Kate Robinson
Jacobin
Tradução / Era verão de 2013, e eu estava mergulhada num artigo que enaltecia Sevéro Snape como o maior exemplo de heroísmo feminino na saga Harry Potter. Apesar de reconhecer a óbvia masculinidade de Snape, o autor insistia que o personagem estava repleto de símbolos que remetiam à feminilidade – como seria demonstrado, dentre outras coisas, pela sua preferência por poções a varinhas “fálicas”.
Embora possa parecer uma discussão banal, fazia sentido no contexto do universo de fãs. Posts e artigos relacionados se multiplicavam sobre se a popularidade de personagens masculinos brancos impede o potencial social transformativo da cultura de fãs, estimulando que esses espaços transbordem com artigos de fãs sobre como seus personagens favoritos esconderiam qualidades subversivas — personagens que na superfície são masculinos e brancos seriam na verdade, de maneira cifrada, LGBTs, femininos, ou até mesmo de outras etnias.
Em suma, era uma corrida armamentista entre os guerreiros da justiça social. O ativismo progressista na internet se misturou com a cultura geek para criar um ambiente em que as preferências de ficção de alguém tinham de ser equalizadas à sua moral pessoal e à sua visão política. E eu havia entrado de cabeça nesse ambiente.
Minha imersão na comunidade geek progressista foi sempre ambivalente. Eu adorava analisar as correntes ideológicas na ficção e enxergava a cultura pop como uma fonte preciosa para ilustrar questões mais abrangentes — como o papel dos estereótipos raciais do mundo real na construção das raças fictícias do universo de Tolkien, por exemplo, ou a predominância de personagens não jogáveis masculinos nos vídeo games.
Porém, eu não cheguei a acreditar que criticar a mídia fosse uma forma relevante de ativismo; sempre suspeitei que isso parecia um jeito para que nós geeks e ex-estudantes de Humanas pudéssemos inflar nosso próprio senso de poder e a importância de nossos interesses.
Ainda assim tentei manter a mente aberta. A maioria das críticas às teorias de “justiça social” era feita por conservadores e reacionários; e ainda que eu soubesse vagamente que algumas pessoas de esquerda adotavam uma abordagem mais estrutural sobre a opressão e a desigualdade, nunca havia me sentido muito impressionada por eles. Muitas vezes referidos como “reducionistas de classe” por ativistas de justiça social, eles pareciam outro grupo qualquer tentando promover sua causa preferida acima de todas as outras.
Afinal, como o capitalismo poderia ser a causa de toda opressão se, obviamente, já havia opressão antes do capitalismo? Por acaso essas pessoas acreditavam que o mundo pré-capitalista era algum tipo de utopia, ou elas usavam uma definição de capitalismo que, de alguma forma, se aplicaria à toda a história humana? Também me impressionava que radicais da esquerda pareciam céticos em relação à política eleitoral — uma atitude que, para mim, soava elitista e preguiçosa.
Mas com quase um ano de “guerras do Snape” eu estava chegando no meu limite. As tretas no universo de fãs pareciam bem menos inofensivas e divertidas: as pessoas começaram a ser assediadas e tachadas como se fizessem apologia ao abuso por se divertirem com relacionamentos abusivos fictícios, enquanto relacionamentos reais eram destruídos por causa de divergências de interpretações políticas da ficção. E, mais importante, fui tendo cada vez mais certeza de que minhas desconfianças sobre esse tipo de ativismo online se originavam nas suas implicações ideológicas, não somente na sua falta de envolvimento com a vida real.
Eu já não conseguia tolerar a psicoanalítica invasiva e as tendências confessionais daquilo que eu, até então, acreditava ser o pensamento radical. O problema é que eu não sabia definir exatamente minhas objeções ou articular uma alternativa. Pensava que talvez minha personalidade simplesmente fosse mais conservadora que a das pessoas à minha volta. Fui tomada por sentimentos de vergonha e angústia.
