Bilal Zenab Ahmed
Jacobin
Uma marcha de dezembro de 2011 no Iêmen. shehabart1 / Flickr |
Tradução / Na semana passada, recebi uma mensagem preocupante de um amigo no Iêmen. "A situação é desesperadora", disse-me ele. "Os bombardeios vão continuar por pelo menos mais seis meses. Haverá escassez devastadora de produtos básicos.. Meus filhos estão com medo e eu não sei o que fazer."
Mensagens como esta tornaram-se comuns, assim como a raiva que o acompanha. Como é possível que dentro de cinco anos, passamos de um impulso revolucionário impressionante, com uma ampla base na sociedade iemenita, para aviões de combate sauditas a bombardearem grandes áreas do país, enquanto os Houthis consolidam-se no poder?
Devido à marginalização do Iêmen - é o país mais pobre do mundo árabe - agora há poucos especialistas anglófonos confiáveis sobre o país. Após a queda de governos revolucionários durante a Guerra Fria, tem havido muito poucos interesses geoestratégicos para atrair o interesse ocidental.
Muitos têm apenas o tempo suficiente para esboçar o mínimo sobre o que está acontecendo. Interações com âncoras e editores são geralmente da seguinte forma:
Pergunta: O que você pode nos dizer sobre os Houthis?
Resposta: Os houthis são uma aliança de militantes tribais baseados em Saada, que é uma governadoria no norte do Iêmen. Analistas mainstream insistem que são nada mais do que procuradores iranianos. No entanto, a história é mais complicada.
Muita gente acredita que o deposto presidente Ali Abdullah Saleh sentiu-se ameaçado pelo vasto apoio religioso e tribal dado a Hussein Badreddin al-Houthi, o líder da organização “Juventude Crente” (JC), que havia antes dos Houthis e da qual o movimento surgiu, a JC começou a operar no início dos anos 1990, preocupada, sobretudo, com projetos educacionais e culturais para fazer reviver o xiismo zaidista.
Mas Saleh temia que os Houthis viessem a declarar al-Houthi um novo Imã xiita zaidista e que ele passasse a comandar uma revolução tribal que começaria no norte do Iêmen. Em 18 de junho de 2004, a organização “Jovens na Grande Mesquita de Saada” organizaram manifestações em repúdio à invasão do Iraque pelos EUA e à repressão por Israel contra a Intifada de Al-Aqsa. Aquelas manifestações foram parte de uma onda muito maior de protesto dos iemenitas.
Em resposta, as forças de Saleh atacaram. Eles mataram um grande número de seguidores de al-Houthi, ofereceam uma recompensa por sua captura, e lançaram grandes operações de combate no norte do Iêmen.
Mas a estratégia não deu certo. Al-Houthi foi assassinado em setembro de 2004 e seus seguidores organizaram-se em torno dos seus irmãos. O movimento rapidamente se tornou uma insurgência armada, ativa num prolongado conflito, que o Departamento de Estado dos EUA, em 2010, chamou de “A Guerra de Saada”. Adiante, participaria no que se tornou conhecido como a Revolução Iemenita de 2011 – que aconteceu e cresceu no bojo do que se chama “Primavera Árabe”.
“Os Houthis” tomaram o poder como um dos resultados do fracasso do governo pós-insurreição que EUA e Arábia Saudita organizaram em torno do ex-vice-presidente, Abdrabbuh Mansour Hadi. O governo de Hadi arrastava com ele vários problemas: não tinha qualquer legitimidade democrática e não dava sinal de qualquer interesse em atender as demandas do levante. Foi convocada uma Conferência para o Diálogo Nacional [National Dialogue Conference (NDC)], para construir um adequado contexto de democracia. Os Houthis afirmam que o que fazem hoje visa a pôr em prática o que ficou decidido na Conferência, com o objetivo de constituir um novo governo.
Pergunta: Mas o Irã apoia os Houthis?
Resposta: Não é assim tão simples. Parece que os Houthis expandiram seus laços com o Irã. Mas tudo sugere que isso só tenha acontecido muito recentemente. Esses laços absolutamente nada têm a ver com o sucesso dos Houthis no processo de conquistar o controle sobre grande parte do país, que é resultado de uma ridícla aliança com Saleh, que deu aos Houthis acesso aos recursos militares e de aliados do antigo presidente. Circula também o mito de que os Houthis seriam um “Hezbollah iemenita”, e isso simplesmente não é verdade.
