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7 de abril de 2025

O outro líder francês de extrema direita que enfrenta acusações de corrupção

A condenação de Marine Le Pen lançou luz sobre o mau uso de fundos públicos por seu partido. Onde o partido já comanda o governo, na cidade de Fréjus, no sudeste do país, seu prefeito, David Rachline, é acusado de uma enorme rede de corrupção.

Por Phineas Rueckert


Marine Le Pen e David Rachline em uma reunião de campanha, em 18 de março de 2014, em Fréjus, França. (Valery Hache / AFP via Getty Images)

Tradução / É uma história bem conhecida: o cruzado anticorrupção que, uma vez no poder, se torna ainda mais corrupto que seu antecessor. Mas essa simples narrativa descreve com bastante propriedade o argumento de um livro recentemente atualizado sobre David Rachline — o vice-presidente do partido Rassemblement National da França e o homem que já foi considerado o “melhor amigo” de Marine Le Pen.

Les Rapaces (As Aves de Rapina) é uma investigação de dois anos da jornalista francesa Camille Vigogne Le Coat sobre a gestão de Rachline em Fréjus, a cidade do sudeste da França onde o vice-presidente do partido é prefeito desde 2014. Aqui, perto da chamativa Côte d’Azur, Rachline, que é próximo tanto de Le Pen quanto de seu protegido Jordan Bardella, supostamente aperfeiçoou a arte de coçar as costas certas e encher os próprios bolsos: um sistema de clientelismo apelidado de “Máfia Varêsa”, em homenagem ao departamento do sudeste (Le Var) onde Fréjus está localizada.

Enquanto Le Pen recorre de sua condenação por desvio de verbas do Parlamento Europeu, proferida na última segunda-feira por um tribunal francês, o livro de Le Coat oferece um panorama sobre como o partido de extrema direita supostamente organiza a corrupção em nível local. Enquanto o Rassemblement National — desde sua liderança até seus filiados locais — se apresenta como um partido antissistema, livre da corrupção que assola o establishment político, Le Coat argumenta o oposto: uma vez no poder, o Rassemblement National não apenas perpetua esquemas de corrupção já estabelecidos, mas os desenvolve.

“E se David Rachline não fosse um homem isolado, uma ovelha negra, mas o sintoma de uma doença maior dentro do partido?”, questiona Le Coat na introdução, publicada antes da condenação de Le Pen na última segunda-feira.

Longe de Bruxelas, onde o partido de Le Pen foi considerado culpado de desviar cerca de € 4 milhões de verbas do Parlamento Europeu para financiar ativismo partidário, Le Coat sugere que a cidade romana de Fréjus serviu de laboratório para a apropriação indébita de fundos públicos pela extrema direita. Em sua análise, Rachline — que assumiu o cargo em 2014, substituindo o desacreditado ex-prefeito Élie Brun, ele próprio condenado por “conflito ilegal de interesses” — foi fundamental para o esquema.

Na época, Rachline era um ativista do Rassemblement National, de 26 anos, que ascendeu rapidamente no partido como “marinista” (apoiador de Marine Le Pen). Ele dividiu os votos entre Brun e outro candidato da direita tradicional para se tornar prefeito de Fréjus. Meses depois, concorreu a senador pelo Var, tornando-se o senador mais jovem da França e um dos dois primeiros a representar o partido de extrema direita de Le Pen.

Fréjus nem sempre foi um bastião da extrema direita. Esta cidade de 57.000 habitantes, em uma antiga região comunista, antes conhecida como “Var Vermelho”, está aninhada no interior da reluzente costa, aproximadamente a meio caminho entre as praias de Saint-Tropez e Cannes. O interior agrícola e industrial do Var contrasta com o litoral repleto de resorts. Mas, a partir da década de 1980, este cinturão de ferrugem tradicionalmente de esquerda tem ido cada vez mais em direção à extrema direita.

Como Le Coat revela meticulosamente, Rachline conseguiu explorar o descontentamento popular nessa região devastada e ascender rapidamente ao poder. Mas sua ascensão teve um custo.

