17 de julho de 2014

Como devemos pensar sobre o Califado?

Em muitos aspectos, o Isis é uma organização muito moderna. O folheto detalhando suas atividades de 2012-13 é como um relatório corporativo de última geração.

Owen Bennett-Jones

London Review of Books

Vol. 36 No. 14 · 17 July 2014

Em seu recente vídeo de propaganda, Clanging of the Swords: Part 4, o Estado Islâmico do Iraque e Levante (EIIL) apresentou uma série bem editada de execuções grotescas. Trinta e oito pessoas foram filmados sendo mortos: um homem assassinado quando corria pelo deserto, tentando escapar de pistoleiros numa pick-up 4x4; outro, baleado no próprio carro; um, morto em casa, quando o EIIL invadiu o quarto e o degolou. Difícil acreditar que o que se vê na tela realmente aconteceu, até que a desumanidade sem fim é interrompida por um momento ocasional. A certa altura, um pistoleiro anda por uma de uma fileira de jovens ajoelhados, com as mãos atadas às costas. Faz mira com uma pistola na nuca de cada um, atira, vê o corpo tombar à frente numa poça de sangue, anda para o seguinte e repete o movimento. Então, um dos ajoelhados tem a ideia de tentar salvar-se se antecipando ao tiro e, um microssegundo antes do tiro, atira-se para a frente, fingindo-se de morto. Escusado será dizer que o artifício não funciona.. Há também imagens de pistoleiros do EIIL dirigindo por uma cidade, quando, sem motivo aparente, põem as Kalashnikovs para fora das janelas do carro e atiram contra dois homens que andam pela calçada. Um deles é atingido e cai. O carro avança, e os atiradores do EIIL continuam atirando até que os dois estejam imóveis no chão. Presumivelmente, queriam ter certeza de que os dois estão mortos. Depois que se afastam, o segundo homem – surpreendentemente ainda ileso – corre por sua vida em outra direção.

Você poderia supor que um filme que mostra a própria organização matando gente ao acaso pelas ruas não atrairia novos recrutas. Mas os vários spots que o EIIL distribuiu alcançaram dois objetivos. Primeiro, aterrorizaram o exército do Iraque, minando o desejo dos soldados de defenderem o estado iraquiano. Mensagens ameaçadoras enviadas diretamente para telefones celulares reforçam o efeito. Segundo, o EIIL rapidamente abriu caminho até converter-se em imagem global. Até há poucas semanas, só leitores especializados os conheciam. Não tinham sequer nome fixado: uns diziam EIIS, outros diziam EIIL. A distinção já não importa, porque, agora, a organização se rebatizou como Estado Islâmico; e Abu Bakr al-Baghdadi é seu califa. Chame-se como for, o apelo deles está nas imagens de jovens com cabelos e barbas ao vento, em cenários desértico-rurais, livres da parafernália da vida moderna – exceto os rifles de assalto e a munição cruzada no peito. A conversa é toda sobre dever, sacrifício e martírio.

Mas em vários aspectos, o EIIL é organização muito moderna. A brochura em que detalham as atividades de 2012-2313 é um relatório perfeito, moderno, das atividades de uma empresa comercial privada. A página mais impressionante, graficamente impactante, mostra 15 ícones em silhueta – bombas-relógio, algemas, um carro, um homem correndo – cada um representando um campo de atividades: bombas plantadas em acostamentos de estradas, prisioneiros resgatados, carros-bomba, casas saqueadas de apóstatas. Ao lado da imagem de uma pistola, a palavra “assassinatos” e o número 1.083: são os assassinatos predefinidos [“targeted killings”] que o EIIL diz ter consumado no ano ao qual corresponde o relatório técnico. Foram 4.465 bombas em acostamentos; 160 ataques-suicidas e mais de uma centena de apóstatas que se arrependeram. E essas estatísticas impressionantes relacionam-se ao período anterior ao maior feito jihadi desde o 11/9: a conquista, pelo EIIL, da segunda maior cidade do Iraque, Mosul. O EIIL é também o primeiro grupo jihadi a ocupar terra contígua em dois países. Pode-se argumentar que a al-Qaeda fez o mesmo em áreas de fronteira no Afeganistão-Paquistão, mas só sobrevivia porque permanecia nas sombras. O EIIL, ao contrário, movimenta-se pelo nordeste da Síria e por vastas áreas do norte do Iraque em quase completa liberdade. Sempre houve algum braço do Islã com aspirações globais acima das fronteiras nacionais: agora o Estado Islâmico quer pôr aquelas ideias em prática. Um dos primeiros atos do califa foi mandar tanques destruir todos os postos de fronteira entre o Iraque e a Síria.

