13 de dezembro de 2001

O sujeito da revolução

Ibrahim Abu-Lughod, ex-professor de ciência política na Northwestern University que mais tarde se tornou vice-presidente da Bir Zeit University na Cisjordânia, morreu aos 72 anos em 23 de maio em...

Edward Said


Vol. 23 No. 24 · 13 December 2001

Ibrahim Abu-Lughod, um ex-professor de ciência política na Northwestern University que mais tarde se tornou vice-presidente da Bir Zeit University na Cisjordânia, morreu aos 72 anos em 23 de maio em sua casa em Ramallah, após uma longa doença. Soube de sua morte quando estava saindo do aeroporto de Tel Aviv a caminho de vê-lo. Ele era meu amigo mais antigo e querido, notável como um pensador introspectivo e um professor e líder político carismático, cuja percepção sustentou uma amizade que durou quase cinquenta anos. Havia centenas de enlutados em seu funeral em Jaffa, e no 'azza - o velório - em sua casa e no Qattan Centre em Ramallah. Vários de seus amigos falaram na comemoração, realizada em um teatro em Ramallah no dia seguinte ao seu sepultamento ao lado de seu pai em um cemitério na encosta com vista para a enseada onde ele costumava levar seus visitantes para nadar - sempre se recusando a visitar o café de praia israelense adjacente, que parecia muito convidativo da mesma forma. Um dos oradores no funeral em Jaffa foi Faisal Husseini, que morreria exatamente uma semana depois em um quarto de hotel no Kuwait.

De todas as formas, a vida rica de Ibrahim e sua morte refletiram e esclareceram a turbulência e o sofrimento que estiveram no cerne da experiência palestina: é por isso que sua vida merece escrutínio. Muito nela confirma a situação palestina em toda a sua irresolução. A única coisa que pareceu se destacar para todos na época de sua morte foi que Abu-Lughod havia encenado seu próprio direito privado de retorno a Jaffa, algo que somente uma pessoa com sua extraordinária vontade poderia ter feito. Ninguém deixou de comentar sobre o fato de seu retorno à Palestina em 1992, após uma ausência de 44 anos, nem sobre a década que ele passou lá completando sua vida como professor, intelectual público e fundador de instituições.

Apesar dessa conclusão teatral, uma vasta instabilidade permaneceu. Ele ainda estava insatisfeito e inquieto. O retorno não o mudou, embora ele estivesse mais contente em casa do que no exílio. Para ele, a Palestina era um interrogatório que nunca é respondido completamente - ou mesmo articulado adequadamente. Tudo em sua personalidade confirmava essa inquietação, desde sua sociabilidade até sua introspecção temperamental, desde seu otimismo e energia até o sentimento imobilizador de impotência que reivindicou tantos de nós. Sua vida expressa simultaneamente derrota e triunfo, abjeção e realização, resignação e determinação. Em suma, era uma versão da Palestina, vivida em toda sua complexidade por um dos melhores palestinos de nosso tempo.

Ibrahim — um homem implacavelmente articulado — será lembrado menos por sua escrita, que era relativamente escassa, do que por sua capacidade de organizar pessoas e estabelecer instituições que lhes permitiam desempenhar um papel mais eficaz do que poderiam ter feito como indivíduos. Na América, ele foi fundamental na fundação da AAUG (Associação de Graduados Universitários Árabes-Americanos), do United Holy Land Fund, do Institute of Arab Studies, do Arab Studies Quarterly e da Medina Press. Ele foi o principal impulsionador da planejada Universidade Aberta Palestina, que deveria ter sua sede em Beirute até que a guerra de 1982 no Líbano acabasse com a ideia. Na Cisjordânia, ele projetou um centro para reforma curricular e, em seguida, o Qattan Center for Research on Education. Mesmo assim, ele parecia saber que a luta pela Palestina não poderia ser vencida nem pela fundação de instituições desse tipo nem mesmo pela repatriação e retorno. Elas eram, no final, estruturas reflexivas e autorreferenciais, e seriam minadas pela desapropriação, luta e perda sem fim. Como um herói conradiano, Ibrahim parecia estar sempre tentando resgatar significado e orgulho dos dramas que aconteciam ao seu redor, bem como de suas próprias fraquezas.

Considere os dramas que cercaram sua vida. Na época de sua morte, uma intifada poderosa, mas sem direção, estava se desenrolando do lado de fora de sua janela. Em 1982, foi o cerco de Beirute, cujos resultados foram os massacres de Sabra e Shatila e a evacuação do Líbano (tanto dele quanto da OLP); em 1948, foi a queda de Jaffa, a dispersão de sua família, o início de seu longo exílio americano e sua franqueza na defesa da causa palestina; eventualmente, em 1992, seu retorno abrupto à Cisjordânia. Quase todo árabe-americano que luta contra os estereótipos raciais, o racismo ideológico sofrido pelos palestinos e o antagonismo perene ao islamismo, deve a Ibrahim uma dívida tremenda. Ele começou a luta e, para a maioria de nós, ele tornou a luta possível em primeiro lugar.

Depois de quase quarenta anos de luta na América do Norte, houve de fato algum tipo de retorno – ou ‘awda – mas ele trouxe Ibrahim de volta apenas a um substituto falho: não a uma Palestina libertada, mas à Área A de Oslo e, com seu passaporte americano, a uma Jaffa muito sob controle israelense. Ele teria sido o primeiro a notar que o retorno palestino estava sujeito ao poder israelense mesmo na época de sua morte (pessoal anônimo da inteligência ameaçou cancelar seu funeral), assim como ele foi o primeiro a notar que em 1988 o Conselho Nacional Palestino e a OLP haviam se transformado de um movimento de libertação em um movimento de independência nacional – algo muito menor, como Oslo revelaria.

Ninguém sabia melhor do que Ibrahim como transformar os escombros da derrota em algum tipo de conquista. Mas ele nunca se contentou com triunfos puramente morais. Ele era muito realista em sua compreensão do poder militar bruto para ser enganado, por exemplo, pela sobrevivência de Arafat aos cataclismos de Beirute em 1982. "Não temos tanques", ele dizia, "não temos poder real. É por isso que foi tão fácil para os israelenses destruir nossas instituições e matar todas aquelas pessoas."

Conheci Ibrahim em Princeton em 1954. Não havia estudantes estrangeiros na universidade naquela época; nem afro-americanos, nem mulheres: apenas jovens brancos da alta sociedade que receberam uma excelente educação clássica e foram levados a sentir que tinham o direito de governar o mundo. Mais tarde, muitos deles o fizeram. Um morador rico da cidade deu dinheiro ao Departamento de Música para fornecer ingressos para o respeitável programa de concertos de Princeton aos estudantes de pós-graduação. Pediram para eu distribuir os ingressos. Em uma tarde especialmente quente e lenta de setembro, um jovem de maneiras rápidas, olhos azul-esverdeados penetrantes e um forte sotaque entrou, pediu ingressos, me mostrou sua carteira de identidade rapidamente (não tive chance de ver seu nome, apenas de registrar que ele era um estudante de pós-graduação) e então, quando ele estava saindo, virou-se e perguntou qual era meu nome. Quando eu disse novamente, ele voltou para o escritório e me perguntou de onde eu era. Eu disse algo como sou do Egito agora, mas antes eu era da Palestina. Seu rosto se iluminou: Eu também sou da Palestina, ele disse, de Jaffa. Ibrahim estava estudando com Philip Hitti, um imigrante libanês que havia estabelecido um departamento líder de "Estudos Orientais" — significando principalmente história e cultura árabes. Ele me apresentou aos outros estudantes de pós-graduação árabes, e em pouco tempo eu tinha um pequeno grupo de amigos mais velhos com quem eu podia falar árabe e lamentar a presença sionista em Princeton, que foi particularmente evidente durante a crise de Suez.

Nós dois deixamos Princeton em 1957 — ele com um PhD, eu com um BA — e voltei para o Egito por um ano. Eu via Ibrahim e sua esposa Janet regularmente no Cairo, onde ele estava trabalhando para a Unesco. Naquela época, havia poucos sinais das atividades políticas que estavam reservadas para nós dois. Eu fui para a pós-graduação em Harvard e via os Abu-Lughods com menos frequência, embora eu soubesse que eles tinham retornado aos EUA para começar suas carreiras de ensino. Então, o raio de 1967 nos atingiu e, inesperadamente, Ibrahim me enviou uma carta perguntando se eu contribuiria para uma edição especial do Arab World, o periódico mensal da Liga Árabe publicado em Nova York, editado por ele como convidado, e pretendia olhar para a guerra de uma perspectiva árabe. Aproveitei a ocasião para olhar para a imagem dos árabes na mídia, literatura popular e representações culturais que remontam à Idade Média. Esta foi a origem do meu livro Orientalism, que dediquei a Janet e Ibrahim.

Nos anos que se seguiram, embora os Abu-Lughods vivessem em Chicago e eu em Nova York, nos tornamos mais próximos, atraídos pela política. Testemunhamos no Congresso, nos encontramos com George Shultz em 1988, criamos o Instituto de Estudos Árabes em Boston, criamos o Arab Studies Quarterly e participamos de sessões do Conselho Nacional Palestino no Cairo, Amã e Argel. Durante aqueles anos de grande atividade, Ibrahim demonstrou um gênio para descobrir indivíduos talentosos nos EUA e no mundo árabe, a quem ele apresentou uns aos outros e ajudou a trabalhar juntos. Em junho de 1982, após um ano em Paris, ele se mudou para Beirute para iniciar a Universidade Aberta Palestina, na qual havia trabalhado com a Unesco e a OLP. Dois dias após sua chegada, as IDF invadiram o Líbano e, quase imediatamente depois disso, seu novo apartamento foi destruído por um foguete israelense. Ele passou os dois meses seguintes sitiado em Beirute, morando na casa da minha mãe com seu bom amigo Soheil Miarri. Nós nos comunicamos regularmente durante aquelas semanas difíceis, na maioria das vezes a pedido de Arafat, que usou várias pessoas, inclusive eu, como intermediários com a Administração dos EUA.

Beirute foi talvez uma experiência mais importante para Ibrahim do que qualquer outra antes ou depois. Ensinou-lhe, em primeiro lugar, que mesmo as melhores instituições podem ser minadas pela mediocridade e pela instabilidade brutal da política e da sociedade no Oriente Médio. Em segundo lugar, ensinou-lhe a dinâmica real do poder, tanto no que diz respeito a quem o tem, quanto a quem não o tem. Terceiro, e talvez o mais importante, ensinou-lhe que sempre se pode seguir em frente, mesmo que o fracasso se aproxime. Esse era o verdadeiro Ibrahim: o homem que entendia que a única coisa era seguir em frente, permanecendo otimista e leal aos seus camaradas (e aproveitando ao máximo o seu senso de humor, por mais macabro que fosse).

De vez em quando ele me dizia: somos medíocres, Edward, medíocres, e no final talvez essa mediocridade seja o que vai derrotar os israelenses, apesar de todo o seu brilhantismo. Mas ele sempre acrescentava: somos um povo bom, e teimosos também, mesmo que nem sempre sejamos muito inteligentes. O que o incomodava tanto em Oslo eram as indignidades que isso acarretava para os palestinos. A postura obsequiosa e palhaça de Arafat nos perturbava muito, e tínhamos muita vergonha de termos sido enganados por ele antes de Oslo. Ao contrário de mim, Ibrahim queria estar na parte da Palestina que Oslo havia escavado e parcialmente arrancado dos israelenses — a Área A — e era lá que ele colocava a si mesmo, seus colegas e seus alunos para trabalhar.

Ibrahim acreditava em padrões acadêmicos e intelectuais, seja na cultura árabe ou no Ocidente. Ele ficava exultante quando encontrava alguém em quem discernia promessa ou talento, porque isso lhe daria uma oportunidade de revelar o que estava escondido e fazê-lo brilhar. Há muitas pessoas — eu sou uma delas — que sentem que foram descobertas, apreciadas e subsequentemente alistadas nas fileiras por Ibrahim. Ele era o maior dos encorajadores, protetores, patrocinadores. Não havia nada como um elogio dele (‘você foi ótimo’), e nada tão definitivo quanto quando ele menosprezava alguém (‘ele é um idiota’, o ‘j’ pronunciado com uma forte nota Jaffa). Como professor, ele estava dividido entre o desejo de influenciar e dominar e o desejo de que a igualdade prevalecesse. Como pai de três filhas talentosas e marido de um estudioso muito talentoso, ele era mais tolerante com as mulheres do que o normal para um árabe ou para um homem ocidental. Mesmo quando ele estava sendo paternal, havia uma qualidade fraternal no monitoramento, e você raramente tinha a sensação de que ele era um tirano — embora ele pudesse afetar uma maneira tirânica, geralmente com um propósito muito bom. Havia um coração gentil por trás da certeza estrondosa.

