Luiz Costa Lima
RESUMO O lançamento no Brasil de textos do jovem Georg Lukács (1885-1971) permite compreender o papel da oposição entre vida e forma na reflexão do crítico. Edição de "A Alma e as Formas" permite ainda analisar as mudanças e os vínculos que há entre seu pensamento de então e sua obra após a "conversão" ao marxismo.
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A pergunta do título remete diretamente à tradução brasileira de "A Alma e as Formas [trad. Rainer Patriota, Autêntica, 288 págs., R$ 54]. Motiva-a a demora para que aparecesse no Brasil um dos primeiros livros de Georg Lukács (1885-1971), publicado em húngaro em 1910 e, em alemão, em 1912. É verdade que o retardo não é só pontual, mas de toda a reflexão teórica nossa sobre a literatura. O pouco que se publica raramente vai além da primeira edição. Se não apostássemos que o atraso é remediável, por que continuaríamos a remar contra a corrente?
Foi ainda como estudante de filosofia na Universidade de Budapeste que Lukács começou a se envolver com o teatro, sendo um dos fundadores, em 1904, do Thalia-Bühne. Os anos em que o grupo funcionou lhe serviram para amadurecer a reflexão sobre o drama moderno, a concretizar-se no manuscrito, datado de 1911, de sua "História do Desenvolvimento do Drama Moderno".
Embora escrito em alemão, esse estudo só teria publicação integral em 1976, em italiano. Esta, que é a primeira grande obra de Lukács e que alcançaria posteriormente grande renome, é anterior em um ano ao primeiro texto reconhecido do autor – o importante "Da Pobreza do Espírito", publicado em 1912 em uma revista alemã e incorporado à tradução brasileira de "A Alma e as Formas".
Considerando pois o que Lukács produz na primeira década do século 20 –além dos títulos referidos, o início da chamada "Estética de Heidelberg" (1912-14)– deve essa década ser tida como decisiva em sua formação.
Dilema
A influência de Simmel, sob cuja orientação estuda sociologia, será decisiva para a relevância que a filosofia da vida terá no jovem autor. Não que Lukács só então a conhecesse. A leitura de "A Alma e as Formas" mostra que desde antes a "Lebensphilosophie" (filosofia da vida) estabelecia o grande dilema que constituía o eixo de sua reflexão enquanto jovem: o dilema entre vida e forma.
Embora se tratasse efetivamente de um dilema, e não de uma questão resolvida, já o prefácio da "História do Desenvolvimento do Drama Moderno" continha formulação que mais recentemente se tornaria célebre. Para Lukács, a pobreza da sociologia da literatura residia no fato de que ela, da criação "busca e examina só os conteúdos e traça uma linha reta entre estes e as relações econômicas dadas". Mas, segue, "na literatura o verdadeiro social é a forma".
A afirmação mostra que, para o jovem crítico, o problema da arte não se resolvia nem por seu aspecto estético nem pelo privilégio do econômico. Não estranha que, depois de sua "conversão" ao marxismo, em 1918, naquele momento necessariamente stalinista, tivesse de repudiar o que antes escrevera.
Na edição brasileira de "A Alma e as Formas", discute-se a questão do primeiro Lukács face ao da maturidade. Observa-se, com razão, que a preocupação com o social aparece nos dois momentos, assim como se lamenta que a rigidez que se apossa do convertido o tenha feito perder as sutilezas presentes tanto em "A Alma e as Formas", quanto em "A Teoria do Romance" (1920), aqui traduzido em 2000 pela editora 34.
Mas deixa-se de notar que sua "Estética" definitiva, datada de 1963, impunha a reviravolta hegeliana: considera que a obra literária é produto das condições socioeconômicas. Acrescente-se ainda: talvez no esforço de não manchar os méritos do autor, não só não se consideram os efeitos da reflexologia em sua obra posterior como se ignoram as concessões que fez, sobretudo durante sua permanência em Moscou (1923-33).
Relato apenas um acontecimento, só revelado depois da desestalinização: alguns dias depois do primeiro Processo de Moscou, reuniu-se, em setembro de 1936, uma espécie de "processo secreto", que visava identificar e liquidar os "dissidentes", os "inimigos" do partido, os "oportunistas". Entre os juízes do processo se encontrava nada menos que Lukács, e os julgados eram os escritores alemães exilados. Os interessados devem procurar "Die Sauberung" (a depuração), organizado por Reinhard Müller e publicado em 1981. São descasos a não omitir.
Quanto à tradução de "As Almas e as Formas", apenas chamo a atenção para um equívoco aparentemente secundário. No início do capítulo "Sobre a Filosofia Romântica da Vida: Novalis", aparece a frase: "Napoleão e as frentes reacionárias do espírito". Ela dá a entender que, antes da restauração do "ancien régime", a reação ao racionalismo do século 18 seria uma modalidade reacionária, incluindo, portanto, o próprio Romantismo alemão. Ora, o texto em alemão é bem outro: "Napoleon und die geistige Reaktion" –Napoleão e a reação intelectual. Como a frase –de que só transcrevo a parte em pauta– é sintaticamente simples, depreende-se que se trata de um erro de interpretação.