Houve muitos comentários sobre os voluntários estrangeiros atraídos pela ideologia pan-islãmica de Baghdadi. Pode-se pensar que recrutas da Europa Ocidental, principalmente, poderiam ser mais problema que ajuda: muitos não falam árabe e foram criados com tais confortos que terão dificuldade para se adaptar a vida jihadi. Mas também têm vantagens. Podem ser bem-educados, trazem a dedicação junto com os passaportes ocidentais. Podem servir como suicidas-bombas. A abertura do EIIL a combatentes estrangeiros já rendeu dividendos, embora a imprensa ocidental esteja mais preocupada, mesmo, é com o problema que eles serão quando retornarem às sociedades que os criaram e alimentaram e educaram. Autoridades britânicas dizem que 500 muçulmanos do Reino Unido estão hoje lutando na Síria e no Iraque; e que os que sobreviverem e retornarem serão numerosos demais para que os serviços de segurança consigam vigiá-los de perto. Mas, de fato, não há nada nem remotamente semelhante a ameaça existencial contra o Reino Unido. Muitos dos jovens que foram para o Oriente Médio fizeram-no precisamente porque não consideram que o inimigo seja o Reino Unido e não têm interesse em atacar alvos britânicos. E um dos aprendizados que se extraíram dos vários programas de desradicalização que existem agora por todo o mundo é que, por mais que os jihadis tenham ar feroz, quase sempre são indivíduos de vontade muito frágil. É fácil persuadi-los a lutar, mas também é bem fácil persuadi-los a parar. Estima-se que no passado apenas um, de cada nove combatentes estrangeiros, continuou a fazer sua jihad depois que retornou à terra natal.

Apesar de todas as inovações, o Estado Islâmico é descendente direto da al-Qaeda – especificamente, da al-Qaeda no Iraque. Quando os EUA invadiram o Iraque em 2003, bin Laden tinha toda uma nova frente contra a qual combater. A Al-Qaeda no Iraque foi organizada sob a liderança de Abu Musab al-Zarqawi, criminoso menor, furiosamente sedento de sangue, que permitia que praticamente qualquer um no seu grupo – tivesse ou não tivesse educação religiosa – decidisse sobre se alguém era ou não era muçulmano certo. A organização ficou famosa por postar filmes em YouTube nos quais se assistia à decapitação de qualquer um que não tivesse atendido aos critérios. A liderança central da Al-Qaeda tentou explicar a Zarqawi que o subtítulo que ele usava – Xeique Degolador – não ajudava a causa, mas Zarqawi manteve-se fiel a si mesmo até que, em 2006, os norte-americanos encontraram seu rastro e o mataram.

Nem por isso foi o fim. Os remanescentes muito endurecidos em batalha da al-Qaeda no Iraque, unidos a outros grupos de militantes que haviam combatido contra a ocupação norte-americana, decidiram recomeçar e se renomearam Estado Islâmico do Iraque. O novo grupo progrediu muito depois que os EUA retiraram-se em 2011, e no início desse ano, sob a liderança de Baghdadi, tomaram quase toda a área de duas cidades que os EUA muito se esforçaram para tornar seguras: Fallujah e Ramadi. Foram grandes vitórias simbólicas que ajudaram a fixar a reputação de Baghdadi como mais destacado líder jihadi do mundo. Diferente de Zawahiri da al-Qaeda, Baghdadi vencia batalhas em campo.

As coisas também estavam avançando na Síria. No verão de 2011, quando parecia que o regime de Assad em Damasco talvez não sobrevivesse, Baghdadi mandou homem do Estado Islâmico no Iraque, Abu Mohammed al-Joulani, para montar loja na porta ao lado. A oposição democrática a Assad estava exaurida; em questão de meses, al-Joulani já estava invadindo e ocupando áreas no norte da Síria. Em janeiro de 2012 anunciou publicamente a existência do que chamou de Jabhat al-Nusra, Frente al-Nusra. Por um ano a Frente al-Nusra acumulou ganhos, em parte porque o regime de Assad deu-se conta de que, se deixasse os jihadis ganhar territórios, o ocidente mudaria de ideia sobre o conflito sírio. Foi quando as forças do governo sírio passaram a concentrar seu fogo contra o Exército Sírio Livre, não contra os jihadis.