Uma vez no cargo, segundo Le Coat, Rachline quase imediatamente começou a se aproximar dos mesmos poderosos com quem seu antecessor se aliava, incluindo o próprio ex-prefeito desacreditado. Ela conta que, assim como Brun, Rachline se aproximou do magnata da construção Alexandre Barbero, dono de uma dúzia de empresas na região, que começou a acumular contratos com a cidade — detonando as contas públicas e pavimentando a cidade com um horroroso concreto.

Le Coat começou a investigar Rachline após saber da compra à vista de um relógio Hublot de € 15.000 de um famoso joalheiro da Côte d’Azur em 2015. O relógio, pago por seu assistente, “denuncia um esquema”, escreve Le Coat. “Foi a primeira prova cabal de um vasto mecanismo de corrupção que opera em Fréjus.”

As redes clientelistas de Rachline não se limitavam apenas à Barbero, escreve Le Coat. Seus gostos luxuosos também não se limitavam a relógios chamativos. Vários entrevistados que conversaram com Le Coat lembram-se de suas festas que duravam vários dias, de suas roupas exclusivas ou do pagamento suspeito de pequenas despesas com notas de € 500 — sendo todo, ou a maior parte, do fluxo de caixa presumivelmente financiado com dinheiro do contribuinte.

À medida que Rachline consolidava seu poder e influência, ele os usava contra grupos minoritários e moradores de baixa renda da cidade costeira. O prefeito de Fréjus, segundo Le Coat, frequentava grupos de gangues de direita como o infame Groupe Union Défense (GUD); fazia saudações nazistas de brincadeira com conselheiros; e usava policiais municipais de Fréjus como executores pessoais, enquanto desviava dinheiro que seria utilizado para a aquisição de uma frota de viaturas policiais equipadas com câmeras de segurança.

O resultado do seu mandato: não a austeridade econômica garantida pela extrema direita, mas uma dívida crescente de mais de € 150 milhões.

Esse coquetel perigoso, sugere Le Coat, poderia ser rapidamente implementado em toda a França se um candidato do Rassemblement National vencesse a presidência em 2027. A “forma de Rachline de administrar o Fréjus, recuperando as velhas redes e o clientelismo da direita tradicional [e exercendo-os] em um clima alimentado pelo antissemitismo e pelo racismo, é aquela que o partido de Marine Le Pen poderia estender por toda a França se assumisse o poder”, alerta Le Coat.

É improvável, porém, que Rachline seja o candidato do Rassemblement National em 2027. No início deste ano, o prefeito foi intimado a comparecer ao tribunal no final de setembro sob suspeita de “conflitos de interesse ilegais”, relacionados ao seu papel à frente de duas empresas responsáveis ​​pela gestão da cidade.

Colaborador

Phineas Rueckert é um jornalista baseado em Paris. Já escreveu para Vice e Next City.

12 de julho de 2024

A imprensa argentina está enfrentando Javier Milei

O presidente de extrema direita da Argentina, Javier Milei, prometeu fechar a agência de imprensa estatal Télam e demitir seus 700 funcionários. No entanto, os trabalhadores da mídia reagiram e conseguiram salvar a agência do fechamento.

Phineas Rueckert

Jacobin

Fotógrafos protestam contra o fechamento da agência de notícias Télam por Javier Milei, no dia 7 de junho de 2024, em Buenos Aires, Argentina. (Santiago Oroz / SOPA Images / LightRocket via Getty Images)

Tradução / Quando a conheci pela primeira vez, Andrea Delfino estava fumando um cigarro na frente dos escritórios fechados da Télam, a agência de imprensa estatal em Buenos Aires. Era 24 de março, aniversário do golpe militar na Argentina em 1976. A entrada do prédio estava bloqueada, mas do lado de fora havia muita agitação. Líderes sindicais tomavam mate enquanto jornalistas faziam ligações e realizavam entrevistas em uma tenda montada pelo Sindicato dos Jornalistas de Buenos Aires.

