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4 de junho de 2021

Iván Illich contra a Aliança para o Progresso

Projetos como a Aliança para o Progresso consolidaram a ideia de "desenvolvimento" na região como resposta a todos os males das nações latino-americanas. No entanto, foi precisamente desta região do mundo que surgiu uma das questões mais radicais contra a empresa desenvolvimentista: o seu responsável era Iván Illich, historiador e sacerdote católico.

Humberto Beck

O filósofo austríaco Ivan Illich (1926-2002) foi um dos intelectuais mais críticos da Aliança para o Progresso.

Come to look, come to climb our mountains, to enjoy our flowers. Come to study. But do not come to help. 
- Iván Illich

2021 marca o 60º aniversário do lançamento da Aliança para o Progresso, o plano de ajuda econômica para a América Latina do governo John F. Kennedy. Nas palavras do presidente americano, o plano visava “ajudar os homens e governos livres” da região no processo de sua “libertação das cadeias da pobreza”.

Com o advento da Guerra Fria, os países pós-coloniais (que se tornariam conhecidos coletivamente como Terceiro Mundo) tornaram-se um campo de batalha político e ideológico entre os Estados Unidos e a União Soviética. Neste contexto, a Aliança foi a resposta dos Estados Unidos à ameaça de uma proliferação de regimes socialistas nesta parte do mundo após o triunfo da Revolução Cubana em 1959. Como assinalou Vanni Pettinà, a Aliança foi uma tentativa de "conter" o comunismo, bem como "deter" sua ressonância pública ao expandir o modelo de desenvolvimento norte-americano.

Com a Aliança para o Progresso, os Estados Unidos tentaram em certo sentido replicar na América Latina a lógica do Plano Marshall de reconstrução europeia após a Segunda Guerra Mundial: tratava-se de consolidar a hegemonia norte-americana sobre um continente por meio da assistência econômica, neste caso apresentado como "ajuda ao desenvolvimento". Por meio de recursos financeiros e assistência técnica, a Aliança buscou acelerar o crescimento econômico da região por meio do aumento da produtividade, do acesso à educação e da construção de obras de infraestrutura. O projeto era atraente porque coincidia com os interesses das elites latino-americanas, que apostavam na industrialização como forma de superar a condição periférica de seus países.

Embora a Aliança para o Progresso representasse uma novidade por focar em uma região específica, ela na verdade se baseava em um dos pilares da hegemonia americana do pós-guerra: a ideia de "desenvolvimento". A origem da vida pública do conceito se deu há anos, quando, em seu discurso inaugural em 1949, Harry Truman se referiu ao lançamento de um novo programa para tornar os benefícios do avanço industrial americano acessíveis ao resto do mundo. A meta deve ser, afirmou então, "a melhoria e o crescimento das regiões subdesenvolvidas" do globo.

Falando de "regiões subdesenvolvidas", o presidente americano repentinamente transformou um termo que circulava apenas nos círculos econômicos na palavra-chave de uma nova era histórica: a era do desenvolvimento. Assim, consagrou o apelido que definiria desde então a forma de pensar dos Estados pós-coloniais em todo o globo. Apesar de sua diversidade, todos esses estados acabaram incluídos na mesma definição negativa: a de subdesenvolvimento. A partir daí, o que Gilbert Rist chamou de "uso transitivo" do termo se tornaria lugar-comum: intervenção deliberada para "desenvolver" as áreas "subdesenvolvidas" do planeta.
 
Contra o desenvolvimentismo

Nas décadas do meio do século, projetos como a Aliança para o Progresso acabaram consolidando na América Latina a ideia de desenvolvimento como resposta automática a todos os problemas sociais das nações pós-coloniais. Porém, seria justamente dessa região do mundo que surgiria uma das questões mais radicais contra a empresa desenvolvimentista. O formulador dessa crítica foi Iván Illich (1926-2002), historiador, crítico social e sacerdote católico nascido na Áustria, mas que vivia na América Latina desde os anos 1950.

Primeiro em Porto Rico e depois no México, Illich encorajou várias iniciativas para refletir sobre a condição histórica e social do subcontinente. Radicalizado ao observar os efeitos deletérios das tentativas de modernização, Illich ofereceu um dos argumentos mais consistentes contra a Aliança ao longo da década de 1960. E, no processo de elaboração dessas questões, ele começou a moldar uma teoria crítica original da modernidade capitalista. Concebida a partir das condições do Sul global, essa teoria teria, no entanto, repercussões universais.

Um fato pouco lembrado que oferece uma chave para entender a abordagem de Illich é que, no início da década de 1960 e em paralelo com a Aliança para o Progresso, o Papa João XXIII havia pedido ao clero norte-americano que enviasse 10% de seus elementos para a América Latina para realizar tarefas de assistência. Illich se opôs desde o início a este plano, que ele interpretou como uma experiência equivocada para "modernizar" a Igreja latino-americana com medo de uma propagação do castrismo na área. Ele estava convencido de que a insensibilidade cultural e a arrogância moral implícitas em todo o projeto fariam mais mal do que bem às comunidades visadas. Esta contraparte eclesial da Aliança para o Progresso colocou o catolicismo a serviço do capitalismo e fez da fé religiosa cúmplice da ideologia do desenvolvimento.

