MARCELO MEDEIROS
ilustração MARIA LYNCH |
A Previdência não é um problema. É uma solução, e das mais importantes: ela protege pessoas que perderam parte de sua capacidade de trabalhar.
A proposta que está em pauta no Congresso, entretanto, encara a Previdência como problema, não como solução. Daí por que sua motivação central é economizar dinheiro no futuro.
Mais ainda, dá pouca atenção ao fato de que o Brasil é incrivelmente desigual. Tanto assim que a reforma, até o momento, tem três características principais: não traz benefícios adicionais aos mais pobres, é injusta com as mulheres e complacente com os mais ricos.
Trata-se de importante medida de ajuste fiscal, mas sem intenção de ser socialmente responsável.
Nada há de errado em se preocupar com os gastos. Como a Previdência tem forte impacto nas contas públicas, o aumento das despesas precisa ser controlado.
Sem reformas, ou com modificações parciais que mantenham privilégios, os desembolsos com aposentadorias e pensões consumirão boa parte do dinheiro que o país deveria investir em outras áreas, como saúde, educação e infraestrutura.
A pergunta crucial, portanto, não é se devemos controlar gastos, mas quais gastos devemos controlar. A resposta deveria soar óbvia.
A Previdência, tanto quanto o Brasil, é extremamente desigual. Os números variam conforme o ano, mas, arredondando, eis a regra de bolso: entre os aposentados, o 1% mais rico fica com fatia equivalente à da metade mais pobre. Em outra comparação, 50% dos recursos previdenciários vão para os 10% mais ricos, enquanto 25% vão para os 66% mais pobres, pelo que mostra a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE.
Quando se quer economizar, o mais sensato é olhar antes para onde mais se gasta. Se o país precisa poupar recursos, é melhor mirar as aposentadorias mais altas. Faz sentido que seja assim. Diminuir despesas com os mais ricos não só afeta bem menos pessoas como também promove economia muito maior.
Assim, a tentativa de equilibrar as contas da Previdência poderia contemplar contribuições progressivas –isto é, proporcionalmente maiores para quem ganha mais– e deveria passar necessariamente pela fixação de um teto válido para todos, inclusive militares, funcionários estaduais e municipais.
Aliás, se a reforma ao menos atingisse todos os servidores, como prometeu vagamente o governo de Michel Temer (PMDB), a pressão sobre o caixa cairia o suficiente para permitir transição mais suave e menos restrições à aposentadoria dos mais pobres e das mulheres.
PREJUÍZOS
Diferentemente do que sugeriram Mansueto Almeida e Marcos Mendes em artigo publicado neste caderno ("Ilustríssima", 26/3), não há nenhum sinal de que a proposta beneficiará a população de baixa renda. É certo, por outro lado, que trará prejuízos se não for alterada.
"População de baixa renda" talvez seja uma expressão abstrata. Em termos concretos, esse é o contingente que reúne de metade a dois terços da população nacional. Ou seja, de 100 milhões a 130 milhões de brasileiros com dificuldade para bancar moradia decente, por exemplo, ou compensar aquilo que o SUS não oferece.
Essas pessoas, um dia, precisarão se aposentar. O país deve cuidar delas, não só dos miseráveis.
A proposta do governo, porém, inclui três medidas excessivamente restritivas para os mais pobres, e só o faz porque lhes impõe as mesmas regras válidas para os mais ricos.
A primeira eleva de 15 para 25 anos o tempo mínimo de contribuição. A segunda aumenta de 65 para 70 anos a idade mínima para o acesso à assistência social dos idosos. A terceira torna menores as aposentadorias de quem contribuir por menos de 49 anos.
Embora muita gente manifeste preocupação com fixação de uma idade mínima, o maior problema está no tempo de contribuição.
Idades mínimas tendem a tornar a Previdência mais igualitária, já que os trabalhadores mais bem posicionados são os que têm mais facilidade para acumular o tempo de contribuição necessário.
É razoável que, para fazer jus à aposentadoria, seja preciso contribuir, e não apenas trabalhar. O dinheiro, afinal, precisa vir de algum lugar. Exigir muitos anos de contribuição, contudo, penaliza os mais vulneráveis.
INFORMALIDADE
São dois problemas distintos. O primeiro, mais grave, é a limitação do acesso criada pelo simples aumento do tempo mínimo de contribuição. O segundo, o desconto aplicado a quem se aposentar com menos de 49 anos de contribuição.