No entanto, quando me vi rompendo em lágrimas com o que antes era um passatempo divertido, percebi que meus esforços para me reconciliar com esse ambiente supostamente radical haviam fracassado. Assim, parei para repensar. Decidi analisar as forças por trás dessas perversas guerras culturais que eu tinha testemunhado, embarcando na tortuosa jornada de leituras e reflexões que, de maneira inesperada, acabou me levando ao socialismo.
Como muitos liberais e progressistas, eu concordava com uma narrativa política que identificava a raiz da política conservadora dos EUA — e, por extensão, dos problemas da sociedade — no conservadorismo cultural dos estadunidenses. Em particular, eu assumia que o racismo e o fundamentalismo religioso da população pobre impediam que ela votasse segundo seus próprios interesses econômicos. Eu acreditava que esse profundo conservadorismo cultural só seria erradicado, e a justiça social alcançada, se gradualmente fôssemos educando a população – daí a importância da cultura pop e da mídia de massa.
Na minha compreensão dos mecanismos de mudança social, quase não havia meio campo algum entre as eleições e a violência revolucionária. Eu sabia que sindicatos existiam, mas somente como grupos que defendiam melhores salários para os trabalhadores em indústrias específicas, e via os movimentos sociais como um meio de conscientização sobre problemas sociais, para que depois isso pudesse ser canalizado de volta e se refletir na política eleitoral.
Mas quanto mais eu lia, mais me convencia de que as pessoas mais poderosas no mundo não eram políticos, mas capitalistas. Percebi que os estadunidenses comuns tinham pouquíssima influência nas ações do governo e que o Partido Democrata não representa, de fato, os interesses econômicos da maioria da população — que seus líderes não estão somente à espera de mais apoio popular para passarem uma agenda progressista abrangente.
Ao contrário; os Democratas devem favores a alguns dos mesmos interesses empresariais aos quais se submetem os Republicanos; e a falta de poder político dos eleitores de baixa renda e da classe trabalhadora é o principal entrave para uma mudança progressista, não a cultura conservadora.
Descobri que os movimentos sociais mais efetivos — como aqueles que levaram à aprovação das leis trabalhistas e ao fim da segregação racial legalizada — não eram apenas uma questão de influenciar o eleitorado e de pressionar os políticos, mas sim de desafiar diretamente uma classe dominante corporativa, na qual ninguém votou. Além disso, descobri que os socialistas participam do sistema eleitoral, mas enfrentam suas lutas no espaço de trabalho e na comunidade, construindo movimentos democráticos para questionar o status quo.
Essa revelação sobre a estrutura de poder na sociedade foi um divisor de águas. Me convenceu de que impostos e a construção de um Estado de bem-estar social não são o suficiente para garantir alta qualidade de vida para todos, pois a classe dominante irá fazer de tudo para atacar e enfraquecer políticas progressistas assim que tiver poder político suficiente para isso.
Para ser franca, essa nova visão me deixou com um retrato muito mais duro da sociedade do que eu imaginara anteriormente. Entretanto, foi libertador perceber que justiça e democracia não eram valores conflitantes, e que a classe trabalhadora é o centro da teoria socialista por estar na melhor posição para realizar uma mudança sistêmica — e não porque seus problemas fossem, supostamente, os únicos problemas verdadeiros.
Quando os socialistas falam de classe, não querem dizer que o preconceito de classe é pior que as outras formas de preconceito, ou que a exploração é pior que outras formas de opressão. As estruturas econômicas e as relações de trabalho moldam a vida de todo mundo. Os socialistas se importam profundamente com as pautas sobre racismo e sexismo; só que eles têm uma abordagem materialista sobre essas questões. Além disso, embora os socialistas se foquem no capitalismo por ser o sistema econômico atual, sua forma de análise oferece sacadas para se compreender outros tipos de sociedades de classe ao longo de toda a história.
Meu novo entendimento sobre o poder também colocou em cheque minha concepção de mudança social. Não dava mais para acreditar em “eficiência democrática” — a ideia de que as políticas nos países democráticos seriam motivadas pela opinião popular, ao invés de o serem pela concentração de poder. Ainda que o idioma, os símbolos, a psicologia e as ações individuais moldem os processos político-econômicos, eles não conseguem explicar as raízes da injustiça, da opressão e da desigualdade.
