A derrocada da social-democracia ilustra a precariedade de qualquer projeto de reforma no capitalismo.
Shawn Gude
Franklin Roosevelt assina a promulgação da Lei de Segurança Social. Foto: Wikimedia Commons |
Tradução / Após a a eleição presidencial de 1984, os meios de comunicação estadunidenses falavam com uma única voz: o liberalismo do New Deal estava morto. Dada a escolha entre o liberalismo no estilo tributar-e-gastar de Walter Mondale e o conservadorismo no estilo das propagandas de “é manhã na América” de Ronald Reagan, os eleitores decisivamente ficaram do lado do presidente em exercício.
A única alternativa para os democratas, então, era se modernizar. Qualquer coisa que não uma reanálise generalizada dos compromissos mais social-democratas do partido, representaria um convite ao futuro desastre eleitoral.
A sabedoria convencional também tinha a quem apontar como os culpados: a base do Partido Democrata. Atacando aquilo que chamavam de “liberalismo de grupo de interesse”, os comentaristas insistiam que o partido se tornasse uma tenda ampla, moderada o suficiente para ganhar uma eleição geral e alérgica a preocupações particularistas.
Nada disso resistia ao menor escrutínio. Como observou Vicente Navarro na revista Socialist Register na época, a plataforma do partido democrata fora mais conservadora do que havia sido em vários anos – “apesar do fato de que nunca antes as forças liberais e mesmo radicais (como trabalhadores, negros e hispânicos, feministas, ecologistas, gays) foram tão ativas quanto na convenção do Partido Democrata de 1984”. E mesmo com a vitória retumbante de Reagan, as pesquisas sugeriam que o eleitorado não dera um salto para a direita – apenas 35% apoiavam cortes substanciais nos programas sociais para reduzir o déficit público.
No entanto, o diagnóstico dominante rapidamente se consolidou e os democratas adotaram os seus conselhos. Nos anos seguintes, estimulado por uma coalizão empresarial em mutação, o partido do New Deal se reorientaria de forma ainda mais dramática.
Durante a presidência de Bill Clinton em particular, o Partido Democrata se tornou um porta-estandarte da “Terceira Via” – uma posição política que evitava o liberalismo do “grande governo” da social democracia em favor de investimentos públicos direcionados e programas privatizados, e que esperava que o mercado financeiro e as indústrias tecnológicas criassem prosperidade. Barack Obama, apesar de todas as descrições pós-eleitorais dele como a reencarnação de Franklin Roosevelt, seguiu aproximadamente o mesmo roteiro.
Essa mudança de maré no Partido Democrata teve enormes implicações para a direção da política estadunidense, mas também aponta para algo ainda mais profundo: a precariedade de qualquer projeto de reforma popular sob o capitalismo.
Siga a grana
Oconsenso do New Deal que entrou em colapso no início da década de 1980 emergiu nos estertores da Grande Depressão dos anos 30, em meio a uma imensa agitação – ações de trabalhadores desempregados, greves sentadas, campanhas por seguridade social e aposentadoria.
Mas o “New Deal” não era apenas um “novo acordo” dos trabalhadores.
O retrato de Roosevelt como líder de um bando de pessoas comuns, com toda a comunidade empresarial posicionada contra ele – trata-se de um artifício retórico. A maior parte das corporações estadunidenses podia não ser amiga de Roosevelt, mas ele tinha seu próprio conjunto de “legalistas no meio econômico” – corporações como Shell, IBM, General Electric, Lehman Brothers, Goldman Sachs e Bank of America.
O que era fundamental, argumentam Thomas Ferguson e Joel Rogers em seu livro “Right Turn” (“Guinada à Direita”), era a natureza desse “bloco de investidores”. Como seus membros ganhavam dinheiro em setores intensivos em capital, em vez de setores intensivos em força de trabalho, um movimento sindical robusto não representava uma ameaça existencial a eles. Se isso significasse evitar interrupções mais severas, o barão do petróleo poderia aceitar um nível de potência sindical que o proprietário têxtil não suportaria.
Algumas das maiores realizações do New Deal carregaram as impressões digitais dos apoiadores abastados de Roosevelt: um comitê financiado por John D. Rockefeller Jr redigiu a Lei de Previdência Social; o Chase Bank e outros adversários de J.P. Morgan forneceram o impulso para a Lei Glass-Steagall (que estabelecia uma muralha entre as funções de banco de investimento e banco comercial).
Algumas décadas depois, quando Lyndon Johnson estava enxertando suas políticas públicas da “Grande Sociedade” no Estado de Bem-Estar Social do New Deal, o mesmo bloco de investidores novamente prometeu seu apoio. Com um crescimento econômico aparentemente interminável no horizonte, com lucros acelerados e com presidentes democratas comprometidos com a negociação de acordos comerciais favoráveis, cabia a esses atores da elite distribuir parte das riquezas – só que nos seus termos. Os novos programas mais importantes recebiam sua receita não do bolso das empresas, mas de impostos sobre a folha de pagamento. A ajuda às cidades foi gasta de maneiras acessíveis aos banqueiros e empreiteiras imobiliárias.
