Como hipsters, expatriados, yummies e smartphones arruinaram uma cidade
Quinn Slobodian e Michelle Sterling
Jakob Hinrichs |
Tradução / É fácil falar em Eras de Ouro perdidas em Berlim. Todo mundo romantiza alguma época: a devassa Berlim pré-nazista da República de Weimar, a Berlim de Iggy e Bowie dos anos 1970, antes da queda do Muro, ou talvez a Berlim das ocupações dos bons e velhos anos 1990. Assim, quando as pessoas começam a reclamar que alguma coisa mudou na cidade a tentação é pôr isso de lado, como se fosse uma competição de quem está mais por dentro, o velho joguinho de “eu estava aqui naquele tempo”. Porém, dá para sentir que alguma coisa ficou diferente nos últimos anos.
Berlim sempre recebeu a pobreza melhor do que outras capitais europeias, mas dessa vez Berlim abraçou um modelo econômico que obriga a pobreza a pagar. A ideia é ganhar dinheiro com o prestígio de Berlim como “Cidade Criadora” – mas é também, a julgar pelo que aconteceu, cortar serviços públicos, vender as moradias públicas e criar estratégias para inventar novas maneiras de transformar o bom gosto em lucro. Essa nova Berlim é uma cidade em que a expressão da imaginação sustenta, direta ou indiretamente, um grande esquema para enriquecer um número reduzido de pessoas. Qualquer dia desses, alguns berlinenses e expatriados de sorte vão finalmente atrair capital especulativo de Londres, Palo Alto e Boston. Mas os outros – os pobres pitorescos e os inteligentes desempregados que tornam a cidade tão atraente – vão achar ainda mais difícil equilibrar as contas.
Não há nada de novo nessa história. O sonho de Berlim é a mesma fantasia adotada por áreas metropolitanas remotas de uma ponta a outra dos Estados Unidos. Mas em Berlim há mais coisas em jogo que em outros lugares. Vale observar que, no começo da nossa história, Berlim estava mais falida do que praticamente todas as outras cidades da Europa Ocidental, respirando artificialmente por meio de transferências governamentais. Em 2005 o desemprego chegou a 19%, taxa digna da Grande Depressão, e a dívida da cidade havia dobrado. Na metade da década de 2000, Berlim não estava tirando Atenas do prego. Berlim era Atenas.
Foi aqui, nessa metrópole economicamente estagnada, que o prefeito Klaus Wowereit, afetuosamente conhecido como “Wowi”, apresentou um plano de dez anos para a cidade. Começou acusando os trabalhadores do transporte da cidade de “tentar mutilar a vida pública”, mas depois passou a sonhar alto para a cidade que chamava de “pobre, mas sexy”. Imaginava um futuro em que uma classe trabalhadora antenada prosperaria sem o ônus dos sindicatos: “Imagino mil mulheres e homens de todas as idades reunindo-se num Congresso Mundial de Criativos. Os designers que moram aqui vão mostrar suas ideias para as maiores corporações do mundo” e “Berlim será a meca da classe criativa”. A música-tema da campanha de marketing de 10 milhões de euros para a cidade foi disponibilizada para download: um toque de celular de oito segundos feito por um dj techno com um trilado vagamente turco e uma conclamação a “ser Berlim, ser Berlim, ser Berlim” em eco.
A cerca de um quilômetro de distância, um dos ícones mais conhecidos da cidade estava sendo demolido. O enorme Palácio da República, em aço e vidro, construído pela Alemanha Oriental em meados da década de 1970, tinha sido um peculiar complexo socialista, acomodando o salão da assembleia nacional e também um teatro, uma pista de boliche e uma sorveteria. A prefeitura rejeitou diversos apelos para que o prédio fosse restaurado e reaproveitado, e as últimas colunas de concreto foram abaixo no final de 2008. Quando a demolição foi concluída surgiu um cubo azul e branco diante do local vazio – um “Salão Temporário de Arte” que abrigava instalações feitas de detritos e portas velhas, palestras de críticos de arte e, em certa ocasião, a performance de uma banda expatriada canadense que dedilhava furiosamente suas guitarras enquanto abria caminho para fora de uma gigantesca bolsa de plástico cheia de fumaça. Os apoiadores financeiros do Salão Temporário de Arte eram mais sóbrios do que levariam a supor essas ousadas intervenções: uma empresa têxtil, uma agência de publicidade, uma companhia farmacêutica e um escritório de advocacia americano. Este último, que afirmava “posicionar-se em interseções estratégicas da economia global”, tinha obviamente concluído que um ponto de encontro de artistas, hipsters e expatriados era uma dessas interseções. Ali estava a Nova Berlim: uma cidade em que um cubo vagamente ousado construído por empresas substituía um palácio para o povo construído pelo governo.
