1 de outubro de 2009

Jameson e forma

Identificando o estilo literário de Fredric Jameson como uma de suas realizações marcantes, Eagleton pergunta se suas ênfases formais também servem para evitar questões de conteúdo: moralidade, sexualidade, subjetividade.

Terry Eagleton

New Left Review


Tradução / Não há a menor sombra de dúvida de que Fredric Jameson é de fato não apenas um crítico eminente, mas um dos mais formidáveis, apto a ocupar seu lugar numa lista de nomes ilustres que vai de Edmund Wilson, Kenneth Burke, F. R. Leavis e Northrop Frye a I. A. Richards, William Empson e Paul de Man. Mesmo isso é limitar a apreciação a colegas anglófonos, ao passo que o verdadeiro campo de comparação tem amplitude muito maior. Nenhum acadêmico ou especialista na área dos estudos literários hoje em dia é páreo para a versatilidade de Jameson, sua erudição enciclopédica, brio imaginativo ou prodigiosa energia intelectual. Numa época em que a crítica literária, como tantas outras coisas, sofreu uma espécie de declínio e em que, de maneira desoladora, pouquíssimas figuras excepcionais ainda permanecem em campo, Jameson agiganta-se no horizonte como um bastião remanescente de uma época cultural de maneira geral mais admirável, um refugiado da era de Chklóvski e Auerbach, Jakobson e Barthes e que é, não obstante, absolutamente contemporâneo.

Mencionar o nome de Barthes, todavia, é indicar um modo pelo qual Jameson leva vantagem com relação a quase todos os seus confrères. Pois ele é certamente um dos mais requintados estilistas críticos numa era em larga medida desprovida de estilo. De acordo com a definição de Perry Anderson, Jameson é pura e simplesmente “um grande escritor”.1 Vejamos, por exemplo, este impressionante trecho de prosa de um ensaio intitulado “Towards a libidinal economy of three modern painters” [Para uma economia libidinosa de três pintores modernos], que integra a coletânea recém-publicada do autor, The Modernist Papers [Os papéis modernistas]. Jameson está examinando o que ele chama de “plano” ou “falta de relevo” nas pinturas de De Kooning, o que para ele significa “extensões de cor pintada ao longo das quais o olho desliza sem erguer sequer uma ondulação”:

É preciso imaginar, creio eu, um processo de arrombamento que se apodera da linha propriamente dita, emaranhando-a, como nos esboços a carvão, fazendo-a tremer e vibrar, despedaçando-a ritmicamente em sombreados de lápis, como tantos sobretons. Aqui alguma compulsão interna da linha, algum nervosismo primitivo, faz com que ela queira romper seus limites bidimensionais e produzir, a partir de sua própria substância interior, manchas que cooptam e se antecipam a seu adversário primal, a própria pincelada (...) Em De Kooning a linha se transforma, esparrama-se, alastrando-se em espinhaços e regatos de tinta, distintos ainda que paralelos, refratando a substância original em filamentos que têm diferentes densidades, alguns montanhosos e eriçados, outros escorrendo e gotejando tela abaixo em lágrimas que já não se parecem com as marcas e vestígios de maladresse. A linha é agora pincelada e cor; seu novo oposto estrutural, o “plano” é algo que acontece com esta última, mais do que um lugar de liberdade e de expressão particular e pessoal por seu próprio mérito.2

Alguns leitores talvez considerem isso um floreio exagerado: “literário” e extravagante demais para ter seu olho genuinamente fito no objeto visual. A minha própria sensação é a de que, como em todos os melhores momentos da escrita jamesoniana, essas linhas beiram uma consciência portentosa e pomposa demais acerca de seu próprio brilhantismo, desfraldando-se com todo o drama e entusiasmo crescentes do esplêndido período proustiano embora também com algo de seu tato e finesse, se não exatamente seu ar de singeleza e desafetação ou lucidez civilizada. O leitor sente, o que não ocorre com quem lê Proust, que está em ação aqui uma turbulenta energia linguística que, uma vez correndo desenfreada e incontrolável, poderia gerar alguns efeitos perturbadoramente frenéticos, até certo ponto como a pincelada de De Kooning ameaça explodir e transbordar seu conteúdo por toda parte. De fato, sugeri alhures que parte do perverso fascínio de Jameson por Wyndham Lewis –– o “brutal e entediante Wyndham Lewis”, nas palavras com que Leavis, de maneira bastante apropriada, se referiu a ele –– talvez se explique por detectar na agitada e convulsa prosa de Lewis uma espécie de caricatura selvagem ou horripilante versão da feição que seu próprio estilo literário poderia ter caso se desvencilhasse de todo decoro.3 No excerto que acabei de citar, todavia, a prosa de Jameson está em excelente forma, vigorosa o suficiente para arriscar o ocasional toque de inflação retórica sem o receio de perder sua formosura ou seu ímpeto. Se é que há alguma inflação em ação aqui, está no modo como a linguagem se empenha para projetar essas manchas e gotejos de tinta em alguma tela mais ampla de significado estrutural, sem prejuízo de sua especificidade sensória. A decifração das relações entre borrões de tinta está em consonância com a interpretação das relações entre certas forças e ideias conflitantes.

