27 de agosto de 2007

Uma década de Bolsa Família

Ana Fonseca e Carlos Lopes

Folha de S.Paulo


Costuma-se dizer que o sucesso tem muitas mães. Quase sempre isso é verdade. Como participantes do processo que deu corpo ao Bolsa Família, consideramos oportuno acrescentar ângulos à reflexão do balanço de uma década dessa conquista do povo brasileiro.

O Bolsa Família atende hoje a 13,8 milhões de famílias. O valor médio de seu benefício mensal é de R$ 152. Em 2003, quando implantado, ele atendia a 3,6 milhões de famílias com cerca de R$ 74 mensais, em média.

Mas esse resultado é fruto de um processo histórico em que se logrou aperfeiçoar uma engenharia social capaz de enfrentar a miséria da população de maneira mais profunda.

Pessoas e instituições que se arvoram como protagonistas de uma construção que foi coletiva estão equivocadas. A produção de memórias é sempre parte de um campo de disputas de interesses. Os relatos que apagam tal construção estão longe de serem inocentes.

O desenvolvimento do Bolsa Família se beneficia de experiências anteriores. Em 1995, em Campinas e Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, e no Distrito Federal, foram implantados programas de renda mínima que logo se espalharam por muitos municípios.

Não foi por acaso que, em 2003, o presidente Lula aprovou a expressão "Bolsa Família, uma evolução dos programas de complementação de renda com condicionalidades", em reconhecimento dos antecedentes múltiplos e variados.

O cadastro único dos programas sociais consolidou-se como uma conquista contra os interesses setoriais, que preferiam criar e gerir os seus próprios cadastros, reproduzindo, também no campo da identificação do público alvo, a fragmentação, a disputa de poder e a sobreposição de esforços.

Atribui-se a isso, em parte, o sucesso do Bolsa Família. Em setembro de 2003, estavam registradas no Cadastro Único federal, recebendo benefícios de distintos programas, cerca de 17,2 milhões de famílias. O Bolsa Escola repassava a cada beneficiário por mês R$ 24,80, em média. O Bolsa Alimentação, R$ 21. Em dezembro daquele ano, o Bolsa Família já concedia o triplo da média dos outros programas.

O I Seminário Nacional do Cadastro Único, ainda em 2003, foi o primeiro fórum a reunir gestores federais, estaduais e municipais para discutir as muitas facetas do processo de cadastramento. Com ele, criou-se um ponto de apoio importante para a discussão federativa e republicana sobre a gestão do cadastro único. Ao longo dos anos, ele se converteu em uma ferramenta de planejamento e gestão de políticas.

Em 2011, o governo federal inseriu o Bolsa Família em uma política mais ampla de transferência de renda. Com o plano Brasil sem Miséria, assumiu o compromisso de garantir aos brasileiros uma renda mínima mensal de R$ 70. Comprometeu-se a ampliar o acesso a serviços públicos e a efetuar a inclusão produtiva urbana e rural.

Os dez anos do maior programa de transferência de renda do mundo são motivo de orgulho e esperança para a população brasileira, e é isso que nós devemos celebrar.

Sobre os autores

Ana Fonseca, 62, é pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretária-executiva do programa Bolsa Família (2003)

Carlos Lopes, 52, economista, ex-representante da Organização das Nações Unidas no Brasil (2003-2005), é secretário-executivo da comissão econômica para a África da ONU.

16 de agosto de 2007

Irresponsabilidade compartilhada: Fatah e Hamas

Rashid Khalidi sobre a crise palestina

Rashid Khalidi


Vol. 29 No. 16 · 16 August 2007

Mesmo quando eles estavam politicamente unidos, os palestinos enfrentaram uma luta árdua para atingir qualquer um de seus objetivos nacionais, mas suas perspectivas quando eles estavam politicamente divididos foram ainda mais sombrias. O período da década de 1960 ao início da década de 1980, quando a OLP, dominada pelo Fatah, era universalmente reconhecida como representante dos palestinos, foi de derrotas repetidas, mas também um período durante o qual os palestinos mantiveram sua unidade, e houve um consenso quanto aos seus objetivos.

A crise pela qual o movimento nacional palestino está passando agora é, em muitos aspectos, semelhante à que passou nas décadas de 1930 e 1940. Então, profundas divisões internas, habilmente alimentadas por forças externas, contribuíram para uma série de derrotas e levaram em 1948 à expulsão e desapropriação de mais da metade da população árabe do Mandato Palestino. Nas décadas de 1920 e 1930, o movimento nacional palestino, constantemente minado pelas autoridades do Mandato Britânico, nunca concordou com um objetivo político claro e foi repetidamente enfraquecido por divisões e lutas internas. O movimento entrou em colapso espetacularmente após a grande revolta de 1936-39 (durante a qual aproximadamente 10 por cento da população masculina adulta árabe palestina foi morta, ferida, presa ou exilada) e levou décadas para ser reconstruída. Agora, como nas décadas de 1930 e 1940, apenas a solidariedade dos palestinos comuns e suas redes familiares e sociais impediu a fragmentação total da sociedade palestina, pois ela sofreu pressão de forças externas e sofreu com a profunda fraqueza de suas próprias estruturas políticas.

O Fatah e o Hamas têm lutado pelo controle de uma Autoridade Palestina que não tem autoridade real. O comportamento de ambos tem sido vergonhoso: não apenas centenas de palestinos foram mortos por seus militantes, mas seus líderes têm sido totalmente irresponsáveis ​​ao se deixarem arrastar para uma guerra civil. Nas quatro décadas desde a fundação da OLP, nunca houve tamanho abismo entre duas partes do movimento nacional.

A culpa deve ser compartilhada. A decisão do Hamas de participar das eleições do Conselho Legislativo Palestino de janeiro de 2006 foi questionável, para dizer o mínimo. Não é defesa argumentar, como alguns fazem, que seus líderes não esperavam vencer. O Hamas enfrentou uma escolha difícil. Ele poderia tentar capitalizar sua crescente popularidade, concorrer nas eleições e aceitar as regras sob as quais a AP foi constituída — o que significaria reconhecer explicitamente Israel, concordar em lidar com ele e aceitar o princípio de uma solução de dois estados. Ou poderia permanecer puro, recusando-se a participar das eleições da AP, continuando a rejeitar os Acordos de Oslo e Israel e pregando a resistência. Não poderia fazer as duas coisas. E, no entanto, é isso que tentou fazer nos últimos 18 meses, com consequências desastrosas.

Agora que o Hamas assumiu o controle da Faixa de Gaza, e com ela a responsabilidade pelos 1,5 milhões de habitantes do território, ele enfrenta a mesma contradição ainda mais fortemente: como pode alegar ser um movimento de resistência e, ao mesmo tempo, lidar com Israel sobre questões práticas como o movimento de água, combustível e alimentos para Gaza, e de bens e pessoas para dentro e para fora de Gaza? Os israelenses e seus apoiadores americanos e europeus estão agora fazendo o melhor para tornar o mais difícil possível resolver esse dilema, exercendo pressão sobre o Hamas reduzindo o movimento de bens e pessoas a um fio d'água (enquanto permite a entrada de apenas alimentos, combustível e medicamentos suficientes para evitar uma catástrofe), continuando assim a lenta sufocação do povo da Faixa de Gaza, em uma forma de punição coletiva.

Alguém também pode perguntar qual estratégia de libertação o movimento islâmico estava seguindo quando aceitou primeiro um papel de liderança no governo e depois a responsabilidade por toda a Faixa de Gaza. Na verdade, o Hamas adotou a estratégia Fatah/OLP que a maioria dos palestinos acredita ter falhado: tentar construir instituições palestinas de governo aceitando os Acordos de Oslo – que incluem uma proibição de resistência à ocupação – enquanto, ao mesmo tempo, tenta negociar a condição de estado com Israel a partir de uma posição de fraqueza. Já que Israel, apoiado pelos EUA, por quase sete anos se recusou a negociar seriamente com a AP quando era dominada por uma Fatah fraca e cada vez mais não representativa, com base em que o Hamas poderia esperar que Israel negociasse com ele após sua vitória eleitoral, dada sua posição política radical e as expectativas de sua base popular? Como ele pode alegar ser um movimento de resistência e concordar em suprimir a resistência de outras facções, como é exigido pelos termos dos Acordos? Que pressão pode exercer contra uma ocupação de 40 anos com a qual o povo israelense parece geralmente confortável, e que foi aceita e financiada pelos EUA e pela União Europeia, se não pode exercer alguma forma de pressão sobre o próprio Israel? E como os palestinos, muito mais fracos do que os israelenses para começar, podem lidar com eles efetivamente quando estão tão divididos? Essas não são questões apenas para o Hamas: são para todos que desejam ver o conflito resolvido. Mas são particularmente urgentes para o Hamas.