O espetáculo deve ter deixado Wowi orgulhoso. Como o número de pessoas empregadas em ofícios “criativos” como design, música, mídia e moda finalmente superou o de pessoas empregadas na indústria em 2005, ele apostou tudo numa estratégia para catalisar crescimento e investimento com exposições de arte e bandas noise. Naquele mesmo ano Berlim começou a fazer parte da “Rede de Cidades Criativas” da Unesco, o que a tornou oficialmente “um polo de grupos criativos” onde as pessoas “criam sinergias que otimizam seus potenciais”. Enquanto isso, dois dígitos de desemprego e imóveis baratos fizeram de Berlim um mercado favorável a empregadores e compradores. Porém, permanecia a questão: como poderia a cidade permanecer “pobre, mas sexy” se a intenção de Wowi era enriquecer?
Os moicanos vermelhos da nova classe trabalhadora
Entra em cena o hipster. Na década de 2000, o pacote berlinense de cerveja pilsen, faláfel, Airbnb e noites exaustas no famoso Berghain (descrito por uma revista de bordo como “a melhor boate do mundo”) era um grande sucesso. O número de noites passadas por turistas na cidade dobrou entre 2003 e 2011 – de 11 para 22 milhões. Começando por volta da contestada vitória de Bush em 2000 e acelerando depois da recessão de 2008, o rosto do típico visitante de Berlim mudou: de alemão para não alemão, dos suéteres largos dos acadêmicos para os cortes de cabelo em ziguezague e os moletons fluorescentes dos artistas ou, pelo menos, de “gente artística”. Enquanto os aluguéis chegavam a picos no Brooklyn e em Vancouver, Melbourne, Copenhague e Londres, Berlim ficava mais atraente. Rios de jovens com pós-graduação em literatura, arte e teoria chegavam à cidade procurando quartos em apartamentos divididos. A Craigslist virou uma central de bicicletas roubadas e quartos com móveis da Ikea em que finórios senhorios acrescentavam cem euros ao preço habitual e prometiam proximidade “ao atual distrito hipster de Neukölln, repleto de bares, galerias e artistas internacionais”.
O ciclo de retroalimentação começou quando pessoas de cenas distantes compraram a cidade por causa de sua similaridade com os lugares que tinham deixado. Tatuagens, outrora uma província exclusiva da classe operária alemã, começaram a aparecer nas mesas de calçada dos cafés; os homens passaram a usar shorts. Em 2010, californianos estavam servindo huevos rancheros de oito euros a parisienses com calças de estampa asteca, enquanto dinamarqueses vestidos em sacos negros sem forma sorviam Bionade sabor lichia. Espanhóis cozinhavam paellas enormes nas feiras de rua e britânicos empreendedores faziam arbitragem vintage, comprando vestidos sem manga de seda dos anos 1980 nos mercados de pulgas dos bairros turcos e árabes do Sul para vendê-los bem caro nos bairros hipster e turísticos do Norte. Novembro passado a New York Times Magazine publicou o relato de um australiano em Berlim que teve de ir embora porque estava simplesmente se divertindo demais para conseguir fazer qualquer coisa.
Aqueles que ficaram tiveram de arrumar trabalho, e alguns expatriados conseguiram empregos como instaladores de arte nas galerias de Mitte, ao passo que outros criaram suas próprias ocupações freelance, preparando cupcakes, ou como professores de ioga, mecânicos de bicicleta, promotores de shows e djs de iPod. Muitos subsistiram graças a bandejas de salame e Brötchen de um euro, e todos ficaram gratos pelo baixíssimo preço de pães e frios na Alemanha. Em certas ruas ficou cada vez mais raro ouvir o idioma local. As pessoas procuravam médicos que falassem inglês e dicas para lidar com a imigração no site de expatriados Toytown Germany, nome que captava a atmosfera libertadora de eterna juventude e brincadeira. Muitos julgavam ter encontrado um paraíso boêmio.
