Françoise Vergès
Jacobin
Tradução / Em março, sindicatos e associações da Guiana Francesa organizaram um coletivo chamado Pou La Gwiyann dékolé, que significa, no crioulo guianês, “pela separação da Guiana”. Desde então, os ativistas planejaram manifestações, bloquearam estradas, fecharam cidades e comércio marítimo, organizaram uma greve geral e realizaram marchas que reuniram amplos estratos da população, desde estudantes do ensino médio e advogados até camponeses, agricultores e populações indígenas.
Eles apresentaram um memorando de quarenta páginas aos ministros franceses listando suas demandas, abrangendo saúde, educação, agricultura, desenvolvimento e segurança. O movimento denuncia como sucessivos governos franceses trataram a Guiana, citando a infraestrutura em ruínas da região; a falta de segurança e desenvolvimento; a crescente desigualdade e discriminação e o desrespeito generalizado. Os manifestantes repetidamente gritaram “Determinado!” e “Nou bon ké sa” (algo como “Basta!”). Carregaram a bandeira guianesa e cantaram em homenagem a seu país: a Guiana.
O sucesso do coletivo tem sido notável. Os bloqueios de trânsito, sit-ins [“sentaços”], marchas e a paralisação da capital, Cayenne, galvanizaram milhares de pessoas em protestos pacíficos. Os porta-vozes do coletivo mantiveram a multidão informada durante as conversações com o governo. Em 2 de abril, rejeitaram a oferta do governo de desembolsar pouco mais de 1 bilhão de euros; no dia seguinte, o primeiro-ministro declarou que a demanda coletiva por € 2,5 bilhões era “irrealista”.
Pou La Gwiyann dékolé prometeu continuar suas mobilizações e, em 4 de abril, milhares caminharam em direção a Kourou, a base aeroespacial europeia. Eles organizaram um “sit-in” na entrada, e trinta pessoas – incluindo mandatários eleitos, que o coletivo tinha anteriormente alijado – ocuparam o local. No dia seguinte o governo reiterou sua oferta de 1,086 bilhões de euros.
A ocupação terminou logo após a resposta decepcionante do Estado. Os ativistas expressaram sua frustração, denunciaram a contínua falta de respeito do governo e falaram da unidade da Guiana e do endurecimento do movimento. Na quinta-feira, o coletivo manteve seus bloqueios e começou a discutir novas estratégias.
Em maio, a França elegerá um novo presidente, e um novo parlamento virá em junho. Mas Pou La Gwiyann dékolé se recusa a ser refém da política francesa. Em cada barricada, em cada marcha e manifestação, eles gritam o que se tornou seu lema: “Determinado!”.
O movimento levanta questões familiares: que tipo de república reivindica o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” enquanto ainda governa tantas ex-colônias? Que tipo de poder imperial está sendo empregado agora? Muitos políticos na França continental repetem o clichê de que essas áreas são “território esquecido”, uma frase que implica amnésia. Em vez disso, não deveríamos discutir as escolhas políticas que criaram o esquecimento e a dependência?
Quando as notícias de um dos treze territórios ultramarinos franceses habitados chegam a Paris os meios de comunicação franceses respondem com surpresa, o público com descaso e os políticos com as mesmas velhas promessas de se lembrar mais dessas regiões. Essas respostas desempenharam papéis essenciais na reconfiguração do espaço republicano francês, transformando o que resta do império francês em um mapa mutilado de controle imperial.
O movimento de resistência guianense está desenvolvendo novas estratégias para conquistar a autodeterminação. Ainda que não consigam trazer a democracia e o desenvolvimento necessários para a Guiana, a sua luta pode ajudar-nos a compreender como a história colonial da França continua a moldar a vida dos seus súditos em todo o mundo.
Apesar do fato de Paris ainda governar territórios no Pacífico, no Oceano Índico, no Caribe e na América do Sul, as pessoas que vivem na França continental compartilham da convicção de que, após 1962, seu país abandonou qualquer forma de colonialismo. Os territórios ultramarinos desapareceram da consciência e este véu de ignorância impediu os franceses de se perguntarem por que tantas áreas supostamente descolonizadas ainda vivem sob o domínio imperial.