Supostamente, a ênfase na ação das pessoas seria uma abordagem com mais nuances do que o foco nas instituições ou estruturas, mas isso muitas vezes resulta num otimismo excessivo sobre “diálogo” e “conscientização” — para não mencionar os debates infinitos sobre se as fanfics eróticas estariam ajudando ou prejudicando a causa revolucionária. Botar fé demais nas palavras e nos símbolos pode nos deixar vulneráveis a direções erradas, enquanto que supervalorizar a complexidade pode eliminar análises claras das relações de poder.
Um exemplo revelador foi o comentário do ex-participante do programa Jeopardy!(um programa de perguntas e respostas muito popular nos EUA) e escritor progressista Arthur Chu, em 2015, no Twitter: “Para mim, o governo da Thatcher foi péssimo e perverso, mas TAMBÉM, por ela ter sido uma mulher Primeira-Ministra, foi incrível e histórico. Ambos podem ser verdade.”
Para Chu, reconhecer a “perversidade” das políticas de Thatcher era o suficiente para contrabalancear seu elogio. No entanto, ao justapor os aspectos “perversos” e “incríveis” da administração de Thatcher sem avaliar seus impactos relativos, ele criou uma falsa equivalência — como se o valor de representatividade de uma mulher como primeira ministra, de alguma maneira, tirasse o peso dos danos materiais que Thatcher causou à Grã-Bretanha, inclusive às mulheres da classe trabalhadora.
Mascarada como se tivesse muitas nuances, essa visão, no entanto, representa uma incapacidade de pensar em termos sistêmicos — representatividade simbólica sem economia política. Interpretar a eleição de Thatcher como algo positivo também se apoia na premissa da “eficiência democrática” de que o sexismo dentre o eleitorado, mais do que os partidos e suas redes de doações, representaria o maior obstáculo que as mulheres enfrentam na política.
Apoiar uma mulher da elite seria, portanto, um sinal de progresso gradual, e poderíamos esperar que que seu poder simbólico vá gotejar até as outras mulheres ao catalisar uma transformação das atitudes populares. A justiça econômica, enquanto isso, é articulada não como um componente essencial para a igualdade de gêneros, mas como um objetivo separado que está sempre competindo com ela.
O comentário do Chu é um exemplo, digamos, extremo — nem todos os ativistas pela justiça social chegariam tão longe a ponto de defender Margaret Thatcher. Mas até mesmo aqueles que possuem uma perspectiva mais radical acabam promovendo ideias que tiram o foco das estruturas de poder. Especificamente, há uma certa confusão em torno do que se entende pelas palavras “estrutura” e “institucional”, que são frequentemente tratadas como se se referissem a um agregado de preconceitos e comportamentos individuais, em vez de sistemas políticos e econômicos dominados por uma elite.
Por exemplo, Andrea Smith, em seu famoso ensaio “O Problema com o Privilégio”, escreve sobre a importância em focar nos “sistemas maiores que tornam inseguro o mundo inteiro” em vez de “condutas interpessoais.” Mas os detalhes de sua argumentação enfraquecem a questão: uma de suas sugestões para desmantelar o “privilégio em um nível organizacional” é que cada orador com diploma universitário traga consigo um co-orador que não possua um diploma.
Além disso, apesar de Smith condenar a prática de apontar os privilégios dos indivíduos para que sintam culpa, o teor de seus argumentos é sobre como a teoria do privilégio não iria longe o suficiente na generalização da culpa pelos problemas sociais: “Essa estratégia retórica supõe que somente alguns sujeitos privilegiados tornam o espaço ‘inseguro’, como se todo mundo não estivesse implicado no heteropatriarcado, na supremacia branca, no colonialismo das ocupações territoriais e no capitalismo.” Os ativistas deveriam, no entanto, operar a partir da hipótese de que todos seriam “cúmplices nas estruturas da supremacia branca, do colonialismo, do heteropatriarcado, etc.”