Delfino, jornalista da Télam e porta-voz do sindicato, acampava na frente dos escritórios fechados há quase três semanas, desde que o presidente de extrema direita Javier Milei anunciou o fechamento da agência de imprensa e a demissão de setecentos funcionários em 1º de março. Isso faz parte de uma série de ataques aos serviços públicos pelo líder libertário, que promete “passar a motosserra” no estado argentino.

“Tomamos a decisão em uma assembleia de trabalhadores de rejeitar o licenciamento forçado ao qual estamos sendo submetidos e, portanto, permanecemos nas portas do prédio dia e noite”, explicou Delfino.

Apesar do fechamento oficial da agência, os jornalistas da Télam — que foram demitidos com pagamento e receberam a opção de aceitar uma indenização — continuaram a reportar, publicando histórias em um site gerido e administrado por funcionários dissidentes. Em 4 de março, três dias após o anúncio, os trabalhadores montaram assembleias do lado de fora dos dois prédios da Télam em Buenos Aires, onde jornalistas puderam organizar reuniões editoriais, produtores puderam editar vídeos, e líderes sindicais traçaram sua estratégia. Tudo isso era aberto ao público.

De tempos em tempos, enquanto conversávamos, pedestres aplaudiam em apoio aos funcionários em licença e outros manifestantes reunidos em frente ao prédio. Na época, Delfino explicou à Jacobin que os trabalhadores planejavam acampar nas entradas dos dois prédios da agência de imprensa pelo tempo que fosse necessário.

“Essa luta pode durar um mês, dois meses, ou quatro anos, mas vamos vencer”, disse Delfino para mim.

Uma vitória dentro da derrota

Quatro meses depois, em 10 de julho, Delfino e aproximadamente trezentos outros jornalistas da Télam voltaram ao trabalho — embora sob circunstâncias modificadas. A Télam foi renomeada e sua equipe jornalística reduzida, mas os trabalhadores conseguiram evitar o fechamento da agência de notícias, que Milei chamava de “agência de propaganda kirchnerista”, e salvaram cerca de trezentos empregos.

“É uma vitória enorme”, disse Tomás Eliaschev, membro do Sindicato dos Jornalistas de Buenos Aires e editor da Télam, em entrevista por telefone à Jacobin de Buenos Aires, na noite anterior ao retorno ao trabalho. “Estamos muito felizes, muito confiantes em nossa organização, e demonstrando que podemos enfrentar esse governo que é tão poderoso e que tem tanto apoio das classes dominantes. Um grupo de trabalhadores foi capaz de parar isso e pelo menos manter a existência da agência, embora sob um nome diferente.”

O retorno ao trabalho ocorre apenas dez dias após o governo de Milei anunciar que a Télam seria renomeada como Agencia de Publicidad del Estado (Agência de Publicidade do Estado), ou APESAU, e convertida em uma agência estatal de propaganda e publicidade dirigida pelo porta-voz presidencial, Manuel Adorni. Aproximadamente trezentos jornalistas da Télam que não aceitaram uma indenização em março continuarão trabalhando em um dos dois antigos escritórios da Télam como funcionários da Radio Televisión Argentina (RTA), outro veículo de mídia público, informou o Buenos Aires Herald. Eles formarão uma nova agência de imprensa, cujo nome ainda não foi anunciado.

Esta não foi a primeira vez que a Télam foi alvo de um governo de direita. Em 2018, o governo de centro-direita de Mauricio Macri demitiu mais de 350 trabalhadores. Naquela época, assim como agora, o sindicato da imprensa de Buenos Aires reagiu.

Em um comunicado, os trabalhadores da Télam anunciaram que o site Somos Télam, que continuou reportando e divulgando notícias ao longo do movimento de protesto de 128 dias, deixaria de publicar à medida que os funcionários retornassem ao trabalho. “Se necessário, Somos Télam voltará”, escreveram eles. “Por enquanto, dizemos até logo.”

