos de fibra ótica que hoje transportam a maioria dos tipos de informações sobre comunicações. De acordo com um slide revelado por Snowden, a operação de infiltração nos cabos tem o codinome de “UPSTREAM” e é descrita como a “captura de comunicações e infraestrutura nos cabos de fibra, conforme as informações fluem”. Também aparenta ser muito mais secreto e muito mais invasivo do que o PRISM, programa revelado por Snowden. Embora o PRISM dê à ANS acesso às informações de empresas de Internet individuais, como Yahoo, Google e Microsoft, as companhias alegam que não deram à Agência acesso direto a seus servidores. Através da UPSTREAM, no entanto, a Agência obtêm acesso direto aos cabos de fibra ótica e à insfraestrutura de apoio que porta quase todo o tráfego de Internet e de telefone do país.

Como parte desse programa de infiltração nos cabos, a NSA secretamente instalou um grande número de filtros computadorizados nas infraestruturas de telecomunicação por todo o país. De acordo com o relatório geral que foi vazado, a agência tem acordos cooperativos com as três maiores empresas de telefonia do país. Embora o relatório disfarce seus nomes, elas provavelmente são AT&T, Verizon e Sprint:

A ANS determinou que sob a autorização, poderiam obter acesso a aproximadamente 81% das chamadas internacionais para e dos Estados Unidos, através de três corporações sócias: Companhia A tinha acesso a 39%, a Companhia B 28% e a Companhia C 14%.

Os filtros estão localizados em pontos de junção chave, conhecidos como “switchers”. Por exemplo, várias comunicações – de telefone e Internet – do e para o Noroeste dos Estados Unidos passa por um prédio de nove andares quase sem janelas na Folsom Street, número 611 em São Francisco. Este é o “switching center” regional da AT&T. Em 2003, a ANS construiu uma sala secreta no local e a preencheu com computadores e softwares de uma companhia chamada Narus. Estabelecida em Israel por israelenses, e agora pertencente à Boeing, a Narus especializou-se em programas de espionagem, equipamentos que examinam tanto metadados – nomes e endereços de pessoas que se comunicam pela Internet – quanto o conteúdo dos tráfegos digitais, como e-mails, sendo capaz de dar zooms sobre o passado na velocidade da luz.

A agência também tem acesso aos metadados do telefone – os números chamados e os que fazem a chamada, além de outros detalhes – de todos os cidadãos. Chamadas de números de telefone que foram selecionados como alvo podem ser rastreadas diretamente para serem gravadas. De acordo com William Binney, o ex-alto funcionário da NSA, a agência estabeleceu entre dez e vinte destas salas secretas, próximas aoswitchers das companhias de telefone em todo o país.

É este acesso diário aos metadados dos telefones de todos os cidadãos, sem as permissões da FISA, que a NSA e o Escritório de Inteligência Nacional tentaram esconder, quando falsamente negaram que a agência tinha gravações de vigilância de milhões. Durante anos, a agência também teve uma maciça coleção de metadados de e-mail e Internet, além de um programa de armazenamento, apesar de ter sido encerrado em 2011 por “razões operacionais e de recursos” de acordo com o diretor de inteligência nacional.

Mas de acordo com uma declaração conjunta no dia 2 de Julho, os senadores Ron Wyden e Mark Udall, o real motivo pelo qual o programa foi desativado foi que a NSA não estava apta a provar a utilidade da operação. “Nós estávamos muito preocupados com os impactos deste programa nos direitos civis, de privacidade e de liberdade dos americanos,” eles disseram, “e nós gastamos uma boa parte do ano de 2011 pressionando os oficiais da inteligência para fornecerem evidências da eficácia do programa. Eles não as conseguiram e assim o programa foi desativado naquele ano.” Os senadores ainda acrescentaram: “Também é importante notar que os agentes de inteligência fizeram declarações tanto para o Congresso como para a Corte de FISA que exageraram significativamente a eficácia deste programa. Esta experiência nos demonstra que a avaliação dos agentes de inteligência sobre a utilidade de uma coleção ou programa em particular – até mesmo as significativas – nem sempre são precisas.”

Falando no Meet the Press, Glenn Greenwald, um advogado e jornalista que escreveu a história sobre a coleção de informações telefônicas da ANS para o The Guardian,também mencionou um relatório ainda secreto de oito páginas da FISA, com opiniões da corte que, ele disse, criticavam a NSA por violação tanto da Quarta Emenda quanto do estatuto da FISA. De acordo com Greenwald, “ele especificamente disse que estão coletando transmissões em massa, multiplas conversas de milhões de americanos… e que isso é ilegal.” A NSA, disse ele, “planejava tentar ajustar este regulamento.” No mesmo programa, o parlamentar Mike Rogers, presidente republicano do Comitê de Inteligência, confirmou que a corte da FISA tinha emitido uma opinião crítica e disse que a NSA “tinha descoberto como corrigir isso.”

De acordo com a The Economist de 29 de Junho, “a NSA forneceu aos comitês de inteligência do congresso mais de cinquenta casos nos quais os programas divulgados por Snowden tinham contribuido para o “entendimento e, em muitos casos, o rompimento de conspirações terroristas nos Estados Unidos e em mais de vinte outros países.” Em um recente post no The New York Review, Kenneth Roth, diretor do Human Rights Watch e ex- procurador federal, comentou que “após exames” muitas das conspirações referidas pela ANS

parecem de fato ter sido descobertas não por conta da coleta maciça de nossos metadados, mas através de vigilância mais específica de números de telefone e endereços de e-mail particulares – o tipo de inquéritos de alvo que facilmente teriam justificado uma ordem judicial, permitindo a revisão das gravações mantidas por companhias de comunicações ou mesmo monitorando o conteúdo destas comunicações.