Veremos mais tarde como essa realização estilística, em que o sensível e o inteligível mesclam-se e confundem-se constantemente, é também na concepção de Jameson uma solução para o que ele julga ser o dilema central do modernismo. Enquanto isso, podemos observar que essa é também uma espécie de solução medíocre qualquer para o conflito entre a cultura pós-moderna com a qual segundo Jameson temos ao menos de conviver e a alta arte modernista na qual uma parte importante dele ainda se sente à vontade. O modernismo, ele comenta aqui, ainda gira em torno da linguagem, ao passo que o pós-modernismo, de modo geral, desloca o foco sensório do verbal para o visual. Ao escrever em estilo do alto modernismo –– de maneira tão indisfarçável –– acerca do pinturesco, então, o autor de Marxismo e forma4 e o deslumbrante crítico de cinema e de arquitetura que viria à tona mais tarde mostram-se, secretamente, em consonância.

Materialidade e significado

Ainda que o estilo de Jameson seja ímpar e original de uma maneira resplandecente, isso também deve significar, na opinião do próprio Jameson, que beira perigosamente uma forma de reificação –– pois é exatamente o que ele pensa do culto modernista do estilo individual, do qual o próprio Jameson é um herdeiro tardio. Mas se o estilo na escrita modernista pode tornar-se uma espécie de fetiche em seu hermetismo e falso imediatismo, bem como na forma como suga para dentro de si as energias do mundo a ponto de tornar-se por seu próprio mérito uma espécie de coisa pseudoanimada, é precisamente isso o que não ocorre com a escrita de Jameson, que busca à sua maneira dialética colocar em contato íntimo o imediatismo sensório e a reflexão conceitual.

Há no fragmento que citei anteriormente um extraordinário drama em operação, à medida que a tela de De Kooning ganha vida à guisa de uma grande guerra de forças antagônicas; e esse drama é encenado em outros termos nas próprias frases em si, que, como amiúde em Jameson, se estendem implacavelmente até que, justo no momento em que o leitor julga que sem dúvida elas devem ter ficado sem fôlego e se veem incapazes de seguir adiante e disparar uma única nova oração subordinada que seja, dão um último suspiro e, triunfantes, arrancam de suas profundezas aparentemente inexauríveis mais algumas afirmações inventivas e engenhosas. O excerto apresenta-nos também uma versão literal do modo como no próprio Jameson as ideias tornam-se materializadas, tal qual em De Kooning os conceitos se espessam e adensam em riscos de tinta, e o cabo de guerra e a tensão de ideias podem ser sentidos nas pontas dos dedos. Esse entretecimento de materialidade e significado é algo que interessa um bocado a Jameson, o materialista cultural, bem como é algo que a própria escrita de Jameson realiza. Poético na textura mas discursivo na estrutura, seu estilo torna-se, assim, uma alegoria de suas próprias preocupações.

Jameson revela, além disso, outra inesperada afinidade com Proust em seu extraordinário talento para dotar as ideias de um corpo sensório, traduzindo questões conceituais em termos visuais, dramáticos ou corpóreos. Ele não está muito interessado em análise lógica rigorosa –– que funciona numa escala por demais abstrata e maçante para o épico modo de pensar de Jameson. Há no estilo jamesoniano uma qualidade viciante, na medida em que seus períodos mal acabam de esgotar uma oração e já se põem a buscar incansavelmente a seguinte. Parte do perverso fascínio que sua escrita exerce está no fato de ter problemas em saber onde parar. Suspeita-se que parte do encanto que Jameson sente pelo marxismo, psicologicamente falando, é que a totalidade –– substituindo, entre outras coisas, o que ele vê como o absoluto perdido do modernismo –– é um limite no qual até mesmo a sua fome pantagruélica com relação a toda espécie de experiência deve finalmente se abrandar e cessar, um desejo que, em sua feição faustiana, não será satisfeito com nada menos que isso. Se a densidade semântica, as inflexões retóricas e o tom magistral da prosa jamesoniana são em geral “europeus”, o conteúdo eclético da escrita, em sua entusiasmada receptividade a quase qualquer tipo de material, é mais estereotipicamente americano.

É parte do prazer do leitor dos textos de Jameson que sua sintaxe pareça sempre manter o equilíbrio, embora perpetuamente em risco de desmoronar sob a tumultuada e febril produtividade de ideias com que tem de lidar. Em outras palavras, a forma preserva o controle e leva a melhor sobre o conteúdo, embora parte de nosso deleite diante dessas sensacionais montanhas-russas de frases é que ela mal dá conta de fazê-lo. O leitor, por assim dizer, se segura na cadeira enquanto vai sendo arrastado no íngreme aclive de uma extensa oração subordinada, depois balança precariamente em seu vértice durante um segundo antes de mergulhar no vertiginoso abismo de mais uma acidentada construção sintática, desfrutando com certo frisson de sobressalto os solavancos e a perspectiva de que pode acabar descarrilando por completo, ainda que seguro e confiante por saber que será entregue são e salvo em seu destino. O próprio Jameson considera que esse esforço para subjugar uma massa de materiais –– desajeitada e de difícil manejo –– de modo a lhe dar formato coerente é um traço característico do modernismo, escrevendo sobre a modernista “tentativa de reabsorver e reacomodar a contingência” –– “a contragosto, busca sempre transformar esse conteúdo escandaloso e irredutível em algo novamente parecido com significado”.5 Nesse sentido, também, o estilo de Jameson é alegórico dos dilemas com que lida, e propicia algo como uma solução implícita para eles.