A resposta de Illich foi a criação de um centro de estudos em Cuernavaca, no México, com o propósito de contribuir para o que chamou de "desyanquização" dos religiosos norte-americanos. Ao ensinar línguas e estudar a sociedade latino-americana, Illich esperava torná-los mais conscientes do ambiente cultural em que se encontravam e, assim, diminuir os danos. Em poucos anos, essa organização evoluiu para o Centro de Documentação Intercultural (Cidoc), uma espécie de universidade alternativa, sem currículo fixo, a partir da qual Illich organizou seminários sobre a análise dos aspectos negativos da modernização no Terceiro Mundo.

Uma aliança das classes médias
 
A crítica do desenvolvimentismo iniciada por Illich (e continuada de várias maneiras por uma série de autores) apontou, entre outras coisas, a forma como a ideia de desenvolvimento, apesar de ter se tornado uma aspiração das elites pós-coloniais, representava de várias maneiras uma continuidade com o colonialismo. Como o antigo imperialismo, o desenvolvimento tirava sua legitimidade de se apresentar como uma "exportação" dos valores da civilização europeia. E, como o antigo imperialismo, o desenvolvimento também visava destruir qualquer alteridade cultural. Ao promover uma concepção tecnocrática de crescimento econômico e uma visão vertical de "ajuda", as políticas de desenvolvimento reproduziram sob novas roupagens a mesma velha lógica de hierarquias geográficas e culturais.

A pedra de toque da oposição de Illich à Aliança para o Progresso era sua convicção de que a industrialização da América Latina promovida pelo desenvolvimentismo traria mais problemas do que soluções. Em particular, Illich considerou que as políticas de desenvolvimento iriam colocar as maiorias sociais do continente numa situação impossível: imporiam a toda a população uma ideia de melhoria social a partir de um determinado nível de consumo de bens e serviços, mas, ao mesmo tempo, jamais poderiam garantir esses níveis de consumo para toda a população. Pior ainda, as políticas de desenvolvimento teriam o efeito geral de tornar inviáveis ​​as formas tradicionais de subsistência, oferecendo substitutos modernos para essas formas tradicionais apenas a alguns.

As grandes maiorias, privadas do velho e do novo, seriam então expulsas do suposto progresso, vivendo no limbo entre a tradição e a modernidade. No final, com a criação de novas classes privilegiadas pela industrialização, o desenvolvimento apenas "modernizaria" os velhos padrões de desigualdade e exploração característicos do colonialismo interno em que viviam esses países desde sua independência da Espanha no início do século XIX. A maioria das pessoas na América Latina receberia nada além da promessa e nunca a realidade do desenvolvimento. No final das contas, afirmou Illich, a Aliança para o Progresso não seria mais do que uma "aliança para o avanço das classes médias".

Nos textos críticos escritos por Illich contra a Aliança - alguns dos quais seriam coletados em Alternativas (1974) - foram incubadas as linhas principais de seu pensamento posterior. Ao longo da década de 1970, em obras como The deschooling society (1971), The conviviality (1973), Energy and equity (1974) e Medical Nemesis (1976), essas linhas se cristalizariam em uma reflexão crítica sobre a modernidade industrial, cujos dois conceitos centrais seriam as noções de "contraprodutividade" e "convivencialidade".

A partir de suas observações sobre os efeitos do desenvolvimento na América Latina, Illich concluiu que o mesmo princípio rege o comportamento das instituições modernas: além de um certo limiar de crescimento, uma instituição começará a produzir o oposto do fim para o qual foi originalmente concebida. Ele chamou esse princípio de "contraprodutividade paradoxal" das instituições modernas. Illich analisou e documentou os efeitos da contraprodutividade em três áreas-chave da modernização do desenvolvimento: educação escolar, medicina institucional e transporte motorizado.

A escolaridade obrigatória era contraproducente porque, em vez de conhecimento e equidade, acabava produzindo seus opostos: ignorância e exclusão. A educação escolar confundia o acúmulo de horas gastas em uma sala de aula com o verdadeiro aprendizado. E, mais grave ainda, por se basear em um plano hierárquico de avanços escalonados, funcionava como uma fábrica de desistentes, que, não podendo completar a série inteira, carregaria para sempre o estigma social de seu suposto "fracasso" .

Enquanto a medicina institucional atrofiou as capacidades autônomas de cura de indivíduos e comunidades, o transporte motorizado, embora projetado para economizar tempo, acabou forçando as pessoas a dedicarem mais tempo social às atividades de deslocamento do que era usado nas sociedades pré-industriais. O uso do carro por alguns poucos favorecidos desvalorizou o "valor do uso dos pés" para todos, criando ambientes urbanos nos quais se tornou impossível caminhar. Assim, como resultado da contraprodutividade, o mundo contemporâneo passou a interpretar como progresso algo que nada mais é do que a expansão ilimitada de instituições contraproducentes que replicam processos de exclusão e “pobreza modernizada”.

A proposta de Illich diante dos danos provocados pela modernização foi uma abertura do imaginário social que iria além dos moldes impostos pelo desenvolvimento. Illich designou essa abertura como "convivencial". A convivencialidade supunha a introdução de alguns novos princípios para o "metabolismo social»": uma nova forma de conceber as relações do ser humano com seus instrumentos, baseada no respeito à autonomia e à equidade dos indivíduos e das comunidades. O aspecto determinante de uma sociedade convivencial seria o estabelecimento de limites democraticamente aceitos para o crescimento de instituições e ferramentas modernas. Illich considerou que algumas das maneiras pelas quais eles poderiam incorporar esses princípios eram a desescolarização e a adoção generalizada de dispositivos tecnológicos que (como a bicicleta) escapavam da contraprodutividade, bem como a criação de novos, projetados para as circunstâncias do Sul.

