13 de abril de 2015

Crise: verdadeira e falsa contradição do mundo contemporâneo

O capitalismo está em plena expansão global e está funcionando maravilhosamente bem. Crises e guerras fazem parte do seu próprio modo de desenvolvimento.

Alain Badiou


Nova York, setembro de 2012. AFP

Tradução / A modernidade é, antes de mais, uma realidade negativa. É, na verdade, a saída da tradição. É o fim do velho mundo das castas, da nobreza, da obrigação religiosa, das iniciações da juventude, das mitologias locais, da submissão das mulheres, do poder absoluto do pai sobre os filhos, da separação oficial entre o pequeno número de poderosos e as massas trabalhadores desprezadas. Nada se poderá inverter nesse movimento, indubitavelmente despoletado no Ocidente desde o Renascimento, consolidado pelo Iluminismo do século XVIII e materializado desde então pelo desenvolvimento sem precedentes das técnicas de produção, assim como pelo aperfeiçoamento incessante dos modos de cálculo, de circulação e de comunicação.

O ponto mais impressionante talvez seja que essa saída do mundo da tradição, esse verdadeiro tornado sobre a humanidade, que em três séculos apenas varreu as formas de organização milenares, tenha criado uma crise subjectiva cujas causas e amplitude vamos percebendo agora, e da qual um dos aspectos mais visíveis é a extrema e crescente dificuldade, para a juventude em particular, de se situar neste novo mundo.

Aí está a verdadeira crise. Cremos, por vezes, que se trata do capitalismo financeiro. Mas não, de todo! O capitalismo está em plena e próspera expansão mundial. As crises e as guerras fazem parte do seu próprio modo de desenvolvimento. São modos tão selvagens quanto necessários para limpar as formas de concorrência e fazer com que os vencedores concentrem nas suas mãos a maior quantidade possível de capital disponível.

Desse ponto de vista estritamente objectivo – a concentração do capital – lembremo-nos de onde nos encontramos: 10% da população mundial detém 86% do capital disponível; 1% detém ainda 46% desse capital; e 50% da população mundial não possui absolutamente nada: 0%. Facilmente compreenderemos que os 10% que possuem quase tudo não desejam, de forma alguma, ser confundidos com aqueles que nada têm. Por sua vez, um grande número dos que partilham entre si os magros 14% que restam, nutrem um desejo feroz de conservar o que têm. É esse o motivo pelo qual conferem o seu apoio racista e nacionalista às inúmeras barreiras repressivas contra a terrível «ameaça» que sentem dos 50% que nada têm.

Tudo isso faz com que as palavras de ordem pretensamente unificadoras do movimento Occupy Wall Street, «Nós somos os 99%», sejam completamente vazias. A verdade é que aquilo a que chamamos Ocidente está cheio de gente que, sem fazer parte dos 10% da aristocracia dirigente, fornece ao capitalismo mundializado uma trupe pequeno-burguesa de apoiantes, a famosa classe média, sem a qual o oásis democrático não teria chance alguma de sobrevivência. Ainda que longe de ser os 99%, mesmo que apenas simbolicamente, os jovens corajosos de Wall Street não representavam, mesmo o grupo original, mais do que um pequeno punhado cujo destino será o de se desvanecer, passadas as festas do «movimento». Excepto, evidentemente, se este se ligar de forma prolongada à massa real dos que realmente não têm quase nada, se ela traçar dessa forma uma diagonal política entre os que fazem parte dos 14%, incluindo os intelectuais, e os que fazem parte dos 50%, nomeadamente os operários e os camponeses, assim como a fracção baixa da classe média, mal paga e precária.

Esse trajecto político é praticável, uma vez que já foi tentado nos anos sessenta e setenta sob a marca do maoísmo. E foi recentemente ensaiada de novo pelos movimentos de ocupação em Túnis ou no Cairo, ou mesmo em Oakland, onde a ligação activa entre os estivadores portuários foi, no mínimo, esquissada. Tudo, absolutamente tudo, depende do renascimento definitivo dessa aliança e da sua organização política à escala internacional.