Seria difícil imaginar Jameson escrevendo um extenso ensaio de análise política ou econômica, direto e convencional. O que o fascina, como uma espécie de fenomenologista da mente, é a empreitada de reinventar imaginativamente ideias, à medida que a prosa jamesoniana demora-se sobre seu sabor e textura. Na escrita de Jameson as ideias vêm saturadas de sensibilidade, e a sensibilidade em questão é tão marcante e notável quanto a de um poeta ou romancista excepcional. Jameson não é, como George Steiner, um hedonista do intelecto: o valor de verdade e a força prática das ideias não são de forma alguma irrelevantes para ele. A força de Jameson, contudo, não está em forjar novos conceitos –– embora ele o tenha feito, é claro ––, mas sim em nos propiciar correlatos objetivos imaginativos para o nosso conhecimento. Na primorosa expressão de Shelley acerca da tarefa do poeta, Jameson nos possibilita “imaginar aquilo que sabemos”. Um exemplo disso pode ser encontrado no último capítulo de Marxismo e forma, em que ele descreve o pensamento dialético como

pensamento à segunda potência: uma intensificação dos processos de pensamento normais de modo que uma renovação de luz arrebata o objeto de sua exasperação, como se em meio a suas perplexidades imediatas a mente tivesse tentado por pura força de vontade, por decreto arbitrário, erguer-se vigorosamente a si mesma por meio das alças de suas próprias botas (...) Esse é de fato o momento mais delicado no processo dialético: aquele em que todo um complexo de pensamento é alçado por meio de uma espécie de alavanca interior a um patamar mais elevado, em que a mente, numa espécie de troca de marchas, agora se vê disposta a tomar como resposta o que tinha sido uma pergunta, posicionando-se do lado de fora de seu esforços prévios de tal forma a considerar-se dentro do problema.6

Estilo como solução

Um dos temas centrais de The Modernist Papers é a ruptura entre ser e significado, existência e significação, que o livro enxerga, corretamente, como o aspecto que caracteriza o modernismo como um todo. Outrora os significados eram inerentes às coisas, feito unha e carne; agora, como o Ulisses de Joyce, o mundo parece cindido entre pedaços de matéria puramente contingentes e esquemas abstratos mas vazios. A síntese kantiana, em suma, deixou de fazer seu trabalho. O suspeito de sempre, a mercadoria, a um só tempo um fetichizado naco de material e uma forma de troca puramente imaterial, pode ser entrevisto à espreita na raiz do grande cisma. Embora o livro não o diga exatamente com todas as letras, é como se a sociedade capitalista fosse uma tosca obra de arte, sendo “ruim” universalmente e particularidade “ruim” juntas. O mercado é composto tanto por apetite como por abstração –– daquilo que não é capaz de ir além do brutalmente sensual e específico, e daquilo que não é capaz de tolerar em sua constituição nenhuma partícula de matéria. Pode-se alegar que o que permite a Marx rejeitar essa dualidade é o fato de que ele é ao mesmo tempo um humanista romântico, com paixão pelo sensório particular, e um filho do Iluminismo universalista.

Na concepção de Jameson, o absoluto que o modernismo consegue apenas vislumbrar pelo canto do olho é precisamente essa extinta unidade de forma e conteúdo; todavia, seria igualmente plausível afirmar que uma parte da arte modernista não busca tal unidade, mas sim a forma pura. Jameson considera acertadamente o símbolo romântico como uma solução duvidosa e desonrosa para esse problema. Quanto ao realismo literário, que em sua versão hegeliana ou lukácsiana também era capaz de discernir o inteligível dentro do sensível, apreendendo o típico no individual, essa fusão particular dos dois domínios Jameson vê, com rara perspicácia, como algo historicamente solapado pelo (entre outras coisas) imperialismo, à medida que a vida da nação metropolitana é cada vez mais determinada por forças que estão além do alcance de seu escopo cognitivo, e que portanto já não podem ser totalizadas em estilo realista clássico. A tradução que o próprio Jameson realiza de conceitos em imagens materiais é uma outra maneira de reconciliar o sensível e o inteligível. A escrita em sua forma mais flexível, como Adorno também sabia, resgata a contingência de significado sem que por meio disso acabe exaurindo suas forças até matá-la. Se recruta o particular para o geral, o faz de maneira tal que lhe permite oferecer alguma resistência. Ademais, propicia esse retorno da alienação não apenas como uma imagem ou epifania, mas como prática e processo, na faina material e no prazer da escrita em si. Escrever, aqui, é uma imagem de labuta não alienada; mas pode também proporcionar um antegozo de emancipação na medida em que é “uma figura simbólica da pura atividade e da produção como tal”.7 É, por assim dizer, uma imagem da libertação das forças produtivas, uma vez que o próprio estilo de Jameson torna-se alegórico de uma futura abundância material em sua quase inesgotável profusão.