Ter emprego estável, de boa qualidade e com carteira assinada não constitui regra, mas exceção. Não há nenhum problema em cobrar períodos longos de contribuição dessa parcela minoritária. Em relação à maioria dos brasileiros, no entanto, a exigência resulta injusta. Quem mais depende da Previdência é quem tem mais dificuldade para manter contribuições por anos a fio.
As restrições da reforma serão ruins para os mais pobres porque muito trabalhador terá de permanecer ativo depois dos 65 anos para cumprir os 25 anos de contribuição.
Continuar ativo após os 65 anos talvez não pareça excessivo para quem se dedica a tarefas intelectuais. Para a maioria, porém, a realidade é outra. Quem de fato precisa da aposentadoria e da assistência fez trabalho pesado a vida inteira.
Não precisa ser especialista; basta olhar ao redor. A massa de trabalhadores de baixa renda no Brasil está na construção civil, nos empregos domésticos, na limpeza, na manutenção e em outras ocupações que exigem esforço físico intenso demais para idosos.
Os números variam ao longo do tempo, mas, historicamente, mais ou menos metade da força de trabalho está na informalidade. São pessoas que, trabalhando duro e ganhando pouco, nem sempre têm renda para contribuir como autônomo ou microempresa individual. Além disso, há muito desemprego, subemprego e rotatividade de empregos no Brasil.
Isso significa que metade do país terá dificuldade para cumprir o mínimo de 25 anos. Alguns conseguirão, outros não.
A regra proposta pelo governo é injusta. Melhor seria se trabalhadores com 15 a 24 anos de contribuição pudessem se aposentar recebendo o mínimo aos 65 anos de idade. Essa alternativa seria mais sensível com a população pobre e não causaria grande pressão nas contas, pois o maior problema está nas aposentadorias de valor elevado.
BPC
Especialmente ruim para os pobres é a proposta de restringir o acesso ao BPC (Benefício de Prestação Continuada), bem como diminuir seu valor. Trata-se de benefício de assistência social destinado a idosos que não têm renda para viver de forma aceitável.
Pelas regras atuais, pode receber o BPC aquele que, tendo pelo menos 65 anos, não contribuiu o suficiente para se aposentar e é extremamente pobre –a renda de sua família não pode superar um quarto de salário mínimo por pessoa.
O governo propõe elevar essa idade de 65 para 70 anos. Quem vai contratar um pedreiro ou uma faxineira de 69 anos? De 66? São essas as pessoas que precisam do BPC aos 65 anos. Aumentar a idade de acesso não garantirá que elas trabalhem mais e certamente vai deixá-las desprotegidas. Em suma, a medida ampliará a pobreza entre os idosos, um problema que o Brasil vinha conseguindo resolver.
A economia compensa?
Ninguém tem a conta exata. Apenas se sabe que o dinheiro poupado será pouco, talvez de 1% a 2% do gasto previdenciário total, o que daria, quando muito, 0,1% do PIB. Ou seja, cifra irrelevante em relação ao tamanho do sacrifício imposto a idosos pobres.
Para piorar, pela proposta do governo, o BPC não teria mais seu valor associado ao salário mínimo. Se a economia voltar a crescer e o salário mínimo tiver ganhos acima da inflação, o BPC ficará para trás.
Criar outra desvantagem para idosos pobres é um bom caminho?
Não. A iniciativa não produz economia digna de nota. Se, numa hipótese surreal, o governo dobrasse o salário mínimo e congelasse as aposentadorias e pensões, o montante poupado chegaria a meros 10% do gasto previdenciário.
Num cenário mais realista, se o salário mínimo tiver aumento de 10% acima da inflação na próxima década, o impacto resultante do pagamento do BPC segundo as regras em vigor ficará em torno de 1% do que se gasta com Previdência hoje –um dinheiro, vale lembrar, direcionado a pessoas muito pobres.
De acordo com os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares, do IBGE, a despesa com as aposentadorias mais altas, o 1% mais rico dos aposentados, equivale a mais de dez vezes esse montante.
Na conta de curto prazo, as alterações no BPC têm muito mais de antipatia em relação à assistência social do que de preocupação objetiva com as finanças públicas.
No longo prazo, as restrições ao BPC em tese têm a ver com efeitos colaterais produzidos pela reforma. Ao dificultarem o acesso à aposentadoria, as mudanças propostas pelo governo empurrarão mais gente para a assistência social. Ou seja, sem endurecer as regras do BPC, haveria simples troca de parte da Previdência por assistência.