Lembrar a existência dessas regiões desencadeia uma de duas respostas. Alguns afirmam ter “amor e afeto eterno” para com os territórios e suas populações, enquanto outros se voltam para o discurso familiar da dependência, descrevendo seus concidadãos como preguiçosos, amargos, inconsequentes e irrealistas.
Em ambos os lados, os fatos permanecem vagos. Os ativistas precisam sempre repetir informações geográficas, sociais e políticas; os cidadãos franceses parecem incapazes de acumular esses conhecimentos, não importa quantas vezes eles os ouçam. Sua ignorância, no entanto, não importa de verdade: a verdade sempre pode vir à tona quando as sociedades ultramarinas estão em causa.
Para entender o descontentamento do coletivo guianense devemos retraçar rapidamente a reconfiguração do Estado francês durante o século XX. Depois da Segunda Guerra Mundial – como o racismo era universalmente condenado, os movimentos de descolonização estavam crescendo e a própria natureza do capital estava se transformando – a França revisou seu vocabulário oficial, renunciou a suas práticas imperiais e sugeriu parceria – e não o mero domínio – a suas antigas colônias. Eles chamaram a nova configuração de União Francesa, ligando a França continental – agora chamada de “Hexágono” – às suas ex-colônias como parceiros iguais, com Paris como guia.
Paris reconheceu que precisava de suas colônias. Seus recursos seriam essenciais para a reconstrução no pós-guerra e sua associação manteve o status de França como uma potência global. Enquanto o Estado investiu dinheiro em estradas, portos e outras obras de infraestrutura, pouco fez para acabar com a dependência, poder assimétrico ou racismo. No primeiro programa de desenvolvimento da França pós-guerra (1947-1954), afirmou que o desenvolvimento era impossível em partes de seu antigo império: Reunião, Guadalupe, Guiana e Martinica (que se tornaram departamentos em 1946), Mayotte, Nova Caledônia e Polinésia Francesa. Para garantir que essa análise se concretizasse, o Estado implementou duas políticas: emigração e controle de natalidade.
Durante toda a década de 1950 a França implementou essa política do “desenvolvimento impossível”. Ele destruiu a indústria local, aumentando o desemprego e a dependência. Milhares de jovens iam à França todos os anos para trabalhar em fábricas ou empregos públicos de baixo nível, onde enfrentaram formas metropolitanas de discriminação. Em suas terras natais, mulheres negras e pobres sofreram abortos forçados, esterilização e contracepção.
O Estado reprimiu os movimentos anticolonialistas e trabalhistas; a polícia francesa, o exército e as milícias privadas espancaram, prenderam e assassinaram líderes da resistência. O Estado rejeitou sistematicamente, reprimiu e condenou as demandas de autonomia ou independência e subjugou línguas, religiões e culturas não europeias. A fraude eleitoral garantiu que os conservadores leais permaneceram no poder. A França apresentou incansavelmente duas mensagens: “O futuro está em outro lugar” e “Não há alternativa à dependência”.
No final dos anos 1950, a França tinha preservado sua União, mas a guerra na Argélia exigiu uma segunda reconfiguração da República Francesa. Agora, a França seria totalmente europeia – apenas o “Hexágono” – e deixaria seu colonialismo no passado.
No entanto, sequer um ano se passou sem revoltas, greves e manifestações contra a censura e a fraude. As pessoas se levantaram na Martinica em 1959, na Ilha da Reunião em 1962, 1991 e 2012, em Guadalupe, em 1967, e na Nova Caledônia, em 1988, provando que a pacificação nunca teve êxito total. Os programas governamentais lançados em resposta a essas lutas, destinados a enfraquecer a desigualdade e aliviar o descontentamento, não produziram desenvolvimento econômico. Em vez disso, eles pretendiam manter o controle francês e oferecer ao Capital novos mercados para explorar.