Corporificações

Como tal, o próprio estilo torna-se utopia política. No registro mais antigo e coletivo de retórica, o corpo já é um significante: a sensação física, argumenta Jameson, “é secretamente transparente, e sempre significa alguma outra coisa”.8 Ele poderia ter acrescentado que o que a era moderna conhece como estética surge como uma derradeira tentativa de codificar a sensação desse modo, a fim de tornála inteligível. Como uma espécie de lógica dos sentidos, busca alguma ordem racional na existência sensória.9 O modernismo surge então das ruínas desse sistema semiótico, à medida que a percepção deixa de significar conforme certas convenções compartilhadas e o corpo torna-se, por conseguinte e em conformidade, opaco. O nascimento do “estilo” é, portanto, a emergência do corpo privatizado, e ambos são, de diferentes maneiras, reificações. Seria possível, pois, completar essa narrativa sugerindo que a escrita, pelo menos a da variedade poética e jamesoniana, é signo e corpo juntos, e por isso pode figurar como uma transcendência do que Jameson vê como as várias soluções falsas do modernismo para o divórcio entre ambos.

Roland Barthes, em O grau zero da escrita, comenta que o estilo literário é uma empreitada corpórea, que mergulha diretamente nas profundezas viscerais do corpo; e Jameson também associa o estilo ao corpo. De fato, numa extraordinária metáfora vampiresca, ele fala ao longo de algumas páginas (frustrantemente obscuras) sobre A montanha mágica de Thomas Mann, com seu retrato do corpo enfermo, do modo pelo qual a leitura “pode beber o sangue do corpo, por assim dizer (...) e tomar emprestada a concretude deste último de modo a dotar-se de densidade”.10 O lugar disso, entretanto, é junto ao que Jameson vê como o corpo monádico, narcisista e egocêntrico do leitor moderno, afastado do mundo como a obra de arte modernista e recolhido a uma certa distância privada e contemplativa. Contudo, da mesma forma como o estilo é tanto uma linguagem pública como um idioma pessoal, também Jameson prefere considerar o corpo menos como um interior vedado do que como uma espécie de metáfora para o espacial. Jameson está, portanto, apto a vinculá-lo a outros sistemas espaciais, por exemplo os geopolíticos, que, dado seu status abstrato, são inteligíveis em vez de sensíveis. Em The Modernist Papers, Jameson faz isso acima de tudo no caso de Rimbaud, formulando uma ousada analogia entre a “fermentação” de todo um sistema geopolítico e a do corpo adolescente. O corpo deixa, assim, de ser um dos dois polos de um mundo dividido –– a parte material, privada ou invididual, em comparação com a geral e conceitual –– e se torna, em vez disso, um meio de reduzir essa diferença, preencher essa lacuna. Como tal, resiste ao que Jameson vê como redutibilidade somática do modernismo, com seus inefáveis fragmentos de sensação dos quais o significado foi expulso. O modernismo apresenta um problema para o qual corpo e estilo são, ambos, soluções.

Na obra de Michael Foucault, o corpo e seu prazeres acabam por fazer as vezes da categoria do sujeito, pelo qual Foucault nutre particular aversão. Tal deslocamento não é exatamente o que se dá no caso de Jameson, que não considera o sujeito uma forma de autoencarceramento; entretanto, por vezes sua repugnância pela “interioridade” não difere muito da do próprio Foucault. Jameson, também, revela uma curiosa hostilidade com relação à subjetividade “profunda”, embora ele mesmo demonstre uma razoável quantidade dela. Com uma intensidade moral atípica desse flagelo da moralidade, sem falar num vago eco da estética soviética da década de 1930, ele menospreza e rejeita por “pernicioso” todo o projeto modernista de obstruir a objetividade bloqueando-a “contra uma agora morta e inerte objetividade: gerando todo um novo campo em que toda uma nova literatura de interioridade e introspecção pode florescer”.11 Em outra parte de The Modernist Papers, Jameson chega a tachar de puramente ideológica toda a problemática do sujeito e do objeto, posição estranha para um autor cuja obra invoca com tanta frequência o conceito de reificação. A ideia do sujeito expressivo, ele pondera, já é arcaica no tempo de Baudelaire.

Ainda assim o modernismo é tanto uma fuga do sujeito quanto um chafurdar em suas profundezas, e há um sentido em que isso, também, é encenado no estilo literário de Jameson. A esse respeito, o que é impressionante em sua escrita é a maneira como combina uma intensa vida dramática e afetiva com uma curiosa espécie de impessoalidade, até mesmo anonimato, em que essas guinadas retóricas e gestos emotivos parecem pertencer antes à escrita propriamente dita e não a algum sujeito expressivo por trás dela. Esse sujeito está tão morto para Jameson como para Baudelaire, o que pode ser parte do que atrai Jameson para um modernismo isento de sujeito. Todavia ele não está, como certo pós-modernismo, pronto para prescindir do “afeto”, que se separa do sujeito e em vez disso se transfere para a linguagem em si. Vem à mente a distinção de Eliot entre “emoção” –– a matéria crua na raiz do poema –– e “sentimento”: as qualidades puramente textuais dentro das quais ela é refinada. Também vem à lembrança a visão bradleyana de Eliot de um mundo no qual fervilham sensações que, todavia, não pertencem à consciência de alguém em particular. Há em ação aqui, em outras palavras, uma espécie de afetividade desprovida de sujeito, que permite ao autor levar uma existência vicária dramática e emocional em sua escrita, enquanto permanece, em termos psicológicos, em larga medida oculto. Pode-se alegar que ele é modernista na medida em que emprega um estilo elevado, singularmente individuante, mas seu estilo é entre outras coisas um modo de automascaramento; e que ele é um pós-modernista porque é fascinado pela ideia de ver-se livre da tirania da subjetividade profunda. O que ambos os objetivos assumidos têm em comum é a perspectiva de uma fuga do sujeito –– seja camuflando-o ou abolindo-o.

