4 de novembro de 2016

Os tradutores árabes fizeram muito mais que somente preservar a filosofia grega

Peter Adamson

Aeon

Sócrates e seus alunos, ilustração de "Kitab Mukhtar al-Hikam wa-Mahasin al-Kilam" de Al-Mubashir, Escola Turca, (séc. XIII) Foto de Bridgeman

Tradução / Na antiguidade europeia, os filósofos em grande parte escreveram em grego. Mesmo depois da conquista romana do Mediterrâneo e a cessão do paganismo, a filosofia foi fortemente associada à cultura helênica. Os principais pensadores do mundo romano, tais como Cícero e Sêneca , eram embebidos de literatura helênica; Cícero inclusive foi a Atenas para prestar homenagem à casa de seus heróis filosóficos. Ditosamente o Imperador Marco Aurélio foi tão longe quanto escrever suas Meditações em grego. Cícero, e depois Boécio , tentaram iniciar uma tradição filosófica em latim. Porém nas antigas Idades Médias, a maioria do pensamento grego era acessível em latim somente parcial ou indiretamente.

Alhures, a situação era melhor. Na parte leste do Império Romano, os grego-falantes bizantinos podiam continuar a ler Platão e Aristóteles no original. E os filósofos do mundo islâmico desfrutavam de um extraordinário grau de acesso à herança intelectual helênica. Em Bagdá do século X, leitores árabes tinham o mesmo grau de acesso a Aristóteles quanto os leitores em inglês na atualidade

Isto foi graças a um muito bem remunerado movimento de tradução que se revelou durante o califado abássida, começando na segunda metade do século VIII. Patrocinado por altos níveis, até mesmo pelo Califa e sua família, este movimento objetivou importar a filosofia e a ciência grega para a cultura islâmica. O império deles tinha recursos para tal, não só financeiramente, mas culturalmente também. Desde a antiguidade tardia até a ascensão do Islã, o grego sobreviveu tal como língua de atividade intelectual entre cristãos, especialmente na Síria. Então quando a aristocracia muçulmana decidiu ter a ciência e a filosofia gregas traduzidas para o árabe, foi para os cristãos que eles se voltaram. Algumas vezes, um trabalho em grego poderia ser traduzido antes para o siríaco e só depois para o árabe. Foi um imenso desafio. O grego não é uma língua semítica, então eles se movimentavam de um grupo linguístico para outro, tal como traduzir do finlandês para o inglês. E não existia, no início, qualquer terminologia para expressar ideias filosóficas em árabe.

O que levaria a classe política abássida a sustentar este enorme e difícil empreendimento? Parte da explanação é sem dúvida a pura utilidade do corpus científico: texto-chave em disciplinas tais como engenharia e medicina tinham obviamente aplicações práticas. Só que isto não nos diz por que os tradutores eram regiamente pagos para traduzir, por exemplo, a Metafísica de Aristóteles ou a Enêida de Plotino para o árabe. Pesquisas pelos principais eruditos do movimento da tradução grego-árabe, especialmente Dimitri Gutas em Greek Thought, Arabic Culture (1998), sugere que os motivos eram de fato profundamente políticos. Os califas queriam estabelecer sua própria hegemonia cultural, em competição com a cultura persa e também com a dos vizinhos bizantinos . Os abássidas queriam mostrar que eles podiam dar continuidade à cultura helênica melhor que os bizantinos grego-falantes, ignorantes como eles eram pela irracionalidade da teologia cristã.

Os intelectuais muçulmanos também viram recursos nos textos gregos para defender e melhor compreender sua própria religião. Um dos primeiros a abraçar esta possibilidade foi al-Kindi , tradicionalmente designado como o primeiro filósofo a escrever em árabe (ele morreu por volta de 870 dC). Um muçulmano bem-disposto que se movia nos círculos da corte, al-Kindī supervisionava a atividade de eruditos cristãos que podiam traduzir do grego para o árabe. Os resultados foram mistos. A versão do círculo da Metafísica de Aristóteles pode ser quase incompreensível às vezes (para ser justo, pode-se dizer isso da Metafísica em grego também), enquanto a sua ‘tradução’ dos escritos de Plotino muitas vezes toma a forma de uma paráfrase livre com novo material adicionado.

Há um particularmente dramático exemplo de algo característico das traduções grego-árabe em geral – e talvez de todas as traduções filosóficas. Aqueles que pessoalmente traduziram filosofia, de uma língua estrangeira, sabem que para tentá-lo você tem que possuir profundo conhecimento daquilo que você está lendo. Ao longo do caminho, você tem que fazer escolhas difíceis sobre como traduzir o texto fonte para a língua alvo e o leitor (que talvez não saiba, ou não esteja possibilitado de acesso à versão original) estará à mercê das decisões do tradutor.

Aqui vai meu exemplo favorito. Aristóteles usa a palavra grega eidos no sentido tanto de ‘forma’ – tal como em ‘substância é feita de forma e matéria’ – e como ‘espécie’ – tal como em ‘humano é a espécie que cai sobre o gênero do anima’. Mas em árabe, como em inglês [ou português] existem duas palavras diferentes (‘forma’ é súra, ‘espécie’ é nauw). Como resultado, os tradutores árabes tiveram que decidir, toda vez que cruzaram com a palavra eidos. Qual destes conceitos Aristóteles tinha em mente – às vezes era óbvio, mas às vezes não. O árabe Plotino, no entanto, vai além de tais necessárias decisões de terminologia. Isto causa intervenções dramáticas no texto, o que ajuda a trazer à tona a relevância dos ensinamentos de Plotino para a teologia monoteísta, reutilizando a ideia neoplatônica de um princípio supremo e absolutamente simples do poderoso Criador nas crenças abraâmicas.

Qual foi o papel do próprio al-Kindi em tudo isto? Na verdade, não estamos totalmente seguros. Parece ser claro que ele próprio não fez traduções e talvez nem conhecesse muito o grego. Mas está registrado que ‘corrigiu’ o árabe de Plotino, o que pode se ter extendido à adição de suas próprias ideias ao texto. Evidentemente al-Kindi e seus colaboradores pensaram que uma ‘verdadeira’ tradução é aquela que transmite a verdade, não somente aquela que é fiel ao texto fonte.

Mas al-Kindi não ficou satisfeito com isto. Ele também escreveu uma série de trabalhos independentes, usualmente na forma de cartas ou epístolas a seus patronos, que incluía o próprio califa. Essas cartas explicam a importância e a força das ideias gregas e como essas ideias podem falar às preocupações do nono século do Islã. De fato, ele era assim como um relações públicas do pensamento helénico. Isto não quer dizer que ele servilmente seguia seus antigos antecessores que escreveram em grego. Ao contrário, a originalidade do círculo de al-Kindi reside em sua adoção e adaptação das ideias helénicas. Quando al-Kindi tenta estabelecer uma identidade do primeiro princípio de Aristóteles e Plotino com o Deus do Corão, o caminho está preparado por traduções que já tratam este princípio como o Criador. Ele sabia o que estamos aptos a esquecer na atualidade: que traduções de trabalhos filosóficos podem ser um forte caminho para fazer filosofia.

Peter Adamson é professor de filosofia na Ludwig Maximilian University of Munich. Ele é autor de inúmeros livros, incluindo The Arabic Plotinus (2002), Great Medieval Thinkers: al-Kindi (2007) e Philosophy in the Islamic World (2007) e hospeda o podcast History of Philosophy.

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