8 de julho de 2004

Espalhando faísca sobre matagal seco: "One China, Many Paths"

A banca de jornal no final da minha rua em Xangai sempre esgotava o Nanfang Zhoumo ("Fim de Semana do Sul") em poucas horas. Para quem cobre a China, este famoso – e para a liderança do Partido Comunista, enlouquecedor – semanário investigativo publicado em Cantão era, e ainda é, leitura essencial ...

John Gittings

London Review of Books

One China, Many Paths 
editado por Wang Chaohua.
Verso, 368 pp., £20, November 2003, 1 85984 537 1

Vol. 26 No. 13 · 8 July 2004

A banca de jornal no final da minha rua em Xangai sempre esgotava o Nanfang Zhoumo ("Fim de Semana do Sul") em poucas horas. Para quem cobre a China, este famoso – e para a liderança do Partido Comunista, enlouquecedor – semanário investigativo publicado em Cantão era, e ainda é, leitura essencial. Numa semana, podia conter uma discussão séria sobre a pena de morte, na outra, uma crítica às restrições impostas aos trabalhadores migrantes ou uma denúncia da penetração do agronegócio americano no mercado chinês. Nenhum desses tópicos é explicitamente proibido, mas todos são assuntos delicados que o Partido Comunista prefere não expor.

Outras revistas e jornais chineses também publicam artigos fascinantes, embora com menos frequência e com menos risco para a carreira de seus editores. Sempre havia pelo menos uma boa matéria no Xinmin Weekly, publicado pelo grupo de mídia de Xangai, cujo tabloide Xinmin Evening News também era muito mais popular do que o jornal do Partido. Lembro-me de uma reportagem de capa sobre o comércio de sucata de computadores, que descrevia camponeses chineses respirando gases tóxicos enquanto desmontavam montanhas de VDUs e placas-mãe enviadas do exterior. Uma segunda reportagem expôs um desastre na mineração: o proprietário havia subornado autoridades locais para encobrir o número de mortos e jogado os corpos das vítimas em uma vala.

Outra fonte de ideias durante minha estadia em Xangai, entre 2001 e 2003, foi um novo grupo ambientalista cujas reuniões eram chamadas de "chás" para não alarmar as autoridades. Um dos primeiros palestrantes foi Li Changping, um ativista ferrenho contra os impostos exorbitantes impostos às comunidades rurais pobres. Li administra seu próprio site, "Amigos do Agricultor", que contém links para uma dúzia de outros sites preocupados com os problemas sociais e econômicos da China. Liang Congjie, fundador da organização Amigos da Natureza da China (e filho de um famoso arquiteto que protestou na década de 1950 contra a destruição da antiga Pequim), discursou em outro chá. A organização Amigos da Natureza foi uma das primeiras ONGs chinesas – um termo que soaria absurdo há poucos anos – e tais grupos agora lidam com uma série de questões delicadas, do meio ambiente à Aids.

Há muito mais discussões e debates na China hoje, muitos deles desafiando a ortodoxia do Partido, do que as manchetes dos noticiários ocidentais relatando a mais recente "repressão à dissidência" sugerem. O clima varia de acordo com a situação política (não mencione nada controverso – certamente não a SARS – durante a preparação para o Congresso Nacional Popular anual) e a escolha do meio de comunicação: a internet é mais livre do que o jornalismo impresso porque os "velhos camaradas" no topo não sabem como acessar a rede. Vários assuntos — qualquer coisa sobre a Praça da Paz Celestial ou a mais recente repressão ao Falun Gong — continuam fora dos limites e aqueles que transgridem são punidos severamente pelo poder não reformado dos "órgãos do Estado".

No entanto, as questões por trás desses tópicos proibidos – democracia versus estabilidade política, liberdade de expressão versus conformismo partidário – fazem parte de um debate ativo no qual milhares de intelectuais se perguntam a mesma coisa que preocupa nacionalistas e comunistas há um século: para onde a China está indo? Muito pouco desse debate chegou ao mundo exterior, que está muito menos interessado do que antes no desenvolvimento da China. Na década de 1980, quando o país emergiu do maoísmo, ainda nos perguntávamos sobre o futuro do socialismo chinês. Então, após o trauma de 1989, Deng Xiaoping reativou a China ao declarar que os ismos não importavam mais, apenas a reforma econômica. À medida que a China abraçava a economia global e adotava os valores de uma emergente sociedade consumista pan-asiática, paramos de nos perguntar para onde ela estava indo, porque a resposta parecia óbvia.