Ocorre que não há estimativa aceitável para vários dos custos sociais decorrentes de efeitos colaterais da reforma. Não foram apresentadas, porque inexistem, contas de quantas pessoas de baixa renda deixarão de se aposentar aos 65 anos por falta de contribuição. Portanto, o receio de aumento de procura do BPC não se baseia em nada que não seja especulação.
Espera-se que o relator da reforma na Câmara, deputado Arthur Maia (PPS-BA), retire da proposta essas mudanças, mantendo o benefício tal como é hoje. A julgar pelo que o próprio presidente Temer afirmou na quinta-feira (6), o governo se dispõe a aceitar o recuo.
MULHERES
As mulheres, em especial as de baixa renda, têm mais dificuldade em contribuir para a Previdência. Por uma série de razões, que vão da discriminação à falta de creches, elas saem do mercado formal quando cuidam de filhos e voltam mais tarde, depois de terem permanecido um período na informalidade ou sem trabalhar.
Aplicar as mesmas regras para homens e mulheres é ignorar esse fato e fazer cair sobre as mulheres mais pobres um peso desproporcional na economia de gastos.
Não se trata de corrigir desigualdades. É apenas questão de não propagá-las pela Previdência. As mulheres, mais do que os homens, terão dificuldade para cumprir os 25 anos mínimos de contribuição.
Além disso, serão mais afetadas por outro ponto da proposta: quem contribuir durante um mínimo de 25 anos, mas menos de 49, não receberá aposentadoria integral.
Em termos gerais, a ideia do governo é esta: quem se aposentar aos 65 anos receberá 51% da média dos salários de contribuição, além de um ponto percentual a mais para cada ano de contribuição. Como todos precisam contribuir pelo menos 25 anos, o mínimo a receber é 76% da média salarial (ou um salário mínimo, se este for maior).
Daí por que a aposentadoria integral (respeitado o teto de R$ 5.531) seria paga apenas mediante 49 anos de contribuição. Quem contribuir durante 35 anos, por exemplo, receberá 86% do valor integral (51 + 35).
Para os ricos, que fazem poupança ao longo da vida, é fácil compensar a diferença. Os pobres não podem se dar esse luxo. Terão de trabalhar mais tempo ou reduzir seu padrão de vida.
Quanto a isso, não tem sentido comparar a realidade do Brasil com a de países ricos, como fazem os economistas do governo. O desconto aplicado na Alemanha, na França ou na Austrália pode ser maior que o proposto na reforma brasileira, mas também é maior a capacidade de poupança de suas respectivas populações.
Basta imaginar um brasileiro que tenha recebido dois salários mínimos ao longo de toda a vida, mas sem conseguir contribuir de forma ininterrupta desde os 16 anos de idade e muito menos fazer poupança própria. O desconto fará falta.
Ao saírem de empregos formais para cuidar de filhos, as mulheres terão menos tempo de contribuição e, portanto, um desconto maior que o dos homens. É certo que elas terão contribuído menos, mas é injusto tratá-las da mesma forma.
Na maioria das vezes, elas não deixam de contribuir para a Previdência porque querem, mas porque não podem. Compensar isso exigiria uma sociedade com baixo desemprego, mínima informalidade e bons sistemas de creche e de saúde, coisas que não teremos nesta década ou na próxima.
Regras diferenciadas de tempo de contribuição para mulheres não dão vantagens a ninguém nem compensam o passado. Devem existir apenas para não que não se propaguem desigualdades.
POUPANÇA PÚBLICA
Entre os argumentos a favor da reforma da Previdência, o governo sustenta que o dinheiro economizado será usado para proteger crianças. A não ser que exista uma cláusula constitucional determinando a transferência desses recursos para projetos voltados à infância, a proposição é falsa.
Dado o período de transição, a reforma terá pouco efeito imediato em termos de economia de recursos. Mais importante, não se pode afirmar que o dinheiro poupado daqui a 15 anos vai para as crianças ou para os pobres, já que cabe ao Congresso e ao Executivo tomar essa decisão –até lá, teremos diversas renovações dos Poderes.
Nada impede que recursos economizados na Previdência venham a bancar supersalários ou propaganda, entre outros exemplos pouco edificantes.