Ainda assim, muitas dessas políticas, mesmo que filtradas pela peneira dos interesses dominantes, também traziam benefícios genuínos aos principais eleitores democratas. Apesar de se constituir em um mecanismo de financiamento regressivo, o Medicaid melhorou a vida de seus beneficiários. O mesmo ocorreu com o Medicare, aprovado em meio aos lamentos das organizações de planos privados de saúde como a American Medical Association. E projetos urbanos, como a expansão do transporte público, beneficiaram os trabalhadores – não apenas os incorporadores imobiliários.
Essas políticas reconciliam, pelo menos em partes, os interesses da elite e do povo – a marca registrada de qualquer partido dominante naquilo que Ferguson chama de “sistemas políticos movidos pelo dinheiro”. A classe dos doadores entrava com o prestígio e o financiamento de que o partido precisava para funcionar, e a mixórdia de interesses organizados entregava os votos necessários.
O principal desses interesses organizados era o movimento operário, mas seu poder atingiu o pico cedo demais. O fato dos sindicatos terem exercido influência partidária nas décadas seguintes baseava-se inteiramente nos rápidos ganhos que haviam acumulado no surto de agitação trabalhista da era da Depressão e do pós-guerra. A Lei Taft-Hartley de 1947 conteve esse aumento, determinando a expulsão de radicais sindicais, legalizando o “direito ao trabalho” e restringindo severamente a liberdade de ação dos trabalhadores.
Uma burocracia trabalhista conservadora assistiu a queda subsequente na densidade sindical com surpreendente equanimidade. “Francamente, eu costumava me preocupar com o número de membros, com o tamanho da organização”, disse o presidente da federação de sindicatos AFL-CIO, George Meany, no início dos anos 1970. “Mas há alguns anos, simplesmente parei de me preocupar com isso, porque para mim não faz nenhuma diferença.”
Em meados da década de 1970, a base da coalizão do partido começou a ruir – e o movimento sindical não tinha nem a vontade, nem os meios para reconstituí-lo sobre outras bases.
As coisas desmoronam
Ocrescimento acelerado da década de 1960 deu lugar ao torpor econômico da década de 1970. As empresas sentiam pressões por todos os lados. Embora o trabalho organizado tivesse perdido sua força, o desemprego relativamente baixo no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 reforçava o poder dos trabalhadores no chão de fábrica. Eles respondiam a isso entrando em greve a taxas nunca vistas desde o imediato pós-guerra, muitas vezes exigindo não apenas melhores salários, mas mais controle sobre o processo de trabalho.
Simultaneamente, as empresas estadunidenses estavam vacilando após anos de domínio sobre seus concorrentes internacionais. Outros países capitalistas avançados finalmente se recuperaram da devastação do pós-guerra, e suas empresas estavam ultrapassando as firmas estadunidenses a um ponto que ia além do simples efeito rebote. O resultado líquido mais significativo, especialmente para o capital privado, era que os lucros estavam indo para o fundo do poço. A taxa de retorno das empresas atingiu o pico em 1965 e não se recuperou durante toda a década de 1970.
Com a economia tinindo, o Partido Democrata sobrevivera à turbulenta batalha interna em torno da Guerra do Vietnã. Mas no ambiente de escassez de lucros da década de 1970, com a posição das empresas estadunidenses na economia mundial em declínio, essas disputas tornavam-se cada vez mais insolúveis.
A regulação e os gastos sociais – pilares do sistema do pós-guerra tão amplamente aceitos que Richard Nixon, um arqui-conservador, se sentiu compelido a criar a Agência de Proteção Ambiental e propor um plano nacional de saúde nos moldes do Obamacare – rapidamente surgiram como pontos de discórdia.
Ambos significavam mais custos para o capital. Mesmo para os setores “esclarecidos” do empresariado estadunidense, esses custos já não soavam como prudentes e apaziguadores, mas irracionalmente perdulários. Com o aumento da concorrência, as empresas não podiam simplesmente fazer os consumidores absorverem preços mais elevados.
Para lidar com o novo ambiente, o empresariado buscava o máximo de flexibilidade – e isso significava uma ofensiva contra o trabalho organizado. De 1970 a 1980, relatam Ferguson e Rogers, o número de acusações contra empregadores por demitir trabalhadores envolvidos em atividades sindicais dobrou.
Quando o democrata Jimmy Carter entrou no Salão Oval em 1977 como presidente, a coalizão do New Deal que havia definido os contornos da vida política e econômica estadunidense por décadas estava murchando. Quando ele deixou o cargo – depois de derrotar nas primárias democratas de 1980 o decano do liberalismo do New Deal, o senador de Massachusetts Ted Kennedy – a economia ainda estava engasgando. Um falcão obsessivo com a inflação presidia o Federal Reserve, e a desregulação e profundos cortes nos programas de previdência social começaram a se estabelecer.
Enquanto isso, membros das elites temiam que a Revolução Iraniana e outras convulsões pressionassem um clima inóspito para a geração de lucros no Terceiro Mundo. O momento era propício para mais gastos militares. E quanto aos programas sociais? Não muito. Para seus apoiadores nas elites, o liberalismo do New Deal já havia sobrevivido por mais tempo do que fora útil.
Ainda assim, na iminência da eleição de Reagan, não havia uma grande demanda por políticas econômicas conservadoras. Em 1979, 79% dos entrevistados concordaram que “há poder demais concentrado nas mãos de algumas grandes empresas para dizer que isso faz bem à nação”. A mesma pesquisa descobriu que 51% dos estadunidenses achavam que “as empresas como um todo estão lucrando demais”, e 60% chegavam a acreditar que o Estado deveria impor um teto aos lucros corporativos.