Depois, há o Fatah, por décadas o movimento hegemônico na política palestina. Ele perdeu rapidamente o apoio popular no final da década de 1990 por causa de seu péssimo histórico em negociações com Israel e seu fracasso em estabelecer um governo efetivo ou o estado de direito na Cisjordânia e em Gaza. Fraco e incompetente, sua administração caracterizada por corrupção e nepotismo, o Fatah recebeu sua punição quando perdeu as eleições do PLC de 2006. No entanto, seus líderes se comportaram como se suas políticas tivessem sido justificadas, como se tivessem um direito inalienável ao cargo. A relutância do Fatah em aceitar o resultado da eleição, a necessidade de reforma interna e a necessidade de compartilhar o poder com o Hamas, apesar das repetidas propostas do Hamas, levaram os palestinos à crise atual. Quando alguns líderes do Fatah, como o preso Marwan Barghouti, quiseram aceitar a oferta do Hamas, os obstinados do Fatah (e alguns linha-dura do Hamas) torpedearam a iniciativa, assim como fizeram com o governo de coalizão mediado pela Arábia Saudita criado em fevereiro de 2007.

O Fatah estava especialmente relutante em compartilhar a responsabilidade pela segurança. Não foi preciso muito incentivo para que o conselheiro de segurança nacional Muhammad Dahlan, com o apoio pelo menos tácito de Mahmoud Abbas, sucumbisse às bajulações americanas e tentasse montar um golpe armado contra o Hamas na Faixa de Gaza. Se o Hamas antecipou isso com um golpe próprio, ou se o Fatah deu o primeiro passo, é irrelevante. Nenhum dos movimentos foi capaz de ver que tais divisões profundas significariam que eles teriam ainda menos chance de atingir seus objetivos nacionais. Nisso, eles foram igualmente irresponsáveis.

E, claro, grande parte da culpa deve recair sobre o governo Bush. Seu desprezo pela decisão democrática do povo palestino e seu incentivo a uma guerra civil palestina são as consequências naturais de sua visão de mundo essencialista. Ele vê tudo no Oriente Médio como parte de uma vasta luta cósmica entre os Estados Unidos e os chamados "moderados", de um lado, e extremistas terroristas, de outro. De acordo com essa visão, o Irã é o mesmo que o Hamas, que é o mesmo que o Hezbollah, que é o mesmo que a Al-Qaeda, que era o mesmo que Saddam Hussein. É isso que impulsiona a política dos EUA para o Oriente Médio, e é responsável por criar ou exacerbar toda uma série de conflitos.

1 de agosto de 2007

Contra o realismo histórico

Dentro do épico Guerra e Paz de Tolstoi, Hayden White argumenta, três gêneros são entrelaçados: histórico, romance e filosófico. Se os dois primeiros - e as batalhas, amores e mortes que eles contam - continuam a linha do realismo europeu, no terceiro Tolstoi apresenta a história como uma força além do controle humano, em uma tentativa de desmantelar as ideologias de progresso.

Hayden White

New Left Review

NLR 46•JULY/AUG 2007

Nós, os russos em geral, não sabemos escrever romances no sentido em que se entende esse gênero na Europa.[1]  
Tolstói 

Tradução / Guerra e paz (1865-1869), de Liev Tolstói, é uma obra volumosa e de enorme complexidade, à qual nenhum breve resumo é capaz de fazer justiça. Ela consiste basicamente em dois livros alentados, um histórico, outro ficcional, integrados para expor o efeito da invasão napoleônica em 1812 sobre a sociedade russa. Como a obra mescla vários gêneros – história, romance, épica –, os críticos divergem sobre sua classificação. Aqui vou considerá-la como exemplo daquilo que ela é de maneira mais flagrante, a saber, um romance histórico. Mas Guerra e paz é um romance histórico de tipo específico: procura mostrar que, mesmo sendo impossível deixar de usar a “história” como contexto para a representação de grandes eventos, as exposições “históricas” de tais eventos não conseguem de maneira nenhuma explicá-los. Na verdade, Guerra e paz é uma obra que consuma e, ao mesmo tempo, efetivamente desmantela o romance histórico. Com isso, ela corrói os fundamentos do realismo literário da Europa ocidental, questionando a ideologia da história em que ele se baseava.

O próprio Tolstói negava que sua exposição da invasão napoleônica da Rússia em 1812 recaísse sob a rubrica de algum gênero específico. Em 1931, o crítico Boris Eikhenbaum disse que Tolstói havia iniciado a obra – cujo título original era 1805 – como uma combinação entre dois gêneros russos consolidados, o “romance de família” e o “romance militar-histórico”.[2] Mas, do começo do Livro VII em diante, afirmava Eikhenbaum, o livro passava para um novo gênero, o épico histórico-filosófico. Assim, podemos identificar pelo menos três linhas de gênero que se entrelaçam na composição de Guerra e paz: uma linha histórica (o relato da invasão da Rússia por Napoleão), uma linha romanesca (o impacto dessa guerra sobre quatro famílias ficcionais da nobreza russa) e uma linha filosófica (digressões discursivas sobre certas ideias abstratas sugeridas pelos eventos, históricos e ficcionais, narrados no livro). É essa combinação de linhas que faz de Guerra e paz uma consumação do gênero do romance histórico. Tolstói não só compõe um romance histórico, como submete o gênero a uma análise à luz de sua filosofia da história própria. Essa dimensão crítico-filosófica estava totalmente ausente dos grandes romancistas históricos anteriores a Tolstói: Scott, Manzoni e Dumas.

I

Embora Guerra e paz seja muito longo, a ação descrita se estende por um período de tempo relativamente curto: os sete anos entre a Batalha de Austerlitz em 1805 e a retirada de Napoleão da Rússia em 5 de dezembro de 1812. A ação se divide a grosso modo entre um relato das campanhas, batalhas e manobras militares da guerra e uma exposição da vida na alta sociedade russa, tal como fora afetada pela guerra. Aquele fala do esforço em conquistar terras, poder e glória por meios militares; esta, do esforço em conquistar amor, poder e riqueza pelos meios fornecidos pela “sociedade”. As duas narrativas nunca convergem inteiramente, mas nem há razão para isso, visto que tratam da mesma coisa: as similaridades entre “guerra” e “paz”.

Guerra e paz saiu originalmente como uma série entre 1865 e 1869, e a maioria de suas edições divide a obra em vários livros, com capítulos ou subseções. Há pouquíssima continuidade entre um livro e outro (embora sigam uma ordem cronológica) ou entre uma subseção e outra. Os segmentos constituem uma série de vinhetas, pequenos episódios, historietas (eis três em seguida no Livro VIII: “Os Rostov no teatro de ópera, Helene no camarote ao lado”, “Descrição da ópera”, “Anatole e Dolokhov em Moscou”). Essas vinhetas às vezes se assemelham aos faits divers dos jornais da época. Os personagens não se desenvolvem de um episódio ao outro, mas simplesmente reaparecem de tempos em tempos com um novo leque de atributos. Mas, por outro lado, a ação inteira do livro cobre apenas sete escassos anos. Há alguns momentos de revelação: um com Bolkonski, vários com Pierre; e um personagem, Natacha Rostova, realmente se desenvolve – mas nenhum deles apresenta qualquer mudança de caráter significativa e duradoura. Mais do que um desenvolvimento, a maioria dos personagens passa por uma espécie de reconfiguração, com o acréscimo de novos traços e o rearranjo de traços anteriores, à medida que sofrem uma decepção ou frustração atrás da outra, tanto na “guerra” quanto na “paz”. Não é um romance feliz, ainda que, originalmente, Tolstói o planejasse como uma espécie de comédia, em que bem estaria o que bem terminasse.

