Ativistas católicos como Maura Clarke, uma freira americana assassinada por um esquadrão da morte salvadorenho em 1980, transformaram o trabalho missionário em solidariedade antiimperialista.
Hilary Goodfriend
Maura Clarke in Managua, Nicaragua, wearing a Sandinista handkerchief on the first anniversary of the Nicaraguan Revolution. Maryknoll Mission Archives |
Tradução / No dia 2 de dezembro de 1980, quatro cadáveres foram encontrados na zona rural de El Salvador. A descoberta desses corpos, alguns com sinais de estupro, expôs, como disse a jornalista Eileen Markey “as covas rasas da Guerra Fria em seu auge”. Os corpos logo foram identificados como sendo de quatro religiosas estadunidenses, assassinadas por esquadrões da morte treinados nos Estados Unidos: Ita Ford, Dorothy Kazel, Jean Donovan e Maura Clarke. Esta última tornou-se objeto de pesquisa da jornalista e professora Markey, e da biografia publicada em seu livro: A Radical Faith: The Assassination of Sister Maura.
O brutal assasinato dessas mulheres, embora chocante, era absurdamente banal, dada a intensa e onipresente violência em El Salvador, no início de uma guerra civil que se prolongaria por 12 anos. Contudo, essa carnificina atraiu protestos internacionais, e incomodou o recém eleito governo Reagan, que procurava aumentar mais ainda o apoio político e militar à ditadura militar salvadorenha.
Esse regime apoiado pelos Estados Unidos fazia guerra contra a oposição. E seus opositores deslocavam-se progressivamente para a esquerda, frustrados com manifestações pela paz, movimentos em prol de reformas democráticas, e protestos contra a semifeudal e oligárquica concentração de riquezas e poder no país. Os Estados Unidos, determinados a erradicar qualquer aspiração revolucionária, como a deflagrada por Cuba, em 1959, vitoriosa na Nicarágua em 1979, injetaram centenas de milhões de dólares nesse sanguinário governo que, com o poder da força militar (e paramilitar), massacrou povoados inteiros, matou e fez desaparecer milhares de civis, eliminou opositores políticos, líderes trabalhistas, padres, e, como o livro de Eileen Marley destaca, assassinou freiras nascidas nos Estados Unidos.
Após os cruéis assassinatos das quatro religiosas, a embaixadora de Reagan nas Nações Unidas, Jeane Kirkpatrick, declarou com frieza que “aquelas freiras, não eram apenas freiras”. Esse comentário, com a intenção de sugerir que Maura, Ita, Dorothy e Jean tivessem de alguma maneira merecido seu destino, provocou indignação.
Porém, como a pesquisa da jornalista Markey sobre a vida de uma dessas freiras mostraria, Kirkpatrick não estava de todo errada: elas não eram “apenas freiras”, eram muito mais do que freiras. Elas eram mulheres extremamente corajosas, que arriscaram a vida ao apoiar as vítimas mais vulneráveis da política externa dos Estados Unidos, na luta por dignidade e autodeterminação. E isso foi feito em nome da fé.
“A vida de Maura como missionária na América Central está associada à expansão do poder estadunidense e indica o cálculo faustiano adotado por Washington, DC, em suas cruzadas anticomunistas”, escreve a jornalista. A trajetória de vida de Maura também reflete o extraordinário movimento de solidariedade de ativistas nos Estados Unidos que, “mudando de lado” como ela fez, juntaram-se à revolução. Nessa biografia extensamente pesquisada, e profundamente amorosa, a autora faz o devido tributo a uma vítima da violência da guerra civil em El Salvador, mais conhecida por sua morte do que pelo que fez em vida. Nesse sentido, o livro destaca o decisivo papel da comunidade, apoiando, de perto ou de longe, os movimentos de libertação nacional, desafiando tanto os opressores internos, quanto seus maiores aliados, os Estados Unidos.
A missão e o império
Para reconstruir a excepcional trajetória da vida de Maura, Markey fez uma minuciosa pesquisa. Ela descreve com cores vivas o quadro da infância de Maura, da classe trabalhadora irlandesa-americana, na então pouco habitada Rockaways, no Queens, NY, na década de 1930 e 1940, um lugar pequeno e tranquilo no inverno mas, com muitas e belas praias, superlotado nas concorridas temporadas de verão. Maura era filha de imigrantes irlandeses, e seu pai um militante da independência da Irlanda, que conheceu sua mãe quando ela tratou, como enfermeira, os ferimentos de um de seus companheiros de luta. Esta herança de rebeldia e solidariedade iria contribuir na percepção que Maura viria a ter sobre a opressão, luta e mesmo sobre o uso da violência, quando as comunidades às quais ele servia e convivia, passaram a pegar em armas contra seus implacáveis adversários.