Em 1999, a taxa de pobreza em todos os territórios ultramarinos era mais elevada do que em qualquer região francesa. Quase metade dos jovens com menos de vinte e cinco anos não tinha diploma (em comparação com um quinto na França); na Guiana, 50% da população deixou a escola ainda no nível primário. Na Martinica, a percentagem de crianças que vivem abaixo do nível de pobreza é quase o dobro daquela da França (13% e 8%, respectivamente); enquanto, na Guiana, 32% – quatro vezes o número no Hexágono – não podia pagar as suas necessidades básicas.
Apesar desta pobreza desenfreada, o custo de vida disparou, subindo entre 12% e 30% mais do que em Paris – o que se explica ao menos em parte por mais de 80% dos produtos serem importados da França. (Mesmo o café cultivado no Brasil deve viajar para a França antes de voltar para a América do Sul). Enquanto isso, os testes nucleares, o uso de pesticidas proibidos na Europa, a mineração de níquel, bem como a mineração de ouro ilegal e a infraestrutura de estilo europeu devastaram a terra e a saúde da população.
Em todos os territórios ultramarinos o racismo dividiu a população. As prisões estavam superpovoadas; negros e indígenas foram mantidos no fundo do poço social. Os funcionários públicos estaduais – que tendem a ser homens brancos franceses – recebem salários mais elevados do que os servidores públicos na França e pagam menos impostos. Esses burocratas locais lideraram greves, no início da década de 1950, para conquistar esses privilégios coloniais: salários mais altos, menos impostos e outras regalias financeiras, como viagens com suas famílias rumo à “pátria mãe”. Apresentavam suas reivindicações como reparação do colonialismo, mas os benefícios que receberam criaram uma assimetria duradoura entre a população local e os funcionários públicos de classe média.
A propriedade da terra está em disputa em toda parte, como resultado de séculos de colonialismo. Os descendentes dos senhores de escravos foram autorizados a manter suas terras após a abolição da escravidão em 1848, quando as receberam como compensação pela perda de sua propriedade escravizada. Os libertos não tinham acesso à terra e o Estado francês aplicava direitos à terra que expropriavam os nativos, reforçavam os privilégios dos grandes proprietários de terras e favoreciam os colonizadores brancos. Na Guiana, o Estado detém 80% da terra e não paga impostos sobre a propriedade. Em 2017, o desemprego, a dependência, o analfabetismo e o subdesenvolvimento continuam a definir os territórios ultramarinos.
Os políticos do Hexágono reclamam regularmente que os territórios ultramarinos “custam” o povo francês. Os benefícios oferecidos às multinacionais francesas e o fato de que o dinheiro público é reciclado para as empresas francesas e não para a indústria local desmente essas afirmações. Mesmo para o Estado francês, a continuação da propriedade dessas terras paga dividendos. Os territórios ultramarinos asseguram o estatuto nacional de potência marítima global, garantem a sua presença em todas as instituições regionais, fornecem terrenos para bases militares, vigilância por satélite e investigação científica e abrem novos mercados para os produtos franceses.
Simplificando, longe de se esquecer dos seus territórios ultramarinos, o Estado francês concebeu a sua configuração espacial e sua economia tendo eles plenamente em mente. Paris tem trabalhado para manter a dependência ao mesmo tempo em que concedeu alguns direitos de deliberação e decisão à população local, após intensas lutas. Este limitado poder local colocou os conselhos locais como responsáveis pelo desenvolvimento, libertando a França continental de qualquer responsabilidade.
O racismo colonial persiste, mas o Estado não é o único culpado. A esquerda francesa e os movimentos progressistas não se descolonizaram, eles próprios, a contento. Em 1956, Aimé Césaire se desligou do Partido Comunista Francês citando o fato de que o racismo colonial inevitavelmente contamina a sociedade colonizadora com uma crença na superioridade europeia, tornando-os incapazes de entender as demandas dos povos colonizados. Sua visão ainda é, infelizmente, atual.
Além disso, as políticas do Estado não poderiam ter sido implementadas sem proponentes locais, que brandissem seu status como cidadãos europeus e aqueles privilégios associados contra seus vizinhos indígenas. Não apenas os funcionários públicos, mas também trabalhadores sociais, professores, líderes políticos e artistas.