As seções que compõem Guerra e paz formam uma série, mas não uma sequência. A sequencialidade distribui o sentido num espaço narrativo por hipotaxe, distinguindo gradualmente o que é e o que não é importante entre todos os dados no texto e encaminhando tudo para um desfecho ou uma conclusão em que finalmente é possível captar ou entender a significação dominante dos eventos relatados. Usualmente, um tratamento histórico dos eventos consiste na tentativa de revelar a sequência (criação de um enredo narrativo) em lugar daquilo que parece ser mera serialidade (crônica). Mas Tolstói resiste à sequencialidade precisamente porque está lidando com a história: ele não acredita que a história tenha enredo. Então, para resistir à tentação de criar um enredo, ele volta à cronologia como o grande princípio organizador de seu retrato da vida na Rússia entre 1805 e 1812.

Assim, os Livros I a VI relatam eventos dos anos 1805-1810 e consistem numa exposição bastante direta das relações militares e diplomáticas entre a França e a Rússia, em descrições de algumas batalhas iniciais entre o Grande Exército de Napoleão e uma aliança russo-austríaca, e a apresentação dos principais personagens ficcionais, representando a nobreza russa. O livro começa sem qualquer introdução, assim como, cerca de 1.400 páginas depois, terminará sem um fim. Mergulhamos imediatamente numa cena social em São Petersburgo, uma soirée onde conversam sobre a súbita ascensão da carreira de Napoleão Bonaparte. Somos apresentados a Pierre Bezukhov, que mais à frente revela ser a principal figura ficcional do livro, mas não recebemos praticamente nenhuma informação sobre ele (é filho ilegítimo, mas sua mãe nunca é mencionada e nada sabemos de sua infância ou criação). Ele nada tem de marcante – e assim continua até o final. Pouco age, mas acontecem-lhe muitas coisas.

Como herói, Pierre deixa muito a desejar; é mais o tipo do interiorano rústico que vai para a cidade do que a encarnação da virtus aristocrática. Seu amigo Andrei Bolkonski é um candidato mais promissor para o papel. Os seis primeiros livros seguem de modo intermitente o decurso do casamento sem amor do príncipe Andrei e a morte da esposa durante o parto, seu melancólico desencantamento com a vida, o amor pela bela e jovem condessa Natacha Rostov e o noivado dos dois. Mas ele também é um fiasco como herói. Estraga o noivado com Natacha e morre antes de acertar a situação com ela.

Os Livros VII e VIII fornecem uma espécie de transição entre os anos 1807- 1812 e uma preparação para a nova filosofia da história que será utilizada para desmontar as versões oficiais da Guerra de 1812. O Livro VII aborda a “paz”, a vida no campo e a feliz família Rostov em casa, enquanto o Livro VIII apresenta a vida na cidade – Moscou – e a sedução de Natacha Rostov por Anatole Kuráguin, cunhado de Pierre. Pierre frustra o plano de Anatole para raptar Natacha. Andrei repudia Natacha, ela tenta se suicidar, sem êxito, e Pierre percebe que ama Natacha e não a esposa errante, Helene Kuraguina, com quem se casara vergonhosamente apenas por luxúria. Como sugere esse insuficiente resumo, nas seções ficcionais do livro começam a acontecer muitas coisas, enquanto Tolstói nos prepara para as complicações que surgem devido ao impacto da “história”.

Os Livros IX a XV, a “porção” mais extensa de Guerra e paz, abordam os sete meses de “guerra”, de maio a dezembro de 1812. Contam como Napoleão invade a Rússia e encontra a oposição dos soldados sob o comando do Marechal de Campo Kutuzov, velho, cansado, aleijado e quase cego. O exército napoleônico avança, ocupa e saqueia Moscou, mas Napoleão perde o controle dos soldados que se convertem numa turba entregue a bebedeiras e pilhagens, e decide se retirar de Moscou e voltar à França. O que resta de seu exército é destroçado durante a retirada; Napoleão acaba por abandonar o que restou dos quinhentos mil homens que conduzira até a Rússia e retorna à França, para seu Waterloo.

Causalidade e liberdade 

É nessa porção do texto que se encontra a substância de Guerra e paz. É aqui que a “história” deixa de ser um relato do passado e brota como força em si, revelando-se a manipuladora oculta dos destinos dos indivíduos e das nações. A mudança da noção de história como soma total dos eventos no passado para a de “história” como uma força que faz os eventos acontecerem e dá à sociedade humana uma direção específica, ainda que incognoscível, emerge explicitamente no Livro IX, onde o narrador reflete sobre a ironia da crença dos grandes homens de serem eles causas, e não consequências, da transformação histórica. Tolstói argumenta que os historiadores alimentam a vaidade de reis e generais escrevendo a história como se suas ocorrências se devessem à vontade, aos desejos e às ordens deles. Na verdade, insiste o autor, todo evento histórico é consequência de “miríades de causas”, tão numerosas a ponto de tornar a história “irracional e incompreensível”. Os movimentos de indivíduos e povos exigem a concordância de todos os envolvidos, de modo que qualquer coisa que tenha acontecido poderia muito bem não ter acontecido, mas, depois de acontecer, aparece retrospectivamente como algo necessário e inevitável.

Assim, ficamos entregues a uma situação paradoxal, em que devemos reconhecer que somos determinados pela história e, ao mesmo tempo, somos livres em relação a ela. Tolstói, a esse respeito, parece acreditar numa “coincidência de opostos”. Pois, embora dedique muito tempo a mostrar que tudo na história “aconteceu porque tinha de acontecer”, ele também sustenta que, em última análise, é irrelevante se nos consideramos livres ou determinados em qualquer situação dada. Assim, escreve Tolstói:

Há dois lados na vida de todo homem, sua vida individual, que é tanto mais livre quanto mais abstratos são seus interesses, e sua vida natural de colmeia, em que ele obedece inevitavelmente a leis que lhe são postas. 
O homem vive conscientemente para si próprio, mas é um instrumento inconsciente na consecução dos fins históricos universais da humanidade.3 

Os homens estão divididos – afirma Tolstói – entre sua vida consciente, que vivenciam como se fossem livres, e sua vida animal, física, “de colmeia”, que não é “vivenciada”, mas simplesmente vivida como se fosse “natural”. Tolstói sustenta que essas duas dimensões da vida humana estão inversamente relacionadas com o grau de poder social de que goza o indivíduo: “Quanto mais alta a posição de um homem na escala social, quanto maior o número de pessoas a que está ligado e maior o poder que tem sobre os outros, tanto mais evidentes são a predestinação e a inevitabilidade de todas as suas ações”. Dessa forma, para Tolstói, “um rei é escravo da história” – e segue-se, ou assim parece, que o servo mais vil é, em certo sentido, o mais “livre” dos homens.

Segundo esse tipo de raciocínio, a realização pessoal consiste no reconhecimento de que aquilo que queremos, desejamos ou ambicionamos conscientemente é, na realidade, resultado do condicionamento social, ao passo que o que deveríamos querer e buscar é a imersão na vida “de colmeia”, onde a regeneração e a morte servem aos fins da “vida” mais do que aos da sociedade. Ainda que Napoleão pensasse ser o arquiteto das guerras que travava para conquistar a Rússia, “ele nunca estivera tanto sob o domínio de leis inevitáveis que o levavam, pensando agir por vontade própria, a realizar para a vida de colmeia – isto é, para a história – tudo o que fosse preciso realizar”.4 Isso é menos paradoxal do que pode parecer à primeira vista. Pois Tolstói acredita que, visto que todo evento é resultado de todas as forças causais em operação no conjunto da história, deve-se considerar o senso humano de livre arbítrio como algo predestinado; dessa maneira, sejam os homens livres ou não, o senso de serem livres precisa ser incluído entre as causas que contribuem para a ocorrência de todos os eventos causados por seres humanos. O aspecto mais importante assinalado por Tolstói é que, quanto maior o poder de um indivíduo ou grupo, maior a ilusão quanto à natureza e extensão desse poder e maior o sofrimento causado em seu exercício. A realização, portanto, consistirá no abandono de qualquer tentativa de obter ou exercer o poder e no retorno à vida “de colmeia” representada pela família, casta e raça. A passividade é a condição a que se deve aspirar. A capacidade de agir, característica dos heróis, é a fonte de tudo o que há de terrível na existência socialmente organizada.