Se não há como negar que todas as pessoas são capazes de atuar como opressoras, a ideia de que todo mundo é automaticamente cúmplice nos sistemas de opressão tão somente por viver sob eles pode ter implicações absurdas. Smith parece acreditar que a aceitação de uma enorme culpa em massa tornará as pessoas menos precipitadas para julgar as outras, criando um ambiente mais solidário nos espaços de ativistas.
Pela minha minha experiência, no entanto, é mais provável que isso encoraje um tipo de política em que vários grupos marginalizados são considerados responsáveis pela opressão de outros, como a construção dos asiático-americanos como facilitadores da supremacia branca.
A própria Smith já disse que os imigrantes que chegam aos Estados Unidos para “crescer na vida” não obtiveram êxito em refletir sobre a “sua cumplicidade na ocupação das terras dos povos nativos”. Tal retórica acaba por minar a solidariedade.
O socialismo oferece um modo mais consistente e eficiente de realizar os valores que eu já apoiava quando me identificava como liberal. É moral sem ser moralista, defendendo que o melhor caminho para mudar o comportamento das pessoas é atacar os sistemas que as forçam a competir entre si, e que o próprio interesse material da classe trabalhadora é um princípio motivador melhor que conceitos de pecado e de redenção.
Os socialistas acreditam que, embora as circunstâncias e as experiências variem drasticamente, as pessoas merecem muito mais do que recebem, na maioria das vezes, e que compartilhamos de um interesse comum na construção de um futuro em que todo mundo tenha os meios para prosperar. Uma vez que alguém aceita essa premissa — de que todos deveriam ter o direito à vidas seguras e satisfatórias — e passa a enxergar como as instituições dominantes impedem que isso ocorra, o tempo todo, fica difícil não abraçar uma visão política “socialista”. E deixar para trás as “guerras do Snape”.
Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban |
Tradução / Era verão de 2013, e eu estava mergulhada num artigo que enaltecia Sevéro Snape como o maior exemplo de heroísmo feminino na saga Harry Potter. Apesar de reconhecer a óbvia masculinidade de Snape, o autor insistia que o personagem estava repleto de símbolos que remetiam à feminilidade – como seria demonstrado, dentre outras coisas, pela sua preferência por poções a varinhas “fálicas”.
Embora possa parecer uma discussão banal, fazia sentido no contexto do universo de fãs. Posts e artigos relacionados se multiplicavam sobre se a popularidade de personagens masculinos brancos impede o potencial social transformativo da cultura de fãs, estimulando que esses espaços transbordem com artigos de fãs sobre como seus personagens favoritos esconderiam qualidades subversivas — personagens que na superfície são masculinos e brancos seriam na verdade, de maneira cifrada, LGBTs, femininos, ou até mesmo de outras etnias.
Em suma, era uma corrida armamentista entre os guerreiros da justiça social. O ativismo progressista na internet se misturou com a cultura geek para criar um ambiente em que as preferências de ficção de alguém tinham de ser equalizadas à sua moral pessoal e à sua visão política. E eu havia entrado de cabeça nesse ambiente.
Minha imersão na comunidade geek progressista foi sempre ambivalente. Eu adorava analisar as correntes ideológicas na ficção e enxergava a cultura pop como uma fonte preciosa para ilustrar questões mais abrangentes — como o papel dos estereótipos raciais do mundo real na construção das raças fictícias do universo de Tolkien, por exemplo, ou a predominância de personagens não jogáveis masculinos nos vídeo games.
Porém, eu não cheguei a acreditar que criticar a mídia fosse uma forma relevante de ativismo; sempre suspeitei que isso parecia um jeito para que nós geeks e ex-estudantes de Humanas pudéssemos inflar nosso próprio senso de poder e a importância de nossos interesses.