Dois pássaros com uma pedra

A reestruturação da Télam ocorre no contexto de um ataque prolongado contra a mídia e as instituições públicas pelo governo de Milei. Ele prometeu reduzir o estado argentino através de uma onda de terapia de choque econômico, delineada em sua “lei omnibus” de dezembro de 2023, um pacote de reformas que visa privatizar drasticamente as instituições argentinas, incluindo mídia, companhias aéreas e o setor de petróleo.

“Um dos maiores adversários de Milei tem sido o jornalismo”, disse Gonzalo Sarasqueta, diretor de estudos de comunicação política na Universidad Camilo José Cela, na Espanha, que estuda retórica populista na América Latina, à Jacobin. O outro tem sido o estado. “O que é melhor do que matar dois com uma pedra só, desmontando a mídia e atacando o estado?”, disse ele sobre a desmontagem da Télam por Milei.

Os ataques contra a Télam se encaixam em uma estratégia mais ampla de comunicação política de definir o inimigo e estabelecer a narrativa, explicou Sarasqueta. “Ele está lutando contra a cantora Lali Espósito tanto quanto Donald Trump luta contra Taylor Swift.”

Desde que Milei assumiu o cargo, o impacto na mídia tem sido notável. A classificação da Argentina no índice de liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras caiu vinte e seis posições. Em dezembro, a jornalista e feminista Luciana Peker deixou o país depois de se sentir ameaçada na Argentina. Milei regularmente demonizou não apenas a mídia progressista e estatal, mas também veículos privados como Clarín e La Nación — preferindo usar as redes sociais para transmitir sua mensagem, explicou Sarasqueta.

“Para ele, a mídia só distorce a mensagem, e esta é uma interpretação muito gramsciana”, disse Sarasqueta. “Eles fazem parte da batalha cultural e defendem interesses que estão contra os interesses da maioria das pessoas, das pessoas que Javier Milei defende.”

Os funcionários da Télam estão preocupados com os impactos a longo prazo dessa estratégia no ecossistema de imprensa do país.

Eliaschev, o editor da Télam e sindicalista, observou que a Télam era uma maneira fundamental de transmitir informações da capital para as províncias da Argentina, regiões economicamente empobrecidas que votaram esmagadoramente em Milei. A estratégia de morte por mil cortes significava que essas regiões foram as primeiras a perder o acesso às notícias.

Mesmo assim, ele permaneceu esperançoso de que, sob um novo governo, a Télam pudesse se recuperar de suas cinzas.

“O importante a destacar é que o governo não conseguiu fechar a agência Télam, mas teve que transformá-la”, disse ele. “Digamos que eles conseguiram reduzi-la, mas ainda existe uma agência de notícias pública.” Isso, pelo menos, é um alívio.

Colaborador

Phineas Rueckert é um jornalista baseado em Paris. Já escreveu para Vice e Next City.

20 de fevereiro de 2024

Gabriel Boric está lutando para aumentar as escassas pensões do Chile

O esquerdista Gabriel Boric tornou-se presidente do Chile há dois anos, numa onda de mobilização popular. Mas com uma reescrita constitucional em frangalhos, os planos para reformar o sistema de aposentadorias privatizado do país representam um duro teste à sua capacidade de fazer mudanças duradouras.

Phineas Rueckert

Jacobin

O presidente chileno Gabriel Boric discursa em Washington, DC, em 23 de setembro de 2023. (Pedro Ugarte/AFP via Getty Images)

Quando a Jacobin procurou Rosario Ramirez Zuñiga pela primeira vez para uma entrevista, ela respondeu que estaria livre depois do trabalho. "Vou passar por aqui depois do trabalho, porque terei que trabalhar até morrer, a pensão não chega", escreveu ela em mensagem de WhatsApp.

Zuñiga atualmente trabalha como vendedor para uma empresa de limpeza de janelas de Santiago chamada Clean Eastwood. Durante seus mais de quarenta anos no mercado de trabalho, Zuñiga ocupou vários empregos ocasionais, inclusive em vendas e campanhas políticas. Aos 63 anos, ela gostaria de se aposentar, mas não pode: sua pensão é de 190 mil pesos chilenos (pouco menos de US$ 200) por mês, menos de meio salário mínimo.