Isso não é de forma alguma tão claro na própria China, e esta coletânea de escritos e argumentos da década de 1990 ilustra a riqueza (dentro de certos limites) do debate que ressurgiu entre os intelectuais desde a Praça da Paz Celestial. Ele foi influenciado, escreve Wang Chaohua, por duas mudanças estruturais significativas na vida intelectual. A primeira foi o surgimento de "um campo internacional de comunicação e intercâmbio... que agora se estende do continente a Hong Kong, Taiwan e Cingapura, EUA e Austrália, com postos avançados no Japão e na Europa". Sites do continente, como Xue er si ("Estudo e Pensamento"), direcionam-se para a influente revista de Hong Kong Ershi yi Shiji ("Século XXI"), que por sua vez se conecta com a diáspora em geral. A segunda mudança é a crescente autonomia dos intelectuais chineses. O Partido não precisa mais de "grupos de escrita" acadêmicos para produzir polêmicas teóricas de peso, porque a política agora é movida pelo poder econômico, e não ideológico. Os intelectuais de hoje são "muito mais propensos a ocupar cargos universitários e a preenchê-los de forma semelhante aos seus colegas ocidentais".

As universidades desempenham um "papel de ponte", realizando conferências e organizando intercâmbios com acadêmicos no exterior, especialmente nos EUA. Isso se deve, em grande parte, ao poder de compra superior das instituições americanas que, desde a década de 1980, superaram os concorrentes europeus por "acesso" ao mercado acadêmico chinês. Tais vínculos nem sempre incentivaram o pensamento independente, e muitos intelectuais chineses trocaram a tirania do Partido pela tirania do mercado. Economistas tradicionais no final da década de 1990, escreve Wang, "tipicamente apresentavam o processo de reforma sob uma luz branda e eufemística", justificando a doutrina oficial do "capitalismo com características chinesas".

No entanto, como mostra este volume, há também uma forte corrente de dissidência entre os intelectuais, cujo ceticismo remonta às suas experiências juvenis na Revolução Cultural, quando foram "enviados" para o campo. Isso lhes deu uma visão das realidades rurais que ainda é válida hoje, quando os camponeses estão sendo novamente explorados, e lhes proporcionou oportunidades inesperadas de ler fora do cânone maoísta.

Mao havia ordenado que livros da União Soviética e do Ocidente fossem publicados para circulação interna, para que os oficiais do Partido pudessem aprender por si mesmos os perigos do "revisionismo soviético". No clima político caótico da época, os estudantes enviados frequentemente se apropriavam desses livros. O filósofo Zhu Xueqin diz que isso era como "espalhar faíscas sobre arbustos secos". O grupo de estudantes de Zhu na zona rural de Henan, ele relembra aqui, praticava um estilo de vida comunitário, "compartilhando tudo entre nós, lendo enquanto trabalhávamos". Zhu conseguiu uma carta de autorização para que, ao visitar Xangai em férias, pudesse vasculhar as prateleiras restritas das livrarias. A Crítica da Razão Dialética, de Sartre, e O Legado Ambíguo, de Sidney Hook, tornaram-se improváveis ​​favoritos.

Na província de Guangxi, o sociólogo Qin Hui encontrou um tesouro de livros na biblioteca do condado, incluindo "A Nova Classe", de Djilas. Qin se lembra dos camponeses de lá lhe contando que, durante o Grande Salto para a Frente, "pessoas morreram de fome em todas as aldeias". O economista Hu Angang passou sete anos na fronteira nordeste com a Sibéria e como perfurador em uma equipe de prospecção no norte da China. Ele viajava frequentemente para aldeias remotas em áreas montanhosas:

Ao testemunhar sua pobreza absoluta, tomei consciência do grau de atraso da China e fui motivado a tentar compreendê-lo e ajudar a superá-lo. Depois de um dia de trabalho físico pesado, à noite eu estudava tudo o que conseguia encontrar, de textos oficiais a ciências naturais, à luz de gás, usando minha cama como escrivaninha – determinado a seguir o exemplo de Gorky de frequentar a "universidade da vida".

