1 de abril de 2014

Por trás do laboratório secreto de Marx

Por trás da troca, espreita a produção, mas o que está mais escondido ainda? As condições negadas da possibilidade do capital - na reprodução, na política e na natureza - como locais para a luta anticapitalista expandida.

Nancy Fraser

New Left Review


Tradução / O Capitalismo esta de volta! Apos décadas em que o termo raramente era encontrado fora dos escritos de pensadores Marxianos, comentadores de vertentes variadas agora abertamente se preocupam com a sua sustentabilidade, acadêmicos de todas as escolas se apressam a sistematizar suas criticas e ativistas pelo mundo afora se mobilizam em oposição as suas praticas. (1) Certamente, o retorno do "capitalismo" e um desdobramento desejável e um marco preciso, se e que um era necessário, da profundidade da crise atual--e da carência generalizada de uma elaboração sistemática a respeito dela. O que toda essa conversa sobre o capitalismo indica, sintomaticamente, e a intuição crescente de que os males heterogêneos - financeiro, econômico, ecológico, politico, social - que nos cercam podem ter uma raiz comum; e de que as reformas que se recusarem a lidar com os profundos alicerces estruturantes destes males inevitavelmente falharão. Igualmente, o ressurgimento do termo aponta para o anseio, em vários campos, por uma analise capaz de iluminar as relações entre as distintas lutas sociais de nosso tempo e de fomentar uma cooperação organizada, ate mesmo completamente unificada, de suas correntes mais avançadas e progressistas em um bloco anti-sistêmico. O palpite de que o capitalismo e a categoria central desta analise e certeiro.

A atual intensificação das conversas sobre o capitalismo, contudo, ainda e predominantemente retorica-e mais um sintoma da vontade de uma critica sistemática que de fato uma contribuição efetiva para ela. Gracas a décadas de amnesia coletiva, gerações inteiras de jovens ativistas e acadêmicos se tornaram sofisticados praticantes de analises de discurso, mas permaneceram completamente afastados das tradições do Kapitalkritik. Somente agora eles começam a se perguntar como estas analises poderiam ser praticadas para esclarecer a conjuntura atual. Seus 'anciãos', veteranos de eras passadas de agitação anticapitalista, que poderiam ter fornecido alguma orientação, tem sua própria forma de miopia. Eles falharam retumbantemente, apesar das pretensas boas intenções declaradas, em incorporar de forma sistêmica a perspicácia do feminismo, do pós-colonialismo e do pensamento ecológico na sua compreensão do capitalismo.

A consequência disto e que estamos vivendo uma crise capitalista de enorme intensidade, sem uma teoria critica que possa elucida-la adequadamente. Certamente, a crise atual não se encaixa nos modelos que herdamos: ela e multidimensional, englobando não apenas a economia formal, incluindo a financeira, mas também fenômenos nao-econômicos, como aquecimento global, 'assistência deficitária' e esvaziamento do poder publico em todos os níveis. Ate o momento, os modelos de crise aceitos tendem a focar exclusivamente os aspectos econômicos, os quais são isolados e privilegiados em relação aos outros fatores. Some-se a isso o fato de que a crise atual esta gerando novas configurações politicas e gramaticas de conflito social. As lutas pelo meio-ambiente, pela reprodução social e pelo poder publico são centrais nesta constelação, pois envolvem as múltiplas facetas da desigualdade, incluindo nacionalidade/raça/etnia, religião, sexualidade e classe. Todavia, neste caso os modelos teóricos aceitos também não nos servem, pois continuam a privilegiar as lutas por trabalho a partir da produção.

Em geral, então, nos faltam concepções sobre o capitalismo e a crise capitalista que sejam adequadas ao nosso tempo. Meu objetivo neste artigo e sugerir um caminho que possa suprir esta lacuna. O caminho passa pelo de Karl Marx, cuja concepção do capitalismo eu me proponho a reexaminar com este objetivo em mente. O pensamento de Marx tem muito a oferecer como uma fonte de conceitos gerais. Todavia ele e incapaz de reconhecer sistematicamente gênero, ecologia e poder politico como princípios estruturantes e eixos de desigualdade das sociedades capitalistas - quanto mais como apostas e campos de luta social. Suas melhores ideias portanto devem ser reconstruídas a partir destas perspectivas. Assim, neste artigo minha estrategia e olhar primeiro para Marx e depois para alem dele, na esperança de jogar uma nova luz sobre algumas velhas questões: o que exatamente e o capitalismo - como melhor defini-lo? Devemos pensar sobre ele como um sistema econômico, um modelo ético de vida ou uma ordem social institucionalizada? Como devemos caracterizar as suas 'tendencias a crises', e onde devemos localiza-las?

Características definidoras

Para lidar com estas questões, eu devo começar retomando o que Marx considerou serem as quatro características centrais do capitalismo. Por isso, minha abordagem ira parecer a primeira vista muito ortodoxa, mas pretendo "des-ortodoxiza"-la ao mostrar como essas quatro características pressupõem outras, que na verdade constituem as suas condições de possibilidade de fundo. Enquanto Marx olhou para alem da esfera de troca, analisando o 'laboratório secreto' da produção, para descobrir os segredos do capitalismo, eu procurarei as condições de possibilidade da produção para alem desta esfera, em domínios ainda mais secretos. Para Marx, a primeira característica definidora do capitalismo e a propriedade privada dos meios de produção, o que pressupõe uma divisão de classes entre os proprietários e os produtores. Esta divisão surge como resultado do fim de um mundo social anterior, no qual a maioria das pessoas, independentemente de sua posição, tinha acesso aos meios de subsistência e aos meios de produção; acesso, em outras palavras, a comida, moradia e vestimenta, e a ferramentas, terra e trabalho, sem a necessidade de mediação dos mercados de trabalho. O capitalismo decididamente acabou com esta configuração. Ele cercou o comum, revogou o direito costumeiro de uso da maioria e transformou os recursos compartilhados em propriedade privada de uma reduzida minoria.