Depois de ver os ganhos de Joulani na Síria, Baghdadi decidiu aparecer, ele próprio. Em abril de 2013 mudou o nome do Estado Islâmico no Iraque, para Estado Islâmico no Iraque e Síria (“Levante”). Logo depois anunciou a fusão entre o ISIL e a Frente al-Nusra. Para Joulani, foi movimento de hostilidade, não de fusão. Há várias versões sobre por que os dois homens romperam, desde um choque de egos, até diferenças políticas irreconciliáveis. Segundo uma das histórias que circulam, Baghdadi ordenou que Joulani explodisse um hotel na Turquia onde se reuniam alguns líderes da oposição democrática síria. Temeroso de que suas linhas turcas de abastecimento fossem comprometidas, Joulani recusou-se a cumprir a ordem; e Baghdadi ficou ressentido. A política para o Irã foi outra área de dissenso. Alguns altos membros do ISIL reclamaram que a al-Qaeda sempre tivera política de não atacar o Irã; a Frente al-Nusra aceitava, mas o ISIL não. Fossem quais fossem as razões precisas, os desacordos levaram a disputas internas entre o ISIL e a Frente al-Nusra, e Joulani apelou a Ayman al-Zawahiri, líder da al-Qaeda, para que decidisse. Zawahiri declarou que a Frente al-Nusra era filial oficial da al-Qaeda na Síria, e que oISIL havia rompido seus laços com a al-Qaeda. Ordenou que o grupo se limitasse a lutar no Iraque – sugestão que o ISIL rejeitou imediatamente. Hoje, talvez Zawahiri lamente o que fez, mas ele também sabe que Baghdadi pode, sim, fracassar; se por mais não for, porque só confia na violência mais extrema.

Essa foi lição que a al-Qaeda aprendeu pela via mais difícil. 11/9 pôs muito alta a barra a ultrapassar e ficou difícil imaginar, para os anos seguinte, algo tão espetacular quanto os ataques da al-Qaeda que derrotaram New York; a organização descobriu que teria de usar cada vez mais violência (dado que não havia mais talento à disposição), para conseguir manter-se nas manchetes da imprensa-empresa planetária. A estratégia de escalada afinal revelou-se em novembro de 2005, quando suicidas-bombas atacaram três hotéis em Amã. No tempo de poucos minutos, mais de 50 pessoas foram mortas, incluindo convidados que participavam de uma festa de casamento. Dia seguinte, houve protestos nas ruas: os manifestantes condenavam a matança e cantavam slogansa favor do rei Abdullah. Zawahiri extraiu disso a conclusão óbvia, mas outros jihadis não conseguiram entender o valor da moderação. Cada vez que um movimento jihadista ganhou poder, ele perdeu popularidade porque não deu às pessoas comuns o que elas desejam: paz, segurança e empregos. No Afeganistão, por exemplo, os Talibã tiveram considerável apoio popular quando chegaram ao poder em 1996, depois de anos de guerra civil: muitos afegãos gostaram da estabilidade que os Taleban trouxeram. Mas o governo do Mulá Omar foi tão violento e tão pouco preocupado com questões mundanas que, em 2001, já muitos festejaram a partida dele. Outros governos jihadistas enfrentaram problemas semelhantes. Em 2009, o atual líder dos Talibã no Paquistão, Mulá Fazlullah, obteve o controle do Vale do [rio] Swat, a poucas horas de distância, de carro, de Islamabad. Sua prática de matar os oponentes e deixar os cadáveres apodrecendo na praça principal da maior cidade do vale, Mingora, tanto horrorizou a população local, que passaram a apoiar uma ofensiva do exército contra os militantes. Eventos similares verificaram-se no Norte da África, onde nenhum movimento jihad conseguiu manter-se no poder.

A lição deveria ser de que, deixados entregues aos seus próprios meios, governos jihadistas sempre fracassam. Mas há sinais, porém, de que Baghdadi ou, pelo menos, alguns de seus comandantes, começaram a avaliar a importância dessa questão. Em algumas cidades sírias, o ISIL conseguiu restaurar algum grau de normalidade, não só por garantiram a segurança mediante sistema de justiça nua e crua, mas também graças à introdução de controle de preços sobre mercadorias