13 de outubro de 2016

A nova história de Svetlana Aleksiévitch

Orlando Figes

Svetlana Alexievich, Stockholm, Novembro, 2012. Magnus Hallgren/DN/TT/Sipa USA.

Secondhand Time: The Last of the Soviets
por Svetlana Alexievich, traduzido do russo por Bela Shayevich
Random House, 470 pp.
 
Tradução / Quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 2015, Svetlana Aleksiévitch era pouco conhecida fora de seu país, a Bielorrússia, e da ex-União Soviética, onde suas obras eram publicadas em russo. Os jornais correram para se informar sobre aquela escritora e reunir opiniões abalizadas sobre seus “escritos polifônicos, um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”, segundo as palavras de Sara Danius, secretária permanente da Academia Sueca, ao anunciar o prêmio. Em sua justificativa, a academia creditou a Aleksiévitch a invenção de um novo gênero literário, “uma história das emoções” – uma “colagem de vozes humanas de cuidadosa composição”, as quais foram registradas em entrevistas. As histórias orais da autora (porque é isso que são) apresentam-se sob a forma de monólogos e estão menos preocupadas com o registro dos acontecimentos do que com os sentimentos dos entrevistados, isto é, a maneira pela qual a vida interior das pessoas foi moldada por esses eventos históricos.

Não há quem não se comova com os testemunhos de Vozes de Tchernóbil (1997), ou com as entrevistas com soldados soviéticos, suas mães e viúvas em Garotos de Zinco (1989), dedicado à Guerra no Afeganistão de 1979 a 1989. São livros importantes, originais e poderosos, que recontam a história por intermédio de narrativas pessoais e desmancham mitos soviéticos imbuídos da força de verdades humanas. Destilam a voz da memória para transformá-la numa forma de literatura. Como história oral, no entanto, eles não são tão inventivos quanto pensou o júri do Nobel.

A prática da história oral se desenvolveu mais lentamente na União Soviética do que no Ocidente, onde seus seguidores se valem há muito tempo de entrevistas para explorar os reflexos que os acontecimentos deixam no mundo interior dos entrevistados. Como disciplina, a história oral jamais foi reconhecida pela Academia Soviética de Ciências, não tendo sido integrada à pesquisa histórica profissional. O Estado mantinha controle estrito sobre a história, moldava a memória coletiva por meio da propaganda política e da mídia, dos livros didáticos e das comemorações, sublinhando assim a versão oficial do passado soviético – um mito propagandístico de heroicos sacrifícios e conquistas do povo sob o comando da liderança do Partido. Se aprovadas, as memórias eram publicadas com o intuito de acrescentar conteúdo “subjetivo” a essa narrativa. Na década de 20, registraram-se reminiscências orais de veteranos revolucionários, mas com a finalidade de escrever a história do Partido. Tais registros descartavam a matéria de que se compõe a história oral – as lembranças confusas, incontroladas, potencialmente subversivas de pessoas comuns.

As primeiras tentativas de se fazer história oral na União Soviética ficaram a cargo dos soldados que, ao retornarem dos combates entre 1941 e 1945, narraram experiências radicalmente diferentes do mito oficial da Grande Guerra Patriótica. Um deles foi o escritor Ales Adamovitch, da Bielorrússia, onde, ainda adolescente, se juntara aos partisans na luta contra o Exército alemão. Juntamente com o escritor soviético Daniil Granin, também veterano de guerra, Adamovitch compilou o Blokadnaia Kniga [Livro do Bloqueio], uma história do cerco de Leningrado de 1941 a 1944. Composta de testemunhos, diários e entrevistas com sobreviventes, a obra foi parcialmente publicada em 1977, na revista liberal soviética Novyi Mir, mas a versão integral em livro só seria lançada em 1984.


Adamovitch exerceu grande influência sobre Aleksiévitch, que a ele se refere como seu mentor. Suas técnicas, no entanto, diferem. Se o primeiro intercala comentários ao longo das entrevistas, Aleksiévitch jamais interrompe os entrevistados. Quando começou a trabalhar, no início da década de 80, essa prática, tivesse a jornalista consciência disso ou não, já se tornara padrão na história oral no Ocidente – ensinava-se que toda interrupção não apenas influenciava, mas também contaminava a narrativa do entrevistado. De acordo com um perfil de Masha Gessen para a New Yorker, a ganhadora do Nobel de Literatura “queria se livrar tanto da voz autoral como das habituais cronologias e contextualizações. O que pretendia era uma proximidade maior com as vozes que ouvia na infância, quando as mulheres se reuniam de tardezinha nos vilarejos e contavam histórias sobre a Segunda Guerra Mundial”.