Mas na juventude, Maura não foi nem um pouco revolucionária. Sua comunidade irlandesa-americana era devotadamente católica, fervorosamente patriótica e visceralmente anticomunista.
E na ordem católica na qual Maura ingressou aos 19 anos, em 1950, não era muito diferente. Suas missões no exterior acompanhavam a expansão dos interesses do imperialismo pelo mundo, desempenhando o papel que depois o Corpo da Paz veio a ter, projetando uma imagem positiva dos Estados Unidos, sem questionar o protagonismo central de suas políticas na perpetuação dos sistemas de exploração e pobreza, que as missões procuram mitigar.
Markey considera que a jovem Maura filiou-se a uma ordem católica, com missões no exterior, movida não só por elevada e verdadeira vocação religiosa, mas também no sentido da aventura.
Em sua primeira missão no exterior, foi para a Nicarágua em 1959, o ano do triunfo da revolução em Cuba, quando Fidel Castro derrubou a ditadura de Fulgêncio Batista, sustentada pelos Estados Unidos. A missão de Maura entretanto não tinha nenhuma ambição revolucionária: ela voou de Miami para Nicarágua na companhia da sogra de Anastasio Somoza, o comandante da Guarda Nacional, peça-chave no governo daquela despótica dinastia que, na definição de Markey “governava a Nicarágua como se fosse uma empresa de negócios, não como nação”.
Maura foi enviada para Siuna, uma remota vila que se formou ao redor de uma mina de ouro canadense, com todas as misérias inerentes a essa situação. Além da igreja do lugar, as freiras também eram responsáveis pela escola e pelo hospital. Elas tinham a anuência do governo Somoza, e, mais tarde, contariam com o apoio do principal aliado dos Estados Unidos, através da Aliança Para o Progresso, um programa de cooperação para toda a América Latina, instituído por J. F. Kennedy, em seu primeiro ano de governo, em 1961.
Markey registra que “o trabalho missionário da Ordem Maryknoll limitava-se a melhorar as condições de vida dos moradores de Siuna, aprimorando habilidades que os capacitasse a superar a estrutura social vigente. As freiras não contestavam a justiça do sistema em si”. Mas as coisas na Igreja estavam mudando e freiras como Maura mudavam junto com ela.
Fora do claustro, para as ruas
Em 1959, o papa João XXIII convocou o Concílio Vaticano II, reunindo a cúpula da Igreja Católica, para o que seria o começo de uma reviravolta radical na doutrina. Em 1962, ano em que a irmã Maura tornou-se madre superiora da Missão em Siuna, o Concílio surpreende o mundo católico ao autorizar a celebração de missas nas línguas locais, libertando os preceitos da igreja dos grilhões de uma doutrinação elitista, apologeta da língua latina, para serem compreendidos e interpretados por todo e qualquer fiel.
Em 1968, a Conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín foi mais longe, declarando que a Igreja tinha uma “opção preferencial pelos pobres” e propondo uma noção de “pecado estrutural” que transferia seu olhar das deficiências individuais para sistemas opressores de poder. Essas novidades doutrinárias ensejaram o desenvolvimento conceitual da teoria da libertação, que transformaria dramaticamente tanto a Igreja Católica quanto a esquerda na América Latina.
Como resultado do Concílio II, a Ordem Maryknoll modificou o relacionamento da congregação com o mundo, e mais do que praticar a caridade, passa a trabalhar na organização das comunidades. Suas freiras criaram as Comunidades Cristãs de Base (CBC), e usavam as escrituras bíblicas para ajudar os paroquianos a desenvolver análises críticas sobre a realidade, na perspectiva de que eles elaborassem juntos meios para transformá-la coletivamente. A própria Ordem tornou-se mais democrática, e Maura Clarke, irmã superiora, fez parte da defesa para aprofundar o engajamento com a sociedade em geral. As freiras estavam saindo dos conventos e indo para as ruas.