Ainda assim, depois de chegar ao poder, Reagan imediatamente – com o apoio de dezenas de democratas no Congresso ede muitos dos interesses endinheirados que haviam abandonado a coalizão do New Deal – cortou muito os impostos sobre as corporações e os ricos e acelerou os cortes nos gastos sociais que Carter havia iniciado. Ao mesmo tempo, Reagan administrou pesadas doses de gastos com defesa e manobras anticomunistas.
Quando chegou a eleição de 1984, o desafiante democrata de Reagan, Walter Mondale, só conseguiu atrair o apoio de um pequeno segmento da comunidade empresarial: incorporadores imobiliários (cujos cobiçados programas de ajuda urbana estavam sendo espremidos pelos gastos militares) e dirigentes de bancos de investimento (irritados com a placidez de Reagan em direção ao crescente déficit federal).
Com pouco apoio empresarial, uma resposta poderia ter sido tentar ativar as bases e atrair eleitores de baixa renda desiludidos por meio de apelos economicamente progressistas. Em vez disso, Mondale assumiu o papel de um “apertador-de-cinto”. Em seu discurso de aceitação da nomeação à candidatura presidencial, normalmente a província de discursos elevados e estimulantes promessas de políticas públicas, ele reivindicou um aumento de impostos para fechar o déficit orçamentário, explicando que “o Sr. Reagan vai aumentar os impostos, e eu também aumentarei. Ele não vai contar isso para vocês, mas eu acabei de fazer isso.”
Enquanto alguns aclamaram a confissão de Mondale como um triunfo incomum da honestidade sobre a perfídia das campanhas eleitorais, o eleitor médio poderia ser perdoado por se perguntar como isso poderia ajudá-lo. No dia da eleição, Mondale perdeu em todos os estados, exceto seu estado natal, Minnesota.
Embora os democratas tenham retomado o controle do Senado em 1986, o poder claramente havia mudado de um Partido Democrata solícito com os interesses empresariais para um Partido Republicano renovado, que se tornara o guardião incomparável dos interesses das corporações estadunidenses. E, como um realinhamento não significa nada que não envolva o partido mais fraco jogando no terreno do partido mais forte, o tom e o timbre das políticas públicas democratas passaram a se assemelhar aos dos republicanos.
Chega a vez de Clinton
“Nosso objetivo primário era mostrar ao público estadunidense que, se líderes empresariais durões e há muito tempo republicanos fossem contra sua norma e apoiassem Clinton, então ele não teria como ele ser um democrata tradicional, do tipo tributar-e-gastar.”
Assim explicou a pessoa responsável pelo contato entre Bill Clinton e o empresariado e os eleitores no setor de alta tecnologia, ao divulgar os nomes de 400 executivos que apoiavam o ex-governador do Arkansas nas eleições presidenciais de 1992. “Achamos que um endosso de executivos respeitados, em cujo julgamento as pessoas confiam, nos daria aquele nível extra de credibilidade e sentimos que fomos bem-sucedidos nisso”, acrescentou o membro da equipe.
Tudo o que a linguagem tinha de intencional, tinha de reveladora: o partido havia chegado em um ponto em que o fundamento de sua campanha era usar como isca os termos de zombaria usados pelos inimigos do liberalismo do New Deal.
A Terceira Via havia chegado.
Ao contrário da terceira via de meados do século XX, entre o comunismo e o capitalismo, essa corrente centrista buscava um meio-termo entre a social-democracia do pós-guerra e o capitalismo de livre-mercado. Embora estivessem felizes em investir modestamente em coisas como Educação, os acólitos da Terceira Via achavam que o setor público precisava de um choque que apenas os mercados e a privatização poderiam proporcionar.
Clinton personificava a Terceira Via, até na composição de sua base de elite. Prometendo “fazer a América crescer novamente”, Clinton colocou o Vale do Silício no centro de sua campanha de 1992 e cortejou executivos como o presidente da Apple Computer, John Sculley.
As manobras de abertura funcionaram. “Sobre pratos de salmão escalfado na propriedade de 15 acres do Sr. Sculley” nos arredores de Palo Alto, como reportou o New York Times, uma falange de líderes de tecnologia tomou a decisão de apoiar Clinton, lisonjeados por ele ter pedido que ajudassem a formular sua política para a tecnologia e desejosos pelas parcerias público-privadas que Clinton e outros democratas de mentalidade parecida estavam ansiosos para concretizar.
Mesmo que o aspirante à presidência não fosse o primeiro democrata de nível nacional seduzido por uma parceria com empresas de tecnologia (as empresas de informática também foram uma fonte de apoio para Michael Dukakis na eleição de 1988), Clinton foi o primeiro a ter muitos ao seu lado em uma candidatura vencedora.
Representando menos uma novidade, mas trazendo ainda mais poder, executivos de bancos de investimento como Robert Rubin e Pete Peterson convergiram em torno de Clinton no início da corrida presidencial de 1992. A capacidade de arrecadação de fundos de Rubin foi especialmente impressionante – ele “contribuiu com bem mais de US $100.000 para a campanha” e arrecadou “muitas vezes esse valor”, observa Ferguson. (Dinheiro do Walmart, da Tyson Foods e de outras empresas do seu estado natal também encheram os cofres de Clinton.)