Mais recentemente, a xenofobia aumentou sensivelmente nos territórios ultramarinos. Em Mayotte, em Reunião, nas Antilhas e na Guiana, os habitantes locais associam novos migrantes a uma maior criminalidade, tirando proveito dos benefícios sociais e não trabalhando, não sendo “como nós”. Em Mayotte, os “estrangeiros” – normalmente oriundos de Camarões – são expulsos em maior número do que na França; os Maores chegam até a organizar a destruição de suas casas! Em outras palavras, a fabricação local do consentimento não pode ser ignorada. Na Guiana, ainda que alguns membros do coletivo Pou La Gwiyann dékolé demandem penas mais duras e até mesmo a expulsão de prisioneiros estrangeiros, nunca passaram aos ataques aos imigrantes.
O movimento guianês representa um momento histórico. A capacidade do coletivo para mobilizar, organizar e reagir a eventos em desenvolvimento tem sido impressionante. Ao recusar-se a incluir funcionários eleitos, comunicando os resultados das negociações à multidão, permitindo que os meios de comunicação participem na maioria de suas reuniões e falando em crioulo guianês, os membros da Pou La Gwiyann dékolé estão inventando uma nova forma de deliberação e intervenção.
O coletivo inclui uma série de povos indígenas e Bushinenge (quilombolas). O grupo que domina o coletivo – os chamados “quinhentos irmãos” – formou-se para protestar contra a crescente taxa de assassinatos e exigir a expulsão de prisioneiros não-guianenses, bem como a construção de mais prisões, tribunais e delegacias. Eles imediatamente atraíram a atenção da mídia, pois seus líderes falam eloquentemente sobre a situação na Guiana e até agora mantiveram a unidade entre os diferentes grupos do coletivo.
Algumas de suas perguntas, entretanto, permanecem não apenas sem resposta, mas também não solicitadas: o que causa a criminalidade? Que posição toma o coletivo em relação aos migrantes e seus filhos nascidos na Guiana, que são cidadãos franceses? Que política de prevenção do crime eles imaginam? Mais policiais e mais deportações não apagarão a fronteira de setecentos quilômetros com o Brasil ou a fronteira de quinhentos quilômetros com o Suriname ou o aumento da pobreza que o capitalismo produziu. Embora haja, obviamente, um problema “franco-guianês”, a emancipação também deve ser imaginada com o contexto regional e global em mente. Os territórios ultramarinos franceses não existem no vácuo nem em relação exclusiva à França. A política e a economia regionais e globais devem ser consideradas.
No dia 2 de abril os membros do coletivo acrescentaram um novo item às suas demandas: uma discussão sobre o status administrativo da Guiana. Com isso, reapareceu a velha pergunta: como deveria a república francesa se relacionar com seus territórios ultramarinos? As demandas de autonomia ou independência nas décadas de 1960 e 1970 foram brutalmente reprimidas, e a possibilidade de imaginar outra estrutura administrativa foi excluída. No entanto, a posterior aplicação da hegemonia cultural e da pacificação não apagou as lembranças dessas lutas.
Movimentos anticoloniais naquele período fizeram uso de lutadores icônicos – quilombolas, rebeldes e artistas revolucionários – cujas memórias foram reativadas através de canções e poemas. O movimento atual também se baseia em referências revolucionárias e locais, como elogiar os espíritos de dois elementos essenciais: terra e água. Eles também apresentam sua luta no contexto de movimentos passados. Durante a Marcha de Terça-feira rumo a Kourou, os manifestantes inauguraram um monumento que celebra a memória de Martin Luther King Jr (que foi assassinado naquele dia, em 1968) e em honra de John Carlos e Tommie Smith (que levantou os punhos nos Jogos Olímpicos de 1968).
A mídia tende a prestar atenção apenas à discriminação racial na França continental, mas os movimentos políticos, sociais e culturais nos territórios ultramarinos, desde os primeiros anos da descolonização até hoje, tornam visível o colonialismo da república francesa. Embora historicamente e culturalmente situadas em todo o mundo, as colônias restantes da França pertencem ao Sul Global, todas ligadas a um Estado europeu com um passado imperial longo e uma história de descolonização repleta de violência.