Em 1970, Maura começa a trabalhar nas favelas de Manágua. Desta vez sua missão era muito diferente. Ela e as freiras sob sua orientação compartilhavam a pobreza da nova vizinhança e igualmente as suas lutas. Elas acompanharam o crescente engajamento da comunidade assim como seu ativismo nos movimentos sociais; foram a manifestações de rua ao lado de vizinhos, paroquianos, e militantes, enfrentando a escalada da repressão do Estado; deram apoio aos estudantes que ocuparam a Catedral Nacional, confortando aqueles que faziam greve de fome pela libertação de presos políticos. Após o terremoto de 1972, Maura organiza Comunidades Cristãs de Base em campos de refugiados e faz campanhas para dar condições de maior dignidade aos desabrigados.
É impossível negar ou medir a influência da Teologia da Libertação nos movimentos revolucionários de países como a Nicarágua e El Salvador. Em toda a América Latina, notadamente na América Central, a disseminação e incorporação dos conceitos da Teologia da Libertação e a organização e popularização das Comunidades Cristãs de Base foram importantes fatores para a significativa ampliação dos movimentos de massa que fortaleceram a oposição de esquerda e demonstraram esse apoio nas manifestações nas ruas.
O regime de Somoza e seus aliados passaram então a condenar qualquer tipo de defesa dos direitos humanos fundamentais, como subversão comunista. As atividades de Maura e de suas companheiras tornou-se cada vez mais arriscada e clandestina, mas isso não a deteve.
Como freira, Maura considerava a solidariedade com a luta dos pobres por dignidade e melhores condições de vida a sua mais elevada vocação, muito explícita, segundo Markey, pela citação que ela frequentemente repetia, João 15:13: “Não há amor maior do que aquele que sacrifica a própria vida pelo seu igual.” Estudantes e religiosos juntavam-se à Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que já tinha em suas fileiras conhecidos padres que colocavam a nova doutrina em prática. Para Maura, segundo Markey, este é o momento em que “a política e a religião se fundem”.
O brutal assasinato dessas mulheres, embora chocante, era absurdamente banal, dada a intensa e onipresente violência em El Salvador, no início de uma guerra civil que se prolongaria por 12 anos. Contudo, essa carnificina atraiu protestos internacionais, e incomodou o recém eleito governo Reagan, que procurava aumentar mais ainda o apoio político e militar à ditadura militar salvadorenha.
Esse regime apoiado pelos Estados Unidos fazia guerra contra a oposição. E seus opositores deslocavam-se progressivamente para a esquerda, frustrados com manifestações pela paz, movimentos em prol de reformas democráticas, e protestos contra a semifeudal e oligárquica concentração de riquezas e poder no país. Os Estados Unidos, determinados a erradicar qualquer aspiração revolucionária, como a deflagrada por Cuba, em 1959, vitoriosa na Nicarágua em 1979, injetaram centenas de milhões de dólares nesse sanguinário governo que, com o poder da força militar (e paramilitar), massacrou povoados inteiros, matou e fez desaparecer milhares de civis, eliminou opositores políticos, líderes trabalhistas, padres, e, como o livro de Eileen Marley destaca, assassinou freiras nascidas nos Estados Unidos.
Após os cruéis assassinatos das quatro religiosas, a embaixadora de Reagan nas Nações Unidas, Jeane Kirkpatrick, declarou com frieza que “aquelas freiras, não eram apenas freiras”. Esse comentário, com a intenção de sugerir que Maura, Ita, Dorothy e Jean tivessem de alguma maneira merecido seu destino, provocou indignação.
Porém, como a pesquisa da jornalista Markey sobre a vida de uma dessas freiras mostraria, Kirkpatrick não estava de todo errada: elas não eram “apenas freiras”, eram muito mais do que freiras. Elas eram mulheres extremamente corajosas, que arriscaram a vida ao apoiar as vítimas mais vulneráveis da política externa dos Estados Unidos, na luta por dignidade e autodeterminação. E isso foi feito em nome da fé.
“A vida de Maura como missionária na América Central está associada à expansão do poder estadunidense e indica o cálculo faustiano adotado por Washington, DC, em suas cruzadas anticomunistas”, escreve a jornalista. A trajetória de vida de Maura também reflete o extraordinário movimento de solidariedade de ativistas nos Estados Unidos que, “mudando de lado” como ela fez, juntaram-se à revolução. Nessa biografia extensamente pesquisada, e profundamente amorosa, a autora faz o devido tributo a uma vítima da violência da guerra civil em El Salvador, mais conhecida por sua morte do que pelo que fez em vida. Nesse sentido, o livro destaca o decisivo papel da comunidade, apoiando, de perto ou de longe, os movimentos de libertação nacional, desafiando tanto os opressores internos, quanto seus maiores aliados, os Estados Unidos.