A recompensa do ex-executivo do Goldman Sachs foi o cargo mais alto no recém-criado Conselho Econômico Nacional. Como os financistas com tendências democratas do passado, Rubin e companhia valorizavam uma política de dólar forte e livre-comércio. Sua posição sobre a regulação, no entanto, indicava que os tempos haviam mudado.
Já em 1995, Rubin – então secretário do Tesouro – instava Clinton a revogar a Lei Glass-Steagall. Ele conseguiu o que queria em 1999, e a Lei de Modernização de Mercadorias de Futuros desregulamentou o mercado de derivativos um ano depois. Apresentado e incensado como a eliminação de estatutos desatualizados na era da informação, o desbloqueio dos mercados financeiros se encaixava perfeitamente na ideologia mais ampla da Terceira Via – e, não por acaso, com os interesses materiais de seu bloco de investidores.
A laia de Rubin também alterou sua postura diante dos gastos sociais. Nas décadas anteriores, esse tipo de investidor dera de ombros para os aumento dos gastos sociais, mas a política da Terceira Via era política de austeridade, política de orçamentos equilibrados, política de administrar-e-não-expandir-o-estado-bem-estar-social.
Não surpreendentemente, quando Clinton assumiu o cargo – ganhando a presidência com a menor parcela do voto popular desde Woodrow Wilson em 1912 – a redução do déficit anulou um modesto pacote de estímulos. E para fechar a lacuna, ele não foi atrás do dinheiro que Reagan entregara aos ricos no início dos anos 1980 – ele combinou um modesto aumento de impostos com um esforço agressivo para aplainar os gastos do setor público.
Clinton e seus irmãos na Terceira Via lançavam calúnias sobre a burocracia governamental em particular, a justaposição de uma economia pós-industrial – enxuta, flexível, dinâmica – e um governo federal antediluviano dominando seu pensamento. Eles se comprometiam a construir um governo “que funcione melhor e custe menos”. Eles escreveram livros e relatórios com títulos como “Reinventando o Governo: Como o Espírito Empreendedor Está Transformando o Setor Público” e “Da Burocracia aos Resultados”. Eles promoviam a privatização e a voucherização, defendiam o empoderamento de instituições de caridade locais para fornecer serviços sociais e promoviam a regulação ambiental baseada no mercado, como programas de “cap and trade” (que coloca limites para a emissão de carbono sobre atividades e regiões, e emite títulos de permissão de mais emissões para serem negociados via mercado).
A sabedoria convencional também tinha a quem apontar como os culpados: a base do Partido Democrata. Atacando aquilo que chamavam de “liberalismo de grupo de interesse”, os comentaristas insistiam que o partido se tornasse uma tenda ampla, moderada o suficiente para ganhar uma eleição geral e alérgica a preocupações particularistas.
Nada disso resistia ao menor escrutínio. Como observou Vicente Navarro na revista Socialist Register na época, a plataforma do partido democrata fora mais conservadora do que havia sido em vários anos – “apesar do fato de que nunca antes as forças liberais e mesmo radicais (como trabalhadores, negros e hispânicos, feministas, ecologistas, gays) foram tão ativas quanto na convenção do Partido Democrata de 1984”. E mesmo com a vitória retumbante de Reagan, as pesquisas sugeriam que o eleitorado não dera um salto para a direita – apenas 35% apoiavam cortes substanciais nos programas sociais para reduzir o déficit público.
No entanto, o diagnóstico dominante rapidamente se consolidou e os democratas adotaram os seus conselhos. Nos anos seguintes, estimulado por uma coalizão empresarial em mutação, o partido do New Deal se reorientaria de forma ainda mais dramática.
Durante a presidência de Bill Clinton em particular, o Partido Democrata se tornou um porta-estandarte da “Terceira Via” – uma posição política que evitava o liberalismo do “grande governo” da social democracia em favor de investimentos públicos direcionados e programas privatizados, e que esperava que o mercado financeiro e as indústrias tecnológicas criassem prosperidade. Barack Obama, apesar de todas as descrições pós-eleitorais dele como a reencarnação de Franklin Roosevelt, seguiu aproximadamente o mesmo roteiro.
Essa mudança de maré no Partido Democrata teve enormes implicações para a direção da política estadunidense, mas também aponta para algo ainda mais profundo: a precariedade de qualquer projeto de reforma popular sob o capitalismo.
Siga a grana
Oconsenso do New Deal que entrou em colapso no início da década de 1980 emergiu nos estertores da Grande Depressão dos anos 30, em meio a uma imensa agitação – ações de trabalhadores desempregados, greves sentadas, campanhas por seguridade social e aposentadoria.
Mas o “New Deal” não era apenas um “novo acordo” dos trabalhadores.
O retrato de Roosevelt como líder de um bando de pessoas comuns, com toda a comunidade empresarial posicionada contra ele – trata-se de um artifício retórico. A maior parte das corporações estadunidenses podia não ser amiga de Roosevelt, mas ele tinha seu próprio conjunto de “legalistas no meio econômico” – corporações como Shell, IBM, General Electric, Lehman Brothers, Goldman Sachs e Bank of America.