Ainda assim tentei manter a mente aberta. A maioria das críticas às teorias de “justiça social” era feita por conservadores e reacionários; e ainda que eu soubesse vagamente que algumas pessoas de esquerda adotavam uma abordagem mais estrutural sobre a opressão e a desigualdade, nunca havia me sentido muito impressionada por eles. Muitas vezes referidos como “reducionistas de classe” por ativistas de justiça social, eles pareciam outro grupo qualquer tentando promover sua causa preferida acima de todas as outras.
Afinal, como o capitalismo poderia ser a causa de toda opressão se, obviamente, já havia opressão antes do capitalismo? Por acaso essas pessoas acreditavam que o mundo pré-capitalista era algum tipo de utopia, ou elas usavam uma definição de capitalismo que, de alguma forma, se aplicaria à toda a história humana? Também me impressionava que radicais da esquerda pareciam céticos em relação à política eleitoral — uma atitude que, para mim, soava elitista e preguiçosa.
Mas com quase um ano de “guerras do Snape” eu estava chegando no meu limite. As tretas no universo de fãs pareciam bem menos inofensivas e divertidas: as pessoas começaram a ser assediadas e tachadas como se fizessem apologia ao abuso por se divertirem com relacionamentos abusivos fictícios, enquanto relacionamentos reais eram destruídos por causa de divergências de interpretações políticas da ficção. E, mais importante, fui tendo cada vez mais certeza de que minhas desconfianças sobre esse tipo de ativismo online se originavam nas suas implicações ideológicas, não somente na sua falta de envolvimento com a vida real.
Eu já não conseguia tolerar a psicoanalítica invasiva e as tendências confessionais daquilo que eu, até então, acreditava ser o pensamento radical. O problema é que eu não sabia definir exatamente minhas objeções ou articular uma alternativa. Pensava que talvez minha personalidade simplesmente fosse mais conservadora que a das pessoas à minha volta. Fui tomada por sentimentos de vergonha e angústia.
No entanto, quando me vi rompendo em lágrimas com o que antes era um passatempo divertido, percebi que meus esforços para me reconciliar com esse ambiente supostamente radical haviam fracassado. Assim, parei para repensar. Decidi analisar as forças por trás dessas perversas guerras culturais que eu tinha testemunhado, embarcando na tortuosa jornada de leituras e reflexões que, de maneira inesperada, acabou me levando ao socialismo.
Como muitos liberais e progressistas, eu concordava com uma narrativa política que identificava a raiz da política conservadora dos EUA — e, por extensão, dos problemas da sociedade — no conservadorismo cultural dos estadunidenses. Em particular, eu assumia que o racismo e o fundamentalismo religioso da população pobre impediam que ela votasse segundo seus próprios interesses econômicos. Eu acreditava que esse profundo conservadorismo cultural só seria erradicado, e a justiça social alcançada, se gradualmente fôssemos educando a população – daí a importância da cultura pop e da mídia de massa.
Na minha compreensão dos mecanismos de mudança social, quase não havia meio campo algum entre as eleições e a violência revolucionária. Eu sabia que sindicatos existiam, mas somente como grupos que defendiam melhores salários para os trabalhadores em indústrias específicas, e via os movimentos sociais como um meio de conscientização sobre problemas sociais, para que depois isso pudesse ser canalizado de volta e se refletir na política eleitoral.
Mas quanto mais eu lia, mais me convencia de que as pessoas mais poderosas no mundo não eram políticos, mas capitalistas. Percebi que os estadunidenses comuns tinham pouquíssima influência nas ações do governo e que o Partido Democrata não representa, de fato, os interesses econômicos da maioria da população — que seus líderes não estão somente à espera de mais apoio popular para passarem uma agenda progressista abrangente.
Ao contrário; os Democratas devem favores a alguns dos mesmos interesses empresariais aos quais se submetem os Republicanos; e a falta de poder político dos eleitores de baixa renda e da classe trabalhadora é o principal entrave para uma mudança progressista, não a cultura conservadora.