Manifestantes em Kouru, Guiana em abril de 2017. Créditos: Jeremy Beck. |
Tradução / Em março, sindicatos e associações da Guiana Francesa organizaram um coletivo chamado Pou La Gwiyann dékolé, que significa, no crioulo guianês, “pela separação da Guiana”. Desde então, os ativistas planejaram manifestações, bloquearam estradas, fecharam cidades e comércio marítimo, organizaram uma greve geral e realizaram marchas que reuniram amplos estratos da população, desde estudantes do ensino médio e advogados até camponeses, agricultores e populações indígenas.
Eles apresentaram um memorando de quarenta páginas aos ministros franceses listando suas demandas, abrangendo saúde, educação, agricultura, desenvolvimento e segurança. O movimento denuncia como sucessivos governos franceses trataram a Guiana, citando a infraestrutura em ruínas da região; a falta de segurança e desenvolvimento; a crescente desigualdade e discriminação e o desrespeito generalizado. Os manifestantes repetidamente gritaram “Determinado!” e “Nou bon ké sa” (algo como “Basta!”). Carregaram a bandeira guianesa e cantaram em homenagem a seu país: a Guiana.
O sucesso do coletivo tem sido notável. Os bloqueios de trânsito, sit-ins [“sentaços”], marchas e a paralisação da capital, Cayenne, galvanizaram milhares de pessoas em protestos pacíficos. Os porta-vozes do coletivo mantiveram a multidão informada durante as conversações com o governo. Em 2 de abril, rejeitaram a oferta do governo de desembolsar pouco mais de 1 bilhão de euros; no dia seguinte, o primeiro-ministro declarou que a demanda coletiva por € 2,5 bilhões era “irrealista”.
Pou La Gwiyann dékolé prometeu continuar suas mobilizações e, em 4 de abril, milhares caminharam em direção a Kourou, a base aeroespacial europeia. Eles organizaram um “sit-in” na entrada, e trinta pessoas – incluindo mandatários eleitos, que o coletivo tinha anteriormente alijado – ocuparam o local. No dia seguinte o governo reiterou sua oferta de 1,086 bilhões de euros.
A ocupação terminou logo após a resposta decepcionante do Estado. Os ativistas expressaram sua frustração, denunciaram a contínua falta de respeito do governo e falaram da unidade da Guiana e do endurecimento do movimento. Na quinta-feira, o coletivo manteve seus bloqueios e começou a discutir novas estratégias.
Em maio, a França elegerá um novo presidente, e um novo parlamento virá em junho. Mas Pou La Gwiyann dékolé se recusa a ser refém da política francesa. Em cada barricada, em cada marcha e manifestação, eles gritam o que se tornou seu lema: “Determinado!”.
O movimento levanta questões familiares: que tipo de república reivindica o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” enquanto ainda governa tantas ex-colônias? Que tipo de poder imperial está sendo empregado agora? Muitos políticos na França continental repetem o clichê de que essas áreas são “território esquecido”, uma frase que implica amnésia. Em vez disso, não deveríamos discutir as escolhas políticas que criaram o esquecimento e a dependência?
Quando as notícias de um dos treze territórios ultramarinos franceses habitados chegam a Paris os meios de comunicação franceses respondem com surpresa, o público com descaso e os políticos com as mesmas velhas promessas de se lembrar mais dessas regiões. Essas respostas desempenharam papéis essenciais na reconfiguração do espaço republicano francês, transformando o que resta do império francês em um mapa mutilado de controle imperial.
O movimento de resistência guianense está desenvolvendo novas estratégias para conquistar a autodeterminação. Ainda que não consigam trazer a democracia e o desenvolvimento necessários para a Guiana, a sua luta pode ajudar-nos a compreender como a história colonial da França continua a moldar a vida dos seus súditos em todo o mundo.
A União Francesa no pós-guerra
Apesar do fato de Paris ainda governar territórios no Pacífico, no Oceano Índico, no Caribe e na América do Sul, as pessoas que vivem na França continental compartilham da convicção de que, após 1962, seu país abandonou qualquer forma de colonialismo. Os territórios ultramarinos desapareceram da consciência e este véu de ignorância impediu os franceses de se perguntarem por que tantas áreas supostamente descolonizadas ainda vivem sob o domínio imperial.