O que era fundamental, argumentam Thomas Ferguson e Joel Rogers em seu livro “Right Turn” (“Guinada à Direita”), era a natureza desse “bloco de investidores”. Como seus membros ganhavam dinheiro em setores intensivos em capital, em vez de setores intensivos em força de trabalho, um movimento sindical robusto não representava uma ameaça existencial a eles. Se isso significasse evitar interrupções mais severas, o barão do petróleo poderia aceitar um nível de potência sindical que o proprietário têxtil não suportaria.
Algumas das maiores realizações do New Deal carregaram as impressões digitais dos apoiadores abastados de Roosevelt: um comitê financiado por John D. Rockefeller Jr redigiu a Lei de Previdência Social; o Chase Bank e outros adversários de J.P. Morgan forneceram o impulso para a Lei Glass-Steagall (que estabelecia uma muralha entre as funções de banco de investimento e banco comercial).
Algumas décadas depois, quando Lyndon Johnson estava enxertando suas políticas públicas da “Grande Sociedade” no Estado de Bem-Estar Social do New Deal, o mesmo bloco de investidores novamente prometeu seu apoio. Com um crescimento econômico aparentemente interminável no horizonte, com lucros acelerados e com presidentes democratas comprometidos com a negociação de acordos comerciais favoráveis, cabia a esses atores da elite distribuir parte das riquezas – só que nos seus termos. Os novos programas mais importantes recebiam sua receita não do bolso das empresas, mas de impostos sobre a folha de pagamento. A ajuda às cidades foi gasta de maneiras acessíveis aos banqueiros e empreiteiras imobiliárias.
Ainda assim, muitas dessas políticas, mesmo que filtradas pela peneira dos interesses dominantes, também traziam benefícios genuínos aos principais eleitores democratas. Apesar de se constituir em um mecanismo de financiamento regressivo, o Medicaid melhorou a vida de seus beneficiários. O mesmo ocorreu com o Medicare, aprovado em meio aos lamentos das organizações de planos privados de saúde como a American Medical Association. E projetos urbanos, como a expansão do transporte público, beneficiaram os trabalhadores – não apenas os incorporadores imobiliários.
Essas políticas reconciliam, pelo menos em partes, os interesses da elite e do povo – a marca registrada de qualquer partido dominante naquilo que Ferguson chama de “sistemas políticos movidos pelo dinheiro”. A classe dos doadores entrava com o prestígio e o financiamento de que o partido precisava para funcionar, e a mixórdia de interesses organizados entregava os votos necessários.
O principal desses interesses organizados era o movimento operário, mas seu poder atingiu o pico cedo demais. O fato dos sindicatos terem exercido influência partidária nas décadas seguintes baseava-se inteiramente nos rápidos ganhos que haviam acumulado no surto de agitação trabalhista da era da Depressão e do pós-guerra. A Lei Taft-Hartley de 1947 conteve esse aumento, determinando a expulsão de radicais sindicais, legalizando o “direito ao trabalho” e restringindo severamente a liberdade de ação dos trabalhadores.
Uma burocracia trabalhista conservadora assistiu a queda subsequente na densidade sindical com surpreendente equanimidade. “Francamente, eu costumava me preocupar com o número de membros, com o tamanho da organização”, disse o presidente da federação de sindicatos AFL-CIO, George Meany, no início dos anos 1970. “Mas há alguns anos, simplesmente parei de me preocupar com isso, porque para mim não faz nenhuma diferença.”
Em meados da década de 1970, a base da coalizão do partido começou a ruir – e o movimento sindical não tinha nem a vontade, nem os meios para reconstituí-lo sobre outras bases.
As coisas desmoronam
Ocrescimento acelerado da década de 1960 deu lugar ao torpor econômico da década de 1970. As empresas sentiam pressões por todos os lados. Embora o trabalho organizado tivesse perdido sua força, o desemprego relativamente baixo no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 reforçava o poder dos trabalhadores no chão de fábrica. Eles respondiam a isso entrando em greve a taxas nunca vistas desde o imediato pós-guerra, muitas vezes exigindo não apenas melhores salários, mas mais controle sobre o processo de trabalho.
Simultaneamente, as empresas estadunidenses estavam vacilando após anos de domínio sobre seus concorrentes internacionais. Outros países capitalistas avançados finalmente se recuperaram da devastação do pós-guerra, e suas empresas estavam ultrapassando as firmas estadunidenses a um ponto que ia além do simples efeito rebote. O resultado líquido mais significativo, especialmente para o capital privado, era que os lucros estavam indo para o fundo do poço. A taxa de retorno das empresas atingiu o pico em 1965 e não se recuperou durante toda a década de 1970.
Com a economia tinindo, o Partido Democrata sobrevivera à turbulenta batalha interna em torno da Guerra do Vietnã. Mas no ambiente de escassez de lucros da década de 1970, com a posição das empresas estadunidenses na economia mundial em declínio, essas disputas tornavam-se cada vez mais insolúveis.
A regulação e os gastos sociais – pilares do sistema do pós-guerra tão amplamente aceitos que Richard Nixon, um arqui-conservador, se sentiu compelido a criar a Agência de Proteção Ambiental e propor um plano nacional de saúde nos moldes do Obamacare – rapidamente surgiram como pontos de discórdia.
Ambos significavam mais custos para o capital. Mesmo para os setores “esclarecidos” do empresariado estadunidense, esses custos já não soavam como prudentes e apaziguadores, mas irracionalmente perdulários. Com o aumento da concorrência, as empresas não podiam simplesmente fazer os consumidores absorverem preços mais elevados.