Em direção ao verdadeiro progresso

As abordagens de Illich podem ser interpretadas como uma tentativa de recuperar um senso radical de autonomia, entendida como a capacidade das pessoas de criar seu próprio ambiente e sua própria definição de "vida boa". A argumentação illichiana é, neste sentido, semelhante às conclusões de análises como as de James C. Scott sobre a economia moral dos camponeses, a "arte de não ser governado" e o fracasso dos grandiosos esquemas verticais de reforma social que visam "melhorar a condição humana".

A contribuição de Illich reside no fato de traduzir premissas semelhantes às do antropólogo norte-americano sobre a autonomia radical que podem ser encontradas em algumas formas tradicionais de produção e organização social em algo mais amplo: uma redefinição de nossa ideia de progresso. Illich dissocia o verdadeiro progresso do mero desenvolvimentismo porque encontra em modos de vida não industriais, não um atraso a superar, mas um repertório de possibilidades de autonomia e modos de vida emancipados.

Além de suas consequências materiais, Illich considerou que os efeitos negativos mais duradouros do desenvolvimento ocorreriam no reino do simbólico. Mais do que um estágio na evolução econômica de uma sociedade, Illich classificou o subdesenvolvimento como um "estado de espírito" e uma "categoria da consciência". A ideia de desenvolvimento envolveu uma profunda transformação do desejo: querer passou a ser sinônimo de consumo de “enlatados” que, por outro lado, estariam “continuamente fora do alcance da maioria”. O desenvolvimento envolveu, portanto, um processo de reificação, que transformaria a sede em "necessidade de uma Coca-Cola" ou o desejo de aprender em consumo de "educação".

As teses de Illich são hoje relevantes, entre outras razões, porque representam uma contrapartida original, pensada do Sul global, às teorias críticas que surgiram na Europa durante a primeira metade do século XX, sob a pena de autores como Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Com a ideia de contraprodutividade, Illich oferece sua própria versão da dialética negativa da modernização, que ele chama de "nêmesis" desencadeada pela natureza prometeica das tentativas modernas.

Mas, em contraste com os diagnósticos desesperados sobre as contradições insolúveis da modernidade que deram o tom da Escola de Frankfurt, há em Illich o esboço de um projeto conceitual e político para superar essas contradições sob uma concepção completamente diferente de modernidade baseada na ideia de limites à expansão econômica e tecnológica. Por essas razões, pode-se falar de uma "Escola Cuernavaca" de pensamento crítico sobre o mundo moderno, nascida sob a égide das ideias illichianas.

Illich representa uma notável exceção no contexto do pós-guerra: o de um crítico do desenvolvimentismo - como uma nova versão do colonialismo - que era completamente alheio ao nacionalismo que liderou muitas lutas anticoloniais. Os antecedentes das ideias de Illich podem ser encontrados em outras formas de resistência que, como Gandhian Swaraj, se distinguiram por se opor tanto ao domínio político direto de um poder estrangeiro quanto à civilização em nome da qual esse domínio era exercido, (uma civilização que, se não houvesse resistência, seria perpetuada sob as novas condições pós-coloniais).

No caso de Illich, foi uma crítica não apenas ao intervencionismo americano, mas à própria doutrina da "modernização". Essa ausência da ideia de nação em seu pensamento talvez ajude a compreender a afinidade de suas ideias com lutas mais recentes, como a dos zapatistas em Chiapas, que representaram uma rebelião tanto contra a globalização quanto contra a ideia homogeneizante de "nação mexicana".

Surgido no contexto de oposição a um projeto internacional de ajuda ao desenvolvimento - a Aliança para o Progresso - o pensamento de Illich evoluiu para uma reflexão sobre a condição do Sul Global. Illich produziu, assim, uma crítica que ajudou a revelar o modo como a ideia de desenvolvimento acabou se tornando a linguagem que estruturou, desde a segunda metade do século XX, as relações entre o Norte e o Sul. No entanto, nas últimas décadas, a linguagem da modernização em geral entrou em crise, não apenas para as nações pós-coloniais, mas para a humanidade como um todo.

À medida que os efeitos contraproducentes da industrialização capitalista se tornam cada vez mais evidentes, os países "avançados" começaram a se assemelhar aos "atrasados" de várias maneiras. Mesmo nos países ricos, o capital, em suas versões digital e financeira, gera cada vez menos empregos (ou empregos cada vez mais instáveis, mal pagos e mais precários). Como no Sul, há agora uma tendência no Norte de abundância de trabalho como fator de produção, abundância que o capital não quer - ou provavelmente não pode - absorver. Da mesma forma, em todos os cantos do globo os efeitos das mudanças climáticas começam a se fazer sentir intensamente, produto da transgressão de certos limites na capacidade do ecossistema de suportar as consequências da industrialização capitalista.

A condição histórica do Sul Global está se tornando cada vez mais o espelho no qual o Norte pode olhar sua própria imagem, ou pelo menos alguns fragmentos reveladores de seu futuro. Neste mundo que surgiu depois do fim da era do desenvolvimento, as teses de Iván Illich adquirem uma relevância particular: elas contribuem para o projeto compartilhado de esclarecimento de nossas ideias sobre o progresso, para a tarefa de encontrar um novo e diferente vocabulário para imaginar um futuro comum.

Sobre o autor

Professor do Centro de Estudos Internacionais do El Colegio de México e autor de The Moment of Rupture: Historical Consciousness in Interwar German Thought.