Assim, a aparente diferença entre atividade e paciência, ou ação e paixão, base para a distinção entre, de um lado, uma vida heroica e, de outro lado, uma vida comum, humilde ou despretensiosa, revela-se uma falsa dicotomia. Mostrar-se-á que Napoleão, o homem de ação por excelência, era o produto de forças sobre as quais ele não tinha absolutamente controle nenhum, ao passo que Kutuzov, o não-general idoso, distraído, sonolento, quase cego, irá se revelar como vencedor de Napoleão e salvador da Rússia. Kutuzov é a encarnação da passividade ativa, enquanto Napoleão não passa de um ativista passivo. A força de vontade de Kutuzov se manifesta em sua resistência a qualquer tentativa de obrigá-lo a combater Napoleão, enquanto Napoleão aparece em sua insistência em combater a qualquer momento e em qualquer lugar. Assim, a vitória de um é decidida pela passividade; a derrota do outro, pela ação. Em Guerra e paz, a guerra é uma atividade absurda, no fundo uma farsa.

No Livro X, por exemplo, Tolstói interrompe sua narração da visita de Pierre Bezukhov ao campo de batalha de Borodino para comentar a falta de sentido de se ter travado tal batalha.

Em 24 de agosto foi travada a batalha do Reduto de Shevardino, no dia 25 não se disparou nenhum tiro de nenhum dos lados e no dia 26 ocorreu a própria batalha de Borodino. 
Como e por que se deram e foram aceitas as batalhas de Shevardino e Borodino? Por que se travou a batalha de Borodino? Não havia o menor sentido nela, nem para os franceses, nem para os russos. Seu resultado imediato para os russos foi, e estava fadado a ser, que nos aproximamos mais da destruição de Moscou – coisa que mais temíamos no mundo; para os franceses, seu resultado imediato foi que se aproximaram mais da destruição de todo o seu exército – coisa que mais temiam no mundo. Qual seria o resultado, era totalmente óbvio e, apesar disso, Napoleão ofereceu e Kutuzov aceitou aquela batalha.5 

A explicação de Tolstói – contra a das falsas ideias dos historiadores oficiais – foi que “Kutuzov agiu involuntária e irracionalmente. Mas depois, para se encaixar com o que ocorrera, os historiadores apresentaram sinais engenhosamente fabricados do gênio e clarividência dos generais, os quais, entre todos os instrumentos cegos da história, eram os mais escravizados e involuntários”. Tolstói zomba de táticos e estrategos, com seus mapas, quadros e diagramas, que tentam converter a guerra moderna de massa numa questão de planejamento rigoroso. Os meros números dos exércitos engajados na invasão da Rússia asseguravam que as campanhas travadas por ambos os lados eram uma questão mais de força inercial do que de escolha e decisão. Tolstói mostra Napoleão tomando decisões arbitrárias para as quais não se apresenta nenhuma razão, consumindo seu exército como um menino comendo doces e fazendo birra quando surgem impedimentos à sua vontade. Kutuzov, por outro lado, sabe apenas uma coisa: manter o exército ou seus remanescentes intactos, lutar apenas quando forçado a isso e recuar, recuar, recuar – mesmo ao ponto de entregar Moscou ao inimigo. É uma batalha do falso brilho e egocentrismo contra a mais autêntica obtusidade, paciência e resignação ao destino. Ao fim, Napoleão se vê ocupando uma cidade desabitada, seus soldados sem equipamentos para o inverno, suas linhas de abastecimento cortadas.

Todavia, Napoleão, o maior de todos os gênios, que os historiadores afirmam que tinha controle do exército... usou seu poder para escolher o mais tolo e desastroso de todos os rumos que lhe estavam abertos... [D]eixou Moscou... Durante todo aquele período, Napoleão, que parece ter liderado todos esses movimentos – assim como a figura de proa de um navio pode, a um selvagem, parecer que está no comando da nau – agiu como uma criança que, segurando dois cordéis dentro de uma carruagem, pensa que está a dirigi-la.6 

É por isso que o relato de guerra em Guerra e paz, embora mostrando inúmeros esforços, lutas, batalhas e destruições, ao fim e ao cabo nada terá de heroico em si. O que de início aparece como algo nobre e heroico, até mesmo trágico para os historiadores do período, é desmascarado por Tolstói como uma aventura insensata, sangrenta e infrutífera de um charlatão do Ocidente, que não tinha ideia do que estava fazendo. O “heroísmo” dos russos, em reação ao ataque de Napoleão, é de tipo estoico e passivo. Os russos simplesmente suportam. Este é o gênio da raça.

Assim, depois de uma conversa com o general Kutuzov, o príncipe Andrei volta a seu regimento,

tranquilizado quanto ao curso geral das coisas e quanto ao homem a que ele fora confiado. Quanto mais percebia a ausência de qualquer motivo pessoal naquele velho – a quem parecia restarem apenas o hábito das paixões e, em lugar de um intelecto (reunindo fatos e extraindo conclusões), apenas a capacidade de contemplar calmamente o curso dos eventos –, mais tranquilizado se sentia de que tudo seria como deveria ser... “E acima de tudo”, pensou o príncipe Andrei, “acredita-se nele porque é russo”.7 

Este, claro, é Andrei falando, não Tolstói; e não é possível saber com certeza se Tolstói não deseja que seus leitores interpretem as ideias de Andrei com alguns grãos de sal – principalmente porque Andrei é um daqueles homens “inteligentes” que sempre enxergam a realidade mais pela lente de sua razão do que por meio de seus sentimentos. Apesar disso, a “russidade” desempenha um papel no épico de Tolstói, como explicação da vitória da Rússia sobre o tirano do Ocidente.

De fato, pode-se afirmar que, nas partes militar-históricas do romance, Tolstói lança a “francidade” contra a “russidade”, uma totalmente composta de consciência, brilho, raison, estilo e ação; a outra, de sentimento, solidez, paciência, prosaísmo e paixão. É por isso que, apesar de todo o movimento, todo o som e fúria do relato de guerra, nada acontece realmente. Embora haja muitas ocorrências em Guerra e paz, é muito difícil identificar eventos específicos e as cadeias de consequências que um dado evento qualquer poderia acarretar para os eventos subsequentes. As batalhas começam mais por acaso do que por deliberação e terminam sem resultados decisivos. Monarcas, generais e outras autoridades lançam ordens, mas invariavelmente elas se perdem, chegam ao destinatário errado ou são ignoradas pelos subordinados. Os franceses ocupam Moscou, mas nunca chegam a submetê-la plenamente. Quando a cidade é abandonada pelo exército russo, Napoleão aparece como vencedor da guerra, mas os russos se recusam a reconhecer sua vitória, a tratar com ele ou a combatê-lo abertamente. No fim, Napoleão é obrigado a abandonar Moscou, porque os russos simplesmente agem como se ele nunca tivesse estado ali. Kutuzov vence – se é que se pode dizer que “venceu” – agindo o mínimo possível, batendo em retirada e abandonando Moscou, permitindo que Napoleão esgote suas forças na inútil espera de ser saudado como conquistador. Assim, como relato da invasão napoleônica da Rússia, Guerra e paz é uma história sem eventos ou os tipos de ações que poderiam formar um enredo. Nessa ausência de eventos e de enredo, pode-se dizer, portanto, que ele se aproxima, se é que não o antecipa, do romance modernista – ou daquele aspecto do modernismo já imanente num realista como o Flaubert de A educação sentimental.