Para lidar com o novo ambiente, o empresariado buscava o máximo de flexibilidade – e isso significava uma ofensiva contra o trabalho organizado. De 1970 a 1980, relatam Ferguson e Rogers, o número de acusações contra empregadores por demitir trabalhadores envolvidos em atividades sindicais dobrou.
Quando o democrata Jimmy Carter entrou no Salão Oval em 1977 como presidente, a coalizão do New Deal que havia definido os contornos da vida política e econômica estadunidense por décadas estava murchando. Quando ele deixou o cargo – depois de derrotar nas primárias democratas de 1980 o decano do liberalismo do New Deal, o senador de Massachusetts Ted Kennedy – a economia ainda estava engasgando. Um falcão obsessivo com a inflação presidia o Federal Reserve, e a desregulação e profundos cortes nos programas de previdência social começaram a se estabelecer.
Enquanto isso, membros das elites temiam que a Revolução Iraniana e outras convulsões pressionassem um clima inóspito para a geração de lucros no Terceiro Mundo. O momento era propício para mais gastos militares. E quanto aos programas sociais? Não muito. Para seus apoiadores nas elites, o liberalismo do New Deal já havia sobrevivido por mais tempo do que fora útil.
Ainda assim, na iminência da eleição de Reagan, não havia uma grande demanda por políticas econômicas conservadoras. Em 1979, 79% dos entrevistados concordaram que “há poder demais concentrado nas mãos de algumas grandes empresas para dizer que isso faz bem à nação”. A mesma pesquisa descobriu que 51% dos estadunidenses achavam que “as empresas como um todo estão lucrando demais”, e 60% chegavam a acreditar que o Estado deveria impor um teto aos lucros corporativos.
Ainda assim, depois de chegar ao poder, Reagan imediatamente – com o apoio de dezenas de democratas no Congresso ede muitos dos interesses endinheirados que haviam abandonado a coalizão do New Deal – cortou muito os impostos sobre as corporações e os ricos e acelerou os cortes nos gastos sociais que Carter havia iniciado. Ao mesmo tempo, Reagan administrou pesadas doses de gastos com defesa e manobras anticomunistas.
Quando chegou a eleição de 1984, o desafiante democrata de Reagan, Walter Mondale, só conseguiu atrair o apoio de um pequeno segmento da comunidade empresarial: incorporadores imobiliários (cujos cobiçados programas de ajuda urbana estavam sendo espremidos pelos gastos militares) e dirigentes de bancos de investimento (irritados com a placidez de Reagan em direção ao crescente déficit federal).
Com pouco apoio empresarial, uma resposta poderia ter sido tentar ativar as bases e atrair eleitores de baixa renda desiludidos por meio de apelos economicamente progressistas. Em vez disso, Mondale assumiu o papel de um “apertador-de-cinto”. Em seu discurso de aceitação da nomeação à candidatura presidencial, normalmente a província de discursos elevados e estimulantes promessas de políticas públicas, ele reivindicou um aumento de impostos para fechar o déficit orçamentário, explicando que “o Sr. Reagan vai aumentar os impostos, e eu também aumentarei. Ele não vai contar isso para vocês, mas eu acabei de fazer isso.”
Enquanto alguns aclamaram a confissão de Mondale como um triunfo incomum da honestidade sobre a perfídia das campanhas eleitorais, o eleitor médio poderia ser perdoado por se perguntar como isso poderia ajudá-lo. No dia da eleição, Mondale perdeu em todos os estados, exceto seu estado natal, Minnesota.
Embora os democratas tenham retomado o controle do Senado em 1986, o poder claramente havia mudado de um Partido Democrata solícito com os interesses empresariais para um Partido Republicano renovado, que se tornara o guardião incomparável dos interesses das corporações estadunidenses. E, como um realinhamento não significa nada que não envolva o partido mais fraco jogando no terreno do partido mais forte, o tom e o timbre das políticas públicas democratas passaram a se assemelhar aos dos republicanos.
Chega a vez de Clinton
“Nosso objetivo primário era mostrar ao público estadunidense que, se líderes empresariais durões e há muito tempo republicanos fossem contra sua norma e apoiassem Clinton, então ele não teria como ele ser um democrata tradicional, do tipo tributar-e-gastar.”
Assim explicou a pessoa responsável pelo contato entre Bill Clinton e o empresariado e os eleitores no setor de alta tecnologia, ao divulgar os nomes de 400 executivos que apoiavam o ex-governador do Arkansas nas eleições presidenciais de 1992. “Achamos que um endosso de executivos respeitados, em cujo julgamento as pessoas confiam, nos daria aquele nível extra de credibilidade e sentimos que fomos bem-sucedidos nisso”, acrescentou o membro da equipe.
Tudo o que a linguagem tinha de intencional, tinha de reveladora: o partido havia chegado em um ponto em que o fundamento de sua campanha era usar como isca os termos de zombaria usados pelos inimigos do liberalismo do New Deal.
A Terceira Via havia chegado.
Ao contrário da terceira via de meados do século XX, entre o comunismo e o capitalismo, essa corrente centrista buscava um meio-termo entre a social-democracia do pós-guerra e o capitalismo de livre-mercado. Embora estivessem felizes em investir modestamente em coisas como Educação, os acólitos da Terceira Via achavam que o setor público precisava de um choque que apenas os mercados e a privatização poderiam proporcionar.