Como muitos de nós, ele nunca se recuperou realmente da perda da Palestina, e seus primeiros dias como refugiado o marcaram indelevelmente. Memórias daquela época, embora nunca explicitadas, pareciam sempre fazer parte de sua raiva com Israel; e ele entendeu que nossa luta seria longa e complexa e não nos daria autodeterminação em nossa vida. De uma forma ou de outra, "a transformação da Palestina" (o título de sua coleção de ensaios mais conhecida e um eufemismo para o roubo do país pelo sionismo) dominou o trabalho de sua vida, mas ele não era um militante irracional, mas sim um intelectual ferozmente independente, muitas vezes corrosivamente crítico. Apesar do fato de que profissionalmente e pessoalmente ele sempre estava trabalhando pela causa, você nunca poderia descrevê-lo como um profissional. Ele era muito amador, movido por amor e comprometimento.

Ibrahim me apresentou ao assunto e à experiência, por assim dizer, da Palestina. Sete anos mais velho que eu, e mais inserido na vida da Palestina Mandatária, ele despertou em mim e em muitos outros o desejo de recapturar memórias há muito enterradas de nossos primeiros dias, antes que a nakba mudasse tudo. Ele tinha um conhecimento enorme, meticulosamente acumulado e articulado de nossa história, bem como uma memória viva de onde tudo e todos vieram, para onde foram, onde estavam vivendo agora ou quando desapareceram.

Jaffa deve ter sido um lugar notável na década de 1940. A escola de Ibrahim, a Amariye, produziu uma coleção surpreendente de adolescentes, que continuaram como refugiados para levar vidas de distinção como ativistas, acadêmicos e empresários. Ibrahim me apresentou a essas pessoas e elas se tornaram amigas íntimas. Entre eles estão seu amigo aventureiro, o fiel orador e membro da OLP Shafik el-Hout, que nunca deixou seu posto em Beirute, mesmo durante a ocupação israelense da cidade no outono de 1982, mas renunciou ao Comitê Executivo como resultado de seu profundo desacordo com Arafat sobre Oslo; e Abdel Mohsen al Qattan, um empresário bem-sucedido, que gastou grande parte de sua fortuna ajudando os palestinos a construir instituições e, como Shafik e Ibrahim, tem criticado abertamente Oslo.

Ibrahim acompanhou suas vidas com o zelo de um cronista medieval. Em reuniões do Conselho Nacional, ou durante encontros na Associação de Bem-Estar, ele me apresentava a um círculo cada vez maior de palestinos, de cujas vidas ele conseguia extrair, na presença um pouco envergonhada dos próprios indivíduos, uma quantidade incrível de informações aprendidas e homilia útil. Professores, advogados, acadêmicos, bancários e engenheiros o apreciavam como parte concreta da história da Palestina. Você podia senti-lo recusando sua evanescência conforme sua história se desenrolava, outro traço conradiano que dava profundidade a tudo o que ele dizia.

Foi Ibrahim quem apresentou os árabes na América ao mundo das lutas de libertação nacional e da política pós-colonial. Longe de ser um nacionalista palestino provinciano, ele tinha uma ampla perspectiva alimentada por uma ambição invejável de ver o mundo inteiro. Ele falava de forma emocionante sobre lugares que eu nunca tinha pensado em visitar, incluindo Peru, China e Rússia. Ele amava estar na cidade grande e frequentemente passava um tempo em Paris, Cairo e Chicago. Mais importante, ele estava alerta para o potencial — e os limites — da capacidade das pessoas de ajudar a causa da Palestina. Uma década antes de mim, por exemplo, ele entendeu que C.L.R. James se via como um ocidental e não conseguia se identificar facilmente com os árabes. Da mesma forma, como diretor do Programa de Estudos Africanos da Universidade Northwestern, ele tinha um conhecimento impressionante dos movimentos de libertação da África, muitos dos quais ele conhecia e convidou para a Northwestern. Ele estava anos à frente de seu tempo ao apreciar figuras como Amílcar Cabral e Oliver Tambo, ao distinguir seus movimentos e o tipo de colonialismo ou sistema de opressão contra o qual lutavam, bem como ao encontrar paralelos com a situação na Palestina. Por meio dele, também se encontravam as grandes figuras do discurso nacionalista árabe, como Mohammed Hassanein Haykal e Munif el Razzaz.

Foi graças a Ibrahim que, em 1970, conheci Eqbal Ahmad, o outro camarada de armas cuja morte prematura me deixou tão diminuído. Como Ibrahim, Eqbal era (para usar um dos mais altos termos de elogio de Ibrahim) asil, um "autêntico", com o mesmo dom de eloquência infinitamente fértil e incansável. Ficar acordado até tarde da noite com os dois era ser lentamente intimidado ao silêncio, enquanto eles desenvolviam longas dissertações, análises eruditas e até mesmo arcanas, nunca totalmente livres de zelo competitivo. Nenhum dos meus gurus foi mesquinho com seu tempo, e nenhum deles — talvez pelo mesmo motivo — se importava muito com a relativa parcimônia da impressão. Estilistas da palavra proferida, plurilíngues, generosos com ideias e histórias, eles me sustentaram durante minha doença de maneiras que o constrangimento me impede de relatar aqui. O que me consterna é que eles deveriam ter morrido antes de mim — principalmente agora, quando suas vozes teriam sido tão reveladoras e humanamente informativas.

Escrevendo sobre Eqbal na época de sua morte, dois anos atrás, e agora sobre Ibrahim, achei difícil dar conta de suas realizações essencialmente performáticas. Ambos os homens deixaram uma impressão duradoura em todos que conheceram; seu memorial não está incorporado em um corpo de trabalho, no entanto, mas espalhado por várias sociedades, grupos, associações e famílias, todos os quais foram alterados visivelmente, e imperceptivelmente, pela natureza desses homens e suas realizações.

Ambos retornaram para seus últimos anos aos seus países de origem: Eqbal, um nativo de Bihar, para Islamabad; Ibrahim, um nativo de Jaffa, para Ramallah. Mas eles não voltaram para casa de fato. Ao tentar capturar sua memória, alguém a confina e solidifica, e nesse sentido a trai: o que esses homens representavam era energia, mobilidade, descoberta e risco. Na história que se desenrola na Palestina, Ibrahim, eu acredito, permanecerá um modelo do que é ter se dedicado a uma ideia – não como algo a que se curvar, mas a viver e a reexaminar constantemente. Entendê-lo adequadamente é reencenar o drama da luta e do princípio no qual ele estava envolvido, não copiando-o, mas vivendo-o de novo, e ao fazê-lo, deixando-o aberto para revisão futura e reflexão crítica.

2 de dezembro de 2001

O desafio do desenvolvimento sustentável e a cultura da igualdade substantiva

István Mészáros

Monthly Review Volume 53, Number 7 (December 2001)

À memória de Daniel Singer, com quem conversei com frequência sobre a insustentabilidade de nossa ordem de desigualdade estrutural.

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Tradução / Duas proposições intimamente ligadas estão no centro desta intervenção: se o desenvolvimento no futuro não é desenvolvimento sustentável não existirá nenhum desenvolvimento significativo, não importando o quanto ele é urgente; apenas tentativas frustradas para realizar a quadratura do círculo, como as realizadas nas últimas décadas, marcadas por ainda maiores inapreensíveis teorias e práticas de “modernização”, condescendentemente prescritas para o chamado Terceiro Mundo pelos porta-vozes das antigas potências coloniais. Como corolário temos que a busca do desenvolvimento sustentável é inseparável da progressiva realização da igualdade substantiva . Deve também ser sublinhado neste contexto que os obstáculos a superar dificilmente poderiam ser maiores. Visto que até aos nossos dias a cultura da desigualdade substantiva permanece dominante, apesar dos usuais esforços indiferentes para contrariar o impacto devastador da desigualdade social pela institucionalização de alguns mecanismos de estritamente formal igualdade na esfera política.

Bem podemos colocar a questão: o que aconteceu no decurso subsequente do desenvolvimento histórico às nobres ideias proclamadas ao tempo da Revolução Francesa de liberdade, fraternidade e igualdade, e genuinamente defendidas por muitos durante muitos anos? Porque foram descartadas em conjunto, frequentemente com não dissimulado desprezo a fraternidade e a igualdade com a liberdade reduzida ao frágil esqueleto do “democrático direito a votar”, exercida por um número de pessoas cada vez mais céticas e diminutas nos países que se descrevem a eles próprios como “o modelo da democracia”? [1] E isso está longe de constituir todas as más notícias. Pois, como a história do século XX amplamente demonstra, mesmo as fracas medidas de igualdade formal são frequentemente consideradas como insuportáveis luxos para serem praticados, ou abertamente perseguidos por intervenções ditatoriais.

Após mais de um século de promessas de eliminação, ou pelo menos, de redução, a desigualdade através da “taxa progressiva” e de outras medidas (desse modo assegurando as condições de viabilidade social do desenvolvimento), a realidade é de uma ainda maior desigualdade. O fosso tem aumentado não apenas entre o “norte desenvolvido” e o “sul subdesenvolvido” mas também no interior dos países capitalistas avançados. Um recente relatório do Congresso norte-americano (que não pode ser acusado de “inclinação para o campo da esquerda”) admitiu que os ganhos de 1 por cento da população norte-americana excedem agora os de 40 por cento [2] das camadas mais desfavorecidas; número que nas últimas duas décadas duplicou em “apenas” 20%, escandaloso como é, mesmo no seu número mais baixo. Estes desenvolvimentos regressivos caminharam de par com a falsa oposição entre “igualdade de resultados” e “igualdade de oportunidades”, e depois mesmo votado ao abandono com a adulação da (nunca realizada) ideia de “igualdade de oportunidades”. Este resultado não pode ser considerado surpreendente. Por uma vez o “resultado” socialmente desafiante é arbitrariamente eliminado do quadro e substituído pela “oportunidade”, sendo esta ultima desprovida de todo o conteúdo. O termo totalmente vazio de resultados (e pior: negação de resultados), “igualdade” é volvido numa justificação ideológica da negação prática efetiva de todas as reais oportunidades de todos os que delas precisam.

Houve um tempo em que os pensadores progressistas da ascendente burguesia previram otimisticamente que a dominação de um ser humano por outro seria recordado no futuro como um sonho mau. Henry Home, uma grande figura da histórica escola escocesa do Iluminismo, vaticinou que “a Razão, reassumindo a sua autoridade soberana, banirá toda a perseguição, e no próximo século será pensado como estranho que a perseguição tivesse prevalecido entre os seres humanos. Talvez seja mesmo posto em dúvida se alguma vez ela foi realmente colocada em prática”. [3]

Ironicamente, à luz em que as coisas se tornaram, o que parece difícil de acreditar é que os representantes intelectuais da burguesia ascendente alguma vez possam ter raciocinado nestes termos. Um gigante do Iluminismo francês do século XVIII, Denis Diderot, não hesitou em fazer a afirmação radical, “se o trabalhador diário é miserável a nação é miserável”. [4] Igualmente Rousseau, com extremo radicalismo e cortante sarcasmo, descreveu a ordem prevalecente de dominação e subordinação social deste modo: o homem pode ser resumido em poucas palavras: "Tu precisas de mim, porque eu sou rico e tu és pobre. Chegamos então a um acordo. Eu te permitirei ter a honra de me servires, com a condição de me outorgares o pouco que te sobra em troca do sofrimento que terei ao te dirigir.” [5]

No mesmo espírito progressista, o grande filósofo italiano Giambattista Vico insistiu que o culminar do desenvolvimento histórico é “a idade do homem na qual todos se reconhecem como iguais na natureza humana” [6]. E muito tempo antes Thomas Müntzer, o líder Anabatista da revolução camponesa alemã prega no seu panfleto contra Lutero a causa fundamental do avanço do mal social em termos muito tangíveis, diagnosticando-o como o culto da vendibilidade e alienação. Ele conclui o seu discurso dizendo o quanto intolerável era “que todas as criaturas possam ser transformadas em propriedade – os peixes na Água, os pássaros no ar, as plantas na terra.” [7] Isto constituiu uma perspicaz identificação do que foi o desenrolar em todo o seu poder do curso da história nos três séculos seguintes. Como convém à realização paradoxal das antecipações utópicas prematuras, ela oferece, do ponto de vista vantajoso de um capitalismo muito menos estruturado em início de desenvolvimento, uma visão muito mais clara dos perigos que se aproximam do que o que se torna visível para os participantes diretamente envolvidos nas fases mais avançadas. Por uma vez a tendência social da vendibilidade universal triunfa em sintonia com a interna necessidade de formação social do capital, o que aparece a Müntzer como uma violação grosseira da ordem natural das coisas (e, como sabemos, em ultima instância, coloca em perigo a própria existência da humanidade), parece agora natural, inalterável, e aceitável aos pensadores que incondicionalmente se identificam com a ordem social historicamente desenvolvida (e em principio passível de remoção) dos constrangimentos do capital.