"Isso está abaixo da linha da pobreza", diz ela. "Nenhum ser humano pode viver com isso."

Zuñiga é uma das muitas pessoas com mais de 60 anos que lutam para sobreviver sob o regime de aposentadorias privatizado do Chile. Uma relíquia dos dezessete anos do país sob a ditadura com mão de ferro do general Augusto Pinochet, que derrubou o presidente democraticamente eleito Salvador Allende em 1973, o sistema exige que os trabalhadores chilenos paguem 10% de seus salários aos administradores de fundos de pensão (em espanhol, AFPs) , que reinvestem as suas poupanças no mercado privado. Embora o sistema tenha gerado muito dinheiro para o capital estrangeiro, deixou aos chilenos aposentadorias muito mais baixas do que nos países vizinhos.

O presidente de esquerda Gabriel Boric, eleito em 2021 numa onda de descontentamento com o aumento da desigualdade que levou mais de três milhões de manifestantes às ruas, fez da reforma do sistema de aposentadorias uma prioridade legislativa. Em 2022, meses após assumir o cargo, propôs um projeto de reforma das aposentadorias que, juntamente com a reforma fiscal, constituiria a peça central das suas propostas políticas. Na sua forma original, o projeto de lei teria aumentado as contribuições patronais e criado um fundo de solidariedade adicional para as famílias mais pobres, minimizando ao mesmo tempo o papel das AFP.

No entanto, pouco a pouco, o projeto de reforma foi destruído pela direita, que detém a maioria em ambas as câmaras do parlamento, apoiada por interesses empresariais e lobistas empresariais.

"O paradoxal é que os mesmos parlamentares que em 2019 estavam abertos a [algumas partes da reforma, como o fundo de solidariedade], hoje não estão abertos a isso e aproximaram-se da posição da extrema-direita", disse Giorgio Jackson, ex-ministro do Desenvolvimento Social do Chile e líder do movimento estudantil que impulsionou Boric há dois anos, à Jacobin.

O país mais neoliberal do mundo

No mês passado, a assembleia do Chile votou para legislar sobre o projeto de lei das aposentadorias. Mas muitos na esquerda dizem que a versão que está atualmente sendo debatida deixa de fora alterações importantes e não aborda as questões profundas.

Rodrigo Rettig, advogado e membro do Partido Liberal, de centro-esquerda, parte da coligação governamental Apruebo Dignidad, de Boric, temia que a “parte central” da reforma — um aumento de 6% nas contribuições mensais para as aposentadorias, pagas pelos empregadores, metade das quais iriam para um fundo de solidariedade para os aposentados mais pobres — tinha sido eliminada. “A tentativa de instalar um estado de bem-estar social no país mais neoliberal do mundo tem sido uma tarefa titânica”, disse ele. "Para Boric, dito isto, a reforma previdenciária e a reforma tributária são as duas únicas grandes marcas que este governo pode deixar."

Jorge Heine, ex-embaixador chileno que serviu na China, Índia e África do Sul, concordou. "Eles estão fazendo o que podem, mas a oposição é muito forte e estão determinados a evitá-la", disse ele. "É uma questão emblemática para o governo e, de certa forma, é tudo ou nada."

A reforma das aposentadorias s foi uma das principais reivindicações dos protestos de 2019, que foram brutalmente reprimidos pelo governo de direita do falecido presidente Sebastian Piñera, que morreu num acidente de helicóptero neste dia 6 de fevereiro.

Apesar das revoltas populares que remontam a 2016, nenhum dos últimos três governos, incluindo a administração de Boric ou o governo de centro-esquerda de Michelle Bachelet, conseguiu aprovar uma reforma previdenciária significativa, explicou o líder sindical Luis Messina. Fundador do movimento "No + AFP", disse Messina à Jacobin: "No final, todos os três foram subjugados ao poder dos mercados financeiros".