24 de março de 2021

O imutável AMLO

O presidente mexicano continua a criticar o neoliberalismo, mas seu governo não está conseguindo construir uma alternativa eficaz a ele.

Humberto Beck, Carlos Bravo Regidor e Patrick Iber

Dissent Magazine

O presidente AMLO agita uma bandeira na varanda do palácio nacional para dar início às celebrações do Dia da Independência em 15 de setembro de 2020 na Cidade do México. (Hector Vivas / Getty Images)

Tradução / Quando Andrés Manuel López Obrador (AMLO) foi eleito presidente do México, em 2018, ele prometeu um governo “para o bem de todos, mas para os pobres primeiro”. Comprometeu-se a romper com o neoliberalismo e suas desigualdades, sua violência e corrupção. Depois de mais de dois anos no poder, López Obrador permanece retoricamente comprometido com uma visão de igualdade. Mas ele procura essa visão com um conjunto de ideias bem inflexíveis. À medida que novos objetivos surgem, ele não se adapta. Sua inflexibilidade ameaça boicotar a própria promessa que sua eleição representou.

A forma como seu governo enfrentou o coronavírus ilustra de forma emblemática esse problema. Quando os casos de COVID-19 começaram a surgir no México na primavera [nórdica] passada, a resposta de AMLO beirou a negação. Um bloqueio total teria sido difícil de realizar em um país onde a maioria da população ganha a vida com o trabalho informal. “Não consigo parar de trabalhar”, disse um vendedor de hambúrguer aos repórteres. “Se eu não vendo, não como. Simples assim.” Mas as próprias atividades de AMLO demonstravam falta de preocupação com a disseminação do vírus. Inicialmente, ele não mudou sua prática de viajar pelo país, o que o colocou em contato próximo com milhares de seus apoiadores. Também promoveu desinformação mortal. No final de março, durante uma de suas conferências matinais diárias, AMLO mostrou um par de “amuletos” e disse que estes iriam proteger da pandemia a si mesmo e ao país. Mesmo depois de ter contraído o vírus — e de ter se recuperado — no início de 2021, AMLO opta por não usar máscara em público.

Com o aumento do número de casos, o governo suspendeu grandes aglomerações e as aulas presenciais, mas evitou impor um bloqueio obrigatório. Mensagens públicas inconsistentes encorajavam restrições voluntárias, pedindo aos mexicanos que mantivessem uma distância social segura. Apesar de muitas pessoas não terem escolha além de continuar trabalhando fora de casa para sobreviver, o México apresentou uma redução de 8,5% no produto interno bruto em 2020, sua pior contração econômica em quase noventa anos.

López Obrador, para manter seu compromisso com a “austeridade republicana”, deu um apoio financeiro direto mínimo. Ele anunciou que grandes empresas não mereciam apoio, pois haviam sonegado impostos: “Chega de resgates como os dados aos bancos na era do neoliberalismo”. Mas o governo de AMLO também ofereceu pouca ajuda às pessoas comuns. Alguns benefícios foram distribuídos no início, mas não houve nenhum esforço em grande escala para fornecer seguro ou renda básica para os milhões que se viram sem trabalho. Os gastos mexicanos com o auxílio ao coronavírus continuam entre os mais mesquinhos do mundo: menos de 1% do PIB. Esse número contrasta com as políticas de socorro de outros países latino-americanos; por exemplo, os pacotes de ajuda do Chile e do Brasil, totalizaram cerca de 8% do PIB.

O coronavírus devastou o México. Em setembro de 2020, AMLO sustentava que o pior já havia passado. Mas no final de 2020 os casos dispararam, com o pior pico no final de janeiro deste ano. Surgiu um mercado paralelo dos tanques de oxigênio, à medida que as pessoas passavam a tentar cuidar de familiares doentes que não poderiam ou não queriam ter acesso a hospitais públicos. De acordo com dados da Universidade Nacional Autônoma do México, algo entre 18 e 55 milhões de mexicanos (em um país de cerca de 130 milhões) contraíram o vírus. O México tem a menor taxa de testes nas Américas e a maior taxa de positividade. No final de fevereiro, o governo relatou aproximadamente 185 mil mortes por covid-19. O México, com a décima maior população do mundo, ficou em terceiro lugar no mundo em mortes, atrás apenas dos Estados Unidos e do Brasil. Mas olhar para o “excesso de mortes” em comparação com os anos anteriores, revela que os números oficiais mascararam grosseiramente o custo da covid para o México: em meados de dezembro, já havia 380 mil mortes “excedentes”.

Ao retornar, depois de ter se recuperado da covid, no início de fevereiro, AMLO falou com otimismo sobre o lançamento de um programa de vacinação, mesmo tendo uma oferta muito mais limitada do que países mais ricos como os Estados Unidos. Mas as informações públicas têm sido escassas e contraditórias, e as prioridades parecem mudar com a chegada de cada nova remessa. O plano de vacinação inclui a organização de “brigadas” compostas não só por pessoal médico, mas também por militares e operadores políticos da Secretaria de Serviço Social, decisão que levanta suspeitas e preocupações quanto ao potencial de manipulação ou de favoritismos dentro do programa de imunização. Além disso, em sentido oposto às recomendações epidemiológicas, o governo anunciou que priorizaria áreas rurais distantes em vez de áreas urbanas altamente populosas, onde o contágio é mais provável. As autoridades tentaram justificar essa decisão com base na justiça social, mas uma implementação ineficiente só aprofundará e prolongará a emergência, que atinge mais duramente os pobres.