Sujeitos anônimos

Jameson encontra algo da ideia eliotiana de impessoalidade em Baudelaire, observando que “à medida que o putativo ‘sentimento’ ou ‘emoção’ vai sendo lentamente apresentado em palavras e expressões, mostrado em versos e estrofes, passa por uma transformação a ponto de ficar irreconhecível, torna-se perdido para o léxico psicológico mais antigo”; “conforme é transmutado em um texto verbal, deixa de ser psicológico ou afetivo em qualquer acepção da palavra, e agora existe como outra coisa”.12 Pode-se detectar tanto um toque de alívio como de inadequada precipitação na frase com que Jameson arremata o comentário: “Desse modo, com essa menção, agora deixaremos para trás a psicologia”. Supomos que não é algo a ser despachado na lata de lixo da história de maneira tão sumária assim.

O problema é chegar além do estilo fetichizado ou frase de arte do modernismo sem tombar em algum vazio anonimato pós-moderno. Em outros termos (ainda que não tenham sido os usados pelo próprio Jameson): o vívido fragmento sensório ou o estilo extremamente trabalhado e ornamentado do modernismo são resistências à reificação –– a um mundo de forças impessoais, determinantes ––, mas também são reificações em si mesmas. É exatamente isso que Jameson registra de forma tão magnífica em sua análise da ficção de Conrad em O inconsciente político – a narrativa como ato socialmente simbólico –– o fato de que o impressionismo subjetivo do estilo do autor é simplesmente a outra face de uma espécie de positivismo, para o qual a realidade é fixa e inerte. O papel do primeiro é propiciar um grau de compensação utópica para as degradações do último, cobrindo com uma camada de brilho superficial um reino de objetos mortos e sem sentido. Essa é, então, uma falsa solução para um dilema para o qual o estilo de Jameson fornece uma solução verdadeira, buscando, o que de fato ocorre, ser tanto afetivo quanto impessoal. Raras vezes uma forma de escrita crítica foi ao mesmo tempo tão impertinente e importuna e inexpressiva –– tão repleta de floreios teatrais e emotivos, ainda que revelando tão pouco do sujeito. Pode-se objetar que essa reticência pertence simplesmente aos protocolos da escrita acadêmica, sem nenhum outro significado além desse. O que é diferente do funcionamento desse tipo de escrita, contudo, é o senso de uma paixão fortemente subjetiva deslocada dentro da própria linguagem. Também é verdade, como veremos mais tarde, que o sujeito da escrita raramente se revela na forma de juízos pessoais. Na obra de Jameson –– como em, digamos, Edward Said –– há pouco do senso de uma voz defendendo de forma passional uma posição pessoal.

Um fetichismo de estilo deve claramente ser evitado; mas também deve ser evitado o seu oposto, uma espécie de escrita automática que parece ter sido inteiramente desatrelada de qualquer sujeito e que simplesmente rodopia sozinha num vazio. É assim que Jameson vê a linguagem de Ulisses –– como palavras que ninguém está falando tampouco pensando, mas que numa espécie de “textualização autística” existem simplesmente como unidades impressas numa página. Não é acidente que o estupendo romance de Joyce está repleto de fofocas e boatos, que também são declarações sem fonte de origem. Mas há também o tipo de voz anônima coletiva que Jameson encontra no povo dos camundongos de Kafka, testemunhas “objetivas sem a menor falta de empatia”, que portanto combinam impessoalidade e afeto, e cujo anonimato não é de ordem despersonalizada, mas sim comunal.13

Há, contudo, algo da espécie “ruim” de anonimato no próprio Jameson, nos momentos menos impressionantes de sua escrita. Em sua melhor forma, o estilo de Jameson tem a agilidade de um pugilista peso-pesado capaz de mover seu corpanzil com extraordinária desenvoltura. Em seus momentos mais fracos, há um surpreendente contraste entre a sensibilidade das percepções individuais e o movimento implacável e elefantino das frases em si. De certo modo Jameson está aprisionado dentro dos limites de seu estilo bem como corporificado nele, incapaz de escapar de sua imponente mas por vezes bastante enfadonha postura retórica para redigir uma frase mordaz, contar uma piada, mudar de registro ou adotar um tom coloquial. Falta a seu estilo margem de manobra. Jameson seria um excelente romancista, mas um pavoroso dramaturgo. Se a sua escrita é inexpressiva em um sentido positivo, refutando o mito de dar voz a uma experiência pessoal direta e não mediada, pode também ser inexpressivo em um sentido mais pejorativo, tanto uma camisa de força retórica quanto um meio sinuoso. Mais tarde veremos que, como uma forma de defesa psíquica, pode também ser uma armadura e uma carapaça.