Isso nos leva diretamente a segunda característica central de Marx, o mercado de trabalho livre, porque os outros - isto e, a vasta maioria - agora precisa se desdobrar de uma forma bastante peculiar, a fim de que possa trabalhar e conseguir o necessário para continuar vivendo e criar seus filhos. Vale ressaltar o quão bizarra, o quão 'não natural', o quão historicamente anômala e especifica esta instituição do mercado de trabalho livre e. O trabalho aqui e livre em dois sentidos: primeiro, em termos de status jurídico - não escravizado, não servil, não legatário ou de alguma outra maneira atado a algum lugar ou a algum dono particular - portanto flexível e apto a participar de um contrato de trabalho. Mas em segundo lugar, 'livre' do acesso aos meios de subsistência e de produção, inclusive do direito costumeiro de uso da terra e ferramentas - e portanto desprovido dos recursos e prerrogativas que permitem a alguém se ausentar do mercado de trabalho.

Depois vem o fenômeno igualmente estranho do valor auto-expansivo, que e a terceira característica central de Marx. O capitalismo e peculiar por ter um impulso objetivo e sistêmico ou uma orientação: a saber, a acumulação de capital. Em principio, desta forma, tudo o que os proprietários fazem qua capitalistas objetiva expandir seu capital. Como os produtores, eles também obedecem a uma peculiar compulsão sistêmica. E os esforços de todos para satisfazer suas necessidades são secundários, vinculados a outra coisa que adquire prioridade: um imperativo primordial inscrito em um sistema impessoal, a propria necessidade do capitalismo de uma auto-expansão sem fim. Marx e brilhante neste ponto. Numa sociedade capitalista, ele diz, o capital em si torna-se o Sujeito. Os seres humanos são seus peões e apenas lhes resta descobrir, nos intervalos, como podem conseguir o que precisam, alimentando a besta.

A quarta característica especifica o papel distintivo dos mercados na sociedade capitalista. Os mercados sempre existiram ao longo da historia humana, inclusive em sociedades não capitalistas. O seu funcionamento sob o capitalismo, contudo, se distingue por duas outras características. Primeiro, os mercados numa sociedade capitalista servem para alocar os principais insumos a produção de mercadorias. Entendidos pela economia politica burguesa como os "fatores de produção", estes insumos eram originalmente identificados como terra, trabalho e capital. Alem de utilizar os mercados para alocar o trabalho, o capitalismo também os utiliza para alocar os bens imoveis, os bens de produção, as matérias-primas e o credito. A medida que aloca estes insumos produtivos por meio dos mecanismos de mercado, o capitalismo os transforma em mercadorias. E, na notável elaboração de Piero Sraffa, um sistema para a 'produção de mercadorias por meio de mercadorias', apesar de também se apoiar, como veremos, em um pano de fundo de não-mercadorias. (2)

Mas também há uma segunda função-chave que os mercados cumprem em uma sociedade capitalista: eles determinam como investir o excedente de produção. Para Marx, excedente de produção significava o fundo coletivo das energias sociais que superavam as necessárias para reproduzir uma dada forma de vida e para reabastecer o que foi esgotado no curso de vivê-la. A forma como uma sociedade usa suas capacidades excedentes é absolutamente central, levantando questões fundamentais sobre como as pessoas querem viver - onde elas decidem investir as suas energias coletivas, como elas propõem contra-­‐balancear ‘trabalho produtivo’ e vida familiar, lazer e outras atividades - bem como a maneira pela qual elas pretendem se relacionar com a natureza não-humana e o que elas ambicionam deixar para gerações futuras. As sociedades capitalistas tendem a deixar estas decisões para as ‘forças do mercado’. Esta é talvez a sua característica mais influente e perversa - esta delegação dos assuntos mais importantes a um aparato voltado ao reforço do valor monetizado. Isto se aproxima da nossa terceira característica central, a orientação inerente porém cega do capital, o processo auto-expansivo pelo qual ele se constitui como o sujeito da história, deslocando os seres humanos que o criaram e os tornando seus criados.

Ao ressaltar estes dois papéis dos mercados, eu pretendo me contrapor à visão amplamente difundida, segundo a qual o capitalismo impulsiona a sempre crescente comodificação da vida como tal. Eu acho que esta visão nos leva por um beco sem saída a fantasias distópicas de um mundo completamente comodificado. Não somente estas fantasias negligenciam os aspectos emancipatórios dos mercados, mas também não atentam para o fato, acentuado por Immanuel Wallerstein, de que o capitalismo tem funcionado frequentemente na base de lares ‘semi-proletarizados’. Sob esses arranjos, que permitem aos donos pagarem menos aos trabalhadores, vários lares retiram uma significativa parcela de seu sustento de fontes outras que não o salário em espécie, incluindo auto- provisionamento (jardinagem, costura), reciprocidade informal (ajuda mútua, transações em espécie) e transferências do Estado (benefícios assistenciais, serviço social, bens públicos).3 Tais arranjos deixam uma significativa parcela dessas atividades e bens fora do alcance do mercado. Eles nem são meros resquícios residuais de tempos pré-capitalistas, nem estão prestes a acabar. Eles eram intrínsecos ao Fordismo, que era capaz de promover o consumismo da classe trabalhadora nos países centrais apenas por meio da semi-proletarização dos lares, que combinava o emprego masculino com a domesticidade feminina, e da restrição ao desenvolvimento do consumo de mercadorias na periferia. A semi-proletarização é até mais nítida no neo-liberalismo, que construiu toda uma estratégia de acumulação por meio da expulsão de bilhões de pessoas da economia formal para as zonas cinzentas informais, das quais o capital desvia valor. Como veremos, este tipo de ‘acumulação primitiva’ é um processo contínuo que gera lucros ao capital e no qual este se apoia.