II

Todos os principais personagens ficcionais russos em Guerra e paz pertencem à nobreza. A exceção é Platon Karataiev, um velho soldado analfabeto que acredita piamente na harmonia do universo, faz amizade com Pierre no cativeiro, é abatido como um cachorro quando cai de exaustão na beira da estrada e a quem Pierre considera “a personificação de tudo o que é russo... do espírito e da verdade”. Ao contrário de todos os aristocratas no livro, Karataiev possui uma sabedoria nascida do solo e do gênio russos, mas é uma sabedoria mais vivida do que refletida. “Toda palavra e ação dele era a manifestação de uma atividade desconhecida a si, a qual era sua vida. Mas sua vida, tal como ele a via, não tinha sentido como uma coisa separada. Tinha sentido apenas como parte de um todo do qual ele sempre foi consciente.”8

Karataiev representa o paradigma de um ser humano que se libertou da sociedade. Não aspira a nada, não quer nada, aceita o que lhe vem, não sente nenhuma separação entre si mesmo e seu meio, não tem um “eu”. Para Pierre, Karataiev era “uma personificação insondável, completa, eterna do espírito de simplicidade e verdade”. É o anti-herói por excelência, ou seja, um santo. Todos os demais personagens de Guerra e paz acabam sendo medidos por ele – e ficam aquém. E bem no final do romance, no epílogo que nos mostra as famílias Bezukhov e Rostov em 1820, Karataiev é invocado para testar o desejo de Pierre de retornar ao mundo da sociedade e participar de um movimento político. Natacha pergunta a Pierre se Karataiev aprovaria seus planos de entrar na luta política.

“Não, não aprovaria”, disse Pierre depois de refletir. “O que ele aprovaria seria nossa vida em família. Ele sempre desejou muito encontrar correção, felicidade e paz em tudo, e eu ficaria orgulhoso em deixar que ele nos visse.” 

Esta é a última cena do romance. Não é um final, mas não fazemos ideia do que o futuro reserva para Pierre e Natacha. Sabemos apenas que Pierre e Natacha encontraram em seu mútuo amor e em sua vida familiar um modelo – é o que Pierre pelo menos pensa – do que a sociedade poderia vir a ser. “Gostaria apenas de dizer”, continua Pierre, “que as ideias que têm grandes resultados são sempre simples. Minha ideia geral é que, se as pessoas ruins estão unidas e constituem um poder, então as honestas deveriam fazer o mesmo. Ora, isso é bastante simples”.9

Em certo sentido, Tolstói quer que acreditemos que a nobreza russa da época perdera sua “russidade” na medida em que se “socializara”. Ao se civilizarem, galicizaram-se. Tolstói indica esse aspecto ao apresentar seus aristocratas russos falando em francês com mais facilidade do que em russo; retomam o russo quando estão no campo e precisam se comunicar com seus servos e criados. Vemos Pierre no começo do livro logo depois de voltar dos estudos em Paris, admirador de Napoleão e do iluminismo francês, adotando maneiras francesas em vívido contraste com sua natureza russa rústica, que se reflete em sua aparência grosseira, sua miopia e deselegância.

Fisiologicamente, Pierre é a própria antítese dos belos cavalheiros da corte russa: Andrei, Anatole, Dolokhov, Boris etc. Como Kutuzov, Pierre é gordo demais para montar a cavalo comodamente, míope demais para observar o que se passa ao redor, tosco demais na fala para conquistar belas mulheres e persuadir homens inteligentes. Meu palpite – mas não disponho de nenhuma indicação no texto que lhe dê base – é que Pierre era filho de uma serva e que seus traços físicos pretendem indicar suas raízes no solo da Mãe Rússia. Seja como for, a Bildung ou “educação sentimental” de Pierre nos modos e maneiras do mundo é o inverso da de seus correspondentes ocidentais. Suas experiências de “guerra e paz” o afastam sempre mais da “sociedade”, aprofundando mais e mais a busca do tipo de comunidade que encontrara com outros homens, ao ficar como prisioneiro dos franceses, ameaçado de morte, privado de qualquer bem material, restando-lhe apenas a fraternidade de Karataiev – e suas parábolas sobre o poder terapêutico do amor. Depois que Karataiev foi morto por um guarda francês, certa noite Pierre cai exausto e tem mais uma vez o sonho que tivera em Mozhaisk, após a batalha de Borodino:

Outra vez fatos reais se misturaram com sonhos e outra vez alguém, ele ou outro, deu expressão a seus pensamentos, e até aos mesmos que haviam sido expressos em seu sonho em Mozhaisk. “A vida é tudo. A vida é Deus. Tudo muda e move e esse movimento é Deus. E enquanto há vida há alegria na consciência do divino. Amar a vida é amar Deus. Mais difícil e mais abençoado do que tudo é amar esta vida nos próprios sofrimentos, nos sofrimentos de inocentes.” “Karataiev!”, veio à mente de Pierre.10 

A mudança pela qual passa Pierre, como resultado de sua experiência de cativeiro e degradação, é radical:

A própria pergunta que antes o atormentara, a coisa que tentara continuamente encontrar – a finalidade da vida –, agora não existia mais para ele. Aquela busca da finalidade da vida não só meramente desaparecera por algum tempo – ele sentiu que ela não existia mais para si e não iria se apresentar outra vez. E essa própria ausência de uma finalidade lhe deu a sensação completa e jubilosa de liberdade que agora constituía sua felicidade... Agora ele tinha fé – não fé em algum tipo de norma, em palavras ou ideias, mas fé num Deus sempre vivo, sempre manifesto. 

Essa nova fé em Deus, porém, fornece a Pierre uma nova relação com outros homens e mulheres.

Essa peculiaridade legítima de cada indivíduo que costumava enervar e irritar Pierre agora se convertia em base da simpatia que sentia e o interesse que nutria por outras pessoas. A diferença e, às vezes, a total contradição entre as opiniões e a vida dos homens e entre um homem e outro agradavam-no e lhe despertavam um sorriso gentil e divertido.11 

Pierre não persistirá nessas novas percepções: “todo o sentido da vida” se concentrará na encantadora Natacha, agora mais humilde depois de passar pela experiência da morte do príncipe Andrei.

Trajetórias 

O príncipe Andrei Bolkonski, a coisa mais próxima de um herói romântico no livro, perde o amor de sua vida, Natacha Rostova, e morre pelos ferimentos que recebeu num fortuito fogo de barragem. Ele é melancólico, inteligente e corajoso, filho devotado, bom amigo, mas marido indiferente, pai enfastiado com o filho, amante formal de Natacha. Num rascunho inicial do livro, Tolstói pretendia que ele vivesse, se casasse e fosse feliz. Mas depois resolveu matar Andrei numa cena que parece sugerir que a morte de um espírito nobre testado pela adversidade e pela perda pode levar à realização pessoal. Eis o discurso que vem logo após o trecho narrando como o príncipe Andrei aceitou a morte:

“Sim, a morte é um despertar!” E de súbito sua alma se iluminou e o véu que até então ocultara o desconhecido foi removido de sua visão espiritual. Ele sentiu como se os poderes até então confinados dentro de si tivessem se liberado, e aquela estranha claridade não o deixou mais.12 

A emotividade dessa cena, porém, é embaraçosa e poderia ser citada em prol de uma moção para excluir Tolstói de qualquer rol de realistas ao estilo ocidental.

Natacha, a beldade esguia e esplêndida de olhos negros, a coisa mais próxima de uma heroína romântica no livro, apaixona-se por um pretendente após o outro, trai Andrei com o volúvel Anatole, mostra, na verdade, que “ama o amor”, até que vem finalmente a se arrepender, quando vela Andrei em seu leito de morte. Mas ela se transforma em seu relacionamento com Pierre, passando no fim do livro por um improvável renascimento como dona de casa compulsiva e mãe obsessiva. É como se Natacha (interpretada por Audrey Hepburn na adaptação cinematográfica de King Vidor) finalmente ficasse adulta durante os sete anos transcorridos entre sua penúltima aparição aos vinte anos, em 1813, e sua última aparição em 1820. De borboleta social, passou a mãe de quatro filhos, esposa dominadora, ainda que devotada, entregue aos serviços domésticos. Mas, como veremos, as causas dessa transformação não são claras. É verdade que ela sofreu muito, mas seus sofrimentos não têm nada de trágico, pois não são enfrentados por nenhuma causa nobre.

Nicolai Rostov, o tipo do fidalgo rural simplório, soldado, caçador, filho respeitoso e cumpridor, mas amante indiferente, pouco dado à introspecção, mas industrioso e solene, finalmente se casa com a irmã de Andrei, a princesa Maria, e com isso – ela é uma herdeira rica – salva o patrimônio de seu pai dissipador. À política e à sociedade Nicolai prefere a caça, a montaria, a bebida, a vida de soldado e a camaradagem de caserna. Mas abandona a carreira militar para reconstruir a propriedade da família, arruinada pelo exército de Napoleão, zeloso fazendeiro e administrador de suas terras e, por fim, amável anfitrião das famílias que iam visitá-lo todos os anos – às vezes “com dezesseis cavalos e dezenas de criados, e ficavam por meses a fio”. No final do livro, ele se lança a um programa de leitura para aprimorar o intelecto.

