A crise da dívida que a administração Obama enfrenta é o produto da guerra e dos impostos.
Corey Robin
Vol. 33 No. 16 · 25 August 2011 |
Tradução / A crise da dívida pela qual passa o governo Obama é resultado da guerra e dos impostos. Não se discute que a crise vem de antes da eleição de Obama. Quando George W. Bush tomou posse em 2001, os EUA tinham excedente de $2 trilhões. Muitos acreditavam que, se o país simplesmente seguisse o rumo traçado por Bill Clinton, a dívida nacional, então de $5,7 trilhões, estaria zerada ao final da década. Bush escolheu outra via. Cortou impostos e reduziu a arrecadação em cerca de $1,8 trilhão. Declarou guerra geral ao terror e fez duas guerras específicas. Financiadas inteiramente por empréstimos - fato inédito na história dos EUA - as guerras e os gastos extras da Defesa acrescentaram $1,5 trilhão à dívida. A crise financeira e a recessão que a seguiu fizeram encolher ainda mais a arrecadação. Quando deixou o governo, Bush já havia consumido o excedente e praticamente dobrara o tamanho da dívida - foi o presidente que mais aumentou a dívida pública, em toda a história dos EUA.
Não importa o caminho pelo qual chegamos ao ponto onde estamos: a atual crise é política, não financeira. Os EUA não estão ante a perspectiva de não mais poder tomar empréstimos por ninguém querer emprestar; as convulsões são resultado de contingências inteiramente políticas: uma lei de 1917, que exige que o Congresso autorize aumentos no teto da dívida; uma Câmara de Deputados controlada pelos Republicanos que parece sinceramente querer - também pela primeira vez na história dos EUA - impedir qualquer aumento; e um presidente Democrata que - por convicção, astúcia ou necessidade - prefere cooperar, a confrontar a oposição. Dessa convergência nasceu a ideia de que, se o Congresso não autorizasse o aumento do teto de endividamento no dia 2/8, os EUA quebrariam. Isso jamais aconteceria, em nenhum caso: os EUA tinham reservas para pagar as dívidas (e tinham arrecadação futura), e Obama antes cortaria outros gastos, e em nenhum caso o país quebraria. Mesmo assim, com a histeria e o desvario de que só Washington é capaz, fixou-se o consenso de que era preciso fazer alguma coisa, imediatamente.
Se a política não tivesse intervindo e se Obama desse ouvidos aos economistas de centro-esquerda, eis o que deveria ter feito. Primeiro, nada fazer, coisa alguma, em relação à dívida, pelo menos por hora. A dívida pode ser significativamente reduzida, bastando, para tanto, que a economia melhore. A melhor maneira de obter isso é o governo gastar, o que aumentará a dívida no curto prazo, mas a fará diminuir no longo prazo, com a arrecadação gerada pelo crescimento. Segundo, estando a economia saudável, aumentar impostos, sobretudo para os mais ricos. Como parte do PIB, a arrecadação está no nível mais baixo desde 1950. Exceto durante um curto período no final dos anos 80 e início dos 90, os principais impostos marginais chegaram ao nível mais baixo, desde 1931. Impostos cobrados a empresas nos EUA são os mais baixos dentre todos os países da OECD. A ideia de que não se poderiam aumentar impostos, não só para financiar gastos necessários e desejados, mas também para reduzir o déficit, é contraintuitiva. Finalmente, reduzir os gastos militares. Como o jornalista de economia Doug Henwood observou, se os EUA simplesmente voltassem aos níveis de gastos de 2000 - 3,7% do PIB, bem diferentes dos atuais 5,4% -, já poderia economizar $3,6 trilhões, na próxima década, 72% a mais que economizará nos termos do acordo sobre endividamento que Obama negociou com o Congresso.
Nada disso. Obama e o Congresso tomaram o caminho inverso, pavimentado há 40 anos pela filosofia "contra impostos" da direita norte-americana. Em fevereiro de 2010, Obama nomeou uma comissão bipartidária para equilibrar o orçamento até 2015, e fazendo da redução da dívida prioridade absoluta. Depois das eleições de meio de mandato, em novembro, quando os Republicanos reconquistaram a maioria da Câmara com a ajuda do Tea Party, Obama congelou os salários dos trabalhadores federais e endossou um programa de "austeridade" ainda mais agressivo. Só cortes e nenhum aumento de impostos: não uma vez (quando, em dezembro, Obama prorrogou a validade dos cortes de impostos feitos por Bush), mas duas vezes (na primeira fase do acordo da dívida, que elimina $900 bilhões da dívida exclusivamente cortando gastos) e, agora, já quase três vezes (com a segunda fase do acordo, que eliminará mais $1,2 trilhões só em gastos... se uma comissão do Congresso não conseguir produzir pacote de aumentos de impostos e cortes de gastos até novembro). O acordo não fala de cortar gastos da Defesa - e não se sabe se os cortes são cortes ou simples taxas de crescimento mais lento, nem se e como acontecerão - mas recentes comentários de Obama e de seu secretário da Defesa sugerem que o acordo final teria sido o melhor possível, para evitar cortar benefícios.