Li Changping tinha seis anos em 1969, quando os diques do Yangtze se romperam e a aldeia de sua família foi inundada. Seus pais partiram para mendigar comida em outro lugar, deixando os filhos em um refúgio acima do nível da água. Naquela noite, a irmã de Li teve as orelhas mordidas por um rato: sua cabeça inchou tanto que ela não conseguia mais comer e morreu em quinze dias. Três décadas depois, Li tornou-se secretário do Partido em um distrito rural na província de Hubei, onde encontrou os camponeses lutando para pagar os valores cada vez maiores de impostos exigidos por autoridades corruptas. Ele frequentemente encontrava "idosos que seguravam minhas mãos, chorando e rezando por uma morte prematura, e crianças pequenas ajoelhadas para implorar por uma chance de ir à escola". Cerca de 70% da população não tinha condições financeiras para consultar um médico.

Embora não conte a história aqui, Li fez algo que o tornaria nacionalmente famoso: descreveu a situação dos camponeses em uma carta ao primeiro-ministro, Zhu Rongji, publicada no Nanfang Zhoumo. Inspirado pela má publicidade, o governo enviou uma equipe para investigar, mas o resultado foi uma vitória vazia: as autoridades locais anunciaram que cortariam impostos e, em seguida, enviaram capangas para cobrá-los, em vez de cobradores de impostos oficiais. Li perdeu o emprego e expandiu seu relatório em um livro, Wo xiang zongli shuo shihua (‘Eu digo a verdade ao primeiro-ministro’).

O livro de Li está à venda em todas as bancas de estações ferroviárias, mas seu destino ilustra o paradoxo geral do debate intelectual na China na última década: enquanto os limites do que é permitido se ampliaram, a influência dos intelectuais no governo diminuiu, a menos que ofereçam conselhos de apoio. Todos os tipos de novas ideias podem ser discutidos em seminários acadêmicos, especialmente se tiverem um copatrocínio estrangeiro, mas poucas terão algum impacto sobre os formuladores de políticas. A década de 1980, como nos lembra Wang Chaohua, é vista com nostalgia "como um breve período de energias explosivas em que novas ideias foram avidamente exploradas, em um clima esperançoso e criativo".

No grande debate de meados da década de 1980, autorizado (com alguma relutância) por Deng Xiaoping, acadêmicos como Su Shaozhi, Li Honglin e Wang Ruowang lançaram ataques diretos de dentro do Partido contra sua "mentalidade feudal" e sua "alienação do povo". Houve apelos pela "derrubada de velhos ídolos", pelo desenvolvimento de um "verdadeiro espírito científico", por propostas de freios e contrapesos no governo e por democracia interna no Partido. Li Honglin exigiu democracia "mesmo que isso irrite os ouvidos dos líderes".

Hoje em dia, é comum criticar os intelectuais da década de 1980 pelo modo predominantemente marxista de seu discurso, mas isso garantiu que suas ideias tivessem um impacto direto sobre os que estavam no poder (embora, em última análise, provocassem a reação conservadora que levou à crise de 1989). Na época, também, muitos diplomatas ocidentais e observadores da China criticaram os jovens ativistas do Muro da Democracia em Pequim, em 1979-80, dizendo que eles eram "melhores em escrever poemas do que manifestos políticos". Até mesmo os estudantes na Praça da Paz Celestial, dez anos depois, seriam ridicularizados por "não saberem realmente o que querem dizer com democracia".

Tais julgamentos são ainda mais injustos sob a perspectiva muito diferente de uma China totalmente transformada desde que o massacre de Pequim pôs fim à última esperança de um socialismo mais genuíno. Embora por um tempo o Partido Comunista parecesse em desacordo terminal com o resto da sociedade chinesa, Deng Xiaoping o salvou ao abandonar o socialismo pelo capitalismo na febre econômica provocada por sua famosa "expedição ao sul" de 1992. O debate não é mais entre o maoísmo irreconstruído e a reforma semissocialista: é entre a mercantilização irrestrita, cujos partidários frequentemente endossam a exploração e a corrupção como necessárias para o progresso, e uma agenda social que pode humanizar a nova ordem da China.