Embora essas falhas do governo em resposta ao coronavírus sejam particularmente agudas, padrões semelhantes aparecem também em outras áreas da sua política. Obrador continua a criticar as distorções do neoliberalismo, mas seu governo está, em grande medida, fracassando em construir uma alternativa eficaz a ele. No entanto, mesmo com o afastamento gradual de ex-apoiadores do governo e com as críticas aumentando, o nível de apoio popular a López Obrador permanece alto. Em janeiro de 2021, seu índice de aprovação era de cerca de 62%. Sua longeva popularidade depende parcialmente do que ele já entregou; e, principalmente, do que ele continua a representar.

Os primeiros dois anos de AMLO no cargo não foram, de todo, um absurdo. Embora os críticos tenham se dedicado a bater em sua falta de transparência e nas ameaças que ele representa para a autonomia das instituições democráticas, o governo de AMLO promoveu com sucesso políticas para reduzir a desigualdade. O governo federal deu três aumentos de salário mínimo: de 16% em 2019, de 20% em 2020, e 15% em 2021. Esses aumentos são passos importantes para começar a reverter um período de décadas de estagnação de renda, durante o qual o poder de compra dos trabalhadores diminuiu significativamente. Um aumento na inflação — o resultado que os detratores dessa política sempre temem — não ocorreu. Além disso, o governo federal tem se esforçado em combater a precariedade do mercado de trabalho, especialmente no setor informal. Em 2020, ratificou a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os direitos dos trabalhadores domésticos — uma medida que as organizações da sociedade civil vinham exigindo há quase uma década.

A coalizão de AMLO, que tem maioria em ambas as câmaras legislativas lideradas por seu partido, o MORENA, também aprovou um projeto de lei em 2019 que pode renovar o movimento sindical do país, facilitando a formação de sindicatos verdadeiramente independentes e democráticos. Sob o antigo e corporativista sistema de governo, os sindicatos eram acessórios de poder do Partido Revolucionário Institucional (PRI), estendendo privilégios em troca de votos e da supressão de demandas trabalhistas mais radicais. Muitas organizações de trabalhadores nunca cumpriram os padrões democráticos — e, assim, práticas injustas e autoritárias sobreviveram ao fim do regime do PRI. As reformas trabalhistas do MORENA incluem novas regras para assegurar liberdade sindical e democracia, para estabelecer a independência dos juízes trabalhistas e para melhorar a posição de negociação dos trabalhadores.

A implementação das reformas trabalhistas vai levar anos e há razões para se preocupar com a possibilidade de o governo enfraquecer alguns dos aspectos mais importantes desse projeto de lei. Há muito tempo que o debilitado sistema de justiça do México impõe leis e regulamentos de forma intermitente e desigual. O governo de AMLO, longe de fortalecer as capacidades institucionais do estado mexicano, reduziu-as sistematicamente. E embora o MORENA tenha conseguido aprovar esta reforma, ela foi construída sob pressões externas — da OIT, da Parceria Transpacífica e da renegociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) –, todas as quais exigiram que o México adotasse padrões internacionais de independência sindical. Obrador mantém uma relação muito boa com os gigantes trabalhistas da velha ordem política, como os sindicatos de professores e petroleiros. Ele também é próximo à Confederación Autónoma de Trabajadores y Empleados de México (CATEM), uma nova federação de trabalhadores que pode acabar se tornando a base de um arranjo sindical pró-AMLO. E, embora o MORENA tenha promovido os direitos trabalhistas no setor privado, a implementação de medidas de austeridade severas na maioria dos órgãos do governo federal resultou em reduções de salários e benefícios no setor público.

Para além da força de trabalho, a principal política de bem-estar de AMLO tem sido um ambicioso conjunto de transferências monetárias incondicionais para idosos, mães solteiras e pessoas com deficiência, bem como estágios remunerados para jovens adultos. Esses programas destinam-se a fornecer assistência àqueles que precisam urgentemente, e a trazer pessoas marginalizadas para a economia nacional. De acordo com os números do governo, as transferências atingem 65% mais beneficiários do que os programas sociais anteriores. Analistas independentes duvidam da precisão desses números, no entanto, porque eles se baseiam em um “Censo do Bem-Estar” ambíguo, que não oferece uma maneira confiável de verificar se as transferências monetárias estão de fato chegando em seus destinatários.

Tem havido debates acirrados sobre se essas transferências de dinheiro são uma oportunidade para aumentar a corrupção ou se podem, na verdade, reduzi-la. Os defensores do programa argumentam que sua principal característica é o estabelecimento de um vínculo direto entre o Estado e os beneficiários do programa — o dinheiro vai diretamente para as pessoas, deixando de fora quaisquer intermediários. Mas, como alguns críticos de esquerda, como Milena Ang e Tania Islas, argumentaram, as transferências de dinheiro diretas podem “replicar perversamente a lógica neoliberal” ao desgastar as instituições de bem-estar e “jogar sobre os indivíduos a responsabilidade por seu próprio bem, em um ambiente competitivo, de economia de mercado”. Não é nenhum alívio saber que funcionários do governo têm descartado rapidamente casos em que a corrupção e usos indevidos foram identificados — por exemplo, na administração de bolsas supostamente destinadas a ajudar jovens desempregados a aprenderem habilidades profissionais. Além disso, devido aos cortes orçamentários em outras áreas, os gastos sociais sob AMLO permanecem abaixo dos níveis vistos no período entre 2009 e 2016. Ainda assim, quando os mexicanos são interrogados sobre o que AMLO fez de melhor no cargo, os programas sociais ainda são, de longe, os mais populares nas respostas.