Mulheres tendem a se lembrar de forma diferente dos homens – uma diferença, de resto, já observada tanto por psicólogos como por historiadores orais. Elas são melhores para relembrar sentimentos e falam sobre si abertamente. Os homens, concentrados em ações e na sequência dos acontecimentos, são mais propensos ao retraimento quando indagados sobre incidentes traumáticos, mesmo se do passado remoto. Não é surpresa, pois, que a voz feminina predomine na obra de Aleksiévitch.

Seu primeiro livro, A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (1985), traz monólogos femininos. São militares, médicas, enfermeiras, partisans, mães, esposas, viúvas – mulheres envolvidas na Grande Guerra Patriótica de 1941 a 1945. Suas histórias de sacrifício e coragem misturam-se a relatos mais sombrios de sofrimento, medo e caos que derrubam os mitos da propaganda soviética. Lançada em 1985, a obra vendeu 2 milhões de exemplares nos anos da perestroika. Ampliada, foi publicada em 2002, depois do colapso da União Soviética.


Ométodo que Aleksiévitch empregou nesse livro de estreia foi aplicado a toda sua produção posterior, inclusive a O Fim do Homem Soviético, seu primeiro volume depois do Nobel. Trata-se do projeto mais ambicioso da autora até hoje – um estudo panorâmico de vidas comuns afetadas pelo desmoronamento do sistema soviético, com base em centenas de extensas entrevistas e conversas gravadas entre 1991 e 2012. O título original – Vremia Sekond Hend [Época do second-hand] – seria uma referência à confusão e ao senso de deslocamento provocados pelo colapso soviético, como Aleksiévitch explica na introdução, a que chamou de “Observações de uma cúmplice”:

Antes da Revolução de 1917, Aleksandr Grin escreveu: “E o futuro parece que deixou de estar em seu próprio lugar.” Cem anos se passaram, e mais uma vez o futuro não está em seu lugar. Chegou a época do second-hand.

As vozes registradas pertencem, em sua maioria, a pessoas (75% delas mulheres) que julgam ter vivido sob o sistema soviético o melhor de suas existências. Como Aleksiévitch reconhece, ela selecionou pessoas de uma geração (na qual ela própria se insere) tão imersa no modo de vida soviético que o repentino desaparecimento da União Soviética as obrigou a sair em busca de uma nova identidade:

Busquei aquelas pessoas que se apegaram com todas as forças ao ideal, absorveram esse ideal de tal forma que não podiam se desprender dele: o Estado tornou-se seu universo, substituiu tudo nelas, até a própria vida. Elas não conseguiram abandonar a Grande História, dar adeus a ela, serem felizes de outra maneira…

São pessoas que foram incapazes de se adaptar ao modo de vida capitalista, no qual não havia nenhuma grande ideia, nenhum objetivo coletivo definido pelo Estado – apenas uma existência privada, “normal”.

Esses últimos soviéticos viveram o colapso de 1991 como um desbaratamento, uma ruptura da noção de tempo que tinham. Falam com Aleksiévitch sobre os últimos anos da União Soviética como se de um passado distante: “Isso foi há pouco tempo, mas era outra época… Em outro país…” Veem-se a si mesmos como exilados de um país desaparecido, de uma União Soviética mítica, lembrada com saudade pelas certezas, familiaridade e bens de consumo que nunca existiram. A nova Rússia lhes é estranha. Anna M., uma arquiteta que cresceu num orfanato de Moscou, tem apenas 59 anos, mas não consegue (ou talvez não queira) se adaptar à nova Rússia, que ela não tergiversa em acusar com termos provenientes do regime soviético:

Como é a nossa vida? Você vai andando por uma rua conhecida: tem loja francesa, alemã, polonesa. Todos os nomes são em línguas estrangeiras. As meias são de fora, as blusinhas, as botas… os biscoitos, a kolbassá... Em lugar nenhum você encontra as nossas coisas, soviéticas. Por todo lado eu só escuto o seguinte: a vida é uma luta, o mais forte vence o mais fraco, e isso é uma lei natural. É preciso desenvolver chifres e cascos, uma couraça de ferro, ninguém precisa dos fracos. Por todo lado as pessoas se debatendo, se debatendo, se debatendo. Isso é fascismo, isso é a suástica! Eu fico em choque… e desesperada! Isso não é para mim. Não é para mim isso! [Silêncio]