Isso é frequentemente descrito como uma discussão entre "liberais" e "neoesquerda", embora ambos os termos sejam imprecisos. Wang Hui, coeditor do periódico semi-independente Du Shu ("Leituras"), e ele próprio rotulado como "neoesquerda", considera-o um termo preconceituoso aplicado a "qualquer um que critique a corrida para a mercantilização"; "intelectuais críticos" seria mais justo. Quanto aos "liberais", muitos deles representam uma direita chinesa contemporânea, especialmente os economistas "que defendem a privatização e a mercantilização sem reservas ou limites" e que normalmente trabalham com grandes empresas ou o governo. A diferença crucial é que os esquerdistas críticos estão, em sua maioria, fora do establishment político, enquanto os liberais estão dentro.

Existem algumas vozes liberais genuínas que tentam transpor a divisão, representadas neste volume de forma mais eficaz por Zhu Xueqin. Os liberais, diz Zhu, embora defendam o empirismo e endossem o sistema de mercado, também devem prestar muita atenção às "divisões sociais e conflitos de interesses cada vez mais pronunciados ao nosso redor". Ele admite que o conservadorismo está na moda e atribui isso a "um exercício de habilidades de sobrevivência" por parte dos intelectuais. Como outros liberais menos moderados, Zhu insiste que o problema é que o mercado chinês ainda é muito fraco. Somente desenvolvendo-o ainda mais é possível reduzir a disparidade de renda e a corrupção endêmica. No entanto, tais argumentos estão se tornando mais difíceis de justificar à medida que a diferença entre ricos e pobres continua a aumentar (o "coeficiente de Gini", que mede essa diferença, agora faz parte do vocabulário político cotidiano), e até mesmo a elite do Partido, sob a nova gestão do presidente Hu Jintao e do premiê Wen Jiabao, reconhece que a alocação de recursos não deve ser deixada a cargo do mercado.

A entrada da China na OMC em 2001 foi o ponto alto para os marqueteiros: por um tempo, afirmou-se que todos se beneficiariam de um resultado "ganha-ganha". Mas, como He Qinglian argumenta aqui em uma brilhante análise da mudança na estrutura de classes do país, a entrada da China na OMC estava fadada a "acelerar sua rápida polarização social". As províncias mais ricas e a elite econômica, com seu conhecimento superior em negócios, maximizarão suas vantagens – não é de se admirar que as universidades chinesas estejam agora varridas pela "febre dos MBAs". A situação dos trabalhadores migrantes, cuja mão de obra barata sustenta o boom econômico, mas que frequentemente recebem salários atrasados ​​ou nem recebem, tornou-se um escândalo nacional. He Qinglian é economista formada pela Universidade Fudan de Xangai e é a única colaboradora deste volume que foi forçada a deixar a China por causa de suas opiniões: ela demonstrou que os detentores do poder do Partido e seus seguidores adquiriram propriedades em grande escala durante a privatização.

Muitas das políticas que agora causam deslocamento social foram lançadas em meados da década de 1990 sob o nome duvidoso de "reforma macroeconômica". Wang Shaoguang e Hu Angang, os acadêmicos liberais que propuseram a reforma, buscaram fortalecer a autoridade do governo central durante a "transição para uma economia de mercado", em vez de entregá-la de uma só vez ao mercado, mas os efeitos foram desastrosos. A política dividiu as receitas tributárias entre Pequim e as autoridades locais, para as quais o ônus da saúde, educação e outros serviços sociais foi transferido. O resultado foi que os impostos locais foram desviados para projetos de infraestrutura extravagantes, ou simplesmente desviados, enquanto os diretores de escola não têm dinheiro para pagar seus funcionários e os médicos rurais só conseguem sobreviver com receitas excessivas. No exemplo mais notório, autoridades de saúde provinciais em Henan montaram "postos de coleta de sangue" comerciais na tentativa de maximizar a receita: a reciclagem insegura de sangue para doadores após a extração do plasma infectou até um milhão de pessoas em vilas rurais com HIV.