O prefeito Wowi voltou à nascente do descolamento em sua candidatura à reeleição em 2011. Cartazes de campanha pela cidade mostravam seus novos berlinenses no estado natural de interface com telas de cristal líquido. Um deles exibia um jovem pai com camisa de caubói checando mensagens de texto enquanto segurava o filhinho com camiseta estampada com caveira e ossos cruzados num leve abraço. Outro mostrava duas mulheres, uma com óculos no estilo de Sally Jessy Raphael, inclinadas para uma tela, acompanhando atentamente a rasterização de uma imagem. Um terceiro mostrava o próprio Wowi, fotografado pelas lentes de um smartphone. Você, espectador, é quem tirava a foto, capturando o prefeito celebridade. Bem-vinda, classe criativa, era a mensagem dos anúncios; valorizamos quem clica, arrasta e encara.
E não era mais apenas Wowi; agora o Partido Social Democrata (psd) inteiro tinha decidido apostar sua fortuna na nova classe trabalhadora conectada. O símbolo da mudança era o guru da internet do partido, Sascha Lobo, conhecido por seu moicano fúcsia, seu bigode Fu Manchu e o fone sem fio com que costuma aparecer nas fotografias. Em seu livro de 2006, We Call it Work [Para nós isso é trabalho], Lobo celebrava aquilo que chamava de “boemia digital” e dizia-se “on-line quase todo o tempo que fico acordado”. Ao longo da campanha de 2009, Lobo apareceu no palanque em diversos eventos públicos para o psd, em que o vermelho de sua logomarca (um aceno para suas origens como partido operário marxista) combinava perfeitamente com seu moicano. Ao mesmo tempo, Lobo era o rosto de comerciais da Vodafone que traziam música house, imagens mostrando a passagem do tempo das ruas de Berlim e clipes de Lobo mandando mensagens de texto e fotografando a si mesmo num ônibus. Os anúncios forneceram o molde espiritual para a campanha publicitária de Wowi em 2011. O boêmio digital tinha chegado; era ele o novo eleitorado do velho PSD.
Mas quem permaneceria pobre e quem ganharia dinheiro com o que havia de sexy nessa admirável Berlim nova? Em 2010 o New York Times noticiou a “onda de gente criativa internacional” que enchia os bairros de Kreuzberg-Neukölln de “cafés, bares de vinho, uma ou outra mercearia orgânica e… um mercado de pulgas mensal extraordinariamente antenado”. Dois anos depois outro escriba do Times cantava (dessa vez, na seção imobiliária) o consequente aumento no valor dos imóveis, citando tanto um corretor que falava dos “estúdios de dança e de ioga” que brotavam nos quintais dos antigos bairros operários quanto uma expatriada austríaca que dava “palestras sobre arte e recitais” em seu apartamento e dizia “com segurança” que o valor de seu apartamento tinha dobrado em cinco anos. O artigo também afirmava que os protestos de junho de 2010 contra o aburguesamento tinham sido “descontraídos”; os ativistas, mesmo os que foram presos, não seriam mais do que parte da “galera cosmopolita” “que dá vida” à área.
Na verdade, as reclamações dos manifestantes não eram puramente estéticas. A fatia de berlinenses que recebiam alguma forma de assistência social se aproximava de 20% na época em que o artigo do Times foi publicado no ano passado; as políticas de Wowi eram inegavelmente pró-sexy – a Fashion Week ganhou os melhores espaços, chegando a receber permissão para erguer uma tenda em cima do memorial pela queima de livros pelos nazistas –, mas seria difícil dizer que eram pró-pobres. Um artigo na Der Spiegel noticiava que, enquanto o turismo se expandia, o prefeito vendia 110 mil unidades residenciais de propriedade da prefeitura e cortava os subsídios de outras 28 mil. Os aluguéis em prédios subsidiados subiram mais de 20%. Os custos de moradia elevaram-se 20% no mesmo período, consideravelmente mais do que o custo geral de vida. As contradições eram marcadas sobretudo nos bairros em que a concentração de hipsters e turistas era maior. Em Friedrichshain-Kreuzberg, onde, segundo o que prometia o website da cidade, havia “agitação urbana, vibração e diversidade em cada esquina”, tanto o desemprego quanto o aluguel estavam acima da média berlinense, com 16% de desocupados, e os aluguéis, em muitas regiões, mais de 50% acima da média da cidade. Neukölln, com uma taxa de desemprego de 20%, a mais alta de Berlim, mesmo assim teve um aumento de 17% no valor do aluguel em certas áreas em apenas poucos anos. Era uma boa época para ser senhorio em Berlim. Para ser empregado? Nem tanto.