Portanto muita coisa se torna opaca e ofuscada pela alteração do ponto histórico em que vemos a história. Mesmo o termo crucial de “liberdade” sofre uma redução ao seu núcleo alienado. Em oposição às restrições políticas da ordem feudal a liberdade é saudada como a conquista do “poder de livremente nos vendermos”, através do pretenso “contrato entre iguais”, enquanto a sepultura material dos constrangimentos sociais da nova ordem são ignorados e mesmo idealizados. Por consequência, o significado original tanto da liberdade como da igualdade é alterado em determinações abstratas e auto-sustentadas [8], tornando a ideia de fraternidade – o terceiro membro de uma nobre aspiração então proclamada – completamente redundante de fato.

2

É o espírito de alienação que deve ser agora confrontado, a menos que estejamos dispostos a resignar-nos à aceitação do status quo e com ele à perspectiva de uma contínua paralisação social e autodestruição final do Homem. Aqueles que são os beneficiários do sistema dominante de desigualdades gritantes entre partes do mundo “desenvolvidas” e “subdesenvolvidas”, não hesitam em impor, com o maior cinismo, as consequências da sua irresponsabilidade ao resto do mundo (como recentemente fizeram ao demarcarem-se do Protocolo de Kyoto e de outros imperativos ambientais). Isto é justificado pela insistência de que os países do “Sul” devam permanecer presos ao seu atual nível de desenvolvimento, de outro modo iriam sofrer de um tratamento “iniquamente preferencial”. Aqui as potências dominantes têm o descaramento de falar em nome da igualdade! Em simultâneo aqueles que beneficiam do sistema recusam ver que a divisão “Norte/Sul” é a maior deficiência estrutural de todo o sistema, afetando cada país, mesmo os deles próprios, mesmo se no momento presente de uma forma menos extrema do que os chamados países do Terceiro-Mundo. Não obstante, a tendência em questão está longe de ser animadora mesmo para os países capitalistas mais avançados. Como ilustração podemos lembrar o alarmante crescimento de crianças pobres na Grã-Bretanha: nas últimas duas décadas, de acordo com as mais recentes estatísticas, o número de crianças vivendo abaixo da linha de pobreza foi multiplicado por três , e continua a aumentar todos os anos.

A dificuldade para nós é que ver estes assuntos numa perspectiva de curto prazo , como os organismos culturais e políticos dominantes necessariamente os colocam, trás com isso a tentação de seguir a “linha da menor resistência”, levando a nenhuma mudança significativa. O argumento associado a este modo de colocar o problema é que “os problemas resolveram-se no passado; eles estão limitados a fazer o mesmo no futuro”. Nada poderia ser mais falacioso do que esta linha de argumentação, precisamente se ela é mais conveniente para os defensores do status quo que não podem enfrentar as contradições explosivas da nossa perigosa situação a longo prazo. Todavia, como investigadores do movimento ecológico continuam a lembrar-nos, o longo prazo não é tão longo como isso, uma vez que as nuvens de uma catástrofe ambiental estão a ficar mais carregadas no horizonte. Fechar os olhos não constitui qualquer solução. Nem devemos permitir sermos enganados pela ilusão de que o perigo de confrontações militares devastadoras pertenceria ao passado, graças aos bons ofícios da “Nova Ordem Mundial”. Os perigos no que concerne a esta matéria são tão grandes como no passado, senão maiores, tendo em conta que nenhuma das contradições e antagonismos fundamentais foi resolvida com a implosão da União Soviética. Os recentes acordos do passado, e o prosseguimento aventureiro do pesadelo da “filha da guerra das estrelas,” com a mais coxa justificação possível de instalação de tais armas “contra estados párias”, representam decididos alertas a este respeito.

Durante muito tempo fomos induzidos a acreditar que todos os nossos problemas seriam felizmente resolvidos através de um “desenvolvimento” e “modernização” socialmente neutra. Era suposto que a tecnologia ultrapassasse todos os obstáculos e dificuldades. Na melhor das hipóteses esta foi uma ilusão imposta àqueles que, não possuindo qualquer papel ativo nas decisões, continuaram a ter esperança de que melhorias nas suas condições de existência seriam uma realidade, como prometido. Através de uma experiência amarga eles vieram a descobrir que a panaceia tecnológica era uma evasão das contradições servida por aqueles que detêm as alavancas do controlo social. A “revolução verde” na agricultura era suposto resolver de uma vez por todas o problema da fome e da má nutrição. Em vez disso, criou corporações monstruosas como a Monsanto, incrementando o seu poder por todo o mundo de tal modo que pesticidas mais poderosos se tornam necessários para a erradicar. Ainda assim, a ideologia do remédio estritamente tecnológico continua a ser propagandeada. Recentemente, alguns governos, incluindo o inglês, começaram a falar sobre a vindoura “revolução industrial verde”, o que quer que isso possa significar. O que é claro, todavia, é que esta nova defesa da panaceia tecnológica é planeada, novamente, como uma fuga às inerradicáveis dimensões sociais e políticas dos cada vez mais intensos perigos ambientais.

Não é exagero afirmar que no nosso tempo os interesses daqueles que não podem nem imaginar uma alternativa de curto prazo à ordem estabelecida, e a uma singular projeção de correções estritamente tecnológicas compatível com ela, colide diretamente com os interesses da sobrevivência da própria humanidade. No passado, o termo mágico para julgar da saúde do nosso sistema social era crescimento , e mesmo hoje ele permanece o quadro no qual as soluções devem ser encontradas. Interrogações de que tipo de crescimento e para que fim são precisamente as que são evitadas pela glorificação incondicional do crescimento. Este é especialmente o caso já que a realidade do crescimento sem restrições sob as nossas condições de reprodução social é extremamente esbanjadora e levam à acumulação de problemas que as futuras gerações deverão enfrentar – por exemplo, um dia, elas irão ter que enfrentar as consequências da energia nuclear (pacífica e militar). Primo do crescimento, o conceito de desenvolvimento, deve também ser alvo de uma análise crítica. Em tempos ele era acolhido por todos sem hesitação, e teve grande disseminação no chamado mundo subdesenvolvido a receita norte-americana de “modernização e desenvolvimento”. Levou algum tempo até que pudesse ser percebido que existia alguma coisa fatalmente defeituosa no modelo recomendado. Pois se o modelo norte-americano – com o qual 4 por cento da população mundial gasta 25 por cento da energia e recursos estratégicos mundiais, e polui o mundo em cerca de 25 por cento – fosse seguido em todo o lado, sufocaríamos num instante. Daí a necessidade de qualificar todo o desenvolvimento futuro como desenvolvimento sustentável , de modo a construir o conceito com um conteúdo realmente factível e socialmente desejável.

3

O maior desafio do desenvolvimento sustentável, que agora devemos enfrentar, não pode ser devidamente tratado sem a remoção dos constrangimentos paralisantes de caráter adverso do nosso sistema de reprodução. Esta é a razão porque não pode ser evitada a questão da igualdade substantiva no nosso tempo como o foi no passado. Por sustentabilidade significamos o estar realmente no controle dos processos culturais, econômicos e sociais vitais através dos quais os seres humanos não só sobrevivem mas também podem encontrar satisfação, de acordo com os objetivos que colocam a si mesmos, em vez de estarem à mercê de imprevisíveis forças naturais e quase-naturais determinações socioeconômicas. A ordem social existente é edificada no antagonismo estrutural entre o capital e o trabalho, requerendo portanto o exercício de um controle externo sobre todas as forças insubmissas. Adversariedade é o acompanhante necessário de tal sistema, não interessando quão elevados são os desperdícios humanos e econômicos para a sua manutenção.

O imperativo de eliminação de desperdícios está claramente nos nossos horizontes como a maior exigência do desenvolvimento sustentável. A economia a longo prazo deve ir de mãos dadas com um racional e humano propósito de economia , como é próprio ao núcleo do conceito. Mas o caminho de economia racional de modo a regular o nosso processo de reprodução social na base de um controle interno/auto-dirigido, como oposição ao externo/de-cima-para-baixo atualmente prevalecente, é radicalmente incompatível com a desigualdade estrutural e adversariedade.

Nas nossas sociedades as determinações entrincheiradas e garantes de desigualdade material são altamente reforçadas pelo modo como os indivíduos interiorizam o seu “papel na sociedade”, mais ou menos consensualmente resignando à sua categoria de subordinação aos que tomam decisões sobre as suas vidas. Esta cultura foi constituída em paralelo com a formação das novas estruturas de desigualdade do capital, sobre as fundações iníquas do passado. Houve uma interação recíproca entre as estruturas materiais reprodutivas e a dimensão cultural, criando um círculo vicioso que prendeu a esmagadora maioria dos indivíduos no seu estritamente contido domínio de ação. Se consideramos uma alteração qualitativa para o futuro, como devemos, o papel vital do processo cultural não pode ser subestimado. Pois não pode haver uma fuga ao círculo vicioso, a menos que desenvolvamos alguma espécie de interação – mas desta vez numa direção emancipatória – que caracterizou o desenvolvimento social no passado. Nenhuma mudança instantânea pode ser considerada do presente – a longo prazo insustentável – modo de reprodução social para um que não mais carregue tendências destrutivas intrínsecas. O sucesso requer a constituição de uma cultura de igualdade substancial, com o envolvimento ativo de todos, e a consciência da nossa própria partilha de responsabilidade implícita na operação de um tal modo de tomada de decisões sem-adversariedade.

Compreensivelmente, mesmo os maiores e mais iluminados pensadores da burguesia ascendente, como filhos do seu tempo e classe, estavam implicados na criação da longamente estabelecida cultura de desigualdade substantiva. Deixem-me ilustrar este ponto com a luta de Goethe com o significado da fantasia de Fausto, pretendendo representar a busca da humanidade na realização do seu destino. Como sabemos, de acordo com o pacto do insatisfeito Fausto com o Diabo, ele está a um passo de perder a sua aposta (e a sua alma) no momento em que encontra realização e satisfação na vida. E é deste modo que esse momento é saudado por Fausto:

Visse eu esse bulício efervescente,P'ra solo livre pisar com livre gente!A um momento tal então diria:Suspende-te, tu que és tão belo!O rasto dos trabalhos e dos dias,Nem eternidades podem apagá-lo. –Na presciência de tão feliz eventoDesfruto agora do supremo momento.

No entanto, com suprema ironia, Goethe mostra que o grande entusiasmo de Fausto está deslocado. Pois o que ele saúda como o grande trabalho de conquista de terra aos pântanos é os Lémures cavando a sua sepultura. E apenas uma intervenção celeste pode, no fim, salvar Fausto, resgatando a sua alma das garras do Diabo. A grandeza de Goethe é evidente na forma como indica o porquê da busca de Fausto ter que acabar em ironia e insolúvel ambiguidade, mesmo se Goethe não se pôde distanciar da visão do mundo do seu herói, apanhado pela concepção de “desigualdade iluminada”. Este é a súmula da visão faustiana:

Apresso-me a dar corpo ao que pensei,Só a voz do amo efeito produz.Erguei-vos todos, escravos, trabalhai!Fazei que se veja o que imaginei.Tomai a ferramenta, enxada, pá!O planejado tem de ser feito, e já.A clara ordem, o esforço sem detença,Merecem a mais bela recompensa;E se queres consumar a obra ingente,Para mil braços é bastante uma mente.