Ensaio
Venhamos com maior rapidez aos ensaios mais salientes. Entre eles, o mais frequentemente destacado é o primeiro, relativo à caracterização do ensaio. Não partilho desse entusiasmo quanto a "Sobre a Forma e a Essência do Ensaio: Carta a Leo Popper", porque Lukács nele antes parece ainda procurar a resposta, em vez de expor sua formulação.
Por isso, ao contrário de acompanhá-lo, salto para o final do ensaio. Nele, o autor escrevia: "O ensaio se posiciona diante da vida com o mesmo gesto de uma obra de arte, mas apenas o gesto. [...] Fora isso, não resta mais nenhum contato entre eles".
Uma vez que, um pouco antes, definia a posição de Sócrates como aquele que considerava cada acontecimento ocasião para estabelecer um conceito, pode-se aproximar as duas passagens e entender com Adorno que, para Lukács, o ensaio abriga uma "pretensão à verdade livre de aparência estética". Ou mais precisamente, o ensaio aproxima-se da forma artística de que se distingue por se respaldar no conceito (filosófico).
Discordo da discordância que, quanto a esse aspecto, Rainer Patriota expressa em seu posfácio (pág. 265) –pois me parece que Adorno ressalta o que é fundamental na reflexão. Por certo ela ainda é problemática –valeria perguntar o que aproxima o ensaio da arte–, porém a formulação tem uma potencialidade apreciável.
Em troca, sua qualidade não se compara ao que é excepcional no livro analisado. Na impossibilidade de examinar individualmente o notável, assinalo que ele equivale aos capítulos 3, 4, 5, 6. Contento-me em destacar, ainda que telegraficamente, o 3, referente ao rompimento do noivado de Kierkegaard e o 5, sobre a obra, sobretudo novelesca, de Theodor Storm (1817-88).
No primeiro caso, como já ressaltam Judith Butler, na introdução de nossa tradução, e Rainer Patriota, em seu posfácio, impõe-se a aproximação com o caso do próprio Lukács com Irma Seidler, a quem "A Alma e as Formas" é dedicado, e que se suicidara um ano antes –Lukács havia tomado a decisão, como Kierkegaard, de colocar a obra antes da vida, rompendo o relacionamento.
Para irmos direto ao ponto básico: com o rompimento do noivado, pergunta-se seu intérprete, Kierkegaard "salvou apenas a vida de Regine Olsen"? Ou "aquilo que tornava a separação necessária para ele não era antes algo que se mostrara necessário à sua própria vida"?
Que vida, afinal, o rompimento ajudaria a salvar? A vida de Regine não seria salva se sua alegria não fosse suficiente para estancar a melancolia que corroía o "sedutor". Em troca, em risco estaria a vida do próprio Kierkegaard caso, cessada a fonte de sua melancolia, passasse a estar ameaçada a sua motivação para pensar e escrever.
Como se efetuaria a projeção sobre o próprio Lukács? Aqui se constata a vantagem com que o leitor da edição brasileira passa a contar pelo acréscimo do ensaio "Da Pobreza do Espírito". Ele mostra como, para aquele primeiro Lukács, o dilema básico se punha entre vida e obra. Como a vida é apenas um meio, a vida "risonha" seria um interdito para a obra.
Seria interessante mostrar como esse dilema se fez presente em sua adesão ao marxismo. Na impossibilidade de desenvolvê-lo, apenas direi: o "convertido" acreditava que o socialismo marxista dava condições de romper com a vida dispersa, individualizada, angustiada pela falta de interesses comuns, motivando em troca uma obra disposta para a comunicação.
O leitor interessado nesta razão deve privilegiar o capítulo 5, dedicado a Storm. Nele, o autor procurava mostrar que a mentalidade burguesa não se confundia, senão contemporaneamente, com a arte pela arte ou com um impressionismo que realça fragmentos, pedaços desconectados da vida.
Como representante de um espírito burguês já então dissipado, Storm expunha um outro "ethos": "Para o verdadeiro burguês [que era Storm], a profissão não era uma ocupação, mas uma forma de vida". Por isso seu romance não excluía a vida senão que a ordenava e assim constituía "seu formato e seu estilo". Acrescento apenas: é dentro do elogio a esse "ethos", já sepultado, que se explica a antipatia de Lukács pela arte contemporânea (Kafka, Woolf, Joyce), e seu empenho em favor de Thomas Mann –pois, neste, o romance "honesto" de Storm e sua geração se converte em obra monumental.
Não é pelo fato de discordarmos da posição deste Lukács, assim como vermos toda magnífica sutileza do primeiro respaldada pela forte presença da tradição clássica a favorecer a entrada em cena do pensador maduro, que se justificaria ignorá-lo. Muito menos, como é costumeiro entre nós, fazer de conta que não tomamos conhecimento de uma obra meritória e extremamente digna de discussão.
Luiz Costa Lima, 78, professor emérito de história da PUC-RJ e autor de "Frestas: a Teorização em um País Periférico" (Contraponto), pelo qual recebeu o prêmio de ensaio da Biblioteca Nacional.
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