Comentando os resultados dessa mudança desastrosa na tributação, Wang Chaohua apenas observa que "importantes consequências sociais... ainda estão se desenrolando". Isso é dizer o mínimo; como observa Wang Hui, os liberais reagem "com o maior alarme" a qualquer crítica ao que foi efetivamente uma reforma do tipo FMI. Para ser justo com Hu Angang, ele tem se concentrado cada vez mais no déficit social e argumenta, aqui e em outros lugares, que a China "deveria deixar de se concentrar apenas no crescimento do PIB e se dedicar a objetivos de desenvolvimento humano".

Este livro é um lembrete bem-vindo (até o momento, é a única obra do gênero disponível em inglês) da crescente diversidade do pensamento intelectual chinês, mas quem busca respostas para a pergunta mais óbvia sobre a China – o que acontecerá com o Partido Comunista? – não as encontrará aqui. Isso se deve apenas em parte à prudência natural: mesmo entre os intelectuais chineses dissidentes no exterior, são poucos os que defendem a derrubada do Partido ou oferecem uma alternativa coerente a ele. A maioria deposita suas esperanças em reformas internas ao partido "governante" – o termo que os teóricos da Escola Central do Partido em Pequim agora preferem, evitando ao máximo a temida palavra com C.

O debate sobre a reforma política, na medida em que existe (é representado aqui em um ensaio de Gan Yang), tem sido principalmente sobre a relação entre o centro e as províncias, e federalismo versus controle unitário, questões que remontam à desunião da primeira república (1912-1927). Gan expressa a visão generalizada de que o Partido precisa "tomar a iniciativa de expandir a política eleitoral" para se restabelecer como um "partido de massas". Isso significa passar de um sistema de votação indireta para um sistema de votação direta nas eleições para os Congressos Populares, em nível local e nacional. O Partido deve se transformar de um partido hegemônico em um partido "predominante", presumivelmente (embora isso não seja explicitado) oferecendo uma escolha de candidatos e permitindo que independentes se candidatem.

Tudo isso reflete o legado paradoxal de Deng Xiaoping: a maioria dos chineses amaldiçoa o Partido livremente e suspira pela democracia, mas ninguém deseja incitar o temido luan ("desordem") que a queda do Partido acarretaria. Há uma esperança um tanto obscura para a evolução pacífica do Partido: a possibilidade que Mao temia e para a qual lançou a Revolução Cultural. Jovens jornalistas buscam treinamento adicional no exterior, a fim de se prepararem para uma época de maior liberdade de imprensa. Jovens empresários mantêm contato próximo com colegas de graduação que escolheram o Partido como carreira e anseiam por mudanças mais radicais na próxima década.

Ao contrário da antiga União Soviética, a China, apesar de todos os seus problemas sociais e ambientais (com exceção do Tibete e Xinjiang), não é uma nação fragmentada: a era dos senhores da guerra e dos reinos independentes já passou há muito tempo. Praticamente nenhum chinês acredita nas previsões apocalípticas ocidentais sobre "a desintegração da China" e, nesse sentido, a "China Única" do título deste livro se justifica. O debate intelectual não tem sido, até agora, uma exploração de "Muitos Caminhos". Revolução e socialismo foram excluídos pela história recente: o capitalismo de fato de Deng prevaleceu.

1 de julho de 2004

Introdução: A China e o socialismo

por Martin Hart-Landsberg e Paul Burkett

https://monthlyreview.org/2004/07/01/introduction-china-and-socialism/

Volume 56, Issue 03 (July-August)

China e socialismo. Durante as três décadas que se seguiram ao estabelecimento da República Popular da China (RPC), em 1949, parecia que estas palavras estariam juntas para sempre numa unidade inspiradora. A China foi forçada a sofrer a humilhação da derrota na Guerra do Ópio com a Grã-Bretanha em 1840-42 e o tratado de abertura de portos que se seguiu. O povo chinês sofreu não só sob o governo despótico do seu imperador e depois de uma série de senhores da guerra como também sob o peso esmagador do imperialismo, o qual dividiu o país em esferas de influência controladas pelo estrangeiro. Gradualmente, principiando na década de 1920, o Partido Comunista Chinês conduzido por Mao Zedong organizou a resistência popular crescente à dominação estrangeira, à exploração do país e à ditadura de Chiang Kai-shek. O triunfo da revolução sob a liderança do Partido Comunista Chinês chegou finalmente em 1949, quando o partido proclamou que poria um fim não só ao sofrimento do povo como traria um novo futuro democrático baseado na construção do socialismo.