Clinton personificava a Terceira Via, até na composição de sua base de elite. Prometendo “fazer a América crescer novamente”, Clinton colocou o Vale do Silício no centro de sua campanha de 1992 e cortejou executivos como o presidente da Apple Computer, John Sculley.
As manobras de abertura funcionaram. “Sobre pratos de salmão escalfado na propriedade de 15 acres do Sr. Sculley” nos arredores de Palo Alto, como reportou o New York Times, uma falange de líderes de tecnologia tomou a decisão de apoiar Clinton, lisonjeados por ele ter pedido que ajudassem a formular sua política para a tecnologia e desejosos pelas parcerias público-privadas que Clinton e outros democratas de mentalidade parecida estavam ansiosos para concretizar.
Mesmo que o aspirante à presidência não fosse o primeiro democrata de nível nacional seduzido por uma parceria com empresas de tecnologia (as empresas de informática também foram uma fonte de apoio para Michael Dukakis na eleição de 1988), Clinton foi o primeiro a ter muitos ao seu lado em uma candidatura vencedora.
Representando menos uma novidade, mas trazendo ainda mais poder, executivos de bancos de investimento como Robert Rubin e Pete Peterson convergiram em torno de Clinton no início da corrida presidencial de 1992. A capacidade de arrecadação de fundos de Rubin foi especialmente impressionante – ele “contribuiu com bem mais de US $100.000 para a campanha” e arrecadou “muitas vezes esse valor”, observa Ferguson. (Dinheiro do Walmart, da Tyson Foods e de outras empresas do seu estado natal também encheram os cofres de Clinton.)
A recompensa do ex-executivo do Goldman Sachs foi o cargo mais alto no recém-criado Conselho Econômico Nacional. Como os financistas com tendências democratas do passado, Rubin e companhia valorizavam uma política de dólar forte e livre-comércio. Sua posição sobre a regulação, no entanto, indicava que os tempos haviam mudado.
Já em 1995, Rubin – então secretário do Tesouro – instava Clinton a revogar a Lei Glass-Steagall. Ele conseguiu o que queria em 1999, e a Lei de Modernização de Mercadorias de Futuros desregulamentou o mercado de derivativos um ano depois. Apresentado e incensado como a eliminação de estatutos desatualizados na era da informação, o desbloqueio dos mercados financeiros se encaixava perfeitamente na ideologia mais ampla da Terceira Via – e, não por acaso, com os interesses materiais de seu bloco de investidores.
A laia de Rubin também alterou sua postura diante dos gastos sociais. Nas décadas anteriores, esse tipo de investidor dera de ombros para os aumento dos gastos sociais, mas a política da Terceira Via era política de austeridade, política de orçamentos equilibrados, política de administrar-e-não-expandir-o-estado-bem-estar-social.
Não surpreendentemente, quando Clinton assumiu o cargo – ganhando a presidência com a menor parcela do voto popular desde Woodrow Wilson em 1912 – a redução do déficit anulou um modesto pacote de estímulos. E para fechar a lacuna, ele não foi atrás do dinheiro que Reagan entregara aos ricos no início dos anos 1980 – ele combinou um modesto aumento de impostos com um esforço agressivo para aplainar os gastos do setor público.
Clinton e seus irmãos na Terceira Via lançavam calúnias sobre a burocracia governamental em particular, a justaposição de uma economia pós-industrial – enxuta, flexível, dinâmica – e um governo federal antediluviano dominando seu pensamento. Eles se comprometiam a construir um governo “que funcione melhor e custe menos”. Eles escreveram livros e relatórios com títulos como “Reinventando o Governo: Como o Espírito Empreendedor Está Transformando o Setor Público” e “Da Burocracia aos Resultados”. Eles promoviam a privatização e a voucherização, defendiam o empoderamento de instituições de caridade locais para fornecer serviços sociais e promoviam a regulação ambiental baseada no mercado, como programas de “cap and trade” (que coloca limites para a emissão de carbono sobre atividades e regiões, e emite títulos de permissão de mais emissões para serem negociados via mercado).
O que eles não fizeram foi formular políticas que, na melhor tradição social-democrata, entregassem benefícios aos cidadãos em linhas universais de forma transparente, dando a uma ampla faixa da população um interesse próprio e compartilhado em um Estado de bem-estar social efetivo e abrangente.
Como escreve a cientista política Suzanne Mettler em The Submerged State (“O Estado Submerso”), canalizar gastos e incentivos financeiros por meio do código tributário ou depender de empreiteiros privados obscurece os benefícios que o governo distribui, distorcendo a percepção das pessoas sobre quem recebe apoio do Estado e, portanto, tornando mais difícil formar coalizões progressistas. Em contraste, programas universais obviamente públicos empoderam eleitorados que podem então defender prontamente esses programas, ativando a cidadania democrática em vez de deixá-la para morrer nos recessos profundos da Receita Federal.
Convencido da incompetência do Estado, com os bolsos cheios de dinheiro de Wall Street e do Vale do Silício – ou talvez ocupado demais perseguindo beneficiários dos programas de bem-estar social – Clinton não mostrou interesse em iniciar novos programas ambiciosos que pudessem melhorar a vida das pessoas. Um sistema único de saúde, por exemplo, sequer chegou a ser cogitado, por exemplo, devido ao seu financiamento significativo pelo setor de saúde privada. Sua proposta bizantina de substituição confundiu a muitos e energizou poucos.