À medida que aumentava a distância entre aluguéis e salários, artistas e expatriados viraram bodes expiatórios. No último verão, adesivos que diziam “Berlim não gosta de você” em inglês foram colocados por toda parte, e relatos de expatriados sendo barrados na porta de bares e galerias multiplicaram. Os donos de um bar ganharam exposição internacional quando chamavam sua própria clientela, num vídeo caseiro publicado na web, de “todo esse bando de estudantes, artistas, vagabundos, a turba toda que chamam de ‘classe criativa’”. Outras placas apareceram. Na porta de uma galeria, grafado em pilot: “Proibida a entrada de hipsters dos Estados Unidos” e “Outras pessoas imitando hipsters americanos também não são bem-vindas. A lotação de hipsters e turistas espanhóis já beira a overdose”.
O termo EU-Ausländer [estrangeiro da União Europeia] começou a aparecer com frequência cada vez maior, especialmente quando espanhóis e gregos ali buscaram refúgio do abismo econômico de seus países de origem e os tabloides exigiam “que Atenas não recebesse dinheiro alemão”. Em 2012, a revista Zitty colocou um homem de camisa xadrez roxa, óculos grandes e bigode na capa e disse que o hipster de Neukölln era “o objeto de ódio favorito” da cidade.
As tensões chegaram às vias de fato numa área que havia resistido ao aburguesamento quando três novos estabelecimentos gastronômicos, incluindo um bar de drinques, abriram ao mesmo tempo numa rua antes ocupada por uma escola de taxistas, um centro de massagem tailandesa e um cassino de máquinas. Uma manhã, pouco depois da grande abertura no verão passado, os clientes viram as janelas quebradas e tinta vermelha na calçada. O bar foi quem mais sofreu com o ataque, e parecia o fim de uma performance artística, vanguardista e sinistra, graças à violência da tinta vermelha que pingava do exterior cor de creme do edifício. Uma carta anônima foi postada no Indymedia reclamando a autoria:
Um bar de drinques típico da modinha, feito para estudantes ricos da Alemanha Ocidental, vai abrir no lugar onde uma padaria de esquina vendia pães fresquinhos para os moradores do bairro poucos meses atrás. Não queremos planos como esse de melhoria do bairro. Logo os residentes vão ser obrigados a tomar o rumo dos padeiros, quando não puderem mais pagar por seus apartamentos, e o bar de drinques ainda vai atrair hipsters! Os aluguéis vão para a estratosfera e não teremos dinheiro para pagar nada além disso.
Contudo, a proliferação hipster persistia, e chegou ao clímax ano passado com as “Olimpíadas Hipster de Berlim”. Mais de seis mil pessoas torciam umas para as outras, todas em jeans skinny, em cabos de guerra, competições de giro de disco de vinil e corridas de saco. A maior parte das publicações de notícias deu golpes fáceis na natureza deliberadamente irônica das Olimpíadas, divulgando fotos escarnecedoras de homens e mulheres magricelas usando óculos de casco de tartaruga enquanto jogavam óculos de casco de tartaruga para o alto. Mas poucas publicações perguntaram o que significa para Berlim a aglomeração de mais de seis mil membros da vagamente definida classe criativa. O objetivo de Wowi tinha sido realizado? Foi um ensaio geral para o Congresso Mundial de 2019?