Claramente a consigna da esmagadora maioria da humanidade para desempenhar o papel de “mãos”, pedir que “Tomai a ferramenta” ao serviço de “uma mente”, e obedecer “a voz do amo” respeitando “A clara ordem, o esforço sem detença”, é absolutamente insustentável a longo prazo, não importando o quanto faz lembrar o atual estado das coisas. Como podemos considerar os seres humanos confinados a tal papel de “P'ra solo livre pisar com livre gente!”? As instruções dadas por Fausto ao capataz sobre o modo de controlar os trabalhadores levam diretamente às atuais formas, refletindo o mesmo espírito insuportável:

- Como puderes,Contrata-me trabalhadores,Prende-os com chicote ou favores,Força-os, e paga o que quiseres!Quero notícias dia a dia, e a tempo,De como vai a escavação do campo.

E que significado podemos nós dar ao “grande plano em favor da humanidade” de Fausto quando sabemos que a ordem social do capital é radicalmente incompatível com o planejamento necessário para a própria sobrevivência da humanidade? Como Mefistófeles descreve a perspectiva que se nos apresenta com brutal realismo:

De que serve tanta coisa criada?O que se cria desfaz-se logo em nada!"Acabou-se!" Qual é disto o sentido?Os “mil braços” ao serviço de “uma mente” não nos oferece, obviamente, nenhuma solução. Nem o místico coro de anjos na última cena do Fausto de Goethe a contrariar a ameaça de Mefistófeles de “O que se cria desfaz-se logo em nada!” [9]

Num tempo diferente Balzac, em uma das suas grandes novelas, Melmoth Reconciled, retoma o tema de Fausto, socorrendo de um modo muito diferente Melmoth/Fausto – que, graças ao seu pacto com o diabo, aproveita de uma saúde ilimitada ao longo da sua vida. Neste caso não há necessidade de intervenção divina. Pelo contrário, a solução é oferecida com extrema ironia e sarcasmo. Melmoth com muita habilidade salva a sua própria alma – quando sente a morte a aproximar-se e quer romper o pacto com o diabo – ao realizar um acordo com outro homem, Castanier, em apuros por desfalque, trocando a sua alma em perigo com este, que não hesita em entrar no negócio que lhe confere saúde ilimitada. E a garantia de Castanier, quando por sua vez chega à ideia de como se escapar do ultimo problema, é através da obtenção de uma outra alma em troca da sua, comprometida com o diabo, continuando de um modo intricado o sarcasmo de Balzac, o que nos leva até ao profético diagnóstico de Thomas Müntzer da alienação usurpadora. Castanier dirige-se ao mercado de títulos, absolutamente convencido que terá êxito em encontrar alguém cuja alma possa obter em troca da dele, dizendo que no mercado de títulos “mesmo o Espírito Santo tem a sua cotação” (O Banco do Espírito Santo do Vaticano na lista dos grandes bancos). [10]

No entanto, é suficiente seguir, nem que seja por uns dias os distúrbios dos mercados de títulos de modo a apercebermos que a solução de Melmoth/Castanier não é mais realista hoje do que a intervenção celestial de Goethe. O nosso desafio histórico de obtenção de condições de um desenvolvimento sustentável deve ser resolvido de um modo muito diferente.

Desprender-nos da cultura da desigualdade substantiva e progressivamente substituí-la por uma alternativa viável é o caminho que necessitamos seguir.

Notas:

1. It is enough to think of two recent examples: (1) the practical disenfranchising of countless millions, due to apathy or manipulation, and the electoral farce witnessed after the last U.S. Presidential election and (2) the lowest ever participation of voters in the June 2001 General Election in Britain, producing a grotesquely inflated parliamentary majority of 169 for the Government party with the votes of less than 25 percent of the electorate. The spokesmen of the winning party, refusing to listen to the British electorate’s clear warning message, boasted that “New Labour” had achieved a “land-slide victory.” Shirley Williams aptly commented that what we were witnessing was not a landslide but a mudslide.
2. David Cay Johnston, “Gap Between Rich and Poor Found Substantially Wider,” New York Times, September 5, 1999.
3. Henry Home (Lord Kames), Loose Hints upon Education, chiefly concerning the Culture of the Heart (Edinburgh & London, 1781), 284.
4. Diderot’s entry on Journalier in the Encyclopédie (emphasis added).
5. Jean-Jacques Rousseau, A Discourse on Political Economy (London: Everyman edition, n.d.), p. 264.
6. Giambattista Vico, The New Science, translated from the third edition (1744) (New York: Doubleday & Co, 1961), 3 (emphasis added).
7. Thomas Müntzer  Hochverursachte Schutzrede und Antwort wider das geistlose, sanftlebende Fleisch zu Wittenberg, welches mit verkehrter Weise durch den Diebstahl der heiligen Schrift die erbärmliche Christenheit also ganz jämmerlich besudelt hat (1524), quoted by Marx in his essay The Jewish Question (emphasis added).
8. In other words, we end up with a double circularity, produced by the most iniquitous actual historical development: “liberty” is defined as (abstractly postulated but in real substance utterly fictitious) “contractual equality,” and “equality” is exhausted in the vague desideratum of a “liberty” to aspire at being granted nothing more than the formally proclaimed but socially nullified “equality of opportunity.”
9. From Part Two, Act 5, of Goethe’s Faust. English translation by Philip Wayne (Harmondsworth, Middlesex: Penguin Classics, 1959). English quotations are taken from pages 267-270 of this volume (emphasis added).
10. The direct inspiration for Balzac’s novella was a long tale by an Irish Anglican clergyman, the descendant of a French Huguenot priest who fled France after the revocation of the Edict of Nantes. This work, by Charles Robert Maturin, the curate of St. Peter’s, Dublin, entitled Melmoth the Wanderer, was first published in Dublin in 1820, and immediately translated into French. (Recent edition by The Folio Society, London, 1993, pp. xvii.+ 506, with an Introduction by Virendra P. Varma.) The big difference is that while Maturin’s wandering Melmoth in the end cannot escape hell, Balzac’s very different way of approaching the Faust legend, with devastating irony and sarcasm, transfers the story on a radically different plane, putting into relief a vital determination of our social order.

Sobre o autor

István MészÁros é autor de Socialism or Barbarism: From the “American Century” to the Crossroads (Monthly Review Press, 2001), e Beyond Capital: Toward a Theory of Transition (Monthly Review Press, 1995).

Este artigo é baseado em uma palestra proferida na "Cúpula sobre Dívida Social e Integração da América Latina" dos Parlamentos Latino-Americanos, realizada em Caracas, Venezuela, de 10 a 13 de julho de 2001.

16 de agosto de 2001

A ocupação é a atrocidade

O que os palestinos precisam agora é uma liderança unida que toma posições e planos de ação em massa, projetadas para não voltar a Oslo, mas para avançar com a resistência e libertação.

Edward Said


Um tanque israelense (parcialmente obscurecido) destrói uma casa palestina em Gaza em retaliação a dois ataques suicidas a bomba em agosto de 2001.

Tradução / Nos Estados Unidos, onde Israel tem sua principal base política, e de quem recebeu mais de 92 bilhões de dólares em ajuda desde 1967, o atentado a bomba de quinta-feira num restaurante de Jerusalém e o desastre de segunda-feira em Haifa, ambos acontecimentos que tiveram um terrível custo humano, são rapidamente explicados dentro de um quadro já familiar: Arafat não fez o suficiente para controlar seus terroristas; extremistas suicidas islâmicos estão em toda a parte, fazendo mal a “nós” e aos nossos principais aliados, impulsionados por puro ódio; Israel, portanto, deve defender sua segurança. Um indivíduo ponderado poderá acrescentar: essas pessoas têm lutado incansavelmente por milhares de anos, de qualquer forma; a violência deve parar; os dois lados têm sofrido demais, embora a maneira como os palestinos mandam seus filhos para a batalha seja outro sinal do quanto Israel tem tido de aguentar. E então, exasperado, mas ainda assim moderado, Israel invade Jenin, cidade sem fortificações nem defesas, com tratores e tanques, destruindo vários edifícios, entre os quais os da polícia da Autoridade Palestina. Depois manda seus propagandistas dizerem que era uma mensagem para Arafat controlar seus terroristas. Enquanto isso, Arafat e seu círculo estão suplicando pela proteção norte-americana, sem dúvida se esquecendo de que Israel é o aliado que goza da maior proteção dos Estados Unidos e que tudo que vai conseguir, pela enésima vez, é apenas uma ordem para parar a violência.

O fato é que Israel praticamente já ganhou a guerra de propaganda nos Estados Unidos, país onde está para colocar vários milhões de dólares numa campanha de relações públicas (usando astros como Zubin Mehta, Yitzhak Pearlman e Amos Oz) para melhorar ainda mais sua imagem. Mas consideremos o que Israel conseguiu com sua guerra implacável contra o indefeso, basicamente desarmado e mal conduzido povo palestino. A disparidade de poder é tão grande que dá vontade de chorar. Equipados com o poder aéreo mais moderno, não só produzido como presenteado gratuitamente pelos Estados Unidos, os israelenses possuem helicópteros com canhoneiras, mísseis, incontáveis tanques e uma marinha excelente, assim como um serviço de inteligência extremamente eficiente. Ou seja, Israel é uma potência nuclear abusando de um povo sem tanques, artilharia, força aérea (sua única e patética pista de decolagem em Gaza é controlada por Israel), marinha ou exército: nenhuma das instituições de um Estado moderno. A contínua e estarrecedora história dos trinta e quatro anos de ocupação militar de terra palestina ilegalmente conquistada (a segunda mais longa da história moderna) tem se apagado da memória pública quase em toda a parte, assim como a destruição da sociedade palestina em 1948 e a expulsão de 68% da população local, da qual 4,5 milhões de pessoas continuam vivendo como refugiados nos dias de hoje. Por trás das resmas de propaganda, as características evidentes da pressão diária de Israel, por várias décadas, sobre um povo que tem como maior pecado por acaso estar vivendo lá, no meio de seu caminho, são chocantemente perceptíveis em seu sadismo desumano. O confinamento fantasticamente cruel de 1,3 milhão de pessoas, apertadas como sardinhas humanas na Faixa de Gaza, além dos quase 2 milhões de residentes palestinos da Cisjordânia, não tem paralelos nos anais do apartheid ou do colonialismo. Caças F-16 nunca foram usados para bombardear lares sul-africanos. Mas são usados contra as cidades e vilarejos palestinos. Todas as entradas e saídas são controladas por Israel (Gaza está completamente cercada por uma cerca de arame farpado), que também detém todo o fornecimento de água. Dividida em aproximadamente sessenta e três cantões não contíguos, completamente cercada e sitiada por tropas israelenses, pontuada por cento e quarenta assentamentos (muitos deles construídos durante o governo Ehud Barak), com uma rede de estradas própria, de acesso proibido aos “não judeus”, como são chamados os árabes, juntamente com outros epítetos depreciativos, como ladrões, cobras, baratas e gafanhotos, os palestinos sob ocupação, agora, foram reduzidos a 60% de desemprego e uma taxa de pobreza de 50% (metade das pessoas de Gaza e da Cisjordânia vive com menos de dois dólares por dia); eles não podem viajar de um lugar para outro; são obrigados a esperar em longas filas em postos de controle israelenses, que detêm e humilham os idosos, os doentes, os estudantes e os religiosos por horas a fio; cento e cinquenta mil de suas oliveiras e árvores cítricas foram arrancadas como punição; duas mil de suas casas, demolidas; muitos hectares de suas terras foram destruídos ou expropriados para servirem de assentamentos militares.

Desde que a Intifada da Al-Aqsa começou, no final do último setembro [de 2000], 609 palestinos foram assassinados (quatro vezes mais que as mortes de israelenses) e 15 mil feridos (doze vezes mais que do outro lado). Os assassinatos regulares realizados pelo exército israelense foram de supostos terroristas escolhidos indiscriminadamente. Na maior parte das vezes, mataram civis inocentes como moscas. Na última semana, 14 palestinos foram assassinados pelas forças israelenses que usavam mísseis e canhoneiras de helicópteros; os palestinos assassinados, portanto, foram “impedidos” de matar israelenses no futuro, apesar de, nessa ocasião, pelo menos duas crianças e cinco inocentes também terem perdido a vida, para não dizer nada sobre outros tantos civis feridos e diversos edifícios destruídos – parte do efeito colateral, de alguma forma aceitável para os israelenses. Sem nome nem rosto, as vítimas palestinas diárias de Israel raramente são mencionadas nos noticiários americanos, apesar de – por razões que eu simplesmente não consigo entender – Arafat ainda estar esperando que os americanos resgatem a si e ao seu regime em desintegração.