AMLO alardeia o sucesso desses programas durante os briefings diários desde o Palácio Nacional. Essas aparições, conhecidas como “mañaneras”, são transmitidas em sua totalidade não apenas pelo YouTube e Facebook Live, mas por diversos meios de comunicação. Todos os dias da semana, às 7h, AMLO fala e reage às perguntas dos repórteres, geralmente por pouco mais de noventa minutos. Às vezes, ele chama convidados, como membros do gabinete ou outros funcionários de alto nível, para fornecer detalhes sobre programas ou políticas específicas; ocasionalmente, apresenta gráficos ou imagens. Na maioria das vezes, fala de improviso, compartilhando seus pensamentos sobre os eventos atuais. “Estou sendo espontâneo”, disse em agosto passado. “Não pense que venho aqui com ideias analisadas. Não, venho aqui para falar com sinceridade, para te dizer como me sinto, o que sei, qual é a minha experiência”.

A ênfase na autenticidade vai muito além de suas conferências de imprensa. Quando AMLO fala, ele tende a usar um espanhol mexicano bem típico e despretensioso. Ele se veste com humildade. Durante suas viagens pelo país, faz questão de sempre voar em classe econômica, mesmo no auge da pandemia. Nessas viagens, ele grava vídeos de si mesmo em pontos populares comendo antojitos, comida típica de rua mexicana. Embora irradie uma solenidade tradicional, ele não parece estar preocupado com protocolos, nem mesmo com sua própria segurança, argumentando que não tem nada a temer porque “as pessoas cuidam de mim”. AMLO surge como um homem singelo e do povo, ao invés de um membro distante e esnobe das classes dominantes tradicionais, não familiarizado com a situação dos mexicanos comuns.

O presidente usa essa reputação para aprimorar sua própria autoridade moral, que ele então ostenta feito flecha em sua aljava política. O próprio fato de ter sido eleito para a presidência aprofundou a confiança de alguns mexicanos na democracia de seu país. Mas sua determinação em concentrar o poder moral e político em si mesmo, sem políticas anticorrupção sistemáticas, não contribui para restaurar a confiança do público nas instituições democráticas. Ele tem como alvo instituições relacionadas a eleições e transparência, bem como órgãos técnicos e de auditoria que têm o potencial de contradizer ou complicar a história que ele conta sobre suas próprias realizações.

De acordo com o cientista político Luis Estrada, até a data de 12 de fevereiro, AMLO já havia dado quase 45 mil declarações públicas falsas, enganosas ou inverificáveis, incluindo frequentes exageros ou deturpações sobre as realizações de seu governo. Ao longo de seu mandato, o relacionamento de López Obrador com a imprensa tornou-se cada vez mais antagônico. Ele foi submetido a cobertura injusta de alguns meios de comunicação hostis, mas em vez de responder diretamente às críticas ou de corrigir o registro com informações verificadas, instrumentalizou esse conflito como parte de sua batalha contra as velhas elites, práticas e instituições. Ele rotula os jornalistas como “caluniadores profissionais”, “conservadores” ou “adversários” que o atacam porque supostamente estão “perdendo seus privilégios”.

A mídia não é o único alvo da retórica de combate de AMLO. Ele frequentemente critica organizações da sociedade civil, ambientalistas, feministas, intelectuais e comunidades científicas e artísticas, rejeitando a necessidade de esforços direcionados para resolver as questões que eles levantam. “Todos os problemas que o país sofre — contra mulheres e homens — são frutos envenenados do modelo econômico materialista e desumano imposto durante o período neoliberal”, disse ele em novembro. Quando questionado sobre a inadequação de tais declarações, oferecidas em resposta aos protestos do movimento feminista mexicano contra o feminicídio e a violência de gênero, ele desconsiderou suas demandas e acusou os críticos de má-fé.

AMLO também explorou a aversão à corrupção no cenário político mexicano para perseguir qualquer figura ou instituição com a qual ele queira acabar. Em outubro, ordenou o fechamento de 109 fideicomisos — trustes ou contratos fiduciários de bancos semelhantes a fundações, alguns dos quais eram apoiados pelo governo e usados para financiar projetos de longo prazo nas artes, ciências, esportes, direitos humanos e outras áreas –, argumentando que o dinheiro precisava ser reaproveitado para a luta contra a covid-19, e que os fundos eram pouco transparentes e suscetíveis à corrupção. Alguns podem ter sido, mas nunca foram apresentadas evidências para apoiar essas generalizações. De acordo com Antonio Lazcano, uma importante voz da comunidade científica do México, o cancelamento dos fideicomisos significa o colapso de muitos projetos científicos.

AMLO argumenta que a corrupção é consequência de um modelo neoliberal imoral. Ele prometeu uma ambiciosa “Quarta Transformação” do México para acabar com os abusos de poder pelos privilegiados. Mas argumenta que será impossível superar uma resistência profundamente enraizada para construir o “novo regime” em que os mexicanos votaram, sem uma presidência forte e reconstituída. Espera que seu exemplo pessoal de retidão gere uma espécie de moralidade generalizada, mas esse modelo pode ser usado para justificar os abusos de seu próprio governo. Tomemos o exemplo de Jaime Cárdenas, que, poucos meses após sua nomeação para dirigir o recém-criado Instituto de Devolução de Bens Roubados ao Povo, renunciou ao cargo e detalhou as irregularidades administrativas que havia observado e os comportamentos ilegais de funcionários públicos. Ou considere o primo do presidente, que recebeu mais de 18 milhões de dólares em contratos da Pemex, a empresa estatal de petróleo, e dois vídeos recentemente divulgados de 2015, que mostram um dos irmãos mais novos do presidente aceitando um envelope e um saco de papel pardo cheio de dinheiro oferecido como “contribuições” ao movimento de AMLO.