Se “novas políticas públicas criam uma nova política”, como afirma o cientista político Paul Pierson, então a contribuição de Clinton foi ajudar a fixar a tendência para políticas públicas opacas que militavam contra amplas coalizões progressistas. Em 1981, o ano em que Reagan entrou na Casa Branca, o número de programas sociais como contrapartidas de desonerações, isenções e incentivos fiscai – um bom substituto para identificar formuladores de políticas que distribuem benefícios governamentais por meio do código tributário em vez de programas transparentes – chegava a 81. Em 2010, chegaram a 151, depois de Clinton ter arado o solo para seu crescimento considerável nos anos 2000.
Acima de tudo, esse foi o legado de Clinton: solidificar a guinada à direita, declarando-se um modernizador enquanto cortejava o pessoal da alta tecnologia e do mercado financeiro. Quando o presidente proclamou em seu discurso anual sobre o Estado da União de 1996 que “a era do grande governo chegou ao fim”, tanto a declaração quanto os aplausos bipartidários com que ela foi saudada sinalizaram a consolidação de um novo consenso conservador. E seu acordo de portas fechadas com o presidente da Câmara, Newt Gingrich, para privatizar parcialmente a Previdência Social – por acaso e felizmente frustrado pelo escândalo sexual de Clinton – forneceu mais uma confirmação de que a mudança de políticas públicas que as elites midiáticas pediram após a eleição de 1984 havia se concretizado.
Mesmo a Grande Recessão após 2008 não desalojou a captura do Partido Democrata pelos Clintonistas. Sem tumultos nas ruas e greves nas fábricas como na Grande Depressão dos anos 30, o presidente Obama se contentou em simplesmente atualizar a Terceira Via para a realidade do pós-quebradeira: um pouco de regulação aqui, um pouco de estímulo ali, mas o arcabouço subjacente – e a base de elite que o torna possível – ficou essencialmente intocado.
Explicando a guinada à direita
As explicações convencionais enxergam o salto para a direita na política econômica nas últimas décadas e assumem que o eleitorado saltou na mesma direção – que o eleitor médio, pensando que os gastos do governo e o liberalismo cultural foram longe demais, se atirou à direita. Quem me dera que as instituições políticas estadunidenses fossem assim tão responsivas ao eleitorado!
O problema é que o eleitorado não é um órgão estático e não mediado. Sua composição e características mudam de um ano para o outro. Somente a organização – seja ela realizada por sindicatos, partidos ou algum outro ator da sociedade civil – pode transformá-lo de uma massa amorfa em grupos discretos capazes de promover suas preferências e interesses.
Mas organização exige dinheiro. A desigualdade de poder e de recursos que define o capitalismo, então, acaba moldando a própria composição e capacidades do eleitorado – quem pode se organizar e quem não pode, quem comparece às urnas e quem fica em casa, quais visões de mundo se expressam na mídia e quais não podem se expressar.
Em outros países capitalistas, os trabalhadores responderam a essas amarras sobre a democracia alavancando os recursos do movimento trabalhista para construir partidos de massa financeiramente e organizacionalmente independentes do capital. A mão de obra organizada dos EUA nunca foi tão longe. Os não membros das elites sempre desempenharam o papel de juniores nesse jogo.
Portanto, quando os interesses empresariais democratas se cansaram das políticas públicas do New Deal – que eles haviam ajudado a moldar a cada passo do caminho – eles foram capazes de rasgar o pacto que haviam feito com as bases do partido. Quando buscaram um orçamento equilibrado em vez de novos gastos sociais nos anos Clinton, eles conseguiram aquilo que queriam.
É essa relação de subordinação que explica a mudança para a direita nos EUA. Pleno emprego, investimento público, tributação sobre os ricos – tudo isso atrai um apoio considerável. A questão, como dizem os comentaristas políticos, é a vontade política.
Para agravar ainda mais o problema, há a expansão do “estado submerso”. Apesar da antipatia da Terceira Via com relação aos programas do “grande governo”, são programas universais, fornecidos diretamente pelo Estado que se mostram mais sustentáveis e mais capazes de gerar eleitores mobilizados. A Previdência Social efetivamente transformou os idosos de uma reflexão eleitoral tardia em um dos blocos eleitorais mais poderosos do país.
Mas o problema não é apenas uma questão de políticas públicas. O obstáculo no caminho é um elemento mais fundamental das democracias capitalistas. Como o capitalismo é organizado em torno do princípio de que antes que qualquer coisa possa operar, os capitalistas devem esperar lucro, as políticas invariavelmente serão escritas tendo em mente primeiramente os negócios. É uma restrição que aprisionou os melhores dos social-democratas europeus no século XX e que, com a mesma certeza, prejudicaria um partido independente da classe trabalhadora hoje nos EUA. Precisamos de uma política anticapitalista, então, que possa romper esse impasse.
Sem revogar permanentemente seu poder de veto, os interesses empresariais não apenas continuarão a impedir as reformas radicais que os socialistas desejam. Eles vão subverter perpetuamente a condição mais básica do governo democrático – que os cidadãos comuns, e não os financiadores corporativos, possam definir a agenda.
Sobre o autor
Shawn é editor associado da Jacobin.
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