E isso não é tudo. O plano de Israel não é apenas manter a terra e povoá-la com colonos armados assassinos que, protegidos pelo exército, levam a destruição aos pomares, às crianças em idade escolar e aos lares palestinos; o projeto israelense é, como afirmou a pesquisadora americana Sara Roy, fazer regredir a sociedade palestina, tornar a vida impossível para a população local, com o objetivo de obrigar os palestinos a sair, a desistir de sua terra de alguma forma ou a fazer algo insano, como explodir a si mesmos. Desde 1967, líderes foram presos e deportados pelo regime de ocupação de Israel, pequenos negócios e fazendas tornaram-se inviáveis, ao serem confiscadas e simplesmente destruídas, estudantes foram impedidos de estudar, universidades foram fechadas (em meados dos anos 1980, as universidades palestinas na Cisjordânia foram fechadas por quatro anos). Nenhum agricultor ou empresário palestino pode exportar diretamente a um país árabe; seus produtos devem passar por Israel. Impostos também são pagos ao Estado israelense. Depois que o processo de paz de Oslo começou, em 1993, a ocupação foi simplesmente remodelada: apenas 18% da terra foi entregue à Autoridade Palestina liderada por Arafat, uma organização corrupta e similar ao governo Vichy, já que sua função parece ter sido somente a de policiar e cobrar impostos de seu povo para o agrado de Israel. Após oito infrutíferos e miseráveis anos desde as negociações de Oslo, arquitetadas por uma equipe americana de antigos lobistas israelenses, como Martin Indyk e Dennis Ross, Israel continua a controlar as terras, a ocupação apresentada mais eficientemente e a frase “processo de paz” criou uma aura de consagração que permite mais abusos, mais assentamentos, mais prisões e mais sofrimento palestino que antes. Incluindo um leste de Jerusalém “judaizado”, com a Orient House ocupada e seu conteúdo saqueado (como havia feito com os arquivos da OLP em Beirute, em 1982, Israel roubou os registros, títulos de terra, mapas valiosos do local), o governo israelense implantou não menos de 400 mil colonos em solo palestino. Chamá-los de espreitadores e bandidos não é um exagero.

Vale a pena lembrar que duas semanas após a visita desnecessariamente arrogante de Sharon a Haram Al-Sharif, em Jerusalém, em 28 de setembro, acompanhado de mil soldados e seguranças fornecidos pelo primeiro-ministro Barak, Israel foi condenado unanimemente por essa ação pelo Conselho de Segurança da ONU. Depois, como até mesmo uma criança poderia ter previsto, a rebelião anticolonial irrompeu, tendo como suas primeiras vítimas oito palestinos assassinados. Sharon foi levado ao poder essencialmente para “subjugar” os palestinos, dar-lhes uma lição, livrar-se deles. Seu histórico como matador de árabes data de trinta anos, antes dos massacres de Sabra e Shatila, supervisionados por suas forças em 1982 e pelos quais foi indiciado numa corte belga. Ainda assim, Arafat quer negociar com ele e chegar, talvez, a um arranjo cômodo para salvaguardar a própria Autoridade sob seu comando, que Sharon sistematicamente está desmantelando, destruindo, arrasando.

Mas ele tampouco é um bobo. A cada ato de resistência palestina, suas forças aumentavam a pressão um pouco mais, apertando cada vez mais o cerco; tomando mais terra; tornando um hábito incursões mais profundas e em maior número, em cidades palestinas como Jenin e Ramallah; cortando mais suprimentos; abertamente assassinando líderes palestinos; tornando a vida mais intolerável; redefinindo os termos das ações do seu governo, que certa vez fez “concessões generosas” enquanto “defendia” a si mesmo; que “previne” o terrorismo; que dá “segurança” a certas áreas; que “restabelece” o controle; e assim por diante. Ao mesmo tempo, ele e seus lacaios atacam e desumanizam Arafat, chegando a ponto de dizer que ele é um “arquiterrorista” (apesar de ele literalmente não poder se mover sem a permissão de Israel), e que “nós” não estamos em nenhuma guerra contra o povo palestino. Que dádiva para aquele povo! Com tal “comedimento”, por que uma invasão maciça, cuidadosamente divulgada para aterrorizar os palestinos ainda mais sadicamente, seria necessária? Israel sabe que pode retomar seus edifícios à vontade (como mostram o roubo em grande escala da Orient House de Jerusalém, assim como o de mais nove outros edifícios, escritórios, bibliotecas e arquivos, lá e em Abu Dis), da mesma maneira pela qual quase já eliminou os palestinos como povo.

Essa é a verdadeira história da pretensa “vitimização” de Israel, construída há vários meses com cuidado premeditado e má intenção. A linguagem foi separada da realidade. Não tenham pena dos inaptos governos árabes que não podem e não farão nada para deter Israel: tenham pena do povo que carrega as feridas na pele e no corpo descarnado de seus filhos, alguns dos quais acreditam no martírio como a única saída. E Israel, presa numa campanha sem futuro, agredindo a torto e a direito, sem piedade? Como disse, em 1925, James Cousins, o poeta e crítico irlandês, o colonizador está nas garras de “preocupações falsas e egoístas, que impedem que dê atenção à evolução natural de seu próprio gênio nacional, e o desvia do caminho de aberta retidão para tortuosos atalhos do pensamento, discurso e ação desonestos, na defesa artificial de uma falsa posição”. Todos os colonizadores seguiram esse caminho, sem nada aprender e sem nada que os detenha. No final, quando os israelenses deram as costas a vinte e dois anos de ocupação do Líbano, saíram de seu território, deixando para trás um povo exausto e mutilado. Se o objetivo era atender às aspirações dos judeus, por que exigiu tantas vítimas de outro povo que não tinha absolutamente nada a ver com a perseguição e o exílio judeu?

Com Arafat e companhia no comando, não há esperança. O que faz esse homem, grotescamente se refugiando no Vaticano, em Lagos e em outros lugares distintos, pleiteando, sem dignidade nem inteligência, por observadores imaginários, por ajuda árabe, por apoio internacional, em vez de ficar com seu povo, tentando ajudá-lo com suprimentos médicos, medidas para levantar seu moral e agindo como uma verdadeira liderança? O que precisamos é de uma liderança unificada, com pessoas que estejam na região, que estejam de fato resistindo, que estejam realmente com o povo e que façam parte do povo e não de burocratas gordos, que fumam charutos, que querem seus acordos de negócios preservados, que seus passes VIP sejam renovados e que perderam todo traço de decência ou credibilidade. Uma liderança unificada que tome posição e planeje ações destinadas não a promover um retorno a Oslo (pode-se imaginar a loucura dessa ideia?), mas a ir em frente com a resistência e a libertação, em vez de confundir as pessoas com conversas sobre negociações e o estúpido Plano Mitchell.

Arafat está acabado: por que não admitimos que ele não pode nem liderar, nem planejar, nem fazer nada que faça diferença, exceto para ele próprio e seus amigos de Oslo, que se beneficiaram materialmente da miséria de seu povo? Todas as pesquisas mostram que sua presença impede que qualquer avanço se torne possível. Precisamos de uma liderança unificada para tomar decisões e não simplesmente para se humilhar diante do papa e do estúpido George W. Bush, mesmo que os israelenses estejam matando nosso heroico povo impunemente. Um líder deve liderar a resistência, refletir as realidades na área, responder às necessidades de seu povo, planejar, pensar, se expor aos mesmos perigos e dificuldades que todos vivenciam. Lutar pela libertação da ocupação israelense é a posição de todo palestino que tem algum valor: Oslo não pode ser reconstituído ou reelaborado, como Arafat e companhia poderiam querer. O tempo acabou para eles, e o quanto antes fizerem as malas e se forem, melhor será para todos.

11 de janeiro de 2001

As maravilhas de Walter Benjamin

J. M. Coetzee


January 11, 2001 issue

Resenhas:

Selected Writings, Volume 1: 1913-1926 Edmund Jephcott, Harry Zohn, and others.
by Walter Benjamin, edited by Marcus Bullock, edited by Michael W. Jennings. Translated from the German by Rodney Livingstone, Stanley Corngold,

Selected Writings,Volume 2: 1927-1934
by Walter Benjamin, edited by Michael W. Jennings, edited by Howard Eiland, edited by Gary Smith. Translated from the German by Rodney Livingstone and others.

The Arcades Project
by Walter Benjamin, Translated from the German and French by Howard Eiland and Kevin McLaughlin

I

A história já é tão conhecida que quase não precisa ser contada. O cenário é a fronteira franco-espanhola, em 1940. Fugindo da França ocupada, Walter Benjamin apresenta-se para a esposa de um certo Fittko, que conhecera num campo de detenção. Soube, diz ele, que Frau Fittko poderia guiá-lo com seus companheiros na travessia dos Pireneus para a Espanha neutra. Ela o leva em uma caminhada para fazer o reconhecimento das melhores rotas; ele carrega uma pasta pesada. A pasta é mesmo necessária? — pergunta ela. Contém um manuscrito, ele responde. "Não posso correr o risco de perder isto. Precisa ser salvo. É mais importante do que eu". 

No dia seguinte atravessam as montanhas, Benjamin parando a cada poucos minutos por causa do coração fraco. Na fronteira, são detidos. Os papéis não estão em ordem, diz a polícia espanhola; têm de voltar para a França. Em desespero, Benjamin toma uma overdose de morfina. A polícia faz um inventário dos pertences do morto. No inventário não há nenhum registro de um manuscrito. 

O que havia na pasta e como desapareceu, só podemos especular. Gershom Scholem, amigo de Benjamin, sugeriu que era a última revisão do inacabado Passagen-Werk [Trabalho das passagens], conhecido em inglês como Arcades project. ("Para grandes escritores", escreveu Benjamin, "uma obra terminada pesa menos que aqueles fragmentos em que trabalharam a vida inteira".) O esforço heróico, embora inútil, de salvar seu manuscrito das fogueiras do fascismo, levando-o a salvo para a Espanha e em seguida para os Estados Unidos, torna Benjamin um ícone do scholar para o nosso tempo. 

A história tem uma virada feliz. Uma cópia do manuscrito deixada em Paris fora escondida na Bibliotèque Nationale por George Bataille, amigo de Benjamin. Recuperado depois da guerra, foi publicado em 1982 em sua forma original, isto é, em alemão e com enormes trechos em francês. Agora temos a magnum opus de Benjamin em tradução integral para o inglês, e estamos ao menos em posição de fazer a pergunta: por que tanto interesse por um tratado sobre compras na França do século XIX? 

Benjamin nasceu em 1892, em Berlim, numa família judia assimilada. O pai era um bem-sucedido leiloeiro de arte que expandiu suas atividades para o ramo de investimento em propriedades; para a maioria dos padrões, os Benjamin eram abastados. Aos 12 anos, depois de uma infância doentia e cercada de cuidados, Benjamin foi enviado para um colégio interno progressista no campo, onde sofreu a influência de um de seus diretores, Gustav Wyneken. Após deixar a escola, militou por muito tempo no movimento juvenil antiautoritário de retorno à natureza liderado por Wyneken, e só o deixou quando este declarou apoio à I Guerra Mundial. 

Em 1912 Benjamin matriculou-se na Universidade de Freiburg como estudante de filologia. Ao concluir que o ambiente intelectual não lhe apetecia, lançou-se no ativismo pela reforma educacional. Quando a guerra eclodiu, furtou-se ao serviço militar primeiro fingindo um problema de saúde e depois mudando-se para a Suíça neutra. Ali ficou até 1920, lendo filosofia e trabalhando em uma dissertação de doutoramento para a Universidade de Berna. Sua esposa reclamava que eles não tinham vida social. 