Tampouco se pode prometer que essas quantias resultarão em benefícios para os mais pobres como consequência do crescimento da economia. Menos ainda que a eventual expansão irá beneficiar os aposentados pobres.
Primeiro, porque muitos dos gastos públicos não geram crescimento. Segundo, porque a economia pode se expandir de formas diferentes, e não está dado que todos ganharão igualmente com isso.
Estudos recentes mostram que, desde meados da década de 2000, o 1% mais rico da população se apropriou de cerca de 30% de todo o crescimento do país. O bolo aumentou, mas o pedaço maior ficou com os mais ricos.
Ou seja, mesmo que cada centavo preservado com a reforma fosse usado para estimular a economia brasileira, e mesmo que por causa disso a renda de todos melhorasse no mesmo padrão dos últimos anos, mais de um quarto do crescimento seria apropriado pelo topo da pirâmide. A metade mais pobre ficaria com algo em torno de 13%.
Em terceiro lugar, a lógica é inimiga do argumento de que os aposentados mais pobres serão beneficiados. Abuse da generosidade e imagine que toda a despesa economizada será convertida em crescimento e que todo o crescimento se traduzirá em criação de melhores postos de trabalho. Dado que aposentados não trabalham, como eles tirariam proveito disso?
Quarto, faça o raciocínio inverso. Abuse do ceticismo e suponha que essa economia de gastos é capturada por grupos de pressão. Como os mais pobres têm menos poder de barganha, é possível que o dinheiro economizado acabe, na verdade, por beneficiar os mais ricos, cuja capacidade de influência política é muito maior.
Nesse caso, restringir a Previdência prejudicará os pobres apenas para beneficiar os ricos.
PRIVILÉGIOS
Meses atrás, quando apresentou pela primeira vez suas ideias para a reforma, o governo parecia disposto a tornar a Previdência mais igualitária, submetendo todos às mesmas regras. Hoje está claro que o rigor válido para grupos mais fragilizados não se aplica aos que conseguem exercer pressão.
A tolerância com vantagens ou mesmo privilégios de alguns estamentos específicos tem duas consequências graves. Faz com que os trabalhadores mais vulneráveis paguem muito mais do que deveriam pelo pato do ajuste previdenciário e lança para o futuro a necessidade de novas mudanças capazes de equilibrar as contas.
No discurso original do governo, havia dois fatores importantes de redução de despesa: limitar a acumulação de aposentadorias e impor aos servidores públicos civis e militares o mesmo teto a que se submetem os trabalhadores da iniciativa privada.
Impedir o acúmulo de aposentadorias ainda faz parte da reforma; trata-se de medida que produz efeitos imediatos. Além disso, iniciativas adotadas em 2013 e reforçadas agora acelerarão o controle dos gastos com servidores federais.
O governo, contudo, recuou em relação aos servidores estaduais e municipais, deixando-os livres do teto. Como eles respondem por fatia relevante do deficit atual, a conta talvez tenha que ser paga por todos se o governo federal precisar criar um plano para resgatar as finanças de Estados e municípios.
Mais surpreendente ainda é o silêncio em que se mantêm os defensores da reforma quanto aos militares. Ninguém se apresentou para explicar por que o governo fala grosso com mulheres, trabalhadores do setor informal e idosos pobres, mas afina quando o assunto são as Forças Armadas.
Do ponto de vista técnico, nada no documento de justificativa da proposta recomenda a distinção.
Verdade que militares obedecem a normas especiais de aposentadoria em vários países. Nos EUA, por exemplo, podem se aposentar –ir para a reserva é, na prática, uma aposentadoria– antes dos 65 anos de idade, mas incide sobre seu benefício desconto similar ao proposto pela reforma brasileira, proporcional ao tempo de contribuição.
Não há problema na diferenciação de tratamento em si –como se viu, seria justo cobrar contribuições maiores de quem ganha mais e exigir menos tempo de contribuição de grupos vulneráveis.
O problema está na concessão de imunidade a grupos privilegiados e na imposição de regras espartanas aos demais.
A reforma da Previdência precisa ser discutida de uma vez e para todos, sem deixar para depois problemas que o governo prefere não enfrentar agora –especialmente quando esse gesto se traduz numa conta pesada demais para as pessoas de renda mais baixa. Como isso não foi feito, é profundamente injusto insistir em regras rigorosas para a população mais vulnerável.