Lembrar a existência dessas regiões desencadeia uma de duas respostas. Alguns afirmam ter “amor e afeto eterno” para com os territórios e suas populações, enquanto outros se voltam para o discurso familiar da dependência, descrevendo seus concidadãos como preguiçosos, amargos, inconsequentes e irrealistas.
Em ambos os lados, os fatos permanecem vagos. Os ativistas precisam sempre repetir informações geográficas, sociais e políticas; os cidadãos franceses parecem incapazes de acumular esses conhecimentos, não importa quantas vezes eles os ouçam. Sua ignorância, no entanto, não importa de verdade: a verdade sempre pode vir à tona quando as sociedades ultramarinas estão em causa.
Para entender o descontentamento do coletivo guianense devemos retraçar rapidamente a reconfiguração do Estado francês durante o século XX. Depois da Segunda Guerra Mundial – como o racismo era universalmente condenado, os movimentos de descolonização estavam crescendo e a própria natureza do capital estava se transformando – a França revisou seu vocabulário oficial, renunciou a suas práticas imperiais e sugeriu parceria – e não o mero domínio – a suas antigas colônias. Eles chamaram a nova configuração de União Francesa, ligando a França continental – agora chamada de “Hexágono” – às suas ex-colônias como parceiros iguais, com Paris como guia.
Paris reconheceu que precisava de suas colônias. Seus recursos seriam essenciais para a reconstrução no pós-guerra e sua associação manteve o status de França como uma potência global. Enquanto o Estado investiu dinheiro em estradas, portos e outras obras de infraestrutura, pouco fez para acabar com a dependência, poder assimétrico ou racismo. No primeiro programa de desenvolvimento da França pós-guerra (1947-1954), afirmou que o desenvolvimento era impossível em partes de seu antigo império: Reunião, Guadalupe, Guiana e Martinica (que se tornaram departamentos em 1946), Mayotte, Nova Caledônia e Polinésia Francesa. Para garantir que essa análise se concretizasse, o Estado implementou duas políticas: emigração e controle de natalidade.
Durante toda a década de 1950 a França implementou essa política do “desenvolvimento impossível”. Ele destruiu a indústria local, aumentando o desemprego e a dependência. Milhares de jovens iam à França todos os anos para trabalhar em fábricas ou empregos públicos de baixo nível, onde enfrentaram formas metropolitanas de discriminação. Em suas terras natais, mulheres negras e pobres sofreram abortos forçados, esterilização e contracepção.
O Estado reprimiu os movimentos anticolonialistas e trabalhistas; a polícia francesa, o exército e as milícias privadas espancaram, prenderam e assassinaram líderes da resistência. O Estado rejeitou sistematicamente, reprimiu e condenou as demandas de autonomia ou independência e subjugou línguas, religiões e culturas não europeias. A fraude eleitoral garantiu que os conservadores leais permaneceram no poder. A França apresentou incansavelmente duas mensagens: “O futuro está em outro lugar” e “Não há alternativa à dependência”.
No final dos anos 1950, a França tinha preservado sua União, mas a guerra na Argélia exigiu uma segunda reconfiguração da República Francesa. Agora, a França seria totalmente europeia – apenas o “Hexágono” – e deixaria seu colonialismo no passado.
No entanto, sequer um ano se passou sem revoltas, greves e manifestações contra a censura e a fraude. As pessoas se levantaram na Martinica em 1959, na Ilha da Reunião em 1962, 1991 e 2012, em Guadalupe, em 1967, e na Nova Caledônia, em 1988, provando que a pacificação nunca teve êxito total. Os programas governamentais lançados em resposta a essas lutas, destinados a enfraquecer a desigualdade e aliviar o descontentamento, não produziram desenvolvimento econômico. Em vez disso, eles pretendiam manter o controle francês e oferecer ao Capital novos mercados para explorar.