Os Kuráguin, encabeçados pelo príncipe Vassíli, figura política de peso e dado às intrigas da corte, formam a única “má” família entre as quatro que têm importância no livro. Pierre se casa com a filha dos Kuráguin, Helene (Anita Ekberg na versão de Hollywood), de beleza voluptuosa, mas fria, que logo o rejeita como amante toleirão e inadequado, pega a maior parte da fortuna dele e o larga, deixando-o a refletir sobre sua culpa, em primeiro lugar, de ter se casado com ela por luxúria. Helene se torna o centro da cena social em São Petersburgo e detém considerável poder social, até que uma de suas intrigas sai errado. Ela morre em circunstâncias misteriosas – provavelmente por suicídio – depois de ser levada por sua sede de poder e riqueza a assumir compromisso de casamento com dois homens ao mesmo tempo. O irmão de Helene, o envolvente libertino Anatole, seduz Natacha, arruína seu noivado com Andrei, é expulso da localidade por Pierre (seu cunhado) e perde uma perna na batalha de Borodino.

Tal como resumi a narrativa, bastaria mudar os nomes e os cenários e a ação poderia se passar numa novela romântica da Harlequin ou num épico americano de costumes dos anos 1950. Mas há uma diferença fundamental: Tolstói trata com uma casta de aristocratas com os quais se identificava plenamente, admirando-os e partilhando os mesmos ideais. Quando Tolstói concebeu Guerra e paz, essa casta perdera sua função social original, mas não seus privilégios. Guerra e paz, porém, mostra a nobreza russa ainda a serviço de uma função militar vital, embora sua riqueza, fundada numa enorme população de servos trabalhando na ignorância e em condições similares à escravidão, com equipamentos antiquados e técnicas pré-industriais de agricultura e manufatura, vinha se dissipando rapidamente e seus privilégios tradicionais se tornando difíceis de justificar. O surgimento de forças sociais e tecnológicas que mal se discerniam na Rússia durante as guerras napoleônicas era plenamente visível na época em que Tolstói serviu na Guerra da Crimeia (1854-1856). A aristocracia russa por ele pintada ainda não se degenerou totalmente, mas já vem se esgarçando e Tolstói deixa isso muito claro.

No entanto, não se apontam as razões para esse declínio. Naturalmente, Tolstói estava longe de ser um defensor da modernização. Mais tarde, tornou-se uma espécie de radical social, dedicado ao pacifismo, ao vegetarianismo e a várias versões do pietismo cristão. Em Guerra e paz, tal como em Anna Kariênina, ele idealiza os efeitos redentores do trabalho na terra e, em seus idílicos quadros da vida em família ao final do livro, contrapõe a natureza pacífica desse ambiente à natureza beligerante da “sociedade”. Sua descrição da propriedade dos Rostov, depois que Nicolai a reconstrói, é uma pintura idealizada do que poderia ser uma fazenda bem dirigida, com servos tratados como seres humanos e não como gado, para uma nova vida na Rússia. Essa ideia era absurda, sem dúvida, mas não porque a abolição da servidão não fosse necessária, e sim porque a agricultura camponesa jamais poderia servir de base para uma sociedade moderna.

O sonho tolstoiano de uma comunidade baseada numa economia camponesa, mais eficiente graças ao respeito pela terra, fornece a dimensão utópica de Guerra e paz, mas também é um indicador da distância entre Tolstói e os escritores realistas ocidentais de meados do século. O sinal do realismo deles é a eliminação de qualquer fantasia utópica como alternativa às sociedades de classes para as quais escreviam.

III

Apontei como Tolstói invoca a história como tema e, ao mesmo tempo, reconceitualiza-a de uma forma que lhe retira qualquer força explicativa. Agora cabe dizer que ele faz algo muito parecido com suas ficções. Invoca os personagens arquetípicos das narrativas românticas e do romance histórico, ao mesmo tempo colocando-os num contexto em que guerra e paz são igualmente insuportáveis para eles. Assim, o que começa como análise social realista nas ficções de Guerra e paz termina como pastoral. Todos os principais personagens começam como representantes de sua posição e classe social e terminam ou destruídos por uma aceitação irrefletida do código social ou convertidos às alegrias da vida familiar no campo.

De fato, o final da narrativa de ficção é feito às pressas, simplesmente acrescentado como parte de um “epílogo” que se inicia com um longo discurso “sobre as forças operantes na história” e passa bruscamente para uma exposição das condições das famílias Rostov e Bezukhov em 1820. É como se Tolstói tivesse se entediado com o tema e até se irritado um pouco com os personagens. No final, ele descarta suas próprias criações como representantes insípidos de seu crescente arcaísmo.

Por exemplo, a Natacha que aparece em 1820, quinze anos depois de ser apresentada à sociedade, no começo do livro, passou por uma transformação física e espiritual que é totalmente infundada. Depois de páginas e mais páginas enaltecendo sua beleza e vitalidade – tendo como metonímia a esbelteza de pés e mãos, grandes olhos escuros e espírito impetuoso –, eis como ele a descreve, ao aparecer em 1820:

Natacha se casara no começo da primavera de 1813, e em 1820 já tinha três filhas, além de um filho que muito desejara e agora estava amamentando. Ela ficara mais larga e mais corpulenta, de modo que era difícil reconhecer nessa mulher maternal e robusta a esguia e vivaz Natacha de outrora. Seus traços estavam mais definidos e tinham uma expressão calma, suave e serena. Não havia em seu rosto nada da animação sempre refulgente que antes ali ardera e constituíra seu encanto. Agora o que se via geralmente eram apenas o rosto e o corpo, e sua alma não se apresentava à vista. O que se enxergava era uma mulher forte, fértil, fornida. Agora o antigo fogo raramente se avivava em seu rosto. Isso acontecia apenas quando, como era o caso naquele dia, o marido voltava ao lar ou um filho doente se recuperava... ou nas raras ocasiões quando acontecia algo que a fazia cantar, coisa que abandonara totalmente desde o casamento. Nos raros momentos em que o antigo fogo se avivava em seu corpo fornido e plenamente desenvolvido, ela ficava ainda mais atraente do que nos dias de outrora... Não se preocupava com seus modos ou com a delicadeza da linguagem, nem com sua toalete, nem em se mostrar ao marido com suas atitudes mais agradáveis ou em evitar incomodá-lo sendo exigente demais... O assunto que concentrava toda a atenção de Natacha era sua família.13

Natacha seria falsa, artificial, sem autenticidade, quinze anos antes, quando era a belle da sociedade moscovita? Por que agora “ela tinha demandas sobre seu tempo que só poderia atender renunciando à sociedade”? O que encontrou em Pierre que a converteu em sua acólita e em escrava de sua família? A motivação para tal metamorfose permanece obscura. Sabemos apenas que:

Desde os primeiros dias da vida de casados, Natacha anunciara suas exigências. Pierre ficou muito surpreso com a posição de sua esposa, para si totalmente inédita, de que todos os momentos da vida dele pertenciam a ela e à família. As exigências da esposa o espantaram, mas também o lisonjearam, e ele se submeteu a elas.

Terá assumido esse novo espírito junto com o peso que ganhou após o casamento? Tolstói se contenta em explicar a mudança de Natacha invocando o princípio geral de que “o homem tem a faculdade de se deixar absorver totalmente por um assunto, por mais trivial que seja, e não existe nenhum assunto tão trivial que o impeça de adquirir proporções imensas, se a pessoa lhe dedicar toda a sua atenção”. Simplesmente aconteceu que Natacha tomasse sua família como o principal objeto de sua atenção e, “quanto mais se aprofundava... no assunto que a absorvia, mais ele crescia e mais fracos e insuficientes lhe pareciam suas próprias capacidades, de modo que ela as concentrava inteiramente naquela única coisa, e ainda assim não conseguia fazer tudo o que considerava necessário”.14

É como se Tolstói sentisse um prazer perverso em destruir todos aqueles aspectos da personalidade de Natacha que haviam feito dela não só a belle da sociedade, mas também o objeto ideal do amor de tantos homens e mulheres. Na passagem que acabo de citar, Tolstói também faz alusão ferina às “discussões sobre os direitos das mulheres, as relações entre marido e mulher e suas liberdades e direitos”, que parecem incompreensíveis a Natacha. Tais discussões, observa Tolstói, são importantes “apenas para os que não veem no casamento nada além do prazer que os cônjuges obtêm entre si, ou seja, apenas os inícios do casamento e não toda a sua significação, que reside na família”.