Descobri que os movimentos sociais mais efetivos — como aqueles que levaram à aprovação das leis trabalhistas e ao fim da segregação racial legalizada — não eram apenas uma questão de influenciar o eleitorado e de pressionar os políticos, mas sim de desafiar diretamente uma classe dominante corporativa, na qual ninguém votou. Além disso, descobri que os socialistas participam do sistema eleitoral, mas enfrentam suas lutas no espaço de trabalho e na comunidade, construindo movimentos democráticos para questionar o status quo.
Essa revelação sobre a estrutura de poder na sociedade foi um divisor de águas. Me convenceu de que impostos e a construção de um Estado de bem-estar social não são o suficiente para garantir alta qualidade de vida para todos, pois a classe dominante irá fazer de tudo para atacar e enfraquecer políticas progressistas assim que tiver poder político suficiente para isso.
Para ser franca, essa nova visão me deixou com um retrato muito mais duro da sociedade do que eu imaginara anteriormente. Entretanto, foi libertador perceber que justiça e democracia não eram valores conflitantes, e que a classe trabalhadora é o centro da teoria socialista por estar na melhor posição para realizar uma mudança sistêmica — e não porque seus problemas fossem, supostamente, os únicos problemas verdadeiros.
Quando os socialistas falam de classe, não querem dizer que o preconceito de classe é pior que as outras formas de preconceito, ou que a exploração é pior que outras formas de opressão. As estruturas econômicas e as relações de trabalho moldam a vida de todo mundo. Os socialistas se importam profundamente com as pautas sobre racismo e sexismo; só que eles têm uma abordagem materialista sobre essas questões. Além disso, embora os socialistas se foquem no capitalismo por ser o sistema econômico atual, sua forma de análise oferece sacadas para se compreender outros tipos de sociedades de classe ao longo de toda a história.
Meu novo entendimento sobre o poder também colocou em cheque minha concepção de mudança social. Não dava mais para acreditar em “eficiência democrática” — a ideia de que as políticas nos países democráticos seriam motivadas pela opinião popular, ao invés de o serem pela concentração de poder. Ainda que o idioma, os símbolos, a psicologia e as ações individuais moldem os processos político-econômicos, eles não conseguem explicar as raízes da injustiça, da opressão e da desigualdade.
Supostamente, a ênfase na ação das pessoas seria uma abordagem com mais nuances do que o foco nas instituições ou estruturas, mas isso muitas vezes resulta num otimismo excessivo sobre “diálogo” e “conscientização” — para não mencionar os debates infinitos sobre se as fanfics eróticas estariam ajudando ou prejudicando a causa revolucionária. Botar fé demais nas palavras e nos símbolos pode nos deixar vulneráveis a direções erradas, enquanto que supervalorizar a complexidade pode eliminar análises claras das relações de poder.
Um exemplo revelador foi o comentário do ex-participante do programa Jeopardy!(um programa de perguntas e respostas muito popular nos EUA) e escritor progressista Arthur Chu, em 2015, no Twitter: “Para mim, o governo da Thatcher foi péssimo e perverso, mas TAMBÉM, por ela ter sido uma mulher Primeira-Ministra, foi incrível e histórico. Ambos podem ser verdade.”
Para Chu, reconhecer a “perversidade” das políticas de Thatcher era o suficiente para contrabalancear seu elogio. No entanto, ao justapor os aspectos “perversos” e “incríveis” da administração de Thatcher sem avaliar seus impactos relativos, ele criou uma falsa equivalência — como se o valor de representatividade de uma mulher como primeira ministra, de alguma maneira, tirasse o peso dos danos materiais que Thatcher causou à Grã-Bretanha, inclusive às mulheres da classe trabalhadora.
Mascarada como se tivesse muitas nuances, essa visão, no entanto, representa uma incapacidade de pensar em termos sistêmicos — representatividade simbólica sem economia política. Interpretar a eleição de Thatcher como algo positivo também se apoia na premissa da “eficiência democrática” de que o sexismo dentre o eleitorado, mais do que os partidos e suas redes de doações, representaria o maior obstáculo que as mulheres enfrentam na política.