Para as pessoas dessa geração, os anos 90 foram uma catástrofe. Elas perderam tudo: um modo de vida conhecido, um sistema econômico que garantia segurança, uma ideologia que lhes dava certezas morais e talvez alguma esperança, um império gigantesco com status de superpotência e uma identidade que sobrepujava divisões étnicas, além do orgulho nacional pelas conquistas culturais, científicas e tecnológicas. Aleksiévitch registra um coro de lamentações, vozes que em sua maioria se queixam de não terem sido consultadas sobre a dissolução da União Soviética (que, de fato, não se deu pelo voto democrático). Os sentimentos de traição e desilusão reaparecem praticamente a cada página:

Entregaram um país como esse! Uma potência! Sem um único tiro… Eu só não entendo uma coisa: Por que ninguém perguntou nada para nós. Passei a vida inteira construindo um país grandioso. Era o que nos diziam. O que prometiam.

Passamos a vida inteira construindo, e tudo foi embora por meia pataca. Deram vouchers [de empresas estatais] para o povo… enganaram…

Muitos falam da humilhação que sofreram na década de 90, quando a inflação lhes privou das economias que haviam feito a vida inteira e mal podiam se alimentar com os salários e as pensões que o Estado muitas vezes não pagava. Um projetista se lembra de que passou a vender as bitucas de cigarro que os pais de sua mulher, professores universitários, coletavam nas ruas. O colapso do padrão de vida minou a confiança popular na “liberdade” e na “democracia” capitalista – termos abstratos, que as pessoas não compreendiam (não tinham experiência de liberdades garantidas por lei), a não ser como o acesso mais livre e democrático a bens materiais. Um dos entrevistados mais jovens, e não identificados, explica:

Todos sonhavam com uma nova vida… Sonhavam… Sonhavam que apareciam montes de kolbassá nas prateleiras, a preços soviéticos, e que os membros do Politburo pegariam uma fila comum para comprar aquilo. Kolbassá é o ponto de partida. Temos um amor existencial pela kolbassá…

Em O Fim do Homem Soviético, os jovens não são tão ouvidos como os velhos. Aleksiévitch está menos interessada neles, embora um dos melhores capítulos do livro, “Sobre a solidão que é muito parecida com a felicidade” – a história de Alissa, uma publicitária de 35 anos que a autora encontra por acaso num trem –, ponha em relevo a divisão moral entre aqueles que, como a publicitária, são jovens e fortes o bastante para vencer no mundo moscovita dos negócios, e a intelligentsia soviética, gente como os pais dela, professores de uma escola em Rostov cujos valores estão definidos nos livros. Depois de anos de farra na companhia dos oligarcas – evidentemente auxiliada por sua bela aparência –, Alissa quer se estabelecer, determinada a fazer dinheiro, e a fazê-lo sozinha, sem a ajuda dos homens:

Eu odeio quem cresceu na pobreza, com uma mentalidade “de pobre”, o dinheiro para eles significa tanta coisa, que não dá para confiar neles. Não gosto dos pobres, dos humilhados e ofendidos [referência ao romance de Dostoiévski]… Não confio neles!

A mãe de Alissa quer largar o magistério, incomodada com os alunos que se aborrecem quando ela lhes fala de Aleksandr Soljenítsin (“Nós não sonhamos com essas façanhas, nós queremos viver normalmente”). Leem Almas Mortas, de Nikolai Gógol, e têm em Tchítchikov – o canalha que protagoniza o romance – seu modelo.

Nas muitas histórias de suicídio, porém, os jovens ganham proeminência. Há pelo menos uma dúzia delas no livro: o garoto de 14 anos que se enforca sem motivo aparente; uma mulher que, enganada por bandidos que a privam de seu apartamento, se joga debaixo de um trem; uma jovem policial que, oficialmente, teria atirado contra si mesma na Tchetchênia, embora sua mãe, investigando por conta própria, descubra que ela foi morta por colegas bêbados, depois de se recusar a aceitar propina. Muitas outras relatam tentativas de suicídio, um tema que interessa à autora desde muito tempo. Em 1993, Aleksiévitch publicou a coletânea de histórias Zacharovannye Smertiu [Fascinados pela Morte], todas elas tentativas de suicídio relacionadas a uma crise pessoal provocada pelo colapso da União Soviética. Algumas delas reaparecem em O Fim do Homem Soviético, como a autora reconhece em suas “Observações”.