O ponto então é que aspectos mercantis das sociedades capitalistas coexistem com aspectos não mercantis. Isto não é uma casualidade ou uma contingência empírica mas sim uma característica inscrita no DNA do capitalismo. De fato, ‘coexistência’ é um termo muito fraco para capturar a relação entre aspectos mercantis e não mercantis de uma sociedade capitalista. Um termo melhor seria ‘imbricação funcional’ ou, ainda mais forte e direto, ‘dependência’.4 Os mercados dependem, para a sua existência, de relações sociais não mercantis que fornecem as suas condições de possibilidade de fundo.

Condições de fundo

Até agora, elaborei uma definição do capitalismo bastante ortodoxa, baseada em quatro características centrais que parecem ser ‘econômicas’. Eu efetivamente segui Marx ao olhar para além da perspectiva do senso comum, focado na troca do mercado para o ‘laboratório secreto’ da produção. Agora, porém, eu gostaria de olhar para além deste laboratório secreto para ver o que é mais secreto ainda. Afirmo que a explicação de Marx, a respeito da produção capitalista, só faz sentido quando começamos a completá-­‐la com as suas condições de possibilidade de fundo. Então a próxima pergunta será: o que deve existir por trás dessas características centrais, de maneira que elas sejam possíveis? O próprio Marx aborda uma questão desse tipo quase ao final do volume I d’O Capital, no capítulo da chamada acumulação ‘primitiva’ ou original.5 De onde o capital vem, ele pergunta - como a propriedade privada dos meios de produção passou a existir e como os produtores se separaram deles? Nos capítulos anteriores, Marx escancarou a lógica econômica do capitalismo, abstraindo as condições de possibilidade de fundo, que foram consideradas simplesmente como dadas. Mas acontece que havia toda uma história de fundo sobre de onde vem o capital em si - uma história bastante violenta de despossessão e expropriação. Ademais, como David Harvey salientou, esta história de fundo não está localizada somente no passado, nas ‘origens’ do capitalismo.6 A expropriação é um mecanismo contínuo, apesar de não oficial, de acumulação, que segue ao lado do mecanismo oficial da exploração - a história aparente de Marx, por assim dizer.

Este movimento, da história aparente da exploração para a história de fundo da expropriação, constitui um importante giro epistemológico, que coloca tudo o que foi dito anteriormente sob nova luz. É análogo ao movimento que Marx faz mais cedo, no começo do Volume I, quando nos convida a deixar para trás a esfera da troca e a perspectiva do senso-comum burguês a ela associada, para entrar no laboratório secreto da produção, que possibilita uma perspectiva mais crítica. Como resultado deste primeiro movimento, descobrimos um segredo sujo: a acumulação se dá via exploração. O Capital se expande, em outras palavras, não pela troca de equivalentes, como sugere a perspectiva de mercado, mas precisamente por meio de seu oposto: pela não-remuneração de uma porção do tempo de trabalho dos trabalhadores. Igualmente, quando nos movemos, no final do volume, da exploração para a expropriação, descobrimos um segredo ainda mais sujo: por trás da coerção sublimada do trabalho remunerado, há evidente violência e roubo de fato. Em outras palavras, a longa elaboração da lógica econômica do capitalismo, que constitui a maior parte do Volume I, não é a última palavra dada. A ela segue uma mudança para outra perspectiva, a perspectiva da despossessão. Este movimento para além do ‘laboratório secreto’ também é um movimento para a história - e para o que tenho chamado de ‘condições de possibilidade’ de fundo para a exploração.

Certamente, contudo, existem outros giros epistemológicos igualmente importantes sugeridos na abordagem de Marx do capitalismo, mas não desenvolvidos por ele. Estes movimentos, para laboratórios mais secretos, ainda precisam de uma conceituação. Eles precisam ser escritos em novos volumes d’O Capital, de preferência, se pretendermos desenvolver uma compreensão adequada do capitalismo do século XXI. Um deles é o giro epistemológico da produção para a reprodução social -­‐ as formas de provisionamento, atenção e interação que produzem e mantêm os laços sociais. Denominada de distintas maneiras como ‘cuidado’, ‘trabalho afetivo’ ou ‘subjetivação’, esta atividade forma os sujeitos humanos do capitalismo, sustentando-os como seres naturais corporificados, enquanto também os constitui como seres sociais, formando seus habitus e a substância sócioética, ou Sittlichkeit, na qual eles se movimentam. O central aqui é o trabalho de socialização da juventude, a construção das comunidades, a produção e a reprodução dos significados compartilhados, as disposições afetivas e os horizontes de valor que estruturam a cooperação social.

Nas sociedades capitalistas, boa parte, embora não tudo, destas atividades acontece fora do mercado, nos lares, nas vizinhanças e em algumas instituições públicas, incluindo escolas e creches; e boa parte disto, embora não tudo, não assume a forma de trabalho remunerado. Todavia, a atividade sócio-reprodutiva é absolutamente necessária à existência do trabalho remunerado, à acumulação de mais-valia e ao funcionamento do capitalismo como tal. O trabalho remunerado não poderia existir sem o trabalho doméstico, a criação de filhos, a educação escolar, o cuidado afetivo e uma série de outras atividades que ajudam a produzir as novas gerações de trabalhadores, a reabastecer as existentes, a manter laços sociais e compreensões compartilhadas. Tal como a ‘acumulação original’, portanto, a reprodução social é uma condição de possibilidade de fundo indispensável da produção capitalista.