A missão e o império
Para reconstruir a excepcional trajetória da vida de Maura, Markey fez uma minuciosa pesquisa. Ela descreve com cores vivas o quadro da infância de Maura, da classe trabalhadora irlandesa-americana, na então pouco habitada Rockaways, no Queens, NY, na década de 1930 e 1940, um lugar pequeno e tranquilo no inverno mas, com muitas e belas praias, superlotado nas concorridas temporadas de verão. Maura era filha de imigrantes irlandeses, e seu pai um militante da independência da Irlanda, que conheceu sua mãe quando ela tratou, como enfermeira, os ferimentos de um de seus companheiros de luta. Esta herança de rebeldia e solidariedade iria contribuir na percepção que Maura viria a ter sobre a opressão, luta e mesmo sobre o uso da violência, quando as comunidades às quais ele servia e convivia, passaram a pegar em armas contra seus implacáveis adversários.
Mas na juventude, Maura não foi nem um pouco revolucionária. Sua comunidade irlandesa-americana era devotadamente católica, fervorosamente patriótica e visceralmente anticomunista.
E na ordem católica na qual Maura ingressou aos 19 anos, em 1950, não era muito diferente. Suas missões no exterior acompanhavam a expansão dos interesses do imperialismo pelo mundo, desempenhando o papel que depois o Corpo da Paz veio a ter, projetando uma imagem positiva dos Estados Unidos, sem questionar o protagonismo central de suas políticas na perpetuação dos sistemas de exploração e pobreza, que as missões procuram mitigar.
Markey considera que a jovem Maura filiou-se a uma ordem católica, com missões no exterior, movida não só por elevada e verdadeira vocação religiosa, mas também no sentido da aventura.
Em sua primeira missão no exterior, foi para a Nicarágua em 1959, o ano do triunfo da revolução em Cuba, quando Fidel Castro derrubou a ditadura de Fulgêncio Batista, sustentada pelos Estados Unidos. A missão de Maura entretanto não tinha nenhuma ambição revolucionária: ela voou de Miami para Nicarágua na companhia da sogra de Anastasio Somoza, o comandante da Guarda Nacional, peça-chave no governo daquela despótica dinastia que, na definição de Markey “governava a Nicarágua como se fosse uma empresa de negócios, não como nação”.
Maura foi enviada para Siuna, uma remota vila que se formou ao redor de uma mina de ouro canadense, com todas as misérias inerentes a essa situação. Além da igreja do lugar, as freiras também eram responsáveis pela escola e pelo hospital. Elas tinham a anuência do governo Somoza, e, mais tarde, contariam com o apoio do principal aliado dos Estados Unidos, através da Aliança Para o Progresso, um programa de cooperação para toda a América Latina, instituído por J. F. Kennedy, em seu primeiro ano de governo, em 1961.
Markey registra que “o trabalho missionário da Ordem Maryknoll limitava-se a melhorar as condições de vida dos moradores de Siuna, aprimorando habilidades que os capacitasse a superar a estrutura social vigente. As freiras não contestavam a justiça do sistema em si”. Mas as coisas na Igreja estavam mudando e freiras como Maura mudavam junto com ela.
Fora do claustro, para as ruas
Em 1959, o papa João XXIII convocou o Concílio Vaticano II, reunindo a cúpula da Igreja Católica, para o que seria o começo de uma reviravolta radical na doutrina. Em 1962, ano em que a irmã Maura tornou-se madre superiora da Missão em Siuna, o Concílio surpreende o mundo católico ao autorizar a celebração de missas nas línguas locais, libertando os preceitos da igreja dos grilhões de uma doutrinação elitista, apologeta da língua latina, para serem compreendidos e interpretados por todo e qualquer fiel.
Em 1968, a Conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín foi mais longe, declarando que a Igreja tinha uma “opção preferencial pelos pobres” e propondo uma noção de “pecado estrutural” que transferia seu olhar das deficiências individuais para sistemas opressores de poder. Essas novidades doutrinárias ensejaram o desenvolvimento conceitual da teoria da libertação, que transformaria dramaticamente tanto a Igreja Católica quanto a esquerda na América Latina.