Os yummies do rei do banheiro
Enquanto os jornais não perdiam a oportunidade de criticar o antiatletismo dos hipsters de Berlim, foi uma agência de publicidade, a Wall Inc., que fez a análise mais perspicaz do que estava acontecendo. A empresa era uma presença de longa data em Berlim, tendo se estabelecido em 1984 após conseguir um contrato para construir e manter mil pontos de ônibus em troca do direito de vender publicidade nas paredes dos pontos. No ano posterior à queda do Muro, a Wall Inc. construiu mais 800 pontos de ônibus na parte oriental e levou os anúncios da parte ocidental para as antigas ruas comunistas. Então, nos anos 1990, a Wall Inc. assumiu o fornecimento de banheiros públicos da cidade, assegurando os direitos a 11 superfícies publicitárias para cada banheiro que construíssem e mantivessem durante 25 anos. Enquanto os antigos banheiros eram gratuitos, os nove custam 50 pfennig. Assim, para cada serviço vendido pela empresa – serviços que antes a cidade oferecia de graça –, a Wall também recebeu uma concessão de espaço público, troca que levou, na prática, ao monopólio dos anúncios de rua e ao título informal de “Rei do Banheiro” para Hans Wall, dono da empresa. Brincando com a palavra alemã para banheiro (Klo), Wall matreiramente se referia a seu modelo como Klo-balização, termo adequado a sua alquimia de bem público transformado em serviço privado gerador de renda publicitária.
Em novembro do ano passado, os Reis do Toalete soltaram uma campanha que orgulhosamente nomeava “o novo segmento-alvo” da empresa: o yummie. Esse personagem seria Young [jovem], Urban [urbano] e Mobile [em movimento], e a empresa ressaltou sua glória com um personagem amalgamado chamado “Jessica”, uma mulher de 34 anos com nome inglês, cabelo louro desgrenhado e batom vermelho que mora em Berlim. Jessica representava bem o chique despojado, e tinha óculos de sol azuis retrô para provar isso, mas o fato de sua ocupação ser “corretora de imóveis” demonstrava sua ginga profissional. No website da empresa, “Jessica” dizia ao mundo que gostava de sair com os amigos e que “quando a gente sai, é importante ter uma experiência cool!”. A ânsia de Jessica pelo cool e seu jeito casualmente descolado sugerem o verdadeiro apelo do yummie: são eles que ditam os gostos, os consumidores connoisseurs que descobrem e determinam qual será a próxima tendência.
Eis o hipster berlinense, brutalmente reduzido a sua essência comercial. Clique em Was ist ein Yummie? e descubra que
Os yummies curtem consumir. O segmento tende a gastar mais do que o planejado e a fazer compras espontâneas. São curiosos e abertos à inspiração. Estão sempre antenados, seguem tendências e tornam-se eles mesmos criadores de tendências. Nunca ficam por fora de nada, graças a seu companheiro digital, o smartphone.
Mas como poderia um anunciante ter acesso a um segmento-alvo que evita os canais habituais da publicidade na imprensa, na tv e no rádio? A Wall tentou uma estratégia oferecendo acesso wi-fi gratuito em vinte de seus pontos de ônibus em Berlim, junto com tomadas para carregar dispositivos eletrônicos. Claro que não era realmente gratuito: as pessoas tinham de baixar o app da Wall Inc. para poder acessar a internet, o que foi feito por 40 mil delas, capturando os olhos dos yummies enquanto se moviam pela cidade. A solução de longo prazo apresentada ano passado pela Wall foi a “Yummie Net”: uma rede de “pontos de interesse” pela cidade que posiciona anúncios onde, segundo as pesquisas da Wall, os yummies “se reúnem espontaneamente”. Os anúncios devem ser instalados no “mobiliário urbano” da Wall – pontos de ônibus, bancos etc. –, perto de cinemas, bares, cafés e museus. Enquanto os yummies tomam cerveja e fumam cigarros enrolados à mão nas mesas dobráveis de madeira que cercam cada bar e café de Berlim, a Yummie Net vai se aproximar, espreitando sua deliciosa presa.
Isso porque a Berlim nova e criativa é também privatizada, onde empresas como a Wall Inc. fornecem a infraestrutura necessária em troca de uma oportunidade de ganhar os euros e a fidelidade dos yummies à sua marca. A Yummie Net também chama a atenção para um fato ainda mais perturbador: os espaços públicos em que os berlinenses se divertem não são realmente espaços de lazer ou cultura, mas alvos lucrativos num mapa. O sentido de libertação que atrai tanta gente a Berlim vem somente à sombra de um novo Muro [Wall].