Mas no actual estado de extrema fragilidade de tal movimento, o resultado objectivo, comensurável, da saída da tradição -operada desde então pelo formalismo mundializado do capitalismo- não poderá ser outra coisa senão aquilo que acabamos de descrever, a saber, que uma minúscula oligarquia dite a sua lei não só a uma esmagadora maioria nas margens da simples sobrevivência, mas também às classes médias ocidentalizadas, isto é, avassaladas e estéreis.

Mas o que se passa então ao nível social e subjectivo? Desde 1848, Marx forneceu uma descrição fulminante, no sentido em que é tão verdadeira hoje como à sua época. Citemos algumas linhas desse velho texto, que conserva incrivelmente a sua juventude: «Por todo o lado, ela [a burguesia] conquistou o poder, espezinhou as relações feudais, patriarcais e idílicas. [...]. Afogou os calafrios sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavaleiresco, da sentimentalidade pequeno-burguesa nas águas geladas do cálculo egoísta. Transformou a dignidade pessoal num simples valor de troca. [...] A burguesia despojou da sua auréola todas as actividades que até então passavam por veneráveis, e que considerávamos com um respeito santo. O médico, o jurista, o padre, o poeta, o sábio, foram feitos assalariados às suas ordens.»

O que Marx descreve aqui é o facto de essa saída da tradição, na sua versão burguesa e capitalista, ter na verdade aberto uma gigantesca crise na organização simbólica da humanidade. Durante milénios, na verdade, as diferenças intrínsecas à vida humana foram codificadas, simbolizadas sob uma forma hierárquica. As dualidades mais importantes, como jovens e velhos, mulheres e homens, quem é da minha família e quem não o é, miseráveis e poderosos, o meu grupo profissional e os outros grupos, estrangeiros e compatriotas, heréticos e fiéis, plebeus e nobres, cidades e campos, intelectuais e artesãos, foram tratados, na língua, nas mitologias, nas ideologias, nas morais religiosas instaladas, com recurso a estruturas de ordem que codificavam a posição de uns e de outros nos sistemas hierárquicos entrelaçados. Assim sendo, uma mulher nobre seria inferior ao seu marido, mas superior a um homem do povo; um burguês rico dever-se-ia inclinar perante um duque, mas os seus servos dever-se-iam inclinar perante si; do mesmo modo, uma mulher squaw não seria quase nada aos olhos de um guerreiro da sua tribo, mas quase tudo quando comparada a um prisioneiro de outra tribo, para quem, por vezes, estabeleceria inclusive as regras de tortura. Ou ainda, um miserável fiel da Igreja católica era consideravelmente negligenciado face ao seu bispo, mas podia ser considerado um eleito face a um herético protestante, tal como o filho de um homem livre dependia absolutamente do seu pai, mas poderia ter como escravo pessoal o pai negro de uma vasta família.

Toda a simbolização tradicional repousava assim sobre a estrutura de ordem que distribui as posições e, por consequência, as relações entre essas posições. A saída da tradição, tal como foi realizada pelo capitalismo, enquanto sistema geral de produção, não propôs, para dizer a verdade, nenhuma simbolização activa nova, mas apenas o jogo brutal e independente da economia, o reino neutro, a-simbólico, a que Marx chamava «as águas geladas do cálculo egoísta». Daí resulta uma crise histórica da simbolização, na qual a juventude contemporânea vai suportando a sua desorientação.

Face a essa crise que, sob cobertura de uma liberdade neutra, não propõe como referente universal outra coisa que não seja o dinheiro, querem fazer-nos crer que não existem senão duas vias: seja, por um lado, a afirmação da inexistência, da impossibilidade de existência, de algo melhor do que o modelo liberal e «democrático», isto é, das liberdades lideradas pela neutralidade do cálculo mercantil ; seja, por outro, o desejo reaccionário de um regresso à simbolização tradicional, o que será dizer, à simbolização hierárquica.