A proposta que está em pauta no Congresso, entretanto, encara a Previdência como problema, não como solução. Daí por que sua motivação central é economizar dinheiro no futuro.
Mais ainda, dá pouca atenção ao fato de que o Brasil é incrivelmente desigual. Tanto assim que a reforma, até o momento, tem três características principais: não traz benefícios adicionais aos mais pobres, é injusta com as mulheres e complacente com os mais ricos.
Trata-se de importante medida de ajuste fiscal, mas sem intenção de ser socialmente responsável.
Nada há de errado em se preocupar com os gastos. Como a Previdência tem forte impacto nas contas públicas, o aumento das despesas precisa ser controlado.
Sem reformas, ou com modificações parciais que mantenham privilégios, os desembolsos com aposentadorias e pensões consumirão boa parte do dinheiro que o país deveria investir em outras áreas, como saúde, educação e infraestrutura.
A pergunta crucial, portanto, não é se devemos controlar gastos, mas quais gastos devemos controlar. A resposta deveria soar óbvia.
A Previdência, tanto quanto o Brasil, é extremamente desigual. Os números variam conforme o ano, mas, arredondando, eis a regra de bolso: entre os aposentados, o 1% mais rico fica com fatia equivalente à da metade mais pobre. Em outra comparação, 50% dos recursos previdenciários vão para os 10% mais ricos, enquanto 25% vão para os 66% mais pobres, pelo que mostra a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE.
Quando se quer economizar, o mais sensato é olhar antes para onde mais se gasta. Se o país precisa poupar recursos, é melhor mirar as aposentadorias mais altas. Faz sentido que seja assim. Diminuir despesas com os mais ricos não só afeta bem menos pessoas como também promove economia muito maior.
Assim, a tentativa de equilibrar as contas da Previdência poderia contemplar contribuições progressivas –isto é, proporcionalmente maiores para quem ganha mais– e deveria passar necessariamente pela fixação de um teto válido para todos, inclusive militares, funcionários estaduais e municipais.
Aliás, se a reforma ao menos atingisse todos os servidores, como prometeu vagamente o governo de Michel Temer (PMDB), a pressão sobre o caixa cairia o suficiente para permitir transição mais suave e menos restrições à aposentadoria dos mais pobres e das mulheres.
PREJUÍZOS
Diferentemente do que sugeriram Mansueto Almeida e Marcos Mendes em artigo publicado neste caderno ("Ilustríssima", 26/3), não há nenhum sinal de que a proposta beneficiará a população de baixa renda. É certo, por outro lado, que trará prejuízos se não for alterada.
"População de baixa renda" talvez seja uma expressão abstrata. Em termos concretos, esse é o contingente que reúne de metade a dois terços da população nacional. Ou seja, de 100 milhões a 130 milhões de brasileiros com dificuldade para bancar moradia decente, por exemplo, ou compensar aquilo que o SUS não oferece.
Essas pessoas, um dia, precisarão se aposentar. O país deve cuidar delas, não só dos miseráveis.
A proposta do governo, porém, inclui três medidas excessivamente restritivas para os mais pobres, e só o faz porque lhes impõe as mesmas regras válidas para os mais ricos.
A primeira eleva de 15 para 25 anos o tempo mínimo de contribuição. A segunda aumenta de 65 para 70 anos a idade mínima para o acesso à assistência social dos idosos. A terceira torna menores as aposentadorias de quem contribuir por menos de 49 anos.
Embora muita gente manifeste preocupação com fixação de uma idade mínima, o maior problema está no tempo de contribuição.
Idades mínimas tendem a tornar a Previdência mais igualitária, já que os trabalhadores mais bem posicionados são os que têm mais facilidade para acumular o tempo de contribuição necessário.
É razoável que, para fazer jus à aposentadoria, seja preciso contribuir, e não apenas trabalhar. O dinheiro, afinal, precisa vir de algum lugar. Exigir muitos anos de contribuição, contudo, penaliza os mais vulneráveis.
INFORMALIDADE
São dois problemas distintos. O primeiro, mais grave, é a limitação do acesso criada pelo simples aumento do tempo mínimo de contribuição. O segundo, o desconto aplicado a quem se aposentar com menos de 49 anos de contribuição.
Ter emprego estável, de boa qualidade e com carteira assinada não constitui regra, mas exceção. Não há nenhum problema em cobrar períodos longos de contribuição dessa parcela minoritária. Em relação à maioria dos brasileiros, no entanto, a exigência resulta injusta. Quem mais depende da Previdência é quem tem mais dificuldade para manter contribuições por anos a fio.