Benjamin tinha atração por universidades assim como Kafka por companhias de seguro, observou seu amigo Theodor Adorno. Apesar dos escrúpulos, Benjamin cumpriu todos os passos exigidos para obter a Habilitation (doutorado superior) que lhe permitiria tornar-se professor, e em 1925 submeteu à Universidade de Frankfurt sua dissertação sobre o drama barroco alemão. Surpreendentemente, a dissertação não foi aceita: ficava entre as cadeiras de literatura e filosofia, e Benjamin não contava com um orientador preparado para encaminhar o seu caso. Fracassados seus planos acadêmicos, Benjamin lançou-se numa carreira de tradutor, radialista e jornalista free-lance. Uma das suas encomendas foi a tradução de À Ia recherche de Proust; três dos sete volumes foram terminados. 

Em 1924 Benjamin visitou Capri, na época o reduto de férias favorito dos intelectuais alemães. Lá conheceu Asja Lacis, diretora de teatro da Letônia e comunista engajada. O encontro foi decisivo. "Toda vez que experimentei um grande amor, passei por uma transformação tão fundamental que assombrava a mim mesmo", escreveu em retrospecto. "Um amor genuíno me faz ficar parecido com a mulher que eu amo." Nesse caso, a transformação implicou uma mudança de rumo político. "Para pessoas progressistas em seu juízo perfeito, o caminho do pensamento leva a Moscou, não à Palestina", disse-lhe Lacis incisivamente. Todos os traços de idealismo do seu pensamento, para não falar do seu flerte com o sionismo, tiveram de ser abandonados. Seu amigo do peito Scholem já havia emigrado para a Palestina e esperava que ele o seguisse. Benjamin achou uma desculpa para não ir; ficou dando desculpas até o fim. 

Em 1926 Benjamin viajou a Moscou para um encontro com Lacis. Ela não o recebeu calorosamente (estava envolvida com outro homem). Em seu registro da visita Benjamin revolve o seu infeliz estado de espírito, bem como se pergunta se deveria ou não se filiar ao Partido Comunista e submeter-se à sua linha. Dois anos depois eles se reuniram brevemente em Berlim: viviam juntos e freqüentavam as reuniões da Liga dos Escritores Revolucionários-Proletários. A ligação precipitou a ação de divórcio em que Benjamin se comportou com notável mesquinharia para com sua mulher. 

Na viagem a Moscou, Benjamin manteve um diário que depois revisou para publicação. Ele não falava russo. Em vez de recorrer a intérpretes, tentou ler Moscou a partir de fora — o que depois designaria como seu "método fisiognômico" —, esquivando-se de abstração ou julgamento e apresentando a cidade de uma tal forma que "toda factualidade já é teoria" (a frase é de Goethe). Algumas das proposições de Benjamin sobre a experiência "histórico-mundial" que ele vê em curso na União Soviética hoje parecem ingênuas. Mesmo assim, permanece o seu olhar afiado. Muitos dos novos moscovitas ainda são camponeses — observa — vivendo vidas de aldeia em ritmos de aldeia; a distinção de classes pode ter sido abolida, mas dentro do Partido está se engendrando um novo sistema de castas. Uma cena num mercado de rua capta o status degradado da religião: um ícone à venda flanqueado por retratos de Lênin "como um prisioneiro entre dois policiais". 

Embora Asja Lacis seja uma constante presença de fundo no "Diário de Moscou" e Benjamin insinue que suas relações sexuais eram problemáticas, dá-se ali pouca idéia da pessoa física de Lacis. Como escritor, Benjamin não tinha o dom de evocar as pessoas. Nos escritos de Lacis temos uma impressão muito mais viva do próprio Benjamin: seus óculos como pequenos refletores, suas mãos desajeitadas. Pelo resto de sua vida Benjamin se intitulou como um comunista ou um companheiro de viagem. Mas quão profundo terá sido o seu caso com o comunismo? 

Durante anos depois de conhecer Lacis, Benjamin repetiria sentenças marxistas sem ter lido Marx — "a burguesia [...] está condenada ao declínio em razão de contradições internas que se tornarão fatais à medida que se desenvolverem". "Burguesa" tornou-se o seu anátema para uma mentalidade — materialista, acomodada, egoísta, pudica e acima de tudo autocomplacente — à qual ele era visceralmente hostil. Proclamar-se comunista era um ato de se postar, moral e historicamente, contra a burguesia e sua própria origem burguesa. "Uma coisa [...] jamais poderá ser consertada: ter deixado de fugir de meus pais", escreve Benjamin em Rua de mão única, a coleção de anotações de diário, relatos de sonhos, aforismos, mini-ensaios e mordazes observações sobre a Alemanha de Weimar com a qual se deu a conhecer em 1928 como um intelectual free-lance. Não ter fugido de casa cedo o bastante significava que ele estava condenado a fugir de Emil e Paula Benjamin pelo resto da vida: ao reagir contra a prontidão de seus pais em se assimilar à classe média alemã, ele se igualava a muitos judeus germanófonos de sua geração, inclusive Kafka. O que incomodava os amigos de Benjamin em seu marxismo era que parecia haver nele algo de forçado ou meramente reativo. 

As primeiras incursões de Benjamin pelo discurso da esquerda são deprimentes de se ler. Há um deslize para o que só se pode chamar de estupidez voluntária quando ele tece rapsódias sobre Lênin (cujas cartas têm "a melodiosidade da grande épica", diz em um texto não incluído nos Selected writings da Harvard) ou recita os execráveis eufemismos do Partido: 

O comunismo não é radical. Portanto, não tem intenção de simplesmente abolir as relações familiares. Ele meramente põe à prova essas relações para determinar sua capacidade de mudança. Ele pergunta a si mesmo: a família pode ser desmantelada de modo que seus componentes possam ser socialmente refuncionalizados?

Essas palavras vêm de uma resenha de uma peça de Brecht, que Benjamin conheceu por intermédio de Lacis e cujo "pensamento rude", despido de amenidades burguesas, atraiu Benjamin por algum tempo. "Esta rua se chama Asja Lacis em honra daquela que como um engenheiro a abriu através do autor", diz a dedicatória de Rua de mão única. A comparação tem um intento elogioso. O engenheiro é o homem ou mulher do futuro, aquele que, impaciente com palavrório e provido de conhecimento prático, age, e age decisivamente para transformar a paisagem (Stálin também admirava os engenheiros: para ele os escritores deviam se tornar engenheiros das almas humanas, no sentido de tomar como tarefa sua "refuncionalizar" a humanidade de dentro para fora). 

Um dos textos mais conhecidos de Benjamin, "O autor como produtor" (1934), demonstra muito claramente a influência de Brecht. Em questão, a velha ladainha da estética marxista: o que é mais importante, forma ou conteúdo? Benjamin propugna que uma obra literária será "politicamente correta somente se for também literariamente correta". "O autor como produtor" é uma defesa da ala esquerdista da vanguarda modernista, tipificada para Benjamin pelos surrealistas, contra a linha do Partido em matéria de literatura, com seu pendor para histórias realistas facilmente compreensíveis e com acentuada propensão progressista. Para defender sua causa, Benjamin se sente obrigado a apelar mais uma vez para o glamour da engenharia: o escritor, como o engenheiro, é um especialista técnico e deveria ter voz em questões técnicas. 

Discutir nesse nível tão tosco não era fácil para Benjamin. Sua fidelidade ao Partido não lhe causava nenhum mal-estar num momento em que a perseguição de artistas por Stálin estava a pleno vapor? (A própria Asja Lacis viria a se tornar uma das vítimas de Stálin, passando anos num campo de trabalho.) Um breve texto do mesmo ano pode fornecer uma pista. Ali Benjamin zomba dos intelectuais que "fazem de ponto de honra ser inteiramente eles mesmos em todas as questões", recusando-se a entender que para ser bem-sucedidos têm de apresentar faces diferentes para públicos diferentes. São, diz ele, como um açougueiro que se recusa a cortar uma carcaça, insistindo em vendê-la inteira. 

Como ler esse texto? Benjamin está ironicamente louvando a antiquada integridade intelectual? Está confessando veladamente que ele, Walter Benjamin, não é o que parece ser? Está fazendo uma colocação prática, mesmo que amarga, sobre a vida do escritor de aluguel? Uma carta a Scholem (a quem no entanto ele nem sempre conta toda a verdade) sugere a última leitura. Ali Benjamin defende seu comunismo como "a óbvia, razoável tentativa de um homem que está completamente ou quase completamente privado de quaisquer meios de produção de proclamar seu direito a eles". Em outras palavras, ele segue o Partido pela mesma razão que move qualquer proletário: porque é de seu interesse material. 

II

Na época em que os nazistas chegaram ao poder, muitos dos companheiros de Benjamin, inclusive Brecht, constataram o inevitável e fugiram. Benjamin, que de qualquer forma há muito se sentia deslocado na Alemanha e passava temporadas na França ou em Ibiza sempre que podia, logo os acompanhou (seu irmão mais novo, Georg, foi menos prudente: preso por atividades políticas em 1934, pereceu em Mauthausen em 1942). Ele se estabeleceu em Paris, onde levou uma existência precária colaborando para jornais alemães (sob pseudônimos que soavam arianos: Detlef Holz, K. A. Stempflinger) e do contrário vivendo de doações. Com a eclosão da guerra ele se viu detido como estrangeiro inimigo. Solto graças a instâncias do PEN francês, imediatamente fez arranjos para fugir para os Estados Unidos, partindo assim em sua viagem fatal rumo à fronteira espanhola. 

Os insights mais agudos de Benjamin sobre o fascismo, esse inimigo que o privou de um lar e de uma carreira e que acabou por matá-lo, dizem respeito ao expediente por ele usado para vender-se ao povo alemão: transformar-se a si próprio em teatro. Esses insights estão mais plenamente expressos em "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tecnológica" (para usar o título preferido pelos tradutores dos Selected writings), de 1936, mas são prenunciados numa resenha de 1930 sobre a coletânea Guerra e guerreiros, organizada por Ernst Jünger. É lugarcomum observar que os comícios de Hitler em Nuremberg, com sua combinação de declamação, música hipnótica, coreografia de massa e iluminação dramática, encontraram seu modelo nas produções de Wagner em Bayreuth. O que é original em Benjamin é a sua proposição de que a política como teatro grandioso, mais que como debate, não era apenas uma armadilha do fascismo, mas fascismo em essência. 

Nos filmes de Leni Riefensthal, assim como nos documentários de atualidades exibidos em todos os cinemas do país, as massas alemãs recebiam imagens de si mesmas conforme seus líderes determinavam que fossem. O fascismo usou o poder da arte do passado — o que Benjamin chama de "arte aurática" — somado ao poder multiplicador das novas mídias pós-auráticas, o cinema sobretudo, para criar seus novos cidadãos fascistas. Para os alemães comuns, a única identidade à mostra, aquela que olhava de volta para eles da tela, era a identidade fascista em uniforme fascista e com posturas fascistas de dominação ou obediência. 

A análise de Benjamin sobre o fascismo como teatro suscita muitas questões. O cerne do fascismo alemão de fato residiria antes na política como espetáculo do que no ressentimento e nas aspirações de revide histórico? Se Nuremberg era política estetizada, por que não o seriam igualmente as extravanganzas e os julgamentos-espetáculo do 1° de Maio de Stálin? Se a marca do fascismo foi a supressão da divisa entre política e mídia, onde estaria o elemento fascista na política midiática das democracias ocidentais? Não haveria diversas modalidades de política estética? 

O conceito-chave que Benjamin inventa (embora no seu diário insinue que na verdade foi idéia original da livreira e editora Adrienne Monnier) para descrever o que acontece com a obra de arte na era de sua reprodutibilidade tecnológica (principalmente a era da câmera: Benjamin tem pouco a dizer acerca dos processos de impressão) é o da perda da aura. Até meados do século XIX, diz ele, persistia uma relação propriamente intersubjetiva entre a obra de arte e seu espectador: o espectador olhava e a obra de arte, por assim dizer, olhava de volta. "Perceber a aura de um fenômeno [significa] investi-lo da capacidade de nos olhar de volta." Há assim algo de mágico na aura, derivado de elos remotos, ora evanescentes, entre arte e ritual religioso. 

Benjamin fala pela primeira vez em aura na sua "Pequena história da fotografia" (1931), em que tenta explicar por que (a seus olhos) os primeiríssimos retratos fotográficos — incunábulos da fotografia, por assim dizer — têm aura, ao passo que as fotografias da geração posterior a perderam. Em "A obra de arte" a noção de aura é um tanto temerariamente estendida das velhas fotografias para as obras de arte em geral. O fim da aura, diz Benjamin, será mais que compensado pelas capacidades emancipatórias das novas tecnologias de reprodução. O cinema substituirá a arte aurática. 