O que se sabe é que a muito tempo Saleh dizia aos EUA que o Irã estaria ajudando os Houthis, mas os diplomatas nunca acreditaram nele. Telegramas diplomáticos distribuídos por WikiLeaks provam isso. Um dos telegramas, da Embaixada de EUA-Canadá em Saada, datado de 9 de dezembro de 2009, diz: "Ao contrário do que diz o Governo da República do Iêmen (GRI), que o Irã estaria armando os Houthis, a maioria dos analistas informam que os Houthis obtêm suas armas no mercado negro iemenita e, até, dos militares do próprio Governo da República do Iêmen."
Até hoje os Houthis obtêm muitas de suas armas dessas fontes, independente de qualquer possível apoio que recebam do Irã. A mais brutal ironia é que praticamente todas as armas que estão hoje em mãos dos Houthis foram fabricadas na Europa e nos EUA.
Nada impede que o Irã esteja realmente apoiando os Houthis. Talvez esteja. Mas os fatores que realmente permitiram que se constituísse o impressionante arsenal com que eles contam atualmente foi a proliferação de armas, veículos, munição e equipamentos militares de todo tipo, de fabricação europeia e americana, em todos os mercados negros de todo o Oriente Médio; além de vendas oficiais dos mesmos equipamentos, feitas ao exército iemenita. De fato, ainda que o Irã esteja ajudando o grupo, o que não é fato confirmado, o mais provável é que, para fazê-lo, eles explorem as mesmas vias e redes de contrabando pré-existentes.
Pergunta: E sobre os interesses americanos no país?
Resposta: Os EUA têm algum interesse “de grupo” em mostrar que combatem a al-Qaeda na Península Árabe [al-Qaida in the Arabian Peninsula (AQAP)], principalmente porque o grupo opera em áreas próximas à Arábia Saudita. A AQAP foi formada no Iêmen em janeiro de 2009, depois que a al-Qaeda na Arábia Saudita [al-Qaida in the Saudi Arabia (AQAS)] foi efetivamente expulsa para o outro lado da fronteira depois de vários ataques.
A AQAS fundiu-se com a al-Qaeda no Iêmen. Desde o nascimento da AQAP, e especialmente depois da prisão de um de seus principais especialistas em explosivos Ibrahim Hassan Tali al-Asiri, agentes americanos e britânicos de contraterrorismo focaram-se em destruir o grupo, servindo-se de vários recursos, inclusive drones armados. Para isso, deixaram de lado qualquer atenção a outros terríveis problemas relacionados à segurança humana no Iêmen, como a desesperadora falta de água.
De fato, o Iêmen está simplesmente sendo atacado. Sem qualquer visão por trás desses ataques, parece óbvio que o país continuará a deteriorar-se. Quanto às potências estrangeiras, ou mudam sua abordagem ou acabarão expulsas de lá por algum movimento de libertação nacional. A expulsão seria muito prejudicial para os interesses dos EUA, no longo prazo. Diz-se que se emprega hoje a mais terrível violência, porque se trataria de impedir um arranjo revolucionário que se pode espalhar para todas as monarquias do Golfo e destruir toda a ordem regional.
Os especialistas não saem da mídia, e nos intervalos só trocam de terno, para a próxima entrevista.
As perguntas, também sempre repetidas, só dizem respeito, infalivelmente, a supostas rivalidades entre sunitas e xiitas. Ninguém fala de disputa mais ampla entre Arábia Saudita e Irã.
Especialistas costumam esconder seu aborrecimento, e dizer alguma variação dos seguintes procedimentos:
Temos de lembrar que o Iêmen é um país onde, historicamente, nenhum dos grupos religiosos nunca mostrou antagonismo declarado contra o outro. Verdade é que a Arábia Saudita apoiou um Imanato xiita zaidista durante a Guerra Civil no Norte do Iêmen. Saleh ajudou a disseminar o wahabismo sunita.