Dessas páginas emerge um quadro da Rússia contemporânea extremamente sombrio, uma paisagem inóspita habitada por pobres, deprimidos, humilhados, por prejudicados e amargurados, por refugiados sem-teto de guerras étnicas, por criminosos e assassinos – um lugar sem muito espaço para a esperança ou o amor. Sem dúvida alguns russos vão se ofender e reclamar da ausência de histórias mais positivas, ou acusar a autora de vender estereótipos russofóbicos. A mídia russa, sob controle do Estado, reagiu à notícia do Nobel para Aleksiévitch com uma avalanche de impropérios, protestando por ela não ser uma escritora de fato, só agraciada por suas visões anti-Putin. Foi uma reação que ecoou ocasiões anteriores em que o prêmio foi concedido a escritores russos conhecidos por suas opiniões antissoviéticas: Ivan Bunin, em 1933; Boris Pasternak, em 1958; Aleksandr Soljenítsin, em 1970; e Joseph Brodsky, em 1987.

Meu senão com O Fim do Homem Soviético não tem nada a ver com sua atmosfera sombria, e sim com uma sensação de que muitas das histórias foram escolhidas por seu efeito dramático ou sensacionalista. Há no livro relatos extraordinários – mais do que todos, aquele que já foi até objeto de um filme: Ielena Razdúieva, uma operária de 37 anos, desiste de tudo (um bom marido, três filhos e um lar) para viajar à outra extremidade da Rússia em busca de um homem que não conhece, condenado à prisão perpétua. “É aquele tipo russo”, diz a cineasta, “aquele russo que Dostoiévski descreveu como tão vasto como a terra russa. O socialismo não o mudou, o capitalismo também não vai mudar.”

Trata-se de uma história que poderia, de fato, ter saído diretamente das páginas de um romance de Dostoiévski – o que não está tão claro, no entanto, é o que ela está fazendo aqui. Pretenderia lançar uma luz redentora sobre um livro sombrio? Desejaria contemplar a “alma russa”?

Svetlana Aleksiévitch já caracterizou seus livros como “romances feitos de vozes”. Em O Fim do Homem Soviético, ela afirma que seu propósito é a transformação da vida – da vida simples – em literatura:

Fico sempre vigiando, tentando ouvir nas conversas, particulares e gerais. Mas às vezes me distraio na vigilância, e um “pedacinho de literatura” pode reluzir em toda parte, às vezes até no lugar mais inesperado.

Ao ouvi-las e editá-las com zelo, a autora transforma suas entrevistas numa literatura falada que carrega toda a verdade e a pujança emocional de um grande romance. As histórias mais dramáticas, porém, nem sempre são as mais representativas. Talvez por isso o livro termine com as “Observações de uma cidadã”, sintetizando em uma página uma entrevista que poderia ter sido feita com qualquer uma entre milhões de mulheres que habitam os vilarejos da ex-União Soviética.

Pode-se criticar a ausência de intervenções autorais. Monólogos ininterruptos podem se transformar em vitupérios ou se tornar repetitivos. Penso que talvez devêssemos ser mais bem informados sobre o histórico de cada entrevistado (nome, idade e profissão não bastam) e sobre o local em que cada entrevista foi realizada (há um abismo entre Moscou e as províncias russas). Ainda que as entrevistas estejam agrupadas por décadas (1991–2001 e 2002–2012), elas não são datadas – resta ao leitor a tarefa de adivinhar quando teriam sido feitas. É uma falha grave, porque a União Soviética de 2001 era muito diferente daquela que seus defensores conheceram em 1991, e, em se tratando de história oral, o cenário político da entrevista é sempre importante.

Mas são questões que não diminuem um feito considerável. Aleksiévitch deu voz a uma geração perdida que se sente traída, surrupiada de sua própria vida pela história. Ao dar ouvidos aos humilhados e ofendidos, podemos aprender a respeitá-los.

Sobre o autor

Orlando Figes é professor de história no Birkbeck College, University of London. Seu último livro é Revolutionary Russia, 1891-1991: A History (2018).

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