Até mesmo os amigos de Benjamin achavam difícil apreender a aura. Brecht, a quem Benjamin expusera o conceito durante longas visitas à sua casa na Dinamarca, escreve o seguinte em seu diário: 

[Benjamin] diz: quando você sente o olhar de alguém pousar em você, mesmo às suas costas, você reage (!). A expectativa de que tudo o que você olha está olhando para você cria a aura [...]. Tudo muito místico, apesar das atitudes antimísticas dele. E assim que a abordagem materialista da história é adaptada! Isso é um tanto chocante. 

Outros amigos não foram mais encorajadores. 

Ao longo dos anos 1930 Benjamin se empenhou para desenvolver uma definição plausivelmente materialista de aura e perda de aura. O filme é pós-aurático, diz ele, porque a câmera, sendo um instrumento, não pode ver (uma asserção questionável: os atores certamente reagem à câmera como se ela estivesse olhando para eles). Numa revisão posterior, Benjamin sugere que o fim da aura pode ser fixado no momento da história em que as multidões urbanas ficam tão densas que as pessoas — os passantes — não mais retribuem o olhar alheio. No Trabalho das passagens ele insere a perda da aura num processo histórico mais amplo: a propagação de uma desencantada conscientização de que a unicidade, inclusive a da obra de arte tradicional, converteu-se numa mercadoria como outra qualquer. Aponta nessa direção a indústria da moda, dedicada à fabricação de trabalhos manuais únicos — "criações" — destinados à reprodução em massa. 

Benjamin não estava especialmente interessado no romance como gênero. Como evidenciado pelos relatos pessoais incluídos no segundo volume dos Selected writings, ele não tinha talento como escritor de narrativas. Seus escritos autobiográficos são construídos a partir de momentos intensos e descontínuos. Seus dois ensaios sobre Kafka tratamno mais como um parabolista e professor de sabedoria do que como um escritor. Mas a hostilidade mais insistente de Benjamin era reservada para a história narrativa: "A história se decompõe em imagens, não em narrativas", escreveu. A história narrativa impõe causalidade e determinação a partir de fora, e as coisas deveriam ter uma chance de falar por si mesmas. 

"Infância em Berlim por volta de 1900", a obra autobiográfica mais interessante de Benjamin, inédita durante sua vida, aparecerá no terceiro volume dos Selected writings. O que temos no volume 2 é a anterior "Crônica berlinense", também escrita à sombra de Proust. Apesar do título, esse texto não é construído cronologicamente, mas como uma montagem de fragmentos do passado intercalados com reflexões sobre a natureza da autobiografia, de modo que se trata mais das vicissitudes da memória do que de eventos reais da sua infância. Benjamin usa uma metáfora arqueológica para explicar sua oposição à autobiografia como a narrativa de uma vida. O autobiógrafo deveria pensar em si mesmo como um escavador, diz ele, cavando mais e mais fundo nos mesmos poucos lugares em busca das ruínas enterradas do passado. 

Além do "Diário de Moscou" e da "Crônica berlinense", os dois volumes em pauta contêm algumas outras peças autobiográficas: um relato mais propriamente literário sobre ficar esperando uma amante que não aparece, registros de experiências com haxixe, transcrições de sonhos, fragmentos de diário (Benjamin estava preocupado com o suicídio em 1931 e 1932) e um diário de Paris trabalhado para publicação, que inclui uma excursão a um bordel masculino freqüentado por Proust. Entre as revelações mais surpreendentes, uma admiração por Hemingway ("uma lição de como pensar direito por escrever correto") e uma antipatia por Flaubert (arquitetônico demais). 

Os fundamentos da filosofia da linguagem de Benjamin foram estabelecidos no começo de sua carreira. No ensaio-chave "Sobre a linguagem enquanto tal e sobre a linguagem do homem" (1916) ele argumenta que a palavra não é um mero signo, um substituto para algo, mas o nome de uma Idéia. Em "A tarefa do tradutor" (1921) ele tenta dar corpo à sua idéia da Idéia recorrendo ao exemplo de Mallarmé e a uma linguagem poética libertada de sua função comunicativa. Não fica claro como um conceito de linguagem simbolista poderia jamais ser reconciliado com o posterior materialismo histórico de Benjamin, mas ele sustentou que uma ponte podia ser construída, "por mais forçada e problemática que essa ponte pudesse ser". Em seus ensaios literários dos anos 1930 ele dá uma idéia sobre com o quê tal ponte poderia se parecer. Em Proust, em Kafka, nos surrealistas, a palavra, diz ele, recua da significação no sentido "burguês" e retoma seu elementar poder gestual. Assim, n'O castelo os dois ajudantes do agrimensor K. projetam seus estados fetais entrelaçando os membros sempre que podem e se embolando um com o outro. O gesto é "a forma suprema em que a verdade pode nos aparecer numa era desprovida de doutrina teológica". 

No tempo de Adão, a palavra e o gesto de nomear eram a mesma coisa. Desde então a linguagem sofreu uma longa queda, da qual Babel foi apenas um estágio. A tarefa da teologia é recuperar a palavra, em todo o seu poder mimético originário, dos textos sagrados em que ela foi preservada. A tarefa da crítica não é essencialmente diferente, pois linguagens decaídas ainda podem, na totalidade de suas intenções, nos apontar para a linguagem pura. Daí o paradoxo de "A tarefa do tradutor": uma tradução é superior a seu original, no sentido de que remete à linguagem anterior a Babel. 

Benjamin escreveu diversos textos sobre astrologia, os quais constituem importantes apêndices a seus escritos sobre a filosofia da linguagem. A ciência astrológica que temos hoje, diz ele, é uma versão degenerada de um corpo de conhecimento de tempos remotos, quando a faculdade mimética, sendo muito mais vigorosa, permitia correspondências realmente imitativas entre as vidas dos seres humanos e os movimentos das estrelas. Hoje só as crianças preservam e aplicam um poder mimético comparável. 

Em ensaios datados de 1933 Benjamin esboça uma teoria da linguagem baseada na mimese. A linguagem adâmica era onomatopaica, diz ele. Sinônimos de línguas diferentes, embora possam não soar ou parecer semelhantes (a teoria pretende funcionar tanto para a linguagem escrita quanto para a falada), têm semelhanças "não-sensoriais" com o que significam, conforme sempre o reconheceram teorias da linguagem "místicas" ou "teológicas". Embora superficialmente diferentes, as palavras pain, Brot e xleb são semelhantes num nível mais profundo ao corporificarem a Idéia de pão. (Persuadir-nos de que essa proposição não é tão vã quanto parece demanda o máximo das capacidades de Benjamin.) A linguagem, que constitui o desenvolvimento supremo da faculdade mimética, carrega consigo um arquivo dessas semelhanças não-sensoriais. A leitura tem o potencial de se tornar uma espécie de experiência onírica que dá acesso a um inconsciente humano comum, o lugar da linguagem e das Idéias. 

A abordagem de Benjamin acerca da linguagem está em total descompasso com a ciência lingüística do século XX, mas lhe propicia um majestoso acesso ao mundo do mito e da fábula, particularmente ao primevo, quase pré-humano, "mundo pantanoso" de Kafka, conforme ele o concebe. Uma intensiva leitura de Kafka iria deixar marcas indeléveis nos últimos — e pessimistas — escritos de Benjamin. 

III 

A história do Trabalho das passagens é mais ou menos a seguinte. No final dos anos 1920 Benjamin concebeu uma obra inspirada nas passagens de Paris, que trataria da experiência urbana. Seria uma versão da história da Bela Adormecida, um conto de fadas dialético narrado surrealisticamente por meio de uma montagem de textos fragmentários: como o beijo do príncipe, a obra despertaria as massas européias para a verdade de suas vidas sob o capitalismo. Ao se preparar para redigir o que imaginava como algo em torno de cinqüenta páginas, Benjamin começou a copiar citações de suas leituras sob títulos como Tédio, Moda, Poeira. Mas à medida que ele as articulava ao texto as páginas se dilatavam cada vez mais com novas citações e notas. Ele discutiu seus problemas com Adorno e Horkheimer, que o convenceram de que não podia escrever sobre o capitalismo sem um domínio adequado de Marx. A idéia da Bela Adormecida perdeu o brilho. 

Em 1934 Benjamin tinha um novo plano, filosoficamente mais ambicioso: usando o mesmo método de montagem, remeteria a superestrutura cultural da França do século XIX às mercadorias e seu poder de se tornar fetiches. Uma vez que suas notas se avolumavam, passou a dispô-las num complexo sistema de arquivo baseado em 36 "convolutas" (do alemão Konvolut: maço, dossiê) com palavras-chave e referências cruzadas. Sob o título "Paris, capital do século XIX" redigiu um résumé do material que havia reunido, o qual submeteu a Adorno (à época Benjamin recebia um estipêndio — e portanto estava em alguma medida devedor — do Instituto de Pesquisa Social, que Adorno e Horkheimer haviam transferido de Frankfurt para Nova York). Recebeu dele uma crítica tão severa que resolveu deixar de lado o projeto por um tempo e extrair da sua massa de materiais um livro sobre Baudelaire. Adorno leu parte do livro e mais uma vez foi crítico: os fatos eram deixados a falar por si mesmos, disse-lhe — não havia teoria suficiente. Benjamin fez várias revisões, que tiveram uma recepção mais cálida. Baudelaire era figura central para o projeto das Passagens porque n'As flores do mal ele pela primeira vez teria revelado a cidade moderna como um assunto para poesia. (Benjamin parece não ter lido Wordsworth, que cinqüenta anos antes de 

Baudelaire escrevera sobre como era fazer parte de uma multidão de rua, bombardeado por olhares de todos os lados, aturdido com anúncios.) Contudo, Baudelaire expressara sua experiência da cidade em alegoria, um modo literário fora de moda desde o período barroco. Em "O cisne", por exemplo, ele alegoriza o poeta como um nobre pássaro patinando comicamente no chão pavimentado do mercado, incapaz de abrir as asas e levantar vôo. Por que Baudelaire optou pelo modo alegórico? Benjamin usa O capital de Marx para responder à sua própria pergunta. 

A promoção do valor de mercado a única medida de riqueza, diz Marx, reduz a mercadoria a nada mais do que um signo — o signo do valor pelo qual será vendida. Sob o reinado do mercado as coisas têm a ver com seu valor real tão arbitrariamente quanto, por exemplo, uma caveira tem a ver com a sujeição do homem ao tempo na emblemática barroca. Emblemas assim fazem uma inesperada reaparição no palco histórico na forma de mercadorias, que sob o capitalismo não são mais o que parecem, mas, como advertiu Marx, sobejam "em sutilezas metafísicas e amenidades teológicas". A alegoria, argumenta Benjamin, é o modo exatamente certo para uma era de mercadorias. 

Enquanto trabalhava no jamais terminado livro sobre Baudelaire, Benjamin continuava tomando notas para o projeto das Passagens e a acrescentar novas convolutas. Os papéis recuperados do seu esconderijo na Bibliothèque Nationale depois da guerra somavam cerca de novecentas páginas de extratos, sobretudo de autores do século XIX mas também de contemporâneos de Benjamin, agrupados sob títulos e com comentários intercalados, além de uma variedade de planos e sinopses. Esse material foi publicado em 1982 na Alemanha como Passagen-Werk, com edição de Rolf Tiedemann. O Arcades project da Harvard usa o texto de Tiedemann mas omite muito de seu material de fundo e seu aparato crítico. Traduz todo o francês para o inglês e acrescenta notas de apoio, além de uma profusão de ilustrações. É um belo livro e um triunfo de engenhosidade tipográfica no trato com as complexas referências cruzadas de Benjamin. 

A história do Trabalho das passagens — uma história de procrastinações e falsas largadas, de perambulações por labirintos arquivísticos na busca de exaustividade tão característica do temperamento colecionador, de fundamentações teóricas movediças, de crítica exercida precipitadamente e, em termos gerais, de um Benjamin que não sabia aonde queria chegar — denota que o livro que nos restou é radicalmente incompleto: incompletamente concebido e dificilmente composto em qualquer acepção convencional. Tiedemann o compara aos materiais de construção de uma casa. Na hipotética casa terminada esses materiais teriam sido juntados pelo pensamento de Benjamin. Retemos boa parte desse pensamento na forma das interpolações de Benjamin, mas nem sempre podemos ver como o pensamento encaixa ou abrange os materiais. Sob tais condições, diz Tiedemann, talvez tivesse sido melhor publicar apenas as palavras de Benjamin, deixando de fora as citações. Mas a intenção de Benjamin, por mais utópica que fosse, era que em algum ponto o seu comentário seria discretamente removido, deixando o material citado sustentar todo o peso da estrutura. 