Por definição, o acordo a que chegaram seria politicamente viável. Por que seria viável - e outras soluções não seriam viáveis - é assunto muito discutível e ferozmente discutido. Muitos culpam os Republicanos, que quereriam encurralar o governo, para prosseguir em sua agenda de baixar impostos e minimizar gastos. Outros culpam Obama: sua sobrenatural aversão a conflitos e crença absurda na boa fé dos Republicanos e no valor do bipartidarismo. Há quem fale também das limitações que constrangem o poder do presidente nos EUA: diferente do que ocorre em sistema parlamentarista, o presidente tem de negociar com deputados da situação e da oposição cujos destinos eleitorais não estão atrelados aos do presidente. Há quem diga que não se pode assumir que Obama desejasse resultado substancialmente diferente do que obteve. Pode ser verdade: Obama sempre declarou seu desejo de cortar gastos do governo; talvez porque suponha que assim melhorariam suas chances de ser reeleito, ou porque embarcou nas ortodoxias neoliberais da moda ou, simplesmente, porque conviveu por tempo demais com os friedmanistas da Universidade de Chicago, Obama não é o progressista que muitos imaginaram que fosse. Obteve o acordo que obteve simplesmente porque era o acordo que desejava obter; ou, então, porque não desejava com o indispensável empenho qualquer outro tipo de acordo.
Todos esses argumentos dão a impressão de ter algo de substancial, mas se os deixamos esfriar e voltamos a eles na manhã seguinte, vê-se que, em todos, falta uma dinâmica mais profunda. Historicamente, crises de dívidas resultantes de guerras sempre catalisaram avanços políticos progressistas e, algumas, até precipitaram revoluções. Charles I e Louis XVI viram-se metidos em conflitos militares que seus sistemas tributários não podiam financiar. Acabaram, os dois envolvidos em confrontações fatais: Charles com o Parlamento em 1640; e Louis com os Estados Gerais em 1789. Além da motivação financeira, as revoluções que derrubaram esses soberanos alimentaram-se também das disputas que os reis tiveram de fazer para aumentar impostos e financiar suas guerras. Como Richard Tuck sugeriu, é possível que o próprio Charles tenha aberto a porta para a democracia na Inglaterra. Para reimplantar um antigo imposto sobre cidades costeiras ("ship money") e com esse dinheiro financiar uma expedição naval contra os holandeses, a Coroa argumentou que a segurança da população seria o mais intocável fundamento da ação política - axioma de todos os republicanos de todos os tempos -, superior a qualquer lei ou constituição. Embora usado para justificar o absolutismo, a retórica de Charles sobre "interesses do povo" carregava importante implicação democrática subversiva: essas guerras não são minhas, são suas, de vocês, do povo, e vocês têm de fazer o possível e o impossível para que sejam guerras vitoriosas. Forças parlamentares poderiam ter contra-argumentado que, se o padrão ouro da política são os interesses e a segurança do povo, melhor seria que representantes eleitos do povo determinassem de que interesses e segurança se tratava e como preferiam vê-los defendidos.
Logo depois do 11/9, muitos liberais esperavam que a guerra ao terror inaugurasse novo capítulo na história da social democracia nos EUA, porque a conclamação ao sacrifício patriótico geraria uma ética da solidariedade social. O que se viu foi Bush capando impostos, endividar o país até o pescoço e converter a guerra ao terror em esporte nacional pela televisão, não em guerra do povo. Soberanos modernos tardios, parece, afastam suas políticas de qualquer democracia, criando exércitos mercenários e mergulhando no pântano dos mercados de crédito fácil. Como resultado, ninguém nos EUA precisa reclamar a propriedade de qualquer valor comum ou coletivo: nem de guerras nem de dívidas; nem o governo nem, com certeza, os cidadãos, cada dia mais empobrecidos e precários.