O sistema atual foi criado sob o regime militar em 1981, quando o sistema público de pensões de repartição foi substituído por um sistema privatizado. Isto fez parte de um ataque violento de medidas neoliberais que também incluíram reformas na educação e outros serviços sociais. Aclamado por figuras de direita, desde Margaret Thatcher a George W. Bush, que em 2003 olhou para o Chile como modelo ao tentar reformar o sistema de Segurança Social dos EUA, o sistema colocou muito dinheiro nos bolsos de empresários estrangeiros, muitos deles nos Estados Unidos, bem como os chilenos mais ricos. Tal como noticiou o New York Times em 2016, três dos seis maiores fundos de pensões privados do Chile são geridos por empresas estrangeiras, gerindo apenas 171 bilhões de dólares.

"Capitalistas chilenos e estrangeiros estão se financiando com a humanidade e a força de trabalho dos trabalhadores chilenos para expandir sua fortuna para fora do país", disse Mesina. "Em um país tão pequeno como este, alocam mais de US$ 90 bilhões no exterior."

No Chile, no entanto, esse investimento no mercado de capitais não resultou em pensões mais altas. A taxa de reposição — a pensão mensal efetivamente recebida, como proporção do último mês de salário do trabalhador — gira em torno de 20%. Em 2016, a presidente de centro-esquerda Bachelet aprovou um projeto de lei para instituir uma Pensão Universal Garantida (PGU), financiada por vários impostos, para subsidiar as pensões mais baixas. Mesmo com essa muleta, as pensões costumam estar abaixo da linha da pobreza em um dos países mais caros da América Latina.

"Essencialmente, grande parte do mundo foi enganada pelo sistema que foi criado durante a ditadura militar no longínquo Chile", disse o ex-embaixador Heine à Jacobin. “E quarenta anos depois, quando os resultados saíram, todos percebemos que era uma fraude.”

Tarefa de Sísifo

As baixas aposentadorias afetam desproporcionalmente as mulheres, explicou Patricia Lillo Reyes, 60 anos, porta-voz do movimento Não + AFP. No Chile, a remuneração média das mulheres é 12% menor do que a dos homens pelo mesmo trabalho. As mulheres também são mais propensas a dedicar mais tempo aos cuidados com os filhos e ao trabalho informal. "É um sistema que nos condena por todos os lados", disse ela.

Lillo disse estar decepcionada com a proposta do atual governo. "Boric e muitos outros vestiram a camisa do Não + AFP" nos protestos, disse ela. "Mas hoje eles fazem parte do sistema neoliberal. Eles estão fazendo o que a direita manda."

Em janeiro, o veículo de notícias investigativas chileno CIPER noticiou que vários membros da coalizão de Boric se encontraram com, entre outros líderes empresariais, o CEO da AFP Cuprium. Mesina também se sentia traído pela coalizão governista. “Este governo está dando ainda mais dinheiro para as AFPs, mais do que Piñera”, disse ele. “Essa é a ironia.”

Muitas pessoas com quem a Jacobin conversou sentiram que a reforma do sistema previdenciário era semelhante a uma batalha de Sísifo contra os chilenos ricos que detêm as alavancas do poder econômico e midiático.

“Aqui no Chile, só entendemos a liberdade a partir de uma perspectiva neoliberal e não entendemos a igualdade a partir de uma perspectiva republicana”, disse Rettig, do Partido Liberal. “A responsabilidade pela sua aposentadoria é sua.”

“Esses planos de previdência privada são as empresas que financiam políticos de direita”, acrescentou Heine. “Quando você controla US$ 200 bilhões, pode imaginar a quantidade de influência que tem sobre os políticos.”

Zuñiga, vendedora da Clean Eastwood, vê a luta para restaurar as pensões públicas como parte do projeto inacabado de trazer a democracia de volta ao Chile após a ditadura. “A democracia nunca chegou de fato”, disse ela. “Na realidade, era uma pseudodemocracia, porque nunca conseguimos recuperar o que havíamos perdido em termos de seguridade social.”

“Essa é a nossa vocação agora.”

Colaborador

Phineas Rueckert é um jornalista radicado em Paris. Seus escritos foram publicados em Vice e Next City.

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