As passagens de Paris, diz um guia de 1852, 

são bulevares internos [...], corredores com teto de vidro e painéis de mármore que se estendem por quarteirões inteiros de edifícios [...]. Ladeando ambos os lados [...] estão as lojas mais elegantes, de forma que uma tal passagem é uma cidade, um mundo em miniatura.

A arquitetura aérea de vidro e aço logo foi imitada em outras cidades do Ocidente. O auge das passagens se estendeu até o final do século, quando foram eclipsadas pelas lojas de departamentos. O livro das Passagens nunca foi pensado como uma história econômica (embora parte de sua ambição fosse funcionar como corretivo para toda a disci- plina da história econômica). Um esboço inicial sugere algo muito mais parecido com "Infância em Berlim": 

Sabia-se de lugares na Grécia antiga onde o percurso conduzia ao mundo inferior. Nossa existência em vigília é igualmente uma terra que, em certos pontos ocultos, conduz ao mundo inferior — uma terra repleta de lugares inconspícuos de onde brotam os sonhos. O dia inteiro, sem nada suspeitar, passamos por eles, mas tão logo vem o sono nos vemos ansiosamente tateando o caminho de volta para nos perder em seus escuros corredores. Durante o dia, o labirinto de moradas urbanas parece com a consciência; as passagens [...] fluem despercebidas para as ruas. A noite, porém, sob a tenebrosa massa das casas, sua escuridão carregada projeta-se como uma ameaça e o pedestre noturno passa depressa — a menos porém que o tenhamos imbuído de ousadia para enveredar pelo caminho estreito. 

Dois livros serviram de modelo a Benjamin: Un paysan de Paris [Um camponês de Paris], de Louis Aragon, com seu afetuoso tributo à Passage de l'Opéra, e Spazieren in Berlin [Passeando em Berlim], de Franz Hessel, que enfoca a Kaisersgalerie e seu poder de evocar a sensação de uma era passada. Em seu livro Benjamin tentaria captar a "fantasmagórica" experiência do parisiense vagando entre vitrines de mercadorias, uma experiência ainda recuperável em seus dias, quando "as passagens pontilham a paisagem metropolitana como cavernas que contêm os restos fossilizados de um monstro desaparecido: o consumidor da era pré-industrial do capitalismo, o último dinossauro da Europa". 

A grande inovação do Trabalho das passagens estaria em sua forma. Funcionaria sobre o princípio da montagem, justapondo fragmentos textuais do passado e do presente na expectativa de que eles, faiscando entre si, iluminassem uns aos outros. Assim, por exemplo, se o item 2.1 da convoluta L, que se refere à abertura de um museu de arte no Palácio de Versalhes em 1837, for lido em conjunção com o item 2.4 da convoluta A, que delineia a transição das passagens para as lojas de departamentos, então a analogia "o museu está para a loja de departamentos como a obra de arte para a mercadoria" idealmente irá lampejar na mente do leitor. 

Segundo Max Weber, o que marca o mundo moderno é a perda de crença, o desencantamento. Benjamin tem um ângulo diferente: o capitalismo pôs as pessoas para dormir, e elas só despertarão de seu encantamento coletivo quando forem levadas a entender o que lhes aconteceu. A inscrição da convoluta N vem de Marx: "A reforma da consciência consiste tão-somente em [...] despertar o mundo de seu sonho sobre si mesmo". Os sonhos da era capitalista estão corporificados nas mercadorias. Estas, em seu conjunto, constituem uma fantasmagoria, constantemente mudando de forma de acordo com as marés da moda e oferecidas a multidões de idólatras encantados como a corporificação de seus desejos mais profundos. A fantasmagoria sempre esconde as suas origens (que residem no trabalho alienado). A fantasmagoria em Benjamin é, assim, um pouco como a ideologia em Marx — um tecido de mentiras públicas sustentadas pelo poder do capital —, mas está mais para o trabalho do sonho freudiano operando em âmbito coletivo, social. 

"Não preciso dizer nada. Apenas mostrar" — diz Benjamin. E em outro ponto: "As idéias estão para os objetos como as constelações estão para as estrelas". Se o mosaico de citações é construído corretamente deve emergir um padrão, um padrão que é mais que a soma de suas partes mas não pode existir independentemente delas: essa é a essência da nova forma de composição materialista histórica que Benjamin acreditava estar praticando. O que desalentava Adorno quanto ao projeto era a fé de Benjamin em que uma mera assemblage de objetos (no caso, citações descontextualizadas) pudesse falar por si mesma: Benjamin estava "na encruzilhada entre magia e positivismo", escreveu ele em 1935. Adorno teve a oportunidade de ver todo o corpus das Passagens em 1948, e mais uma vez expressou dúvidas sobre a densidade da sua teorização. 

A reação de Benjamin a críticas desse tipo foi inventar a noção de imagem dialética, e para isso voltou-se à emblemática do barroco — idéias representadas por imagens — e à alegoria baudelairiana — a interação de idéias substituída pela interação de objetos emblemáticos. A alegoria, sugeriu ele, poderia assumir o papel do pensamento abstrato. Os objetos e figuras que habitam as passagens — jogadores, prostitutas, espelhos, poeira, figuras de cera, bonecas mecânicas — são (para Benjamin) emblemas, e suas interações geram significados que não precisam da intromissão da teoria. Na mesma linha, fragmentos de textos tomados do passado e colocados no campo carregado do presente histórico são capazes de se comportar à maneira dos elementos de uma imagem surrealista, interagindo espontaneamente para fornecer energia política. ("Os eventos que cercam o historiador e nos quais ele toma parte", escreveu Benjamin, "fundamentariam sua representação como um texto escrito com tinta invisível.") Assim é que os fragmentos constituem a imagem dialética, movimento dialético momentaneamente congelado, aberto à inspeção, "dialética em suspenso". "Apenas imagens dialéticas são imagens genuínas." 

Não é preciso dizer mais sobre a teoria, engenhosa como é, à qual apela o livro profundamente antiteórico de Benjamin. Mas para o leitor não convencido pela teoria, o leitor para quem as imagens dialéticas nunca ganham vida como deveriam, o leitor talvez não receptivo à narrativa mestra sobre o longo sono do capitalismo seguido pela aurora do socialismo, o que o Trabalho das passagens tem a oferecer? A mais breve das listas incluiria o seguinte: um rico tesouro de informações curiosas sobre Paris, uma profusão de citações intencionalmente provocantes, a coleta de uma mente aguda e idiossincrática passando sua rede de pescar por milhares de livros, observações sucintas, polidas a um alto grau de lustro aforístico, sobre uma série de assuntos caros ao autor (exemplo: "A prostituição pode ter pretensões a ser considerada 'trabalho' no momento que o trabalho se torna prostituição") e lampejos de Benjamin brincando com uma nova maneira de ver a si mesmo — como colecionador de "palavras-chave num dicionário secreto", compilador de uma "enciclopédia mágica". Inesperadamente, esse leitor esotérico de uma cidade alegórica parece próximo de seu contemporâneo Jorge Luis Borges, fabulista de um universo reescrito. 

Aos olhos de hoje, a magnum opus de Benjamin tem um curioso parentesco com outra grande ruína da literatura do século XX, os Cantos de Ezra Pound. Ambas as obras são resultado de anos de leitura babélica. Ambas são construídas a partir de fragmentos e citações e filiam-se à estética de imagem e montagem do alto-modemismo. Ambas têm ambições econômicas e economistas como figuras norteadoras (Marx num caso, Gesell e Douglas no outro). Ambos os autores investiram em corpos de conhecimento antigos cuja relevância para seus tempos superestimaram. Nenhum dos dois sabia quando parar. E ambos foram tragados pelo monstro do fascismo — Benjamin, tragicamente; Pound, vergonhosamente. 

O destino dos Cantos tem sido o de um punhado de excertos reunidos em antologias, o resto sendo placidamente ignorado. O destino das Passagens pode bem ser semelhante. Pode-se prever uma edição condensada para estudantes, extraída sobretudo das convolutas B ("Moda"), H ("O colecionador"), I ("O interior"), J ("Baudelaire"), K ("Cidade de sonho"), N ("Da teoria do conhecimento") e Y ("Fotografia"), na qual as citações serão reduzidas a um mínimo e a maior parte do texto sobrevivente será do próprio Benjamin. E isso não seria de todo mau. 

IV 

É ampla a gama de interesses representada pelos Selected writings de Benjamin. Além dos textos aqui comentados, há uma seleção de seus precoces e diligentemente idealistas escritos sobre educação; numerosos ensaios de crítica literária, incluindo dois textos longos sobre Goethe, uma interpretação d'As afinidades eletivas e um magistral panorama da carreira do poeta; excursões por vários tópicos de filosofia (lógica, metafísica, estética, filosofia da linguagem, filosofia da história); ensaios sobre pedagogia, sobre livros infantis, sobre brinquedos; um cativante texto pessoal sobre o hábito de colecionar livros; uma variedade de peças de viagem e investidas na ficção. O ensaio sobre as Afinidades eletivas se destaca como uma performance particularmente estranha: uma ária prolongada, em prosa supersutil e apurada, sobre o amor e a beleza, o mito e o destino, levada a um alto tom de intensidade pelas semelhanças secretas que Benjamin viu entre a trama do romance e a tragicômica relação erótica a quatro em que ele e sua mulher estavam envolvidos. 

As traduções são excelentes, e entre os vários tradutores merece ser destacado Rodney Livingstone, por sua discreta eficiência em lidar com as mudanças de estilo e tom que marcam a evolução de Benjamin como escritor. As notas explicativas estão próximas do mesmo alto padrão, mas não chegam lá. As informações sobre as figuras relacionadas a/por Benjamin por vezes estão ultrapassadas (como no caso de Robert Walser) ou incorretas: as datas referentes a Karl Korsch (que foi expulso do Partido Comunista Alemão por suas opiniões independentes e a quem Benjamin recorre copiosamente na sua interpretação de Marx) são dadas como 1892-1939 quando na verdade são 1886-1961. Há erros de grego e latim. 

Algumas práticas gerais dos editores e tradutores também são questionáveis aqui. Benjamin tinha o hábito de escrever parágrafos de páginas inteiras: certamente, o tradutor deveria se sentir livre para fracioná-los. Aqui e ali são incluídas duas versões do mesmo texto sem que se esclareça por quê. Para textos em alemão citados por Benjamin usam-se traduções já existentes mesmo quando estas estão claramente abaixo do padrão.

V

Quem foi Walter Benjamin? Um filósofo? Um crítico? Um historiador? Um mero "escritor"? A melhor resposta talvez seja a de Hannah Arendt: ele foi um dos "inclassificáveis [...], cuja obra não se encaixa na ordem existente nem introduz um novo gênero". 

Sua peculiar abordagem — chegar a um assunto não diretamente, mas por um ângulo, movendo-se gradativamente de um sumário perfeitamente formulado para o próximo — é tão imediatamente reconhecível quanto inimitável, apoiada em agudeza de intelecto, em uma erudição levemente desgastada e num estilo de prosa que, depois que ele desistiu de se ver como o Professor Doutor Benjamin, se tornou uma maravilha de acuidade e concisão.

Na base de seu projeto de chegar à verdade dos nossos tempos há um ideal que ele encontrou expresso em Goethe: estabelecer os fatos de tal forma que eles sejam sua própria teoria. O livro das Passagens, seja qual for nosso veredicto sobre ele — ruína, fracasso, projeto impossível —, sugere um novo modo de interpretar uma civilização, tomando por material seus refugos em vez de suas obras de arte, escrevendo a história a partir de baixo em vez de por cima. E seu apelo (nas "Teses sobre o conceito de história") por uma história centrada no sofrimento dos vencidos em vez de nas conquistas dos vencedores é profético do modo como a escrita da história começou a pensar em si mesma em nossos tempos.

JM Coetzee é professor pesquisador da Universidade de Adelaide. É autor de dezessete obras de ficção, além de inúmeras obras de crítica e tradução. Ele recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2003. (Setembro de 2019)

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