Por isso, a atual crise foi tomada pela esquerda como oportunidade para retirada e encolhimento, não como fagulha que poderia desencadear uma revolta democrática. Nessa medida, faz lembrar crises semelhantes no Terceiro Mundo ao longo dos últimos 30 anos, sempre usadas pelas elites para justificar cortes drásticos nos gastos do governo e a reestruturação de economias social-democratas. Por exemplo, também, a crise fiscal da cidade de New York em 1975, quando Wall Street pôs-se a impor políticas de "austeridade" e disciplina à social democracia nos EUA, em movimento que, para muitos, deu origem a experimentos posteriores, sempre de crescente "austeridade", na América Latina e pelo mundo. Os apelos persistentes de Obama à austeridade têm estado em sintonia com a posição dos Democratas de Wall Street durante a crise de 1975 e, na sequência dessa crise, com um partido nacional refeito à imagem de Wall Street.
Mas há duas diferenças cruciais, hoje. Não há qualquer ameaça de os emprestadores fecharem as torneiras; emprestadores internacionais parecem perfeitamente desejosos de continuar a financiar o endividamento dos EUA. De fato, quando a Bolsa de Valores desabou depois que Standard and Poor’s rebaixou a avaliação dos EUA, dia 5 de agosto, os investidores correram a pôr seu dinheiro em bônus do Tesouro dos EUA. E onde crises anteriores provocaram resistência popular, dessa vez – por mais que a crise seja simulacro - exceto em Wisconsin e alguns outros estados, o único sinal de mobilização que se viu na esquerda, foi para rápida retirada.
Se há texto de leitura indispensável nesse momento, é O 18 Brumário de Luis Bonaparte, de Marx. Não pela super repetida frase da primeira vez como tragédia, depois como farsa, mas, isso sim, pela impressionante análise, de retrovisão e previsão, do comportamento reacionário dos camponeses franceses ao longo das monarquias Bourbon e de Julho. Embora a revolução de 1789 e Napoleão tivessem libertados os camponeses da servidão, a geração que veio em seguida foi entregue, sem qualquer atenção, à dura disputa dentro do mercado da produção agrícola, contra pequenos proprietários que não lhes podiam oferecer emprego e salário. Sim, já não tinham de pagar impostos feudais aos donos da terra, mas tinham de pagar hipotecas e impostos que nenhum benefício lhes traziam. Com Napoleão III, o estado só lhes ofereceu o espetáculo imperial. Não era pouco, como Marx observou, porque, no exército, os camponeses foram “transformados em heróis, defendendo suas novas posses contra o mundo externo, glorificando a nacionalidade recém adquirida, pilhando e revolucionando o mundo. A farda era seu manto de poder estatal; a guerra, sua poesia”. A isso Marx chamou “o império do campesinato”.
Na análise de Marx vê-se o baixo ventre da crise da dívida - de fato, das últimas quatro décadas da revolta da direita contra impostos, da Proposição 13 de Howard Jarvis em 1978, que destruiu as finanças da California ao impor estritos limites a qualquer aumento de impostos, ao Tea Party. Os liberais sempre têm dificuldade para entender esses movimentos - impostos não servem para nada que preste? - porque não veem como é pouco o que o estado, nos EUA, oferece diretamente aos cidadãos, em relação às circunstâncias econômicas em que vivam. Desde o início dos anos 1970s, com curtos períodos de exceção, os salários dos trabalhadores estão estagnados. O que o estado ofereceu em resposta? Transporte público praticamente não existe. Nem com a "reforma" de Obama o estado oferece assistência médica ou seguro-saúde à maioria da população. Exceto nos bairros ricos, só muito raramente se encontra educação pública de boa qualidade. Nessas circunstâncias, não surpreende que os cidadãos queiram pagar menos impostos. Aí está um tipo de mudança na qual conseguem crer.
Nesse ponto, Democratas como Obama e os que o defendem, que tanto reclamam de o Tea Party ter sitiado a política norte-americana, são os únicos culpados. Durante décadas, os Democratas ajudaram a depauperar o estado norte-americano sempre na vã esperança de que o mercado operaria sua mágica. Por algum tempo, até que operou, enquanto o estado endividava-se sem parar. E os trabalhadores encontraram compensação para os salários estagnados, no crédito fácil e nas hipotecas a juros baixos. Na hora de pagar as dívidas, os salários - no caso dos felizardos que ainda tivessem emprego e salário - não era suficiente para pagar coisa alguma. Só restou aos assalariados clamar por menos impostos e "austeridade". E o imperialismo dos camponeses.
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