Ademais, estruturalmente a divisão entre reprodução social e produção de mercadoria é central ao capitalismo - realmente, é um artefato dele. Como dezenas de teóricas feministas ressaltaram, a distinção é profundamente marcada pelo gênero, com a reprodução associada às mulheres e a produção, aos homens. Historicamente, a separação entre trabalho produtivo remunerado e trabalho reprodutivo não-remunerado tem estruturado as formas capitalistas modernas de subordinação das mulheres. Como aquela entre proprietários e trabalhadores, esta divisão também se apóia no rompimento com um mundo anterior. Neste caso, o que foi destruído foi um mundo no qual o trabalho das mulheres, apesar de distinto do dos homens, era ainda assim visível e publicamente reconhecido, uma parte integrante do universo social. Com o capitalismo, ao contrário, o trabalho reprodutivo é cindido, relegado a uma esfera separada, doméstica e ‘privada’, na qual a sua importância social é obscurecida. E neste novo mundo, no qual o dinheiro é um meio primário de poder, o fato de não ser remunerado encerra o assunto: quem realiza este trabalho está estruturalmente subordinado a quem ganha salário em espécie, mesmo que seu trabalho também forneça as pré-condições necessárias ao trabalho remunerado.

Longe de ser universal, então, a divisão entre produção e reprodução surgiu historicamente com o capitalismo. Mas não foi simplesmente dada de uma vez por todas. Pelo contrário, a divisão sofreu historicamente uma mutação, tomando diferentes formas em diferentes fases do desenvolvimento capitalista. Durante o século XX, alguns aspectos da reprodução social foram transformados em serviços públicos e bens públicos, estatizados mas não comodificados. Hoje, a divisão sofre novamente uma mutação, pois o neoliberalismo (re)privatiza e (re)comodifica alguns destes serviços, ao mesmo tempo em que comodifica pela primeira vez outros aspectos da reprodução social. Ademais, ao demandar ao mesmo tempo a redução do provisionamento público e o recrutamento em massa de mulheres para o trabalho em serviços mal remunerados, essa divisão está remapeando as fronteiras institucionais que antes separavam a produção de mercadorias da reprodução social, e portanto reconfigurando a hierarquia de gênero no processo. Igualmente importante, ao organizar um grande assalto contra a reprodução social, ela está transformando esta condição de fundo para a acumulação de capital em um importante ponto crítico da crise capitalista.

Natureza e poder

Mas devemos também considerar mais dois giros igualmente importantes na perspectiva epistemológica, que nos levam a outros laboratórios secretos. O primeiro está melhor representado no trabalho dos pensadores ecossocialistas, que agora estão escrevendo outra história de fundo sobre o parasitismo do capitalismo em relação à natureza. Esta história diz respeito à anexação da natureza pelo capital - sua Landnahme, tanto como uma fonte de ‘insumos’ para a produção como um ‘ralo’ para absorver os resíduos desta última. A natureza é aqui transformada em um recurso para o capital, cujo valor é ao mesmo tempo pressuposto e negado.Tratada como gratuita nas contas do capital, ela é expropriada sem compensação ou reabastecimento, sendo implicitamente considerada infinita. Portanto, a capacidade da natureza de dar suporte à vida e de se renovar constitui uma outra condição de fundo necessária para a produção de mercadoria e a acumulação de capital.

Estruturalmente, o capitalismo assume - de fato, inaugura - uma divisão nítida entre o reino da natureza, concebido como a oferta gratuita de matéria-prima não-produzida e disponível para apropriação, e o reino econômico, concebido como a esfera do valor, produzida por e para seres humanos. A reboque, vem o fortalecimento da distinção pré-existente entre o humano - visto como espiritual, sócio-cultural e histórico - e a natureza não-humana, vista como material, dada objetivamente e a-histórica. O aprofundamento desta distinção também se apóia no rompimento com um mundo prévio, no qual os ritmos da vida social estavam em vários aspectos adaptados aos da natureza não-humana. O capitalismo brutalmente separou os seres humanos dos ritmos naturais e sazonais, recrutando-os para a indústria manufatureira, movida a combustíveis fósseis, e para a agricultura voltada ao lucro, anabolizada pelos fertilizantes químicos. Introduzindo o que Marx chamou de “falha metabólica”, isso inaugurou o que agora foi chamado de Antropoceno, uma era geológica inteiramente nova na qual a atividade humana tem um impacto decisivo nos ecossistemas e na atmosfera da Terra.7

Surgindo com o capitalismo, esta divisão também sofreu uma mutação ao longo do desenvolvimento capitalista. A atual fase neoliberal inaugurou uma nova rodada de cercamentos - a comodificação da água, por exemplo - os quais estão trazendo ‘mais da natureza’ (se é possível dizer assim) para o primeiro plano da economia. Ao mesmo tempo, o neoliberalismo promete ofuscar a fronteira natureza/humanidade - atestam as novas tecnologias reprodutivas e os ‘cyborgs’ de Donna Haraway.8 Longe de oferecerem uma ‘reconciliação’ com a natureza, contudo, estes desenvolvimentos intensificam a comodificação e sua anexação pelo capitalismo. Diferentemente dos cercamentos de terra sobre os quais Marx e Polanyi escreveram, que ‘apenas’ mercantilizavam fenômenos naturais existentes, os novos cercamentos penetram fundo ‘dentro’ da natureza, alterando sua gramática interna. Finalmente, o neoliberalismo mercantilizou o ambientalismo, como atesta a ativa troca de licenças e compensações das emissões de carbono e de ‘derivativos ambientais’, que distanciam o capitalismo do investimento de longo prazo e em larga escala, necessário para transformar modos de vida insustentáveis dependentes de combustíveis fósseis. Sobre o pano de fundo do aquecimento global, este assalto ao que resta dos bens comuns ecológicos está transformando a condição natural da acumulação de capital em outro nó central da crise capitalista.