Natacha não precisa de nada além do marido e da família. Foi-lhe dado um marido e ele lhe deu uma família. E ela não só não via necessidade nenhuma de qualquer outro marido melhor, mas, como todas as forças de sua alma estavam empenhadas em servir àquele marido e à família, não conseguia imaginar e não via nenhum interesse em imaginar como seria se as coisas fossem diferentes.15 

Os personagens de Tolstói são dilacerados por desejos, sentimentos, atitudes, convicções e aspirações paradoxais e contraditórios. Isso se aplica às duas figuras “históricas” mais importantes, Napoleão e Kutuzov: o primeiro aparece como um menino brilhante, mas ganancioso, o segundo como um velho cansado, mas obstinado. Porém isso se aplica especialmente aos principais personagens de ficção em Guerra e paz: Pierre Bezukhov, Nicolai e Natacha Rostov e Andrei Bolkonski. O caráter desses personagens é formado pela soma de inúmeros detalhes sobre o que sentem, o que querem, seus sofrimentos, seus momentos de alegria ou exaltação e, acima de tudo, sobre o que fazem. Pois todos eles, sendo aristocratas, dispõem dos meios materiais para dar vazão a seus desejos. Mas nunca ficam satisfeitos e estão sempre em movimento; e, movendo-se, mudam. É difícil crer, porém, que, ao mudarem, esses personagens se desenvolvam. Tolstói parece não contemplar a possibilidade de um tipo de materialização heroica de um potencial dado ao nascimento, à maneira do herói do Bildungsroman ocidental. O máximo que seus heróis podem esperar é o tipo de estabilidade e paz desfrutadas por Pierre e Natacha e por Nicolai e sua esposa Maria ao final do livro.

IV

Não que Guerra e paz tenha realmente um final. Ele apenas tropeça num fecho. É claro que muitos romances históricos se interrompem com o súbito anúncio de que a série de eventos narrados acabou e é hora de encerrar o relato. É o que acontece em Waverley, mas também em obras de história, com a designação arbitrária de um determinado evento numa longa série, como o ponto culminante da narrativa. Tolstói nota, de fato, que não existem começos nem fins na história, apenas um fluxo de acontecimentos que os historiadores recortam de diversas maneiras e a partir dos quais fazem relatos, de maneira totalmente arbitrária.

Na história, diz Tolstói, é como na astronomia e os problemas levantados pela descoberta do movimento da Terra em torno do Sol. “É verdade que não sentimos o movimento da Terra, mas, admitindo sua imobilidade, chegamos ao absurdo, ao passo que, admitindo seu movimento (que não sentimos), chegamos a leis.” O mesmo se dá também com a “história”: “É verdade que não somos conscientes de nossa dependência, mas, admitindo nosso livre arbítrio, chegamos ao absurdo, ao passo que, admitindo nossa dependência do mundo exterior, do tempo e das causas, chegamos a leis”.16 Isso parece sugerir que vivemos no dilema entre o que sentimos (ou vivenciamos) e o que sabemos. E a questão parece ser que o conhecimento das leis naturais não nos ajuda em nosso esforço de viver uma vida dotada de significado, em que o sentimento prevaleça sobre a razão e a vontade. Somos mais dependentes quando nos cremos livres e somos mais livres quando escolhemos nossa dependência – da natureza, da terra, de nosso cônjuge, de nossa família e do universo, tudo menos a sociedade ou o estado. Assim encontraremos aquela “paz” mencionada no título de nosso texto. Mas a paz não é o mesmo que a felicidade ou a satisfação do desejo. Na verdade, ela é a supressão do desejo, a capacidade de abandonar todos os projetos sociais, o tipo de calma desfrutada por um casal quando, após o jantar, depois de pôr as crianças na cama, os dois podem sentir prazer na contemplação de sua mútua adequação.

Se o relato de guerra em Guerra e paz é repleto de atividades, movimentos, conversas, intrigas e uma grande dose de violência, mas sem muitos incidentes, o mesmo se pode dizer sobre a narrativa de ficção da alta sociedade russa durante o período de guerra. Embora sejamos convidados a assistir à cena social seguindo os destinos de quatro famílias russas importantes durante o período de 1805 a 1812, não se pode dizer que aconteçam muitas coisas de natureza especificamente social. O conflito de classes, por exemplo, é apresentado não como intrínseco à estrutura social, mas como derivação de diferenças “naturais” primordiais entre a casta dos servos, de um lado, e a alta nobreza fundiária, de outro. Ainda que fosse um grande proprietário de terras, Tolstói dizia ter pouquíssimo entendimento dos servos, artesãos, escriturários e funcionários públicos da Rússia e praticamente esperança nenhuma de que houvesse uma melhoria de suas condições.

Mesmo os conflitos dentro da nobreza – entre os mais ricos e os mais pobres, entre as famílias antigas e os nouveaux riches, os senhores e seus administradores – são apresentados como questões de natureza pessoal ou familiar, desvinculados do tipo de transformações fundamentais da ordem social que um dia viriam a derrubar a autocracia czarista e conduziriam à Revolução Bolchevique. Tolstói era socialmente esclarecido (libertou seus servos, criou escolas para eles e foi um agitador, defendendo a reforma política na Rússia), mas o ponto de vista que molda Guerra e paz ainda era assumidamente aristocrático e pelo menos levemente eslavófilo.

Sempre há uma tendência de “trabalhar” os agentes históricos importantes a fim de lhes dar uma aura de heróis ou vilões no relato que o historiador elabora a partir de seus dados. Napoleão tem sido tratado com tanta frequência como figura dramática que é difícil pensá-lo a não ser como um mito. Tolstói estava ciente desse problema e se sentiu levado a tentar desmistificar Napoleão, tratando-o como homem comum à mercê de forças das quais não tinha consciência e não conseguia controlar. Ele converte todas as suas personalidades históricas em personagens. E faz – ou tenta fazer – o inverso com suas personagens de ficção, isto é, converte-as em personalidades. Pierre, Andrei, Nicolai, Natacha, princesa Maria, Helene Kuraguina, todos são apresentados como aristocratas... comuns. Não há nada de “heroico” neles. Não têm “personalidade” na acepção oitocentista do termo. O que têm são psiques – e, aliás, psiques especialmente complexas.

Finalidades da história 

O romance histórico do começo do século XIX foi fruto de dois desenvolvimentos que dificilmente se imaginariam um século antes: a transformação da história em ciência e o desenvolvimento da narrativa romanesca em gênero literário sério. Desde o Renascimento e ao longo de todo o Iluminismo, a historiografia era vista como um ramo da retórica e o conhecimento histórico como, acima de tudo, um instrumento pedagógico, uma maneira de ensinar a moral por meio de exemplos. No final do século XVIII, porém, a história foi removida da categoria das letras e passou a se vincular à filologia, à paleografia e à diplomacia. Então, no começo do século XIX, a história se estabeleceu como ciência, ganhou espaço nas universidades e recebeu a tarefa de fornecer uma genealogia dos novos estados nacionais que adquiriam forma na esteira das guerras napoleônicas. Essa nova ciência da história ficou oficialmente encarregada do estudo objetivo de eventos reais individuais e de sua descrição numa narrativa verídica (em oposição à narrativa de ficção). Deveria se separar da filosofia e da teologia e se limitar a descrever as coisas como realmente eram, e não como poderiam ter sido ou como gostaríamos que tivessem sido. Esta última tarefa foi entregue à “literatura” e, mais especificamente, à narrativa romanesca, gênero que, na origem, era majoritariamente escrito por mulheres e especificamente destinado a elas, em que a imaginação era autorizada a levantar voo, afastando-se do mundo prosaico da experiência comum e se refugiando num passado idealizado de aventura, amor e magia. Aristóteles diferenciara entre história e “poesia”, entre conhecimento do evento singular e conhecimento do universal. No século XIX, a história se contrapunha à literatura, como conhecimento do mundo real versus ficções de mundos possíveis. O fato histórico, a partir de então, passou a ser definido como o próprio oposto da ficção literária. Qualquer mistura desses dois modos era tão impensável quanto a mistura dos sexos.