Amoralidade?

Em um determinado momento de The Modernist Papers, Jameson registra sua crença de que as categorias com as quais vem lidando (subjetivo e objetivo, psicanalítico e social e assim por diante) são, em todo caso, artificiais. De certa forma isso é como afirmar que as guerras por territórios possuem somente um grau ínfimo de realidade, uma vez que o planeta propriamente dito não reconhece fronteiras. Mesmo que sejam teoricamente infundadas, tais distinções são bastante reais. Mas a bem da verdade não são teoricamente infundadas, e não podem ser amalgamadas da maneira tão suave como Jameson imagina. De fato, a afirmação em si pode ser lida como um gesto defensivo, parte de sua aversão pelo fenômeno todo da subjetividade. O sujeito não é simplesmente a outra face do objeto.

Conforme aprendemos com a obra de Slavoj Žižek, é precisamente isso que desestrutura e desfaz a disposição objetiva das coisas, é isso que está deficiente, torto, importuno, deslocado e descojuntado. É a negação dessa dualidade que é ideológica, não sua asserção.

A suspeita de Jameson com relação ao “profundo” sujeito individual do modernismo anda de mãos dadas com sua animosidade para com a moralidade. Há em The Modernist Papers uma inesperada referência a Vice [vício, imoralidade], mas no fim das contas fica claro que é um erro de impressão para Vico. Subjetividade, moralidade, a vida pessoal ou interpessoal: em Jameson esses conceitos são pontos nevrálgicos, lugares onde a temperatura emocional da prosa é momentaneamente elevada e, como tal, suspeita-se, sintomática de algo a ser evitado a todo custo. Sem dúvida essa é uma das razões da afeição e inclinação de Jameson por alguns dos produtos mais impessoais do pós-modernismo, a despeito de sua convicção de que tal cultura representa o tardio florescimento de um sistema político a que ele se opõe. Já que em outro livro divergi da aversão de Jameson pela moral, não tenciono ensaiar esse argumento aqui.14 Quero, pelo contrário, sugerir a relevância dessa alergia à ética para questões de forma e estilo em sua obra. O ponto essencial em jogo aqui é uma questão de prática crítica, não de perspectiva filosófica. Pode-se afirmar que a forma opera na obra de Jameson entre outras coisas como uma espécie de defesa psíquica contra o ético, no sentido do conteúdo emocional, psicológico e comportamental.

Mas o problema crucial não é apenas se Jameson deveria dar mais crédito ao ético; é, antes, que sua recusa em fazê-lo resulta em uma inadequada e desmedida rejeição do aspecto empírico ou fenomenal da obra literária. De maneira semiestruturalista, a presença empírica da obra é agrupada e classificada com excessiva rapidez. Quem lê os ensaios sobre Thomas Mann em The Modernist Papers, com suas maravilhosamente inovadoras investigações sobre ironia, alegoria, mimese, polifonia, gênero, estrutura narrativa e assim por diante, fica perplexo diante da constatação de que Jameson diz muito pouco sobre o que o leitor comum, mesmo o leitor comum de esquerda, vai de fato levar de A montanha mágica e Doutor Fausto. O que aconteceu com o conteúdo explícito desses romances –– com os temas de doença, sofrimento, amor, mal, insensatez e absurdo, humanismo, Eros, mortalidade, barbárie, sacrifício? Por que Jameson parece tão avesso e relutante em atacar de frente essa temática tão trivial, dizendo-nos o que pensa acerca de questões tão importantes, qual sua posição, que juízos ele mesmo faria sobre os vários temas urgentes que vêm à baila? Ao longo de The Modernist Papers, bem como em outras partes de sua obra, Jameson lida com essas questões de maneira algo esnobe e soberba, referindo-se com certo desdém às interpretações-padrão de Kafka (grosso modo, edipismo, burocracia e religião) e propenso, já em O inconsciente político, a descartar, com presunçosa petulância, noções como personagem, evento, enredo e significado narrativo, que desprezou como uma porção de “falsos problemas”.15