Em 1999, a taxa de pobreza em todos os territórios ultramarinos era mais elevada do que em qualquer região francesa. Quase metade dos jovens com menos de vinte e cinco anos não tinha diploma (em comparação com um quinto na França); na Guiana, 50% da população deixou a escola ainda no nível primário. Na Martinica, a percentagem de crianças que vivem abaixo do nível de pobreza é quase o dobro daquela da França (13% e 8%, respectivamente); enquanto, na Guiana, 32% – quatro vezes o número no Hexágono – não podia pagar as suas necessidades básicas.
Apesar desta pobreza desenfreada, o custo de vida disparou, subindo entre 12% e 30% mais do que em Paris – o que se explica ao menos em parte por mais de 80% dos produtos serem importados da França. (Mesmo o café cultivado no Brasil deve viajar para a França antes de voltar para a América do Sul). Enquanto isso, os testes nucleares, o uso de pesticidas proibidos na Europa, a mineração de níquel, bem como a mineração de ouro ilegal e a infraestrutura de estilo europeu devastaram a terra e a saúde da população.
Em todos os territórios ultramarinos o racismo dividiu a população. As prisões estavam superpovoadas; negros e indígenas foram mantidos no fundo do poço social. Os funcionários públicos estaduais – que tendem a ser homens brancos franceses – recebem salários mais elevados do que os servidores públicos na França e pagam menos impostos. Esses burocratas locais lideraram greves, no início da década de 1950, para conquistar esses privilégios coloniais: salários mais altos, menos impostos e outras regalias financeiras, como viagens com suas famílias rumo à “pátria mãe”. Apresentavam suas reivindicações como reparação do colonialismo, mas os benefícios que receberam criaram uma assimetria duradoura entre a população local e os funcionários públicos de classe média.
A propriedade da terra está em disputa em toda parte, como resultado de séculos de colonialismo. Os descendentes dos senhores de escravos foram autorizados a manter suas terras após a abolição da escravidão em 1848, quando as receberam como compensação pela perda de sua propriedade escravizada. Os libertos não tinham acesso à terra e o Estado francês aplicava direitos à terra que expropriavam os nativos, reforçavam os privilégios dos grandes proprietários de terras e favoreciam os colonizadores brancos. Na Guiana, o Estado detém 80% da terra e não paga impostos sobre a propriedade. Em 2017, o desemprego, a dependência, o analfabetismo e o subdesenvolvimento continuam a definir os territórios ultramarinos.
Os políticos do Hexágono reclamam regularmente que os territórios ultramarinos “custam” o povo francês. Os benefícios oferecidos às multinacionais francesas e o fato de que o dinheiro público é reciclado para as empresas francesas e não para a indústria local desmente essas afirmações. Mesmo para o Estado francês, a continuação da propriedade dessas terras paga dividendos. Os territórios ultramarinos asseguram o estatuto nacional de potência marítima global, garantem a sua presença em todas as instituições regionais, fornecem terrenos para bases militares, vigilância por satélite e investigação científica e abrem novos mercados para os produtos franceses.
Simplificando, longe de se esquecer dos seus territórios ultramarinos, o Estado francês concebeu a sua configuração espacial e sua economia tendo eles plenamente em mente. Paris tem trabalhado para manter a dependência ao mesmo tempo em que concedeu alguns direitos de deliberação e decisão à população local, após intensas lutas. Este limitado poder local colocou os conselhos locais como responsáveis pelo desenvolvimento, libertando a França continental de qualquer responsabilidade.
O racismo colonial persiste, mas o Estado não é o único culpado. A esquerda francesa e os movimentos progressistas não se descolonizaram, eles próprios, a contento. Em 1956, Aimé Césaire se desligou do Partido Comunista Francês citando o fato de que o racismo colonial inevitavelmente contamina a sociedade colonizadora com uma crença na superioridade europeia, tornando-os incapazes de entender as demandas dos povos colonizados. Sua visão ainda é, infelizmente, atual.
Além disso, as políticas do Estado não poderiam ter sido implementadas sem proponentes locais, que brandissem seu status como cidadãos europeus e aqueles privilégios associados contra seus vizinhos indígenas. Não apenas os funcionários públicos, mas também trabalhadores sociais, professores, líderes políticos e artistas.