Como resultado do Concílio II, a Ordem Maryknoll modificou o relacionamento da congregação com o mundo, e mais do que praticar a caridade, passa a trabalhar na organização das comunidades. Suas freiras criaram as Comunidades Cristãs de Base (CBC), e usavam as escrituras bíblicas para ajudar os paroquianos a desenvolver análises críticas sobre a realidade, na perspectiva de que eles elaborassem juntos meios para transformá-la coletivamente. A própria Ordem tornou-se mais democrática, e Maura Clarke, irmã superiora, fez parte da defesa para aprofundar o engajamento com a sociedade em geral. As freiras estavam saindo dos conventos e indo para as ruas.
Em 1970, Maura começa a trabalhar nas favelas de Manágua. Desta vez sua missão era muito diferente. Ela e as freiras sob sua orientação compartilhavam a pobreza da nova vizinhança e igualmente as suas lutas. Elas acompanharam o crescente engajamento da comunidade assim como seu ativismo nos movimentos sociais; foram a manifestações de rua ao lado de vizinhos, paroquianos, e militantes, enfrentando a escalada da repressão do Estado; deram apoio aos estudantes que ocuparam a Catedral Nacional, confortando aqueles que faziam greve de fome pela libertação de presos políticos. Após o terremoto de 1972, Maura organiza Comunidades Cristãs de Base em campos de refugiados e faz campanhas para dar condições de maior dignidade aos desabrigados.
É impossível negar ou medir a influência da Teologia da Libertação nos movimentos revolucionários de países como a Nicarágua e El Salvador. Em toda a América Latina, notadamente na América Central, a disseminação e incorporação dos conceitos da Teologia da Libertação e a organização e popularização das Comunidades Cristãs de Base foram importantes fatores para a significativa ampliação dos movimentos de massa que fortaleceram a oposição de esquerda e demonstraram esse apoio nas manifestações nas ruas.
O regime de Somoza e seus aliados passaram então a condenar qualquer tipo de defesa dos direitos humanos fundamentais, como subversão comunista. As atividades de Maura e de suas companheiras tornou-se cada vez mais arriscada e clandestina, mas isso não a deteve.
Como freira, Maura considerava a solidariedade com a luta dos pobres por dignidade e melhores condições de vida a sua mais elevada vocação, muito explícita, segundo Markey, pela citação que ela frequentemente repetia, João 15:13: “Não há amor maior do que aquele que sacrifica a própria vida pelo seu igual.” Estudantes e religiosos juntavam-se à Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que já tinha em suas fileiras conhecidos padres que colocavam a nova doutrina em prática. Para Maura, segundo Markey, este é o momento em que “a política e a religião se fundem”.
Quando a luta dos sandinistas contra os Somozas se consolida, Maura volta aos Estados Unidos, em 1976. E com sua fé radical, ela explica a luta da FSLN aos católicos e denuncia a cumplicidade do governo dos Estados Unidos nesse regime criminoso. Maura chega a participar da ocupação do consulado da Nicarágua nas Nações Unidas. Seu trabalho de conscientização e o dos missionários retornados aos Estados Unidos lançaram as bases dos diversos movimentos que, em 1980, viriam consagrar a solidariedade à América Central.
Martírio
Os sandinistas finalmente derrotaram os Somoza em 1979. Maura poderia ter voltado para a Nicarágua para se somar ao estimulante trabalho de construção de uma nova sociedade menos desigual. Mas ela escolheu ir para El Salvador, um pequeno país, cuja população estava submetida a um tipo de violência diferente de qualquer outra que ela tivesse conhecido na Nicarágua.
E antes que partisse para o que seria sua curta missão, tragicamente interrompida, Maura celebrou o primeiro aniversário da revolução sandinista. Markey ilustra seu livro com uma foto instantânea que mostra Maura, radiante, caminhando nas ruas de Manágua, com um lenço da FSLN ao redor do pescoço.
O motivo da decisão da freira de ir para El Salvador está na frase na primeira pessoa do plural, como a religiosa dizia, e como Markey reproduz: “Nós vencemos aqui. Eles não vencerão em El Salvador.” Estas palavras ecoavam aquelas que os revolucionários também faziam ressoar pela América Latina: “Si Nicaragua venció, El Salvador vencerá.”
Neste trecho do livro, a autora faz um corte abrupto na narrativa. Do clima de celebração e esperança na Nicarágua, passa a fazer um esboço sombrio do que era El Salvador no ano de 1980: uma paisagem composta por morte, degradação e pobreza, de violência brutal e indiscriminada.