Limites do historicismo

O modo esquivo como Jameson contorna esses fenômenos é duplo: é formalizar de um lado e, de outro, historicizar. Essas duas operações podem em seguida ser conciliadas, em teoria e de maneira ideal, no que Jameson, imitando o exemplo do linguista Louis Hjelmslev, chama de “conteúdo da forma”. Se é possível revelar que a forma por si só secreta conteúdo histórico ou ideológico –– e mostrar como isso se dá talvez seja a maior façanha de Jameson ––, então pode-se abrir uma passagem desde a forma ou estrutura até a história ou política que não tenha de percorrer o “conteúdo” compreendido em seu sentido moral, empírico ou psicológico. Em sua feição menos louvável, esse método resulta em algo como o paradoxo que o próprio Jameson detecta na poesia de Wallace Stevens: “uma espantosa riqueza linguística por um lado e, por outro, um empobrecimento ou oco de conteúdo”. Tal método pode também resultar menos em historicizar o conteúdo do que relegar o conteúdo a um mero momento histórico passageiro. Pode envolver um deslocamento ou supressão do conteúdo empírico em vez de uma reescrita do conteúdo –– uma reescrita que envolveria dar-lhe mais crédito do que Jameson geralmente está preparado para fazer. Como a maioria dos historicistas marxistas, Jameson imagina que devolver traços permanentes da condição humana, tais como doença ou mortalidade, a seus contextos históricos é sempre e em todo lugar a manobra mais iluminadora a ser posta em prática. Mas por que deveria ser assim? O lendário visitante de Alfa Centauro não ficaria mais perplexo com o fato de que todos os seres humanos sem exceção têm de morrer do que com o fato de que a morte não era para os antigos romanos o que é para os californianos de hoje em dia? Jameson tem uma característica reserva com relação a tudo que não pode ser prontamente disposto em termos estruturais, esquemáticos, históricos ou impessoais. É, talvez, o equivalente esquerdista do vigoroso medo que o burguês tem do sentimento pessoal. Ainda assim, um dos poucos benefícios de uma era de derrota política para a esquerda é que os limites do político, bem como sua continuada relevância vital, podem ser reconhecidos de maneira mais franca e sem rodeios.

Seria demorado demais mostrar em detalhes que o que Jameson chama de seu “historicismo absoluto” é uma concepção equivocada.16 Alguns breves tópicos terão de ser suficientes. Em primeiro lugar, qualquer historicismo deve incluir pelo menos um preceito –– “historicizar sempre!” ––, que é axiomático e, como tal, isento de sua própria injunção historicizante. Nenhum historicismo pode, portanto, ser absoluto. De qualquer modo, se um historicismo supostamente absoluto abarca tudo, isso inclui as leis da geometria? Ademais, o historicismo não é de forma alguma uma atividade inerentemente radical, como Jameson parece supor; de Burke a Oakeshott, boa parte do historicismo esteve politicamente à direita. São os adversários esquerdistas desses ideólogos que via de regra recorreram a valores universais contra valores desenvolvidos historicamente. Nem todos aqueles que colocam obras de arte em seu contexto histórico são radicais; nem todos os antirradicais são formalistas. A discussão fundamental não é entre os que contextualizam historicamente e os que não o fazem, mas entre leituras mutuamente antagônicas da história em si –– entre, digamos, a história como a narrativa de um gradual processo de iluminação e a história como um conto de luta e escassez.

Há muitas continuidades importantes na história humana, juntamente com muitas transformações perniciosas. A julgar pelo que os registros históricos contam do que aconteceu até o momento, os seres humanos parecem considerar que a sujeição a uma lastimável exploração é um estado de coisas um tanto desagradável e ofensivo, continuidade que os esquerdistas deveriam valorizar em vez de demolir. O historicismo é geralmente mais atento à diferença do que à repetição, e por isso fracassa no que tange a tirar proveito desses fatos. Além disso, há muitos aspectos na nossa composição material ou ser-espécie que são relativamente inalterados, e compete a qualquer materialismo autêntico reconhecer esse fato. Os materialistas históricos não bancam os ingênuos para fazer o jogo dos conservadores aceitando o fato de que, digamos, embora o pesar pela morte de alguém assuma uma variedade de formas históricas, há um sem-número de fatores que um enlutado moderno tem em comum com um lamuriento antigo. A noção de que há algo politicamente perigoso em tal reconhecimento –– de que deixa entrar sub-repticiamente pela porta dos fundos o espectro de uma invariável natureza humana –– é simplesmente um infundado fantasma historicista ou um bicho-papão culturalista.

A obra de Jameson é rápida demais para substituir explicação histórica por julgamento moral e político, como se ambos fossem mutuamente excludentes. Do começo ao fim de Ideologies of Theory [Ideologias da teoria], por exemplo, ele se mostra particularmente nervoso com relação às reivindicações de verdade envolvidas em tais julgamentos, e a certa altura chega a sugerir que as categorias de correção e incorreção teórica devem ser abandonadas em favor de uma preocupação com a força pragmática e a função ideológica de uma posição intelectual. Ele realmente gostaria de dizer isso categoricamente acerca do racismo ou fascismo? Jameson é, em suma, historicista de todas as maneiras que Althusser abominava, ao passo que é anti-humanista em todos os sentidos que Althusser admirava. Escrevendo no mesmo volume sobre versões rivais da obra de Gramsci, Jameson rejeita, porque “frívola”, a tentativa de determinar qual das interpretações conflitantes é verdadeira, e inclusive decora com aspas a palavra “verdadeiro”, à maneira de um crítico cultural principiante. Em outra parte do livro, sugere que não existe um “corpo humano pretederminado” como tal, mas sim “toda uma gama histórica de experiências sociais do corpo”.17 Entretanto, segundo quais critérios decidimos que essas experiências são todas de um fenômeno chamado corpo, e não de alguma outra coisa?