O sectarismo é um fenômeno recente, e o resultado de três fatores: 1) as consequências regionais das ações dos EUA no Iraque; 2) as doutrinas de uma suposta supremacia sunita; e 3) a tendência do neoliberalismo para fortalecer a identificação e linhas de divisão sectária. Tem sido uma combinação de intervenção militar e intensos processos de comercialização generalizada que produziram sectarismo não só no Iêmen, mas na região de forma mais ampla.
Isto não era inevitável. Foi o resultado de decisões políticas por parte de vários atores presentes no Oriente Médio.
E vai e vem, entrevista após entrevista, especialista após especialista, o nonsense continua, e ninguém jamais expõe o nonsense de todo aquele palavreado. A maior dificuldade de ser especialista em Iêmen é que se vive sob pressão constante, obrigado(a) a reprimir o desejo de berrar palavrões e mais palavrões, pela TV e na universidade, ao vivo.
Aí está a razão pela qual a empresa-mídia ocidental só trata, quase exclusivamente, de sectarismos e guerras à distância, como se bastassem para explicar todo o conflito. O sectarismo, bem claramente, é apresentado como resultado “natural” da “natural” selvageria que reina em todo o Oriente Médio. Falar sempre sobre o sectarismo permite que nenhum especialista jamais precise falar diretamente sobre os resultados das políticas de EUA–Arábia Saudita. Esse é movimento–truque intencional: os fracassos dessas políticas, se fossem adequadamente expostos e discutidos, serviriam como útil ferramenta a favor do movimento antiguerra nos EUA.
A ideia de fazer “guerra à distância”, ou “guerra por procuração”, também contribui para esvaziar ainda mais qualquer potencial oposição interna, nos EUA: afinal, a Arábia Saudita está(ria) respondendo à agressão iraniana. A ninguém, portanto, ocorrerá a ideia de que os EUA estão fazendo guerra não provocada contra país soberano, para alcançar objetivos essencial e profundamente reacionários. O mesmo discurso também apaga o fato de que, em todos os sentidos e para as mais sórdidas finalidades, trata-se de uma invasão saudita–norte-americana: a Arábia Saudita defende os próprios interesses, ao mesmo tempo em que oferece o próprio exército e os próprios aviões e armas como projeção do poder dos EUA.
Já é óbvio que autocratas regionais relativamente novos, como o rei Salman da Arábia Saudita e o general Abdel Fattah al-Sisi do Egito estão usando a guerra no Iêmen para legitimar os respectivos governos. Defender o “governo legítimo do Iêmen” faz esses ditadores parecerem heróis da Primavera Árabe, não os responsáveis pelo massacre de movimentos democráticos. Sisi e Salman viraram “líderes” de vários outros governantes em situação como a deles. Assim surgiu uma coalizão regional de sete monarquias e duas ditaduras militares, todas empenhadas em defender Hadi, cuja principal credencial é ter sido eleito em 2012 numa eleição em que foi o único candidato.
O silêncio histórico da esquerda ocidental sobre a situação claramente de opressão em que vive o povo do Iêmen é, para começar, inadmissível. Afinal, o absurdo total da “ordem” no Oriente Médio aparece perfeitamente à vista no Iêmen, e já faz tempo. Faltam olhares críticos já há anos, que tentem dar conta da total irracionalidade do que se passa naquele país.
De fato, há questões importantes que se seguiram imediatamente ao golpe. How can the Houthis be simultaneously promising to implement the stipulations of the NDC and killing student protesters in Ta’iz? How can President Obama say, in reference to news about the Houthi coup that Yemen “has never been a perfect democracy or an island of stability,” all while rapidly signing off on drone strikes in the same country?
Além de questões que surgiram depois de iniciados os ataques, há também questões que já vêm de antes. Por que os países que compõem o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) foram autorizados a assumir papel tão importante na mediação de uma situação revolucionária que claramente os ameaçava diretamente? Por que o mundo sabe tão pouco sobre a República Popular Democrática do Iêmen, que pode ter sido apenas superficialmente marxista, mas com certeza nunca foi mais que a Coreia do Norte? E por aí vai.