Maura chega lá após o chocante assassinato do querido arcebispo salvadorenho Oscar Romero, em 24 de março de 1980, por esquadrões da morte ligados à direita. O arcebispo Romero, meses antes de sua morte, tinha pedido que a Ordem Maryknoll enviasse freiras para, expressamente, amparar os pobres, que eram, como sempre, as maiores e mais numerosas vítimas do terror, em sua luta por direitos.
As freiras de El Salvador recebiam constantes ameaças de morte das forças militares apoiadas pelos EUA e de grupos paramilitares. A extrema direita que governava o país propalava o slogan: “Haz patria, mata un cura!” (Seja patriota, mate um padre!), e após o assassinato do arcebispo Romero, ficou claro que ninguém estava a salvo. Maura sabia que havia uma grande chance, muito provável, de que ela tivesse o mesmo destino do arcebispo, mas não desistiu de ir.
A pesquisa de Markey revela interessantes detalhes. Por exemplo: um mês antes de Maura, Ita, Dorothy e Jean serem mortas, a embaixada dos EUA organizou uma reunião na noite dos resultados eleitorais. Após o anúncio da vitória de Reagan, os oficiais militares presentes comemoraram a notícia dando tiros para o alto em volta da piscina, enquanto os oligarcas zombavam de seus anfitriões, do governo Carter não reeleito, chamando-os jocosamente de comunistas.
E em visita à pequena e atormentada nação em 1982, a escritora estadunidense Joan Didion registrou que “o terror tomou conta do lugar” e que “mortos ou pedaços de mortos aparecem em qualquer lugar, todos os dias, a qualquer momento, como num pesadelo inevitável ou num filme de terror”. Em um relato impressionante, Joan Didion descreve não só o panorama de terror político como também o intenso terremoto ocorrido durante as duas semanas em que visitou o país. A realidade para ela é aterrorizante e assombrosa, e os fatos e números, tenebrosos, são imprecisamente misturados e distorcidos. A despeito de sua poderosa e emocionante narrativa, os horrores e crimes testemunhados por ela, relatados sem uma clara distinção do contexto, nunca foram plenamente entendidos.
Mas não por Maura Clark. Para ela, e para os imbuídos de uma fé como a dela, a verdade era clara: tratava-se de uma luta por direitos, dos oprimidos contra os opressores.
Em El Salvador, Maura foi trabalhar na linha de frente da guerra ao norte do país, nas montanhas Chalatenango, na resistência assediada pelo estado de terror, no estágio inicial de uma guerra entre a ditadura militar da extrema direita e a esquerda revolucionária da Frente de Libertação Nacional Farabundo Marti (FLNFM).
Maura e seus companheiros, clérigos e religiosas, ajudavam as vítimas da violência em Chalatenango transportando, secretamente, os refugiados para lugares protegidos na capital, providenciavam alimentos, roupas e remédios para os necessitados e elaborando relatórios que identificavam o montante das violações dos direitos humanos. A paróquia de Maura, rapidamente, passou a receber ameaças de morte, mas as freiras recusaram-se a abandonar suas atividades.
Elas seguiam os passos de religiosos como Rutilo Grande, um padre salvadorenho que, profeticamente, antes de morrer assassinado em 1977, advertia:
Martírio
Os sandinistas finalmente derrotaram os Somoza em 1979. Maura poderia ter voltado para a Nicarágua para se somar ao estimulante trabalho de construção de uma nova sociedade menos desigual. Mas ela escolheu ir para El Salvador, um pequeno país, cuja população estava submetida a um tipo de violência diferente de qualquer outra que ela tivesse conhecido na Nicarágua.
E antes que partisse para o que seria sua curta missão, tragicamente interrompida, Maura celebrou o primeiro aniversário da revolução sandinista. Markey ilustra seu livro com uma foto instantânea que mostra Maura, radiante, caminhando nas ruas de Manágua, com um lenço da FSLN ao redor do pescoço.
O motivo da decisão da freira de ir para El Salvador está na frase na primeira pessoa do plural, como a religiosa dizia, e como Markey reproduz: “Nós vencemos aqui. Eles não vencerão em El Salvador.” Estas palavras ecoavam aquelas que os revolucionários também faziam ressoar pela América Latina: “Si Nicaragua venció, El Salvador vencerá.”
Neste trecho do livro, a autora faz um corte abrupto na narrativa. Do clima de celebração e esperança na Nicarágua, passa a fazer um esboço sombrio do que era El Salvador no ano de 1980: uma paisagem composta por morte, degradação e pobreza, de violência brutal e indiscriminada.