As restrições da reforma serão ruins para os mais pobres porque muito trabalhador terá de permanecer ativo depois dos 65 anos para cumprir os 25 anos de contribuição.
Continuar ativo após os 65 anos talvez não pareça excessivo para quem se dedica a tarefas intelectuais. Para a maioria, porém, a realidade é outra. Quem de fato precisa da aposentadoria e da assistência fez trabalho pesado a vida inteira.
Não precisa ser especialista; basta olhar ao redor. A massa de trabalhadores de baixa renda no Brasil está na construção civil, nos empregos domésticos, na limpeza, na manutenção e em outras ocupações que exigem esforço físico intenso demais para idosos.
Os números variam ao longo do tempo, mas, historicamente, mais ou menos metade da força de trabalho está na informalidade. São pessoas que, trabalhando duro e ganhando pouco, nem sempre têm renda para contribuir como autônomo ou microempresa individual. Além disso, há muito desemprego, subemprego e rotatividade de empregos no Brasil.
Isso significa que metade do país terá dificuldade para cumprir o mínimo de 25 anos. Alguns conseguirão, outros não.
A regra proposta pelo governo é injusta. Melhor seria se trabalhadores com 15 a 24 anos de contribuição pudessem se aposentar recebendo o mínimo aos 65 anos de idade. Essa alternativa seria mais sensível com a população pobre e não causaria grande pressão nas contas, pois o maior problema está nas aposentadorias de valor elevado.
BPC
Especialmente ruim para os pobres é a proposta de restringir o acesso ao BPC (Benefício de Prestação Continuada), bem como diminuir seu valor. Trata-se de benefício de assistência social destinado a idosos que não têm renda para viver de forma aceitável.
Pelas regras atuais, pode receber o BPC aquele que, tendo pelo menos 65 anos, não contribuiu o suficiente para se aposentar e é extremamente pobre –a renda de sua família não pode superar um quarto de salário mínimo por pessoa.
O governo propõe elevar essa idade de 65 para 70 anos. Quem vai contratar um pedreiro ou uma faxineira de 69 anos? De 66? São essas as pessoas que precisam do BPC aos 65 anos. Aumentar a idade de acesso não garantirá que elas trabalhem mais e certamente vai deixá-las desprotegidas. Em suma, a medida ampliará a pobreza entre os idosos, um problema que o Brasil vinha conseguindo resolver.
A economia compensa?
Ninguém tem a conta exata. Apenas se sabe que o dinheiro poupado será pouco, talvez de 1% a 2% do gasto previdenciário total, o que daria, quando muito, 0,1% do PIB. Ou seja, cifra irrelevante em relação ao tamanho do sacrifício imposto a idosos pobres.
Para piorar, pela proposta do governo, o BPC não teria mais seu valor associado ao salário mínimo. Se a economia voltar a crescer e o salário mínimo tiver ganhos acima da inflação, o BPC ficará para trás.
Criar outra desvantagem para idosos pobres é um bom caminho?
Não. A iniciativa não produz economia digna de nota. Se, numa hipótese surreal, o governo dobrasse o salário mínimo e congelasse as aposentadorias e pensões, o montante poupado chegaria a meros 10% do gasto previdenciário.
Num cenário mais realista, se o salário mínimo tiver aumento de 10% acima da inflação na próxima década, o impacto resultante do pagamento do BPC segundo as regras em vigor ficará em torno de 1% do que se gasta com Previdência hoje –um dinheiro, vale lembrar, direcionado a pessoas muito pobres.
De acordo com os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares, do IBGE, a despesa com as aposentadorias mais altas, o 1% mais rico dos aposentados, equivale a mais de dez vezes esse montante.
Na conta de curto prazo, as alterações no BPC têm muito mais de antipatia em relação à assistência social do que de preocupação objetiva com as finanças públicas.
No longo prazo, as restrições ao BPC em tese têm a ver com efeitos colaterais produzidos pela reforma. Ao dificultarem o acesso à aposentadoria, as mudanças propostas pelo governo empurrarão mais gente para a assistência social. Ou seja, sem endurecer as regras do BPC, haveria simples troca de parte da Previdência por assistência.