Mais recentemente, a xenofobia aumentou sensivelmente nos territórios ultramarinos. Em Mayotte, em Reunião, nas Antilhas e na Guiana, os habitantes locais associam novos migrantes a uma maior criminalidade, tirando proveito dos benefícios sociais e não trabalhando, não sendo “como nós”. Em Mayotte, os “estrangeiros” – normalmente oriundos de Camarões – são expulsos em maior número do que na França; os Maores chegam até a organizar a destruição de suas casas! Em outras palavras, a fabricação local do consentimento não pode ser ignorada. Na Guiana, ainda que alguns membros do coletivo Pou La Gwiyann dékolé demandem penas mais duras e até mesmo a expulsão de prisioneiros estrangeiros, nunca passaram aos ataques aos imigrantes.
Guiana, o Mundo
O movimento guianês representa um momento histórico. A capacidade do coletivo para mobilizar, organizar e reagir a eventos em desenvolvimento tem sido impressionante. Ao recusar-se a incluir funcionários eleitos, comunicando os resultados das negociações à multidão, permitindo que os meios de comunicação participem na maioria de suas reuniões e falando em crioulo guianês, os membros da Pou La Gwiyann dékolé estão inventando uma nova forma de deliberação e intervenção.
O coletivo inclui uma série de povos indígenas e Bushinenge (quilombolas). O grupo que domina o coletivo – os chamados “quinhentos irmãos” – formou-se para protestar contra a crescente taxa de assassinatos e exigir a expulsão de prisioneiros não-guianenses, bem como a construção de mais prisões, tribunais e delegacias. Eles imediatamente atraíram a atenção da mídia, pois seus líderes falam eloquentemente sobre a situação na Guiana e até agora mantiveram a unidade entre os diferentes grupos do coletivo.
Algumas de suas perguntas, entretanto, permanecem não apenas sem resposta, mas também não solicitadas: o que causa a criminalidade? Que posição toma o coletivo em relação aos migrantes e seus filhos nascidos na Guiana, que são cidadãos franceses? Que política de prevenção do crime eles imaginam? Mais policiais e mais deportações não apagarão a fronteira de setecentos quilômetros com o Brasil ou a fronteira de quinhentos quilômetros com o Suriname ou o aumento da pobreza que o capitalismo produziu. Embora haja, obviamente, um problema “franco-guianês”, a emancipação também deve ser imaginada com o contexto regional e global em mente. Os territórios ultramarinos franceses não existem no vácuo nem em relação exclusiva à França. A política e a economia regionais e globais devem ser consideradas.
No dia 2 de abril os membros do coletivo acrescentaram um novo item às suas demandas: uma discussão sobre o status administrativo da Guiana. Com isso, reapareceu a velha pergunta: como deveria a república francesa se relacionar com seus territórios ultramarinos? As demandas de autonomia ou independência nas décadas de 1960 e 1970 foram brutalmente reprimidas, e a possibilidade de imaginar outra estrutura administrativa foi excluída. No entanto, a posterior aplicação da hegemonia cultural e da pacificação não apagou as lembranças dessas lutas.
Movimentos anticoloniais naquele período fizeram uso de lutadores icônicos – quilombolas, rebeldes e artistas revolucionários – cujas memórias foram reativadas através de canções e poemas. O movimento atual também se baseia em referências revolucionárias e locais, como elogiar os espíritos de dois elementos essenciais: terra e água. Eles também apresentam sua luta no contexto de movimentos passados. Durante a Marcha de Terça-feira rumo a Kourou, os manifestantes inauguraram um monumento que celebra a memória de Martin Luther King Jr (que foi assassinado naquele dia, em 1968) e em honra de John Carlos e Tommie Smith (que levantou os punhos nos Jogos Olímpicos de 1968).
A mídia tende a prestar atenção apenas à discriminação racial na França continental, mas os movimentos políticos, sociais e culturais nos territórios ultramarinos, desde os primeiros anos da descolonização até hoje, tornam visível o colonialismo da república francesa. Embora historicamente e culturalmente situadas em todo o mundo, as colônias restantes da França pertencem ao Sul Global, todas ligadas a um Estado europeu com um passado imperial longo e uma história de descolonização repleta de violência.
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