Maura chega lá após o chocante assassinato do querido arcebispo salvadorenho Oscar Romero, em 24 de março de 1980, por esquadrões da morte ligados à direita. O arcebispo Romero, meses antes de sua morte, tinha pedido que a Ordem Maryknoll enviasse freiras para, expressamente, amparar os pobres, que eram, como sempre, as maiores e mais numerosas vítimas do terror, em sua luta por direitos.
As freiras de El Salvador recebiam constantes ameaças de morte das forças militares apoiadas pelos EUA e de grupos paramilitares. A extrema direita que governava o país propalava o slogan: “Haz patria, mata un cura!” (Seja patriota, mate um padre!), e após o assassinato do arcebispo Romero, ficou claro que ninguém estava a salvo. Maura sabia que havia uma grande chance, muito provável, de que ela tivesse o mesmo destino do arcebispo, mas não desistiu de ir.
A pesquisa de Markey revela interessantes detalhes. Por exemplo: um mês antes de Maura, Ita, Dorothy e Jean serem mortas, a embaixada dos EUA organizou uma reunião na noite dos resultados eleitorais. Após o anúncio da vitória de Reagan, os oficiais militares presentes comemoraram a notícia dando tiros para o alto em volta da piscina, enquanto os oligarcas zombavam de seus anfitriões, do governo Carter não reeleito, chamando-os jocosamente de comunistas.
E em visita à pequena e atormentada nação em 1982, a escritora estadunidense Joan Didion registrou que “o terror tomou conta do lugar” e que “mortos ou pedaços de mortos aparecem em qualquer lugar, todos os dias, a qualquer momento, como num pesadelo inevitável ou num filme de terror”. Em um relato impressionante, Joan Didion descreve não só o panorama de terror político como também o intenso terremoto ocorrido durante as duas semanas em que visitou o país. A realidade para ela é aterrorizante e assombrosa, e os fatos e números, tenebrosos, são imprecisamente misturados e distorcidos. A despeito de sua poderosa e emocionante narrativa, os horrores e crimes testemunhados por ela, relatados sem uma clara distinção do contexto, nunca foram plenamente entendidos.
Mas não por Maura Clark. Para ela, e para os imbuídos de uma fé como a dela, a verdade era clara: tratava-se de uma luta por direitos, dos oprimidos contra os opressores.
Em El Salvador, Maura foi trabalhar na linha de frente da guerra ao norte do país, nas montanhas Chalatenango, na resistência assediada pelo estado de terror, no estágio inicial de uma guerra entre a ditadura militar da extrema direita e a esquerda revolucionária da Frente de Libertação Nacional Farabundo Marti (FLNFM).
Maura e seus companheiros, clérigos e religiosas, ajudavam as vítimas da violência em Chalatenango transportando, secretamente, os refugiados para lugares protegidos na capital, providenciavam alimentos, roupas e remédios para os necessitados e elaborando relatórios que identificavam o montante das violações dos direitos humanos. A paróquia de Maura, rapidamente, passou a receber ameaças de morte, mas as freiras recusaram-se a abandonar suas atividades.
Elas seguiam os passos de religiosos como Rutilo Grande, um padre salvadorenho que, profeticamente, antes de morrer assassinado em 1977, advertia:
"Estou convencido de que não vai demorar muito tempo para a Bíblia e os Evangelhos serem proibidos de cruzar as fronteiras. Só deixarão que entrem as capas dos livros, porque o conteúdo será considerado subversivo… Se o próprio Jesus Cristo atravessasse a fronteira, também não o deixariam entrar. Eles iriam acusar que ele, o filho de Deus, era um agitador, ou um judeu, estrangeiro, que confunde as pessoas com ideias estranhas e extravagantes, ideias anti-democráticas… Amigos, eles sem nenhuma dúvida o crucificariam novamente."
Numa noite, três freiras e uma noviça voltavam do aeroporto para casa, mas nunca chegaram ao seu destino.
O legado da fé radical
Na reta final do livro, Markey traz à baila os procedimentos judiciais. Cinco militares da Guarda Nacional, autores materiais dos crimes, foram condenados em 1984. Mas os oficiais superiores, que coordenaram o ataque, se evadiram da lei por cerca de 30 anos. Finalmente, em 2015 e 2016, dois oficiais da mais alta patente na hierarquia militar, à época dos assassinatos, foram extraditados para El Salvador, após décadas em confortável exílio nos Estados Unidos. Estão agora em andamento as tentativas de reabertura do processo nas cortes salvadorenhas.