O silêncio e a falta de conhecimento especializado confiável tornam-se mais fáceis de compreender, se reconhecemos um dos traços da questão: bem pouca gente sabe sobre o Iêmen ou, que fosse, procura aprender sobre o país. Interessa a países como a Arábia Saudita que assim seja e assim permaneça, o que é um dos motivos pelos quais houve muito menos noticiário sobre a Revolução Iemenita, que sobre os levantes no Egito ou na Tunísia.
E isso apesar de a coalizão revolucionária ser mais forte no Iêmen, como se viu na organização notável da Conferência para Diálogo Nacional, onde se reuniram Saleh, Hadi, os houthis/Ansarullah, a coalizão dos separatistas do sul conhecida como al-Hirak, o grupo islamista de oposição al-Islah, vários líderes da sociedade civil e outras pessoas. Historicamente, o país sempre foi vítima de um isolamento “midiático” e discursivo forçado, o que explica em parte a relativa marginalização do Iêmen nos estudos do Oriente Médio.
John Earnest, secretário de imprensa da Casa Branca defendeu recentemente a política dos EUA no Iêmen, no programa Morning Joe da rede MSNBC, nos seguintes termos:
Não de deve aferir a política dos EUA pelo sucesso ou estabilidade do governo do Iêmen; essa é empreitada à parte. O objetivo da política dos EUA para o Iêmen nunca foi construir lá uma democracia jeffersoniana. O objetivo da política dos EUA para o Iêmen é assegurar que o Iêmen não venha a ser paraíso seguro que extremistas possam usar para atacar o ocidente e atacar os EUA.
Como se responde a tal declaração? Pode-se denunciar a irracionalidade dos juízos, mas é impossível não reconhecer que Earnest não mente, ao descrever nesses termos a política dos EUA. Washington só presta atenção ao Iêmen por causa da Al-Qaeda na Península Arábica,AQAP. Pouco importa aos EUA o que aconteça por lá, desde que os EUA e seus aliados tenham carta branca para matar “terroristas” e impedir que uma instabilidade revolucionária espalhe-se até a Arábia Saudita e o resto das monarquias do Golfo.
A deprimente realidade é que Earnest e Obama enfrentam tão pouca oposição doméstica pelo fato de absolutamente não darem nenhuma importância ao destino dos iemenitas, que podem dizer coisas como “nunca pensamos em construir lá uma democracia jeffersoniana” e o Iêmen nunca foi “uma ilha de estabilidade”. Aí está o resultado direto do fato de que os norte-americanos não se sentem no dever de pensar no povo do Iêmen. Por isso é tão fácil para os militares expandir pelo mundo a violência nua do poderio militar. Resta esperar que o movimento antiguerra nos EUA consiga enfrentar e derrotar essa narrativa, e obter apoio para o direito de os iemenitas decidirem sobre o próprio destino, seja nas instituições do Estado seja na vida pública.
Em termos gerais, porém, temos que lembrar que a solução é iemenita. Atualmente, há uma pressão externa massiva da coalizão liderada pela Arábia Saudita, e uma pressão interna da expansão Houthi, e recursos decrescentes como resultado de pressões econômicas de guerra.
Parece que, com a intervenção estrangeira cada dia mais violenta, e a situação política doméstica cada dia mais deteriorada, os iemenitas talvez sejam forçados a formar uma nova coalizão revolucionária com a missão, em primeiro lugar, de expulsar os exércitos invasores e ocupantes. Isso feito, o Iêmen precisará de um governo de reconciliação nacional, que implemente os protocolos da Conferência para Diálogo Nacional, com o objetivo de atender as demandas éticas e materiais do levante de 2011. É difícil predizer o que acontece a seguir e como os Houthis agirão como força revolucionária no Iêmen ao longo da próxima década.
Desde que deixou o país, Saleh buscou refúgio no CCG, o que pode não passar de mais um artifício em outra luta pelo poder. É possível que, no final das contas, Khaled Bahah, ex-embaixador e recentemente indicado Primeiro-Ministro, consiga romper o impasse. A melhor coisa sobre o Iêmen é que o país parece ter capacidade infinita para surpreender observadores. Em outras palavras, temos de fazer o que pudermos pela paz, nos agarrar à esperança e esperar para ver o que acontece.
Nenhum comentário:
Postar um comentário