Finalmente, vamos considerar um último giro epistemológico, que aponta para as condições políticas de possibilidade do capitalismo - sua dependência dos poderes públicos para estabelecer e impor suas normas constitutivas. O capitalismo é inconcebível, afinal, na ausência de um marco legal que estruture a iniciativa privada e a troca de mercado. A sua história aparente depende em especial dos poderes públicos para garantir os direitos de propriedade, fazer valer os contratos, adjudicar as disputas, debelar as rebeliões anti-­‐capitalistas e manter, nos termos da Constituição dos EUA, a ‘inteira fé e crédito’ da oferta de dinheiro que constitui a seiva do capitalismo. Historicamente, os poderes públicos em questão estiveram alojados nos estados territoriais, incluindo aqueles que operavam como poderes coloniais. Foi o sistema jurídico destes estados que estabeleceu os contornos das arenas aparentemente despolitizadas, nas quais os atores privados poderiam buscar os seus interesses ‘econômicos’, livres de uma evidente interferência ‘política’, de um lado, e de obrigações patronais derivadas do parentesco, de outro. Igualmente, foram os estados territoriais que mobilizaram a ‘força legítima’ para abater a resistência às expropriações, por meio das quais as relações capitalistas de propriedade foram originadas e sustentadas. Finalmente, foram esses estados que nacionalizaram e garantiram o dinheiro.9 Historicamente, podemos dizer que o estado ‘constituiu’’ a economia capitalista.

Aqui encontramos outra importante divisão estrutural que é constitutiva da sociedade capitalista: aquela entre política e economia. Com essa divisão vem a diferenciação institucional entre poder público e privado, entre coerção política e econômica. Como as outras divisões centrais que discutimos, esta também surge como o resultado de um rompimento com um mundo prévio. Neste caso, o que foi desmantelado foi o mundo social no qual poder político e econômico estavam efetivamente fundidos -­‐ como por exemplo na sociedade feudal onde o controle do trabalho, da terra e da força militar estava investido numa única instituição de senhorio e vassalagem. Na sociedade capitalista, ao contrário, como Ellen Wood elegantemente mostrou, o poder econômico e o poder político são separados; cada um está designado a sua própria esfera, seus próprios meios e modus operandi. 10 Contudo a história aparente do capitalismo também tem condições políticas de possibilidade em um nível geo-­‐político. O que está em questão aqui é a organização de um espaço mais amplo no qual os estados territoriais estão incorporados. Este é um espaço no qual o capital se move muito facilmente, dado o seu ímpeto expansionista. Mas esta habilidade de operar além das fronteiras depende do direito internacional, de acordos negociados entre as grandes potências e de regimes supranacionais, que parcialmente pacificam (de uma maneira amigável ao capital) um reino que frequentemente é imaginado como um estado de natureza. Ao longo de sua história, a história aparente do capitalismo tem dependido das capacidades militares e organizativas de sucessivas hegemonias globais que, conforme Giovanni Arrighi argumentou, buscaram nutrir a acumulação numa escala de expansão progressiva em um sistema pluri-estatal.11

Aqui encontramos outras divisões estruturais que são constitutivas das sociedades capitalistas: a divisão ‘ocidentalista’ entre o ‘doméstico’ e o ‘internacional’, de um lado, e a divisão imperialista entre centro e periferia, de outro - ambas alicerçadas numa divisão mais fundamental entre a economia capitalista crescentemente global, organizada como um ‘sistema mundial’ e um mundo político como um sistema internacional de estados territoriais. Estas divisões estão atualmente sofrendo mutações também, na medida em que o neoliberalismo esvazia as capacidades políticas nas quais o capital historicamente se apoiou, tanto em nível estatal quanto em nível geopolítico. Muito mais pode ser dito sobre cada um desses pontos; mas a direção geral do meu argumento deve estar clara. Ao apresentar a minha compreensão inicial do capitalismo, mostrei que suas características ‘econômicas’ em primeiro plano dependem de condições ‘não-econômicas’ de fundo. Um sistema econômico definido pela propriedade privada, a acumulação do valor auto-expansivo, mercados de trabalho livre e outros insumos para a produção de mercadorias e pela alocação do excedente social pelo mercado é possibilitado por três condições cruciais de fundo, ligadas respectivamente à reprodução social, à ecologia da terra e ao poder político. Para compreender o capitalismo, portanto, precisamos relacionar a sua história aparente com estas três histórias de fundo. Precisamos conectar a perspectiva Marxista às perspectivas feminista, ecológica e teórico-política - teórico-estatal, colonial/pós-colonial e transnacional.

Uma ordem social institucionalizada

Que tipo de animal é o capitalismo nesta abordagem? O retrato que elaborei aqui difere de maneira importante da ideia familiar de que o capitalismo é um sistema econômico. De fato, pode ter parecido à primeira vista que as características centrais que identificamos eram ‘econômicas’. Mas essa aparência era enganadora. Uma das peculiaridades do capitalismo é que ele trata as suas relações sociais estruturantes como se elas fossem econômicas. Na verdade, nós rapidamente compreendemos ser necessário falar sobre as condições de fundo ‘não-­‐econômicas’ que permitiram tal ‘sistema econômico’ existir. Estas são características não de uma economia capitalista, mas de uma sociedade capitalista; e nós concluímos que essas condições de fundo não podem ser apagadas do retrato, mas devem ser conceituadas e teorizadas como parte da nossa compreensão do capitalismo. Então o capitalismo é algo além de uma economia.