As sanções para esses casos de corrupção, quando ocorrem, têm sido leves. A atribuição que Obrador deu à corrupção como se se tratasse de uma ideologia fruto do neoliberalismo, faz com que seja quase impossível apresentar uma resposta institucional apropriada. E sua atitude de não ver nenhum mal em seu próprio partido se estende a outras áreas também. Ele apoiou o candidato a governador do MORENA no estado de Guerrero, apesar de este ter sido acusado de má conduta sexual por várias mulheres, argumentando que o governador teria sido vítima de uma “campanha de linchamento” e que a decisão de rejeitá-lo ou não cabia aos eleitores.

Conforme o projeto político de AMLO foi se consolidando e sua coalizão amadureceu, outra tendência preocupante surgiu: embora o MORENA inclua setores históricos da esquerda mexicana, seu governo também inclui alianças com grupos religiosos conservadores e, cada vez mais, com os militares. Essa configuração ideológica sugere que a Quarta Transformação não será aquela que muitos na esquerda esperavam.

Ainda na campanha, Obrador prometeu encerrar a fracassada guerra às drogas, “devolvendo o exército aos quartéis”. No cargo, ele fez o contrário, aprovando uma reforma constitucional que torna as forças armadas responsáveis por tarefas de segurança pública até 2024. Além disso, assinou um decreto presidencial de segurança em 2020, que autoriza o exército e a marinha a realizar tarefas policiais, como detenções e apreensão de bens em todo o país, sem nenhuma regulamentação clara, nem subordinação às autoridades civis. Sob a supervisão de AMLO, o orçamento militar disparou, atingindo níveis de gastos semelhantes ou superiores aos de setores-chave como bem-estar e saúde.

A justificativa básica de Obrador para esse aumento nos gastos militares não difere significativamente dos argumentos apresentados por governos anteriores em apoio à “guerra” do México contra o crime organizado. Dadas as deficiências das forças policiais, argumenta ele, o recurso ao exército é necessário em meio ao aumento da insegurança. A essa velha linha de raciocínio, AMLO e seus apoiadores acrescentaram um novo floreio retórico: os militares nada mais são do que “o povo de uniforme”, uma organização confiável cuja presença crescente não representa ameaça às instituições civis mexicanas. AMLO apresenta o exército como praticamente a única instituição governamental confiável. Há mais tropas do que nunca envolvidas na segurança pública, e a Guarda Nacional, criada em 2019 como uma organização híbrida militar-civil, rapidamente se tornou a terceira força militar do México — e já foi acusada por violações aos direitos humanos.

A estratégia ainda não levou a uma redução significativa da violência. O primeiro ano de governo de AMLO foi o mais violento das últimas duas décadas, com 34.582 homicídios criminosos. No ano passado, houve apenas uma ligeira redução, com 34.523 assassinatos. Como candidato, AMLO prometeu acabar com a desastrosa e militarizada resposta ao crime organizado que seus antecessores realizaram. Mas sua crescente dependência dos militares — não apenas para segurança, mas para o desenvolvimento de infraestrutura e até mesmo serviços sociais — fizeram deles uma parte essencial da coalizão de AMLO. Em vez da desmilitarização, seu governo parece estar no caminho daquilo que o cientista político argentino Rut Diamint chamou de “novo militarismo” da América Latina: as forças armadas intervêm não apenas em questões de segurança, mas em todos os tipos de tarefas políticas, não com força autônoma, mas como aliados de governos eleitos democraticamente que, no entanto, acabam politizando a lealdade do exército.

A aliança de AMLO com os militares não é a única relação que surpreendeu seus apoiadores de esquerda. Depois de criticar Donald Trump como candidato, AMLO demonstrou apoio ao ex-presidente. Em julho passado, ele viajou para Washington, para a cerimônia de assinatura do Nafta renegociado. “Durante meu mandato como presidente do México”, disse AMLO, ao lado de Trump, “em vez de insultos contra mim e, mais importante ainda, contra meu país, recebemos de vocês compreensão e respeito”. Suas declarações rapidamente chegaram aos anúncios da campanha de Trump direcionados à comunidade latina, onde Trump obteve ganhos nas eleições de 2020.

Ainda não se sabe como isso afetará as relações com os Estados Unidos no futuro. O elogio de AMLO a Trump provavelmente fortaleceu a mão daqueles que, dentro dos círculos democratas, veem AMLO como um populista irresponsável, perigoso de maneiras semelhantes ao próprio Trump. Embora AMLO sempre tenha enfatizado suas diferenças ideológicas com Trump, alguns de seus apoiadores passaram a ter uma visão mais favorável do ex-ocupante da Casa Branca, que eles vêem, como seu presidente, como um líder nacionalista tratado injustamente por instituições falidas. A decisão de AMLO de não reconhecer Biden como presidente eleito até meados de dezembro aumentou essas tensões, assim como sua oposição pública à decisão do Twitter de banir Trump após a rebelião no Capitólio.