Outro hábito de Jameson é formalizar conteúdo moral a partir do nada, do inexistente, o que ele faz em diversos capítulos de The Modernist Papers. Ele o faz, também, em seu formidável ensaio sobre Lorde Jim de Conrad em O inconsciente político, no qual arranca do estilo impressionista do romance toda uma história de reificação e racionalização capitalistas. Obras de arte modernistas, que por vezes são bastante pobres em conteúdo, são portanto especialmente hospitaleiras ao método de Jameson, por mais negativo que ele possa sentir-se acerca da carga ideológica dessas obras. De fato, elas podem tornar-se alegóricas do próprio procedimento crítico de Jameson, como quando ele escreve sobre uma narrativa de Kafka que “não é de fato para ser compreendida como um drama interpessoal”, mas como “ela mesma somente uma projeção do sistema lógico”.18

Ausências eloquentes

Essa atenção ao “conteúdo da forma”, como já sugeri, talvez seja a mais notável contribuição de Jameson à crítica. O título do livro que primeiro colocou Jameson em evidência, Marxismo e forma, parece deliberadamente provocativo e programático a esse respeito –– um calculado semioxímoro, similar a, digamos, Positivsmo lógico e angústia, no contexto de uma crítica marxista muito pouco afeita a tratar a forma artística com alguma dose de sensibilidade. A noção de conteúdo da forma é uma outra maneira por meio da qual Jameson consegue conciliar significado e materialidade, como (por exemplo) no ensaio sobre três pintores modernos, em que trata o uso que Cézanne faz do ocre como uma espécie de ideologia por seu próprio mérito. A forma –– a organização sensória da obra, o jogo de seus significantes ou a largura de suas pinceladas –– tem um estofo abstrato ou conceitual conhecido como conteúdo histórico; e ambos são tão indissociáveis quanto razão e sentimento no estilo literário do próprio Jameson.

No entanto, assim como Jameson distingue uma forma de repressão no âmago de uma tela de Cézanne, também suas próprias e assombrosamente ousadas reescritas de obras de arte em termos de forma, estrutura e história –– em que tais obras são apartadas quase ao ponto de ficar irreconhecíveis –– pareceriam baseadas numa repressão do objetivo, do empírico e do psicológico, todos os quais precisam ser banidos, com rigor e quase com desdém, por esse pensador de resto muitíssimo generoso e inclusivo. Há, por exemplo, muito pouco sobre sexualidade na oeuvre.19 A crítica de Jameson, portanto, produz um objeto revigorantemente descontínuo vis-à-vis os textos conhecidos do humanismo liberal; contudo, ao fazê-lo, esse hegeliano devoto arrisca-se a abandonar sua própria injunção característica, que é não simplesmente cancelar ou negar, mas preservar e negar ao mesmo tempo. O modernismo em particular suscita em Jameson uma veemente veia de anti-humanismo, e isso em um devoto de Lukács que jamais foi muito afetado pelos althusserianos. Os interiores herméticos e superaquecidos do modernismo são rejeitados com uma sintomática intensidade de afeto, num estilo de prosa que de resto parece construído para afastar qualquer sentimento muito pessoal.

É em grande medida por causa da reticência de Jameson com relação à existência ética ou subjetiva que “sabedoria” não é um termo que associaríamos de imediato a ele, como faríamos com Bloch, Benjamin e Adorno. É preciso lembrar, entretanto, que a repressão é o que nos permite falar –– que a cegueira é muitas vezes o que produz o discernimento. São, entre outras coisas, os silêncios de Jameson, seus pontos fracos, cegueiras de entendimento e omissões que lhe possibilitaram produzir a mais extraordinária e original obra de análise cultural de nosso tempo. Para nós leitores, pelo menos, é um preço pequeno a pagar.

Notas

1 Perry Anderson, The Origins of Postmodernity, Londres 1998. No Brasil: As origens da pósmodernidade. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.
2 Fredric Jameson, The Modernist Papers. Londres e Nova York 2007, pp. 256 e 257. Doravante MP.
3 Eagleton, Against the Grain, Londres e Nova York 1986, p. 67.
4 Publicado em 1971 nos Estados Unidos (Marxism and Form: Twentieth Century Dialectical Theories of Literature, Princeton: Princeton University Press) e lançado no Brasil com o título Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século 20. Tradução de lumna Maria Simon, Ismail Xavier e Fernando Oliboni. São Paulo, Hucitec, 1985. (N. T.)
5 MP, p. 229.
6 Marxism and Form, Princeton, 1971, pp. 307, 308.
7 MP, p. 186.
8 MP, p. 229.
9 Ver Eagleton, The Ideology of the Aesthetic, Oxford 1990, capítulo 1.
10 MP, p. 62.
11 MP, p. 241.
12 MP, p. 225.
13 MP, pp. 111-2.
14 Ver Eagleton, After Theory, Londres 2003, p. 143n. No Brasil: Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Tradução de Maria Lucia Oliveira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.
15 Jameson, The Political Unconscious, Londres e Nova York 1981, p. 242. Edição brasileira: O inconsciente político – a narrativa como ato socialmente simbólico. Tradução de Valter Lellis Siqueira. Revisão de tradução: Maria Elisa Cevasco. São Paulo, Ática, 1992.
16 MP, p. xiii.
17 Jameson, Ideologies of Theory, pp. 652, 358, 344.
18 MP, pp. 103-4.
19 Ver, porém, o ensaio “On the Sexual Production of Western Subjectivity” [Sobre a produção sexual da subjetividade ocidental], em Ideologies of Theory.

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