Igualmente, o retrato que desenhei difere da perspectiva do capitalismo como uma forma reificada de vida ética, caracterizada pela comodificação e monetarização penetrantes. Nesta perspectiva, conforme foi articulada no celebrado artigo de Lukács ‘A reificação e a consciência do proletariado’, a forma mercadoria coloniza toda a vida, imprimindo sua marca em fenômenos tão diversos quanto direito, ciência, moral, arte e cultura.12 Na minha visão, a comodificação é um fenômeno que está longe de ser universal numa sociedade capitalista. Ao contrário, onde está presente, ela depende para a sua própria existência de zonas de não-­‐comodificação. Social, ecológica e política, essas zonas não-­‐comodificadas não espelham simplesmente a lógica da mercadoria, mas corporificam distintas gramáticas normativas e ontológicas próprias. Por exemplo, práticas sociais orientadas para reprodução (em oposição à produção) tendem a engendrar ideais de cuidado, responsabilidade mútua e solidariedade, ainda que pareçam hierárquicos e paroquiais. 13 Igualmente, práticas orientadas para a política, em vez da economia, frequentemente se referem aos princípios de democracia, autonomia pública e auto-determinação coletiva, ainda que pareçam restritas ou excludentes. Finalmente, práticas ligadas às condições de fundo do capitalismo, associadas à natureza não-humana, tendem a nutrir valores como conservação ecológica, não dominação da natureza e justiça entre gerações, ainda que pareçam românticas e sectárias. Evidentemente, meu ponto não é idealizar essas normatividades ‘não-econômicas’, mas registrar sua discrepância em relação aos valores associados ao primeiro plano do capitalismo: acima de tudo, crescimento, eficiência, troca igualitária, escolha individual, liberdade negativa e avanço meritocrático.

Essa divergência faz toda a diferença na maneira como conceituamos o capitalismo. Longe de gerar uma única e inteiramente penetrante lógica de reificação, a sociedade capitalista é normativamente diferenciada, englobando uma determinada pluralidade de ontologias sociais distintas mas inter-­‐ relacionadas. Ainda está para ser visto o que acontece quando estas colidem. Mas a estrutura que as sustenta já é clara: a topografia normativa característica do capitalismo surge das relações entre primeiro plano e fundo que identificamos. Se pretendemos desenvolver uma teoria crítica dele, devemos substituir a perspectiva do capitalismo como uma forma de vida ética reificada por uma perspectiva estrutural mais diferenciada.

Se capitalismo não é nem um sistema econômico nem uma forma de vida reificada, então o que é? Minha resposta é que ele é mais bem compreendido como uma ordem social institucionalizada, da mesma forma que, por exemplo, o feudalismo. Entender o capitalismo dessa forma evidencia suas divisões estruturais, especialmente as separações institucionais que identifiquei. Constitutiva do capitalismo, nós vimos, é a separação institucional entre ‘produção econômica’ e ‘reprodução social’, uma separação baseada no gênero que sustenta especificamente formas capitalistas de dominação masculina, enquanto também permite a exploração capitalista da força de trabalho e, por meio desta, seu modo de acumulação oficialmente sancionado. Também própria do capitalismo é a separação institucional entre ‘economia’ e ‘política’, uma separação que expulsa os assuntos definidos como ‘econômicos’ da agenda política dos estados territoriais, enquanto libera o capital para circular numa terra de ninguém transnacional, onde ele colhe os benefícios da ordem hegemônica enquanto escapa do controle político. Igualmente fundamental ao capitalismo, finalmente, é a divisão ontológica, preexistente mas massivamente intensificada, entre seu fundo ‘natural’ (não-humano) e seu primeiro plano ‘humano’ (aparentemente não-natural). Portanto, falar de capitalismo como uma ordem social institucionalizada, dependente destas separações, é sugerir a sua imbricação estrutural não-acidental com a opressão de gênero, com a dominação política - tanto a nacional quanto a transnacional, colonial e pós-colonial - e com a degradação ecológica; articulada evidentemente com a sua dinâmica de exploração do trabalho igualmente estrutural e não-acidental em primeiro plano.

Isto não é para sugerir, contudo, que as divisões institucionais do capitalismo são simplesmente dadas de uma vez por todas. Ao contrário, como vimos, precisamente onde e como as sociedades capitalistas marcam a divisão entre produção e reprodução, economia e organização política, natureza humana e não-­‐humana varia historicamente, de acordo com o regime de acumulação. Na verdade, podemos conceituar o capitalismo competitivo do laissez-faire, o capitalismo de monopólio gerido pelo estado e o capitalismo neoliberal globalizante exatamente nesses termos: como três maneiras historicamente específicas de separar economia de organização política, produção de reprodução e natureza humana de não-humana.

Lutas sobre os limites

Igualmente importante, a configuração específica da ordem capitalista em qualquer lugar ou tempo depende da política -­‐ do balanço entre o poder social e o resultado das lutas sociais. Longe de ser simplesmente dadas, as divisões institucionais do capitalismo frequentemente se tornam focos de conflito, conforme os atores se mobilizam para desafiar ou defender os limites estabelecidos que separam economia da política, produção da reprodução e natureza humana da não-humana. Na medida em que eles buscam reposicionar os processos contestados no mapa institucional do capitalismo, os sujeitos do capitalismo se inspiram nas perspectivas normativas associadas às várias zonas que identificamos. Nós podemos ver isso acontecendo hoje. Por exemplo, alguns adversários do neoliberalismo se inspiram nos ideais de cuidado, solidariedade e responsabilidade mútua, associados à reprodução, para se contrapor às iniciativas de comodificação da educação. Outros convocam as noções de conservação da natureza e justiça entre gerações, associadas à ecologia, para militar por energia renovável. Ainda outros evocam os ideais de autonomia pública, associados à organização política, para defender os controles sobre o capital internacional e estender a responsabilidade da democracia para além do estado. Estas reivindicações, junto com as contra-reivindicações que elas inevitavelmente incitam, são a própria substância da luta social das sociedades capitalistas - tão fundamentais quanto as lutas de classe sobre o controle da produção de mercadorias e da distribuição da mais-valia privilegiadas por Marx. Estas lutas sobre os limites, como as chamarei, modelam decisivamente a estrutura das sociedades capitalistas.14 Elas desempenham um papel constitutivo na visão do capitalismo como uma ordem social institucionalizada.