Muitos dos apoiadores de Obrador encontram coro nos conservadores estadunidenses e sua oposição às energias renováveis. A retórica de AMLO sobre o setor de energia expressa-se em termos de soberania mexicana, e não de qualquer preocupação em problemas ambientais. Seguindo as prescrições de uma política baseada em combustíveis fósseis por “protecionismo energético”, o governo está planejando aumentar a produção de hidrocarbonetos e a capacidade de refinamento de petróleo a fim de reduzir a dependência mexicana das importações de gasolina e diesel dos Estados Unidos. Mesmo assim, ele cortou o apoio à energia limpa, apesar de seu custo mais baixo, argumentando que as energias renováveis ​​representam uma ameaça ao funcionamento do sistema de energia. O governo tenta, também, restaurar o monopólio da companhia elétrica nacional, CFE, sobre a geração de eletricidade, e o presidente afirma que pretende transformar a Pemex, a altamente endividada estatal de petróleo, na “alavanca do desenvolvimento nacional” com a ajuda de investimentos de bilhões de dólares. Mesmo se ele tiver sucesso, o plano vai aprofundar a dependência econômica do México dos combustíveis fósseis.

Isso é uma péssima notícia para um país onde o setor de energia é responsável por cerca de 70% das emissões de gases de efeito estufa. A situação deve piorar com a decisão tomada por Obrador no último verão, para comprar dois milhões de toneladas de carvão para geração de energia. Ele também pediu a priorização do refinamento de petróleo em seis instalações já existentes e em uma nova, em construção, no Porto de Dos Bocas, Tabasco; ao invés de importar do exterior. O processo de refino produz um óleo combustível residual altamente poluente, grande parte do qual será posteriormente utilizado nas usinas termelétricas da CFE, trazendo grande risco para a saúde das populações vizinhas.

A política de energia de AMLO vai contra o compromisso do México no Acordo de Paris, onde prometeu uma redução de 22% nas emissões. Como destaca Fernando Tudela, acadêmico e ex-funcionário que representou o país nas negociações em Paris, esses contratempos são “danos colaterais” ao objetivo declarado de AMLO de restaurar o monopólio do Estado na produção de energia — um objetivo a ser perseguido a qualquer custo. Após renunciar ao cargo de chefia da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais no ano passado, o biólogo Víctor Manuel Toledo expressou seu distanciamento de um governo que afirma ter interesse em garantir o bem-estar social, mas sem aceitar a importância da proteção ambiental. O orçamento de seu ministério para 2020 foi de apenas 2,5% do “orçamento para combustíveis fósseis” designado para a Pemex, CFE e Secretaria de Energia.

Considerando os efeitos de longa duração das mudanças climáticas, a incapacidade de AMLO de responder adequadamente aos desafios ambientais pode representar um fracasso ainda maior do que sua incapacidade de lidar com a pandemia. Em breve, o México estará ainda mais exposto a múltiplas vulnerabilidades relacionadas ao aquecimento global, desde a escassez de água e quebra de safras, até o aumento das pressões dos refugiados do clima.

Durante seu mandato, AMLO já enfrentou um conjunto de circunstâncias bastante desanimadoras. As pesquisas mostram que os mexicanos estão perfeitamente cientes de onde o desempenho de seu governo tem sido fraco, dando-lhe notas ruins na economia e medíocres na gestão da crise de saúde. No entanto, AMLO ainda é melhor visto do que seu governo. “Os mexicanos não são irracionais”, argumenta a pesquisadora Lorena Becerra. “Eles estão cientes de que o governo de AMLO não apresentou os resultados prometidos e também estão certos de que o país está em péssimo estado… Isso não significa, no entanto, que a maioria das pessoas o desaprove.” Os bons números de apoio nas pesquisas apontam para a importância de alguns aspectos de sua agenda — especialmente gastos sociais e reformas trabalhistas. Embora ainda haja um longo caminho a percorrer antes que essas mudanças sejam verdadeiramente transformadoras, os mexicanos pobres e da classe trabalhadora têm motivos reais para acreditar que AMLO se preocupa com eles e com seu bem-estar.

Mas a má gestão em outras áreas ameaça minar esses elementos de seu programa. O pensamento de López Obrador sobre questões como feminismo e ambientalismo é muito antiquado. Suas abordagens à pandemia e à violência social não tiveram sucesso. Ele prejudicou o setor público do México, seu governo não é transparente ou confiável, e ele não é receptivo às críticas.

Os apoiadores de AMLO comparam essas deficiências com as falhas de seus antecessores. Becerra explica: “Muitos mexicanos estão se agarrando à esperança que [AMLO] lhes deu e ainda estão muito irritados com os presidentes anteriores. O fato de ele não ter apresentado bons resultados não significa que as pessoas estejam dispostas a rejeitá-lo e voltar para tudo o que tínhamos antes.” Ainda não se sabe como será a segunda metade de seu mandato. Sua trajetória desde a posse não é especialmente animadora. O slogan do MORENA continua sendo “La esperanza de México” — “A esperança do México” — e, também, a razão pela qual tantos permanecem leais ao governo. Mas dois anos no poder mostraram que a esperança por si só não é suficiente.

Sobre o autor

Humberto Beck é professor no Centro de Estudos Internacionais do Colégio de México. Autor de The Moment of Rupture: Historical Consciousness in Interwar German Thought;

Carlos Bravo Regidor é analista político e professor do Programa de Jornalismo do Centro de Pesquisa e Ensino em Economia, CIDE, na Cidade do México;

Patrick Iber dá aulas de história na Universidade de Wisconsin-Madison. É autor de Neither Peace nor Freedom: The Cultural Cold War in Latin America.

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