A meu ver, estas duas vias constituem impasses extremamente perigosos, e a sua contradição, cada vez mais sangrenta, compromete a humanidade num ciclo de guerras sem fim. Esse é o problema das falsas contradições, que impedem o jogo da verdadeira contradição. Essa contradição verdadeira, a que nos devia servir enquanto marco de referência, não só para o pensamento como para a acção, é aquela que opõe duas visões da inelutável saída da tradição simbólica hierarquizante: a visão a-simbólica do capitalismo ocidental, criadora de desigualdades monstruosas e derivas patológicas, e uma outra visão, geralmente nomeada de “comunismo”, que desde Marx e os seus contemporâneos se propõe a inventar uma simbolização igualitária. Esta contradição fundamental do mundo moderno é mascarada, após a provisória falência histórica dos socialismos de estado na URSS ou na China, pela falsa contradição face à saída da tradição: opondo a pura negatividade neutra e estéril do Ocidente dominador à reacção fascizante que exulta, frequentemente embrulhada em narrativas religiosas, o regresso às velhas hierarquias, com uma violência espetacular destinada a mascarar que é na verdade impotente.

Este diferendo serve sobretudo aos interesses de uns e de outros, por muito violento que aparentemente seja o seu conflito. Auxiliado pelo controlo dos meios de comunicação, capta o interesse geral, forçando cada um à falsa escolha do tipo «Ocidente ou Barbárie», e bloqueia assim o advento da única convicção global que possa salvar a humanidade de um desastre. Essa convicção -à qual chamo, por vezes, a Ideia Comunista- declara que, no mesmo movimento de saída da tradição, devemos trabalhar a invenção de uma simbolização igualitária que possa escoltar, codificar, formar o substrato subjectivo e pacificado da colectivização dos recursos, da efectiva desaparição das desigualdades, do reconhecimento, com igual direito subjectivo, das diferenças, e, finalmente, do desaparecimento das autoridades separadas do tipo estatal.

Devemos, portanto, conceder a nossa subjectividade a uma tarefa inteiramente nova: a invenção, numa luta de duas frentes – contra a ruina do simbólico nas águas geladas do cálculo capitalista e contra o fascismo reactivo que imagina o restauro da velha ordem – de uma simbolização igualitária, que reinstale as diferenças fazendo prevalecer regras comuns, essas mesmas derivadas de uma total partilha dos recursos.

No que nos diz respeito a nós, gentes do Ocidente, devemos imediatamente proceder a uma revolução cultural que consista em desembaraçarmo-nos da convicção, absolutamente arcaica, segundo a qual a nossa visão das coisas é superior a todas as outras. Ela é, pelo contrário, bastante atrasada em relação ao que desejavam e previam os primeiros grandes críticos, desde o século XIX, da brutalidade des-igualitária e desprovida de sentido do capitalismo. Esses grandes antepassados verificaram igualmente que a organização política pretensamente democrática, com os seus ridículos ritos eleitorais, não era mais do que a tela ocultante de uma total vassalagem das políticas, exercida pelos interesses superiores da concorrência e da cobiça. Hoje, mais do que nunca, está à vista o triste espectáculo daquilo que nomearam, com a sua lucidez impiedosa, de «cretinismo parlamentar».

O abandono massivo dessa identidade «ocidental», em simultâneo com a rejeição absoluta dos fascismos reaccionários, constitui o tempo negativo necessário, elemento a partir do qual poderemos afirmar a potência dos novos valores igualitários. Não ser mais um fantoche da falsa contradição, instalar-se na verdadeira contradição, transformará as subjectividades para as tornar finalmente capazes de inventar a força política que substituirá a propriedade privada e a concorrência por aquilo a que Marx chamava a «livre associação».

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