Não pode haver dúvida de que a Revolução Chinesa foi um evento histórico de proporções mundiais e de que tremendas realizações foram alcançadas sob a bandeira do socialismo nas décadas que se seguiram. Contudo, é nossa opinião que esta realidade não deveria cegar-nos para três factos importantes: primeiro, no momento da morte de Mao, em 1976, o povo chinês ainda estava longe de alcançar as promessas do socialismo. Segundo, a partir de 1978 o Partido Comunista Chinês embarcou num processo de reforma com base no mercado que, apesar de alegadamente concebido para revigorar o esforço para a construção do socialismo, conduziu realmente para a direcção oposta e a um grande custo para o povo chinês. E, finalmente, pessoas progressistas por todo o mundo continuam a identificar-se e a tomar como fonte de inspiração desenvolvimentos na China, vendo o rápido crescimento do país orientado para a exportação como a confirmação das virtudes do socialismo de mercado ou a prova de que, sem considerar etiquetas, a activa direcção do Estado da economia pode produzir desenvolvimento com êxito dentro de um sistema capitalista mundial.

Embora nós também tenhamos sido inspirados pela Revolução Chinesa, acreditámos por algum tempo que esta contínua identificação de pessoas progressistas com a China e a sua "economia socialista de mercado" representa não só uma grave leitura errada da experiência chinesa de reforma como, ainda mais importante, um grande impecilho ao desenvolvimento do entendimento teórico e prático que se exige para realmente avançar o socialismo na China e alhures.

Como argumentaremos neste livro, a nossa posição é de que as reformas de mercado na China não levaram à renovação socialista mas, ao contrário, à completa restauração capitalista, incluindo a crescente dominação económica estrangeira. Significativamente, esta consequência foi conduzida por mais do que a simples cobiça e interesse de classe. Uma vez tomado o caminho das reformas de mercado, cada passo subsequente no processo de reforma foi em grande medida conduzido pelas tensões e contradições geradas pelas próprias reformas. O enfraquecimento da planificação central levou à cada vez maior dependência do mercado e dos incentivos do lucro, a qual por sua vez encorajou o favorecimento de empresas privadas em relação às estatais e, de forma crescente, de empresas e mercados estrangeiros em relação aos internos. Embora um correcto entendimento da dinâmica do processo de reforma da China confirme a posição marxista de que o socialismo de mercado é uma formação instável, esta importante percepção em grande medida foi perdida devido à continuação da crença generalizada de muitas pessoas progressistas de que em algum sentido a China continua um país socialista. Esta situação não pode ajudar senão a gerar confusão sobre o significado do socialismo ao mesmo tempo que fortalece a posição ideológica daqueles que se lhe opõem.

Muitas outros académicos e activistas progressistas afastam os argumentos acerca do significado do socialismo como irrelevantes para os desafios do desenvolvimento enfrentados pelos povos de todo o mundo. Eles olham para o récord chinês de rápido e sustentado crescimento orientado para a exportação e concluem que a China é um modelo de desenvolvimento, com uma estratégia de crescimento que poderia e deveria ser emulada pelos outros países. Acreditamos, e argumentamos neste livro, que esta celebração da China é um erro grave, um erro que reflecte uma má compreensão não só da experiência chinesa como também das dinâmicas e contradições do capitalismo como um sistema internacional. De facto, um exame dos efeitos da transformação económica da China sobre as outras economias da região torna claro que o crescimento do país está a intensificar as pressões competitivas e as tendências de crise em detrimento dos trabalhadores de toda a região, incluindo a própria China.