Ocorre que não há estimativa aceitável para vários dos custos sociais decorrentes de efeitos colaterais da reforma. Não foram apresentadas, porque inexistem, contas de quantas pessoas de baixa renda deixarão de se aposentar aos 65 anos por falta de contribuição. Portanto, o receio de aumento de procura do BPC não se baseia em nada que não seja especulação.
Espera-se que o relator da reforma na Câmara, deputado Arthur Maia (PPS-BA), retire da proposta essas mudanças, mantendo o benefício tal como é hoje. A julgar pelo que o próprio presidente Temer afirmou na quinta-feira (6), o governo se dispõe a aceitar o recuo.
MULHERES
As mulheres, em especial as de baixa renda, têm mais dificuldade em contribuir para a Previdência. Por uma série de razões, que vão da discriminação à falta de creches, elas saem do mercado formal quando cuidam de filhos e voltam mais tarde, depois de terem permanecido um período na informalidade ou sem trabalhar.
Aplicar as mesmas regras para homens e mulheres é ignorar esse fato e fazer cair sobre as mulheres mais pobres um peso desproporcional na economia de gastos.
Não se trata de corrigir desigualdades. É apenas questão de não propagá-las pela Previdência. As mulheres, mais do que os homens, terão dificuldade para cumprir os 25 anos mínimos de contribuição.
Além disso, serão mais afetadas por outro ponto da proposta: quem contribuir durante um mínimo de 25 anos, mas menos de 49, não receberá aposentadoria integral.
Em termos gerais, a ideia do governo é esta: quem se aposentar aos 65 anos receberá 51% da média dos salários de contribuição, além de um ponto percentual a mais para cada ano de contribuição. Como todos precisam contribuir pelo menos 25 anos, o mínimo a receber é 76% da média salarial (ou um salário mínimo, se este for maior).
Daí por que a aposentadoria integral (respeitado o teto de R$ 5.531) seria paga apenas mediante 49 anos de contribuição. Quem contribuir durante 35 anos, por exemplo, receberá 86% do valor integral (51 + 35).
Para os ricos, que fazem poupança ao longo da vida, é fácil compensar a diferença. Os pobres não podem se dar esse luxo. Terão de trabalhar mais tempo ou reduzir seu padrão de vida.
Quanto a isso, não tem sentido comparar a realidade do Brasil com a de países ricos, como fazem os economistas do governo. O desconto aplicado na Alemanha, na França ou na Austrália pode ser maior que o proposto na reforma brasileira, mas também é maior a capacidade de poupança de suas respectivas populações.
Basta imaginar um brasileiro que tenha recebido dois salários mínimos ao longo de toda a vida, mas sem conseguir contribuir de forma ininterrupta desde os 16 anos de idade e muito menos fazer poupança própria. O desconto fará falta.
Ao saírem de empregos formais para cuidar de filhos, as mulheres terão menos tempo de contribuição e, portanto, um desconto maior que o dos homens. É certo que elas terão contribuído menos, mas é injusto tratá-las da mesma forma.
Na maioria das vezes, elas não deixam de contribuir para a Previdência porque querem, mas porque não podem. Compensar isso exigiria uma sociedade com baixo desemprego, mínima informalidade e bons sistemas de creche e de saúde, coisas que não teremos nesta década ou na próxima.
Regras diferenciadas de tempo de contribuição para mulheres não dão vantagens a ninguém nem compensam o passado. Devem existir apenas para não que não se propaguem desigualdades.
POUPANÇA PÚBLICA
Entre os argumentos a favor da reforma da Previdência, o governo sustenta que o dinheiro economizado será usado para proteger crianças. A não ser que exista uma cláusula constitucional determinando a transferência desses recursos para projetos voltados à infância, a proposição é falsa.
Dado o período de transição, a reforma terá pouco efeito imediato em termos de economia de recursos. Mais importante, não se pode afirmar que o dinheiro poupado daqui a 15 anos vai para as crianças ou para os pobres, já que cabe ao Congresso e ao Executivo tomar essa decisão –até lá, teremos diversas renovações dos Poderes.
Nada impede que recursos economizados na Previdência venham a bancar supersalários ou propaganda, entre outros exemplos pouco edificantes.
Tampouco se pode prometer que essas quantias resultarão em benefícios para os mais pobres como consequência do crescimento da economia. Menos ainda que a eventual expansão irá beneficiar os aposentados pobres.