O foco nas lutas sobre os limites impede qualquer compreensão errônea de que a minha perspectiva é funcionalista. De fato, começo caracterizando reprodução, ecologia e poder político como as condições de fundo necessárias para a história econômica aparente do capitalismo, ressaltando sua funcionalidade para a produção de mercadoria, exploração do trabalho e acumulação de capital. Mas esse momento estrutural não dá conta da história completa das relações entre o primeiro plano e o plano de fundo do capitalismo. Ela coexiste na verdade com outro ‘momento’, já sugerido, que é igualmente central e que emerge da caracterização do social, do político e do ecológico como reservas de normatividade ‘não-­‐econômica’. Isto implica que, mesmo que essas ordens não-­‐econômicas sejam responsáveis por tornar a produção de mercadoria possível, elas não são redutíveis a esta função capacitadora. Longe de ser completamente exaurida nas ou inteiramente subserviente às dinâmicas de acumulação, cada um destes laboratórios secretos cultiva distintas ontologias de prática social e ideais normativos.

Ademais, estes ideais ‘não-­‐econômicos’ estão prenhes de possibilidade crítico-política. Especialmente em tempos de crise, eles podem se virar contra as práticas econômicas centrais associadas à acumulação de capital. Em tempos como estes, as divisões estruturais que normalmente servem para segregar as várias normatividades dentro de suas próprias esferas institucionais tendem a se enfraquecer. Quando as separações falham em se manter, os sujeitos do capitalismo - que afinal vivem em mais de uma esfera - experimentam um conflito normativo. Longe de trazerem ideias de ‘fora’, eles se inspiram na própria complexidade normativa do capitalismo para criticá-­‐lo, mobilizando contra a corrente a multiplicidade de ideais que coexistem, por vezes de maneira desconfortável, numa ordem social institucionalizada que depende das divisões primeiro plano-­‐plano de fundo. Portanto, a perspectiva do capitalismo como uma ordem social institucionalizada nos ajuda a compreender como é possível uma crítica ao capitalismo de dentro dele.

Todavia, esta perspectiva também sugere que seria errado conceber a sociedade, a organização política e a natureza de maneira romântica, como ‘exteriores’ ao capitalismo e inerentemente opostas a ele. Esta perspectiva romântica é defendida hoje por um número considerável de pensadores anti-capitalistas e ativistas da esquerda, incluindo as feministas culturalistas, os ecologistas profundos e os neo-anarquistas, bem como muitos proponentes das economias ‘plural’, ‘pós-crescimento’, ‘solidária’ e ‘popular’. Frequentemente, estas correntes tratam ‘cuidado’, ‘natureza’, ‘ação direta’ ou ‘comunização’ como intrinsecamente anti-capitalistas. Como resultado eles ignoram o fato de que suas práticas favoritas não são apenas fontes de crítica, mas também partes integrantes da ordem capitalista. Na verdade, o argumento aqui é que sociedade, organização política e natureza surgiram concomitantemente com a economia e se desenvolveram em simbiose com ela. Elas são efetivamente ‘os outros’ desta última e apenas adquirem sua especificidade em contraste com ela. Portanto, reprodução e produção formam um par em que cada termo é co-definido pelo outro. Nenhum faz sentido sem o outro. O mesmo vale para organização política/economia e natureza/humanidade. Partes integrantes da ordem capitalista, nenhum desses reinos ‘não-econômicos’ consegue sustentar um ponto de vista completamente externo capaz de articular uma crítica inteiramente radical e absolutamente pura. Ao contrário, projetos políticos que apelam para o que eles imaginam ser o que está de fora do capitalismo acabam reciclando estereótipos capitalistas, na medida em que eles opõem cuidado feminino a agressão masculina, cooperação espontânea a cálculo econômico, organicidade holística da natureza a individualismo antropocêntrico. Lastrear as lutas nessas oposições não é desafiar, mas desavisadamente refletir a ordem social institucionalizada da sociedade capitalista.

Contradições

Disto concluímos que uma abordagem apropriada das relações entre o primeiro plano e o plano de fundo do capitalismo precisa abarcar três ideias distintas. Primeiro, os reinos "não-econômicos" do capitalismo servem como condições de fundo de possibilidade para a sua economia; esta depende, para a sua própria existência, dos valores e insumos daqueles. Segundo, contudo, os reinos "não-econômicos" do capitalismo têm um peso e um caráter próprios que podem, em determinadas circunstâncias, prover recursos para as lutas anti-capitalistas. Todavia, e este é o terceiro ponto, estes reinos são partes integrantes da sociedade capitalista, historicamente co-constituídas em conjunto com a sua economia e marcadas pela simbiose com ela.

Há também uma quarta ideia que nos leva de volta ao problema da crise com a qual comecei. As relações entre primeiro plano-plano de fundo do capitalismo cultivam fontes internas de instabilidade social. Como vimos, a produção capitalista não é autossustentável, mas pega carona na reprodução social, na natureza e no poder político; ainda que a sua orientação à acumulação infinita ameace desestabilizar essas suas próprias condições de possibilidade. No caso de suas condições ecológicas, o que está em risco são os processos naturais que sustentam a vida e fornecem os insumos materiais para o provisionamento social. No caso de suas condições sócio-reprodutivas, o que está em perigo são os processos socioculturais que proveem as relações de solidariedade, as disposições afetivas e os horizontes de valor que estruturam a cooperação social, enquanto também forjam os seres humanos hábeis e devidamente socializados que constituem o trabalho. No caso de suas condições políticas, o que está comprometido são os poderes públicos tanto nacional como transnacional, que garantem os direitos de propriedade, que fazem cumprir os contratos, que adjudicam as disputas, que debelam as rebeliões capitalistas e que mantêm a oferta de dinheiro.