Assim, quando publicou anonimamente Waverley, ou Passados sessenta anos em 1814, Walter Scott se desculpou por ter reunido o que Deus, o homem e a cultura haviam insistido em manter à parte. Apesar do sucesso imediato e universal do novo gênero, Scott se desculpou porque ele mesmo acreditava na historiografia nascente em sua época. Considerava que o conhecimento do passado devia se fundar numa pesquisa exaustiva das fontes originais e ele próprio baseou a parte histórica de seu livro na obra de estudiosos da história, literatura e folclore escoceses. Ele justificou a criação das aventuras do fictício Edward Waverley durante a rebelião escocesa de 1745 como recurso pedagógico capaz de facilitar a assimilação do tema histórico para o belo sexo. Confiava que os leitores não iriam confundir fato e ficção, história e romance, e traçou cuidadosamente a linha divisória entre eles. Mas, embora seu sucesso mundial tenha instaurado a legitimidade do novo gênero, os historiadores profissionais consideravam sua obra perigosa. A dignidade da história dependia de se manter intocada por qualquer tipo de “ficção” – literária, científica ou filosófica.

Tolstói não mostra nenhum vestígio desse respeito de Scott pelos historiadores profissionais. Pelo contrário, não só pretendia entender a história russa melhor do que eles, como também dizia compreender a natureza da realidade histórica melhor do que os historiadores e filósofos da história de sua época. Queria devolver vida ao passado, transmitir como era lutar numa batalha, ser ferido, marchar além dos limites da exaustão, arriscar-se à prisão ou à morte devido à incompetência dos líderes. E pensava que a arte podia chegar a isso melhor do que a história. Em Tolstói, não há nenhum romantismo na apresentação das cenas, sons, cheiros e gosto da guerra. Ele transmite o sentimento de camaradagem entre os homens em batalha e reconhece a emoção de situações extremas, como as batalhas de massa, as cargas de cavalaria e os combates corpo a corpo. Mas também mostra que o entusiasmo que os homens podem sentir ao entrar em batalha logo pode desaparecer, varrido por um fogo de barragem da artilharia ou um fogo da infantaria em massa. Tolstói nos oferece a “sensação” da guerra, mais do que a logística das campanhas e batalhas; oferece-nos o território do campo de batalha, mais do que o mapa que lhe daria transparência e racionalidade e o faria parecer mais organizado do que realmente era.

Tolstói faz a mesma coisa ao apresentar a sociedade. Mais uma vez, oferece-nos a sensação do território, não o mapa. Nessas partes do livro, ele queria transmitir como era ser aristocrata, pertencer à “sociedade”, ser russo, lidar com servos, passar o dia de tocaia numa caçada, ir à caça com cães e cavalos, duelar, apaixonar-se, casar-se bem ou mal, criar filhos, sofrer a morte do cônjuge, ser traído pelo ente amado. Ele pinta a vida da aristocracia russa por dentro, com simpatia e compreensão, mas não acriticamente. Mostra o antigo regime em seu derradeiro momento de grandiosidade, quando o czar conseguira inspirar o povo russo a defender o solo sagrado da terra materna, e a nobreza se mostrou à altura da emergência ao comandar o exército contra o invasor. Mas, do ponto de vista de sua própria época, “passados sessenta anos” desde 1805, Tolstói podia ver que a aristocracia russa estava com os dias contados. Em sua apresentação dos Rostov, ele mostra uma família nobre típica já acuada por dificuldades econômicas, com sua função social questionada e sua base social – dependendo da mão de obra dos servos – desgastada. O mesmo se passa com todas as outras famílias. Encabeçadas por tiranos envelhecidos de um ou outro tipo, têm como principal perspectiva de futuro a esperança de que as filhas se casem com algum grande proprietário de terras. No quadro da vida social russa pintado por Tolstói, há tão pouco romantismo quanto em seu quadro da guerra.

Em Guerra e paz, é o imperador Napoleão que a história castiga com uma espécie de loucura, em primeiro lugar por lhe conceder um sucesso militar que, na realidade, não merece; em segundo, por alçá-lo ao topo do poder político como imperador; em terceiro, por levá-lo a conceber uma campanha militar inexequível. A história fez tudo isso, mas sem nenhuma finalidade moral ou metafísica. E isso porque a “história” é apenas o nome que os homens dão às coisas como elas realmente são, as coisas que aconteceram no passado, estão acontecendo no presente e acontecerão no futuro. Como esses acontecimentos não exibem nenhum plano ou finalidade, qualquer conhecimento que se possa derivar do estudo deles é de tipo puramente localizado, contingente, concreto e limitado.

Assim, para Tolstói, a circunspecção é a melhor parte do conhecimento, tal como do valor. Os personagens admiráveis em Guerra e paz – o general Kutuzov, Pierre Bezukhov, Nicolai Rostov, sua irmã Natacha, a princesa Maria, o camponês místico Platon Karataiev – são, no fundo, ricos devido a qualquer sabedoria imaginável a que tenham renunciado. Afinal – ao término do romance –, depois que Napoleão tem de voltar a Paris, é deposto e exilado, depois que seu vencedor Kutuzov morre, depois que o czar Alexandre cai sob a influência de místicos e charlatães, depois que Moscou é reconstruída, depois que Nicolai e Maria se casam, depois que Pierre e Natacha são abençoados com quatro filhos, no final das contas pouquíssimo se ganhou em sabedoria humana e menos ainda em savoir-faire social. Pierre – o protagonista central do romance – parece aturdido como sempre com a realidade social; Natacha ficou adulta, mas dificilmente terá amadurecido; Nicolai resolveu seus problemas financeiros casando-se com uma mulher que aprecia bastante, mas não ama; o czar caiu no tipo de incompreensão reacionária da sociedade russa que fomentará uma revolta após a outra durante os cem anos seguintes, e assim por diante. A história não é algo que se entenda, é algo que se atura – quando se tem sorte.

Notas:

1 Liev Tolstói, “Drafts for an Introduction to War and Peace”, in Tolstoy, War and Peace: The Maude Translation, Backgrounds and Sources, Criticism, 2a. ed. Nova York, 1996, p. 1087. Todas as citações subsequentes foram extraídas dessa edição, doravante assinalada como WP. Este artigo foi publicado originalmente como “Contra il realismo storico”, in Franco Moretti (org.), Il romanzo, vol. V: Lezioni, Turim, 2003, pp. 221-37.
2 Eikhenbaum caracterizou a evolução das concepções de Tolstói sobre a história nos seguintes termos: “O anti-historicismo original de Tolstói lhe ditou uma ideia bastante modesta de uma crônica de guerra e família. Então, movido por preocupações da época, ele começou a transformar a crônica num poema histórico, num épico, e a introduzir toda uma série de noções histórico-filosóficas. Seu anti-historicismo se converteu em niilismo histórico, e sua crônica-romance se tornou um novo gênero, que nasceu da combinação da ação romanesca e de materiais históricos com a reflexão filosófica. O resultado foi um gênero negativo, na medida em que os elementos constituintes estavam em conflito entre si”. A seguir, Eikhenbaum afirma que “o romance de Tolstói não era um novo gênero”, mas uma combinação de duas formas correntes nos anos 1820 e 1830, o romance da vida familiar ou “do senhor rural” e o romance militar-histórico. Boris Eikhenbaum, “The Genre of War and Peace in the Context of Russian Literary History”, in WP, p. 1126.
3 WP, p. 537.
4 WP, pp. 537-8.
5 WP, pp. 671-2.
6 WP, pp. 886, 892.
7 WP, p. 664.
8 WP, pp. 1040-1.
9 WP, pp. 1040-1.
10 WP, p. 941.
11 WP, pp. 977-80.
12 WP, p. 873.
13 WP, pp. 1020-1.
14 WP, p. 1021.
15 WP, p. 1022.
16 WP, p. 1074.

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