Primeiro, porque muitos dos gastos públicos não geram crescimento. Segundo, porque a economia pode se expandir de formas diferentes, e não está dado que todos ganharão igualmente com isso.
Estudos recentes mostram que, desde meados da década de 2000, o 1% mais rico da população se apropriou de cerca de 30% de todo o crescimento do país. O bolo aumentou, mas o pedaço maior ficou com os mais ricos.
Ou seja, mesmo que cada centavo preservado com a reforma fosse usado para estimular a economia brasileira, e mesmo que por causa disso a renda de todos melhorasse no mesmo padrão dos últimos anos, mais de um quarto do crescimento seria apropriado pelo topo da pirâmide. A metade mais pobre ficaria com algo em torno de 13%.
Em terceiro lugar, a lógica é inimiga do argumento de que os aposentados mais pobres serão beneficiados. Abuse da generosidade e imagine que toda a despesa economizada será convertida em crescimento e que todo o crescimento se traduzirá em criação de melhores postos de trabalho. Dado que aposentados não trabalham, como eles tirariam proveito disso?
Quarto, faça o raciocínio inverso. Abuse do ceticismo e suponha que essa economia de gastos é capturada por grupos de pressão. Como os mais pobres têm menos poder de barganha, é possível que o dinheiro economizado acabe, na verdade, por beneficiar os mais ricos, cuja capacidade de influência política é muito maior.
Nesse caso, restringir a Previdência prejudicará os pobres apenas para beneficiar os ricos.
PRIVILÉGIOS
Meses atrás, quando apresentou pela primeira vez suas ideias para a reforma, o governo parecia disposto a tornar a Previdência mais igualitária, submetendo todos às mesmas regras. Hoje está claro que o rigor válido para grupos mais fragilizados não se aplica aos que conseguem exercer pressão.
A tolerância com vantagens ou mesmo privilégios de alguns estamentos específicos tem duas consequências graves. Faz com que os trabalhadores mais vulneráveis paguem muito mais do que deveriam pelo pato do ajuste previdenciário e lança para o futuro a necessidade de novas mudanças capazes de equilibrar as contas.
No discurso original do governo, havia dois fatores importantes de redução de despesa: limitar a acumulação de aposentadorias e impor aos servidores públicos civis e militares o mesmo teto a que se submetem os trabalhadores da iniciativa privada.
Impedir o acúmulo de aposentadorias ainda faz parte da reforma; trata-se de medida que produz efeitos imediatos. Além disso, iniciativas adotadas em 2013 e reforçadas agora acelerarão o controle dos gastos com servidores federais.
O governo, contudo, recuou em relação aos servidores estaduais e municipais, deixando-os livres do teto. Como eles respondem por fatia relevante do deficit atual, a conta talvez tenha que ser paga por todos se o governo federal precisar criar um plano para resgatar as finanças de Estados e municípios.
Mais surpreendente ainda é o silêncio em que se mantêm os defensores da reforma quanto aos militares. Ninguém se apresentou para explicar por que o governo fala grosso com mulheres, trabalhadores do setor informal e idosos pobres, mas afina quando o assunto são as Forças Armadas.
Do ponto de vista técnico, nada no documento de justificativa da proposta recomenda a distinção.
Verdade que militares obedecem a normas especiais de aposentadoria em vários países. Nos EUA, por exemplo, podem se aposentar –ir para a reserva é, na prática, uma aposentadoria– antes dos 65 anos de idade, mas incide sobre seu benefício desconto similar ao proposto pela reforma brasileira, proporcional ao tempo de contribuição.
Não há problema na diferenciação de tratamento em si –como se viu, seria justo cobrar contribuições maiores de quem ganha mais e exigir menos tempo de contribuição de grupos vulneráveis.
O problema está na concessão de imunidade a grupos privilegiados e na imposição de regras espartanas aos demais.
A reforma da Previdência precisa ser discutida de uma vez e para todos, sem deixar para depois problemas que o governo prefere não enfrentar agora –especialmente quando esse gesto se traduz numa conta pesada demais para as pessoas de renda mais baixa. Como isso não foi feito, é profundamente injusto insistir em regras rigorosas para a população mais vulnerável.
Sobre o autor
MARCELO MEDEIROS, 47, é professor da Universidade de Brasília e pesquisador do Ipea e da Universidade Yale
MARCELO MEDEIROS, 47, é professor da Universidade de Brasília e pesquisador do Ipea e da Universidade Yale
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