Aqui, nos termos de Marx, estão três contradições do capitalismo: a ecológica, a social e a política, que correspondem a três ‘tendências de crise’. Diferentemente das ‘tendências de crise’ destacadas por Marx, contudo, essas não derivam das contradições internas da economia capitalista. Elas estão fundadas, na verdade, nas contradições entre o sistema econômico e as condições de possibilidade de fundo - entre economia e sociedade, economia e natureza, economia e organização política.15 O efeito delas, como anotado anteriormente, é incitar uma ampla possibilidade de lutas sociais na sociedade capitalista: não apenas a luta de classes no momento da produção, mas também lutas sobre limites da ecologia, reprodução social e poder político. Respostas às tendências de crise inerentes à sociedade capitalista, essas lutas são endêmicas à nossa perspectiva expandida do capitalismo como uma ordem social institucionalizada. Que tipo de crítica ao capitalismo decorre da concepção aqui esboçada? A perspectiva do capitalismo como ordem social institucionalizada requer uma forma de reflexão crítica multifacetada, muito parecida como aquela desenvolvida por Marx n’O Capital. Conforme o li, Marx entrelaça uma crítica sistêmica da tendência inerente do capitalismo à crise (econômica), uma crítica normativa da sua dinâmica interna de dominação (de classes), e uma crítica política do potencial para transformação social emancipatória inerente à sua forma característica de luta (de classes). A perspectiva que elaborei implica um entrelaçamento análogo de críticas, mas o entrelaçar aqui é mais complexo, na medida em que cada fio é internamente múltiplo. A crítica à crise sistêmica inclui não apenas as contradições econômicas discutidas por Marx, mas também as três contradições inter-­‐reinos aqui discutidas, que desestabilizam as condições de fundo necessárias à acumulação de capital, ao ameaçar a reprodução social, a ecologia e o poder político. Igualmente, a crítica à dominação abarca não apenas as relações de dominação de classe analisadas por Marx, mas também aquelas de dominação de gênero e de dominação da natureza. Finalmente, a crítica política abarca uma multiplicidade de conjuntos de atores - classes, gêneros, grupos sociais, nações, demoi, possivelmente até espécies - e de vetores de luta: não apenas lutas de classe, mas também lutas sobre limites das separações entre sociedade, organização política, natureza e economia.

O que conta como luta capitalista é, portanto, bem mais amplo do que os Marxistas tradicionalmente imaginaram. Assim que olhamos além da história aparente para a história de fundo, todas as condições de possibilidade de fundo indispensáveis à exploração do trabalho se tornam focos de conflito na sociedade capitalista. Não apenas lutas entre trabalho e capital no momento da produção, mas também lutas sobre os limites da dominação de gênero, da ecologia, do imperialismo e da democracia. Mas igualmente importante: esta última agora aparece sob outra luz - como lutas no, ao redor do e, em alguns casos, contra o próprio capitalismo. Se elas se compreenderem nestes termos, estas lutas podem de fato cooperar entre si ou se unir.

1 Estes argumentos foram elaborados em conversas com Rahel Jaeggi e estarão no nosso Crisis, Critique, Capitalism, prestes a ser publicado pela Polity. Agradeço a Blair Taylor pela assistência com a pesquisa e ao Centre for Gender Studies (Cambridge), o Collège d'Éjtudes Mondiales, o Forschungskolleg Humanwissenschaften e o Centre for Advanced Studies "Justitia Amplificata", pelo o apoio.
2 Piero Sraffa, Production of Commodities by Means of Commodities: Prelude to a Critique of Economic Theory, Cambridge 1960.
3 Immanuel Wallerstein, Historical Capitalism, London 1983, p. 39.
4 Karl Polanyi, The Great Transformation, New York 2002; Nancy Fraser, ‘Can Society Be Commodities All the Way Down?’, Economy and Society, vol. 43, 2014. 5 Karl Marx, Capital, vol. I, London 1976, pp. 873–6.
6 David Harvey, The New Imperialism, Oxford 2003, pp. 137–82.
7 Karl Marx, Capital, vol. iii, New York 1981, pp. 949–50; John Bellamy Foster, ‘Marx’s Theory of Metabolic Rift: Classical Foundations of Environmental Sociology’, American Journal of Sociology, vol. 105, no. 2, September 1996. 8 Donna Haraway, ‘A Cyborg Manifesto: Science, Technology and Socialist-­‐ Feminism in the Late Twentieth Century’, in Socialist Review 80, 1985.
9 Geoffrey Ingham, The Nature of Money, Cambridge 2004; David Graeber, Debt: The First 5,000 Years, New York 2011.
10 Ellen Meiksins Wood, Empire of Capital, London and New York 2003. 
11 Giovanni Arrighi, The Long Twentieth Century: Money, Power and the Origins of Our Times, London and New York 1994.
12 Georg Lukács, History and Class Consciousness: Studies in Marxist Dialectics, London 1971. 
13 Sara Ruddick, Maternal Thinking: Towards a Politics of Peace, London 1990; Joan Trento, Moral Boundaries: A Political Argument for an Ethic of Care, New York 1993.
14 Nancy Fraser, ‘Struggle over Needs: Outline of a Socialist-­‐Feminist Critical Theory of Late-­‐Capitalist Political Culture’, in Fraser, Unruly Practices: Power, Discourse and Gender in Contemporary Social Theory, Minneapolis and London 1989.
15 James O'Connor, "Capitalism, Nature, Socialism: A Theoretical Introduction", Capitalism, Nature, Socialism, vol. 1, no. 1, 1988, pp. 1-22.

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