Monetizando Toytown
O sentido de libertação tem de pagar, tem de despojar-se de seus resquícios de ativismo político. É preciso monetizar Toytown.
Consideremos o setor tecnológico da cidade. Em janeiro, um articulista da Forbes escreveu sobre a “próspera cena start-up” de Berlim e comparou as inovações tecnológicas da cidade com – é claro – o colapso do comunismo: “Da última vez que estive em Berlim [em 1989], uma revolução estava acontecendo. Agora outra começou, só que dessa vez não tem nada a ver com política”.
Era desse tipo de criatividade que Wowi gostava. Em janeiro ele fez uma visita à área que se autointitula “Silicon Allee”, fazendo a última parada em sua mais recente história de sucesso: Wooga, uma empresa cujos quase 300 empregados estão espalhados por dois andares de uma antiga fábrica de pão em Prenzlauer Berg. A empresa desenvolve videogames para redes sociais, sendo a maior delas na Europa; mais de 100 milhões de pessoas jogaram “Diamond Dash”, seu maior sucesso, e outros milhões jogaram os demais produtos da Wooga, como aquele em que você pode “construir o reino dos seus sonhos com seus amigos em Magic Land”. Ao criar mundos de jogo perpétuo, a Wooga levantou 32 milhões de dólares em capital especulativo até o final de 2012.
A mensagem de “pobre, mas sexy” de Wowi certamente foi bem aceita em Silicon Allee. A página de recrutamento da Wooga, por exemplo, convida você a vir trabalhar “na cidade mais cool da Europa”, o reino dos seus sonhos, onde você pode frequentar “festas no subsolo dos bunkers, em antigas cervejarias e em fábricas abandonadas”, saboreando uma atmosfera “como a da Nova York dos anos 1980”. O Twitter anunciou que estabeleceria seu quartel-general alemão nessa cidade tão cool, afirmando-se atraído por seu “vanguardismo”, e o Google destinou mais de um milhão de euros a um complexo industrial próximo ao Memorial do Muro de Berlim. O nome do prédio – “The Factory” – aponta para o legado de Warhol ao mesmo tempo que espertamente reconhece a transição da cidade do chão da fábrica para a tela.
Então dessa vez a Era de Ouro talvez tenha de fato acabado. Na época em que os berlinenses penduravam balanços nos caixilhos das janelas, pintavam casas em cores neon e plantavam hortas nos telhados, não se esperava que nada disso desse lucro. Na Cidade Criativa oficial, porém, tudo é diferente. O espírito excêntrico e brincalhão da cidade foi transformado em marca pelo psd, vendido ao capital especulativo e balançado na cara de seus residentes por meio da Yummie Net. Quando Wowi deixou o loft do escritório da Wooga no inverno berlinense, usava um cachecol que trazia cerzida uma citação de Jeanne Moreau, atriz francesa da Nouvelle Vague: “As lembranças mais belas são as que ainda virão”. A citação era adequada para alguém que presidiu um período em que tantas lembranças antigas foram apagadas. Os monumentos da Alemanha Oriental foram demolidos. Os serviços sociais foram vendidos e com eles se perdeu a lembrança da cidade como lugar de bens públicos compartilhados. Com a saída da indústria, também a lembrança da cidade como lugar de trabalho manual foi deixada para os livros de história. As reformas Criativas trabalharam para enriquecer alguns poucos, incluindo um pequeno número de recém-chegados, mas pouco fizeram pelo resto dos moradores da cidade. Até hoje, um quinto dos berlinenses vive abaixo da linha da pobreza, e esse número aumenta a cada ano. Os que desejam culpar alguém pelo que aconteceu – por um plano de desenvolvimento em que os lugares mais caros para se viver também têm níveis de desemprego mais altos, e em que a cidade conhecida como “capital da pobreza” na Alemanha é vendida no estrangeiro por seu charme realista – deveriam esquecer os expatriados e os hipsters, por mais que eles sejam alvos fáceis. Não foram os hipsters que saquearam Berlim; foi o homem com o sorriso de smartphone.
Sobre os autores
Quinn Slobodian é o autor de Globalists: The End of Empire and the Birth of Neoliberalism.
Michelle Sterling leciona na Universidade de Hong Kong e no Conservatório de Boston.
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