Como vários outros religiosos assassinados em El Salvador, Maura e suas companheiras são honradas como santas nas comunidades em que serviram e viveram. Seus rostos figuram em murais pelo país e a data de suas mortes é homenageada a cada ano com procissões e missas populares. A Secretaria Cultural da Presidência designou como Marco Histórico o lugar onde os quatro corpos foram encontrados. Este reconhecimento só se tornou possível depois que a Frente Nacional de Libertação Farabundo Martí (FNLFM) ganhou as eleições presidenciais de 2009.
A biografia de Markey resistiu à casual armadilha de induzir que Maura fosse uma simples espectadora, vítima casual da violência política. Ela e as irmãs missionárias foram alvos dos militares salvadorenhos por contestarem o regime de opressão vigente, sustentado pelos Estados Unidos. Os generais salvadorenhos e seus sustentáculos nos EUA tinham motivos para temê-las: elas faziam parte de um inexorável e urgente movimento por justiça econômica e social, que abalaria o sistema de cima a baixo.
Ricardo Sala, um espanhol da Catalunha, professor da Universidade Jesuíta de El Salvador comenta que, na história dos revolucionários da América Latina, a religião teve uma função mais libertadora que alienadora, e que Marx teria poupado muitas dificuldades para a esquerda se em sua conhecida citação, ele tivesse acrescentado duas palavrinhas: “A religião é o ópio do povo… por enquanto!”
A igreja, tanto para Maura Clarke, como para muitos, não constituiu um obstáculo para sua politização, pelo contrário. Uma Fé Radical, o livro de Eileen Markey, mostra a transformação de um dos maiores agentes da opressão colonial, o missionário religioso, em um ativista radicalmente solidário à causa anti-imperialista.
O legado da fé radical
Na reta final do livro, Markey traz à baila os procedimentos judiciais. Cinco militares da Guarda Nacional, autores materiais dos crimes, foram condenados em 1984. Mas os oficiais superiores, que coordenaram o ataque, se evadiram da lei por cerca de 30 anos. Finalmente, em 2015 e 2016, dois oficiais da mais alta patente na hierarquia militar, à época dos assassinatos, foram extraditados para El Salvador, após décadas em confortável exílio nos Estados Unidos. Estão agora em andamento as tentativas de reabertura do processo nas cortes salvadorenhas.
Como vários outros religiosos assassinados em El Salvador, Maura e suas companheiras são honradas como santas nas comunidades em que serviram e viveram. Seus rostos figuram em murais pelo país e a data de suas mortes é homenageada a cada ano com procissões e missas populares. A Secretaria Cultural da Presidência designou como Marco Histórico o lugar onde os quatro corpos foram encontrados. Este reconhecimento só se tornou possível depois que a Frente Nacional de Libertação Farabundo Martí (FNLFM) ganhou as eleições presidenciais de 2009.
A biografia de Markey resistiu à casual armadilha de induzir que Maura fosse uma simples espectadora, vítima casual da violência política. Ela e as irmãs missionárias foram alvos dos militares salvadorenhos por contestarem o regime de opressão vigente, sustentado pelos Estados Unidos. Os generais salvadorenhos e seus sustentáculos nos EUA tinham motivos para temê-las: elas faziam parte de um inexorável e urgente movimento por justiça econômica e social, que abalaria o sistema de cima a baixo.
Ricardo Sala, um espanhol da Catalunha, professor da Universidade Jesuíta de El Salvador comenta que, na história dos revolucionários da América Latina, a religião teve uma função mais libertadora que alienadora, e que Marx teria poupado muitas dificuldades para a esquerda se em sua conhecida citação, ele tivesse acrescentado duas palavrinhas: “A religião é o ópio do povo… por enquanto!”
A igreja, tanto para Maura Clarke, como para muitos, não constituiu um obstáculo para sua politização, pelo contrário. Uma Fé Radical, o livro de Eileen Markey, mostra a transformação de um dos maiores agentes da opressão colonial, o missionário religioso, em um ativista radicalmente solidário à causa anti-imperialista.
Sobre o autor
Hilary Goodfriend é doutoranda em Estudos Latino-Americanos na Universidad Nacional Autónomo de México (UNAM) na Cidade do México
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