Apoiar uma mulher da elite seria, portanto, um sinal de progresso gradual, e poderíamos esperar que que seu poder simbólico vá gotejar até as outras mulheres ao catalisar uma transformação das atitudes populares. A justiça econômica, enquanto isso, é articulada não como um componente essencial para a igualdade de gêneros, mas como um objetivo separado que está sempre competindo com ela.
O comentário do Chu é um exemplo, digamos, extremo — nem todos os ativistas pela justiça social chegariam tão longe a ponto de defender Margaret Thatcher. Mas até mesmo aqueles que possuem uma perspectiva mais radical acabam promovendo ideias que tiram o foco das estruturas de poder. Especificamente, há uma certa confusão em torno do que se entende pelas palavras “estrutura” e “institucional”, que são frequentemente tratadas como se se referissem a um agregado de preconceitos e comportamentos individuais, em vez de sistemas políticos e econômicos dominados por uma elite.
Por exemplo, Andrea Smith, em seu famoso ensaio “O Problema com o Privilégio”, escreve sobre a importância em focar nos “sistemas maiores que tornam inseguro o mundo inteiro” em vez de “condutas interpessoais.” Mas os detalhes de sua argumentação enfraquecem a questão: uma de suas sugestões para desmantelar o “privilégio em um nível organizacional” é que cada orador com diploma universitário traga consigo um co-orador que não possua um diploma.
Além disso, apesar de Smith condenar a prática de apontar os privilégios dos indivíduos para que sintam culpa, o teor de seus argumentos é sobre como a teoria do privilégio não iria longe o suficiente na generalização da culpa pelos problemas sociais: “Essa estratégia retórica supõe que somente alguns sujeitos privilegiados tornam o espaço ‘inseguro’, como se todo mundo não estivesse implicado no heteropatriarcado, na supremacia branca, no colonialismo das ocupações territoriais e no capitalismo.” Os ativistas deveriam, no entanto, operar a partir da hipótese de que todos seriam “cúmplices nas estruturas da supremacia branca, do colonialismo, do heteropatriarcado, etc.”
Se não há como negar que todas as pessoas são capazes de atuar como opressoras, a ideia de que todo mundo é automaticamente cúmplice nos sistemas de opressão tão somente por viver sob eles pode ter implicações absurdas. Smith parece acreditar que a aceitação de uma enorme culpa em massa tornará as pessoas menos precipitadas para julgar as outras, criando um ambiente mais solidário nos espaços de ativistas.
Pela minha minha experiência, no entanto, é mais provável que isso encoraje um tipo de política em que vários grupos marginalizados são considerados responsáveis pela opressão de outros, como a construção dos asiático-americanos como facilitadores da supremacia branca.
A própria Smith já disse que os imigrantes que chegam aos Estados Unidos para “crescer na vida” não obtiveram êxito em refletir sobre a “sua cumplicidade na ocupação das terras dos povos nativos”. Tal retórica acaba por minar a solidariedade.
O socialismo oferece um modo mais consistente e eficiente de realizar os valores que eu já apoiava quando me identificava como liberal. É moral sem ser moralista, defendendo que o melhor caminho para mudar o comportamento das pessoas é atacar os sistemas que as forçam a competir entre si, e que o próprio interesse material da classe trabalhadora é um princípio motivador melhor que conceitos de pecado e de redenção.
Os socialistas acreditam que, embora as circunstâncias e as experiências variem drasticamente, as pessoas merecem muito mais do que recebem, na maioria das vezes, e que compartilhamos de um interesse comum na construção de um futuro em que todo mundo tenha os meios para prosperar. Uma vez que alguém aceita essa premissa — de que todos deveriam ter o direito à vidas seguras e satisfatórias — e passa a enxergar como as instituições dominantes impedem que isso ocorra, o tempo todo, fica difícil não abraçar uma visão política “socialista”. E deixar para trás as “guerras do Snape”.
Sobre a autora
Kate Robinson é uma tradutora e editora freelancer que mora em Nova Jersey.
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