Nas instalações da AT&T em Folsom Street e em outras localidades, os cabos de fibra ótica que contém milhões de dados, entram no prédio e vão para um “beam-splitter” (divisor de feixe). Esse é um tipo de aparelho de prismas que produz uma duplicata, uma imagem espelhada dos dados originais. Os feixes originais, contendo as informações da Internet, continuam até onde quer que eles tenham sido originalmente destinados. O feixe em duplicata vai para a sala 641A, a sala secreta da ANS um piso abaixo, uma descoberta feita por um outro denunciante, o técnico da AT&T, Mark Klein. Lá, os equipamentos Narus escaneiam todo o tráfego de Internet para os “selecionados” – nomes, endereço de e-mail, palavras, frases, ou até mesmo indicadores que a NSA tenha interesse. Qualquer mensagem contendo um seletor é transmitida na íntegra para a NSA para mais análises, assim como os conteúdos de chamadas de telefone selecionadas. Os números selecionados são fornecidos à respectiva operadora telefônica, que dá então, à NSA, acesso para monitorá-los.

Os seletores são inseridos por controle remoto nos equipamentos da Narus por analistas da NSA sentados em suas mesas nos prédios da Agência em Fort Meade em Maryland ou em uma dúzia de outras localidades por todo o mundo. O que Snowden pareceu estar dizendo na sua entrevista é que desde que um analista possua um endereço de e-mail, por exemplo, ele pode simplesmente colocar aquela informação no sistema e recuperar o conteúdo dos e-mails enviados para e deste endereço. Não há, por seu relato, qualquer verificação judicial ou balanços para assegurar que o alvo tenha sido aprovado por uma ordem judicial da corte da FISA e não apenas por empregados da NSA. Essas alegações de Snowden e outras revelações dos documentos que ele entregou, devem ser investigadas por um seleto comitê do Congresso como o Comitê Church ou um corpo independente, como a Comissão do 11 de Setembro.

Embora o UPSTREAM capture a maioria das telecomunicações globais – cerca de 80% de acordo com Binney – ainda há lacunas na cobertura. É aí em que o programa PRIM entra. Com ele, a NSA pode ir diretamente às empresas de comunicações, incluindo as maiores companhias de Internet para conseguir o que quer que tenha faltado com o UPSTREAM. De acordo com o relatório ultra-secreto do inspetor geral, “a NSA mantém relacionamentos com mais de cem empresas americanas,”. Soma-se a isso que os Estados Unidos têm a vantagem de “estar jogando em casa, com as grandes empresas de telecomunicação mundiais.”

De acordo com um slide recente divulgado por Snowden, a NSA tinha, em 5 de Abril de 2013, 117.675 alvos ativos de vigilância em seu programa programa e estava apta a acessar dados em tempo real de chamadas telefônicas, mensagens de texto, e-mails ou serviços de chat online além da análise de dados já armazenados.

No fim, tanto o UPSTREAM como o PRISM podem ser apenas as pistas de um sistema muitíssimo maior. Um outro novo documento entregue por Snowden diz que, na véspera do Ano Novo de 2013, um programa de metadados que tinha por alvo comunicações internacionais, chamado SHELLTRUMPET, tinha acabado de “processar o seu trilionésimo registro de metadado.” Começou há cinco anos e observou que metade do trilhão tinha sido adicionado em 2012. Também observou que dois novos programas, MOONLIGHTPATH e SPINNERET, “estão planejados para ser adicionados em Setembro de 2013.”

Um homem que estava ciente o bastante para perceber o que estaria por vir era o senador Frank Church, a primeira ‘pessoa de fora’ que teve condições de investigar o passado obscuro da NSA. Em 1975, quando a agência ameaçava a privacidade dos cidadãos em apenas uma fração do que ameaça hoje com o UPSTREAM, PRISM, e centenas de outros programas de coleta e data-mining, Church lançou um grande alerta:

Estas capacidades poderiam, a qualquer momento, voltar-se contra a população e nenhum cidadão teria nenhuma privacidade restante, tamanha seria a capacidade de monitorar tudo: conversas telefônicas, telegramas, não importa. Não haverá local para se esconder. Se este governo algum dia tornar-se uma tirania, se um ditador, algum dia, assumir o comando deste país, a capacidade tecnológica que a comunidade da inteligência deu ao governo poderá impor uma tirania total, e não haverá meios de lutar contra ela, pois o governo terá meios para descobrir o esforço mais cuidadoso para resistir a ele, não importa o quão privadamente tenha sido pensado. Tamanha é a capacidade desta tecnologia… Eu não quero nunca ver este país passar dos limites. Eu sei as possibilidades disponíveis para impor uma tirania total na América, e precismos fazer com que esta agência e todas as que possuem esta tecnologia operem dentro da lei e sob supervisão adequada, de modo que nunca passem dos limites. Este é o abismo do qual não há retorno.

Church escreve como se estivesse inspirado pelas lições de 1984. Pelas recentes evidências, falta muito para que elas sejam aprendidas.

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