Nossas diferenças com pessoas de esquerda e progressistas poderiam jamais ter produzido um livro sobre a China se em Maio de 2003 não tivesse havido a nossa viagem a Cuba a fim de comparecer a uma conferência internacional sobre o marxismo. [1] Enquanto estivemos naquele país procurámos aprender o que podíamos acerca de como Cuba estava a responder às suas dificuldades económicas, e sobre como o entendimento do governo e o compromisso para com o socialismo estava a perfilar a sua resposta. Contaram-nos reiteradamente que muitos economistas cubanos encaravam a estratégia de crescimento do "socialismo de mercado" chinês como um modelo atraente para Cuba.

Temos esperanças de que isto não seja verdade. Mas na própria conferência, quando a discussão voltou-se para os desafios enfrentados por Cuba, vários economistas cubanos endossaram publicamente a experiência chinesa de crescimento rápido dirigido para a exportação com base do investimento directo estrangeiro (IDE) como sendo a única esperança para Cuba de sustentar o seu projecto socialista sob as actuais condições internacionais. Embora este economistas estivessem apenas a repetir argumentos que tínhamos ouvido de pessoas progressistas em outros países, foi especialmente chocante ouvi-los numa conferência preocupada com a relevância contemporânea do marxismo e num contexto em que se imaginaria pouco provável que economistas o fizessem. Fidel Castro também estava na conferência e o governo já havia rejeitado firmemente o socialismo de mercado.

Não somos certamente os primeiros cientistas sociais a criticarem os desenvolvimentos na China de uma perspectiva marxista. [2] Mas parece-nos claro que a importância da China em estabelecer debates sobre o desenvolvimento e o socialismo tem aumentado. E sentimos que a confusão que envolve as experiências da China pós-reforma significa uma confusão teórica e política mais profunda acerca do marxismo e do socialismo que prejudica consideravelmente nossos esforços colectivos por construir um mundo livre da alienação, da opressão e da exploração. Assim, aventuramo-nos a oferecer a nossa própria contribuição quanto ao estudo da China e do socialismo, focalizando a nossa crítica na dinâmica económica, nas consequências sociais e nas implicações políticas do processo de reforma de mercado da China. Apesar do facto de o nosso trabalho focalizar a China, esperamos e desejamos que as questões levantadas e consideradas também tenham significância para pessoas preocupadas com desenvolvimentos sociais e lutas em outros países além da China.

O nosso livro principia, no capítulo 1, com uma discussão da ascensão da China como um ponto de referência positivo para economistas do desenvolvimento, com ênfase explicativa sobre o colapso da União Soviética e das suas economias satélites, a crise asiática de 1997-98 e a tendência tanto da corrente principal como de economistas de esquerda no sentido de formularem e racionalizarem as suas visões políticas nacionais recorrendo a experiências de desenvolvimento aparentemente exitosas de "países cartaz" individuais, ao invés do desenvolvimento da acumulação desigual e do conflito de classe numa escala mundial.

No capítulo 2 examinamos criticamente a dinâmica básica do processo de reforma do mercado socialista da China, mostrando como cada passo da transição da China — da planificação para o mercado, da produção orientada para o mercado interno àquela orientada para a exportação, e do estatal para o privado com controle estrangeiro cada vez maior — promoveu a mudança do sistema para mais longe de qualquer progresso significativo em direcção ao socialismo no sentido de um sistema centrado sobre as necessidades e capacidades básicas da comunidade trabalhadora. Este exame também torna claro que cada passo foi uma decorrência lógica não de quaisquer exigências objectivas para novos desenvolvimentos das forças produtivas humanas, naturais e sociais, mas sim das contradições geradas pelas reformas anteriores. Mostramos mais uma vez que o rápido crescimento económico que acompanhou as reformas foi devido em grande medida a outros factores além dos ganhos de eficiência da marketização e da privatização. Os argumentos neste capítulo cortam pela base a imagem generalizada de sábios decisores políticos chineses a projectarem cuidadosamente e deliberadamente uma transição relativamente estável e de baixo custo rumo a um regime mais produtivo orientado pelo mercado.

No capítulo 3 focamos as principais contradições internas do processo de reforma da China. Mostramos que os custos consideráveis da transição pró-mercado (desemprego ascendente, insegurança económica, desigualdade, exploração intensificada, saúde e condições de educação declinantes, explosão da dívida governamental e preços instáveis) não são efeitos colaterais transitórios e sim, ao contrário, précondições básicas de crescimento económico com rápida acumulação de capital sob condições chinesas. Também destacamos as crescentes (embora algo fragmentadas) lutas dos trabalhadores chineses para defender os direitos aparentemente garantidos para eles pelo regime da pré-reforma, e para protegê-los de algumas das piores formas de exploração sob o novo sistema face à repressão governamental organizada a todo trabalhador independente e comunidade organizada.

No capítulo 4 argumentamos que a experiência económica da China não pode ser plenamente compreendida se isolada das dinâmicas mais vastas do capitalismo global, especialmente o desenvolvimento desigual e a superprodução. Ao explorar estas dinâmicas destacamos como a transformação económica da China beneficiou e também intensificou as contradições do desenvolvimento capitalista em outros países, especialmente na Ásia do Leste. Esta perspectiva torna claro que o investimento estrangeiro atraído pela China, o crescimento conduzido pela exportação, não podem ser tratados simplesmente como uma experiência positiva replicável por outras nações.

Concluímos preliminarmente com o sumário das principais lições do nosso trabalho, destacando a contínua relevância da teoria marxista e a importância de construir movimentos para a mudança com base nos princípios da solidariedade internacional e através do compromisso com as lutas das comunidades trabalhadores contra os imperativos capitalistas. Esboçamos então uma alternativa, uma abordagem da comunidade de trabalhadores centrada no desenvolvimento socialista que trata as exportações e o investimento estrangeiro como veículos de necessidades e capacidades básicas e de solidariedade internacional.

Amável leitor: Se leu até aqui e agora está ansioso por ler este excelente livro on line, devemos-lhe uma explicação. Não estamos a colocar o texto completo online porque não nos podemos permitir. Publicaremos este livro nas versões encadernada e em brochura no próximo ano. Tal como as coisas são, a continuidade da nossa existência depende das contribuições dos nossos leitores e amigos. Sobreviver no ambiente comercial e político hostil dos Estados Unidos exige vender o melhor possível o que publicamos.

Mas não queremos deixá-lo sem opções. Talvez possa emprestar um exemplar deste número de um dos nossos assinantes. Eles são um grupo maravilhoso, e gostariam de partilhá-lo. Cerca de um milhar deles estão em bibliotecas, que ficarão felizes em proporcionar uma cópia deste número de verão assim como uma cadeira razoavelmente confortável. Se nenhuma destas opções forem praticáveis, até o dia 1 de Setembro de 2004 pode ASSINAR ao preço muito especial de US$19 por ano, com uma poupança de US$10 em relação ao nosso preço normal e de US$43 em relação ao preço nas bancas de jornais.

Notas da Introdução: A China e o socialismo

1. The “Conference on the Work of Karl Marx and Challenges for the 21st Century” was held in Havana, Cuba, May 5–8, 2003. Papers can be found at www.nodo50.org/cubasigloXXI .

2. See, for example, William Hinton, The Great Reversal: The Privatization of China, 1978-1989 (New York: Monthly Review Press, 1990); Maurice Meisner, The Deng Xiaoping Era: An Inquiry into the Fate of Chinese Socialism, 1978-1994 (New York: Hill and Wang, 1996); Robert Weil, Red Cat, White Cat: China and the Contradictions of “Market Socialism” (New York: Monthly Review Press, 1996); Gerard Greenfield and Apo Leong, “China's Communist Capitalism: The Real World of Market Socialism,” in Leo Panitch (ed.), Socialist Register 1997: Ruthless Criticism of All That Exists (New York: Monthly Review Press, 1997); Barbara Foley, “From Situational Dialectics to Pseudo-Dialectics: Mao, Jiang, and Capitalist Transition,” Cultural Logic (2002), http://eserver.org/clogic/2002 ; Liu Yufan, “A Preliminary Report on China's Capitalist Restoration,” Links, No. 21 (May-August 2002); Richard Smith “Creative Destruction: Capitalist Development and China's Environment,” New Left Review 222 (March-April 1997); Eva Cheng, “China: Is Capitalist Restoration Inevitable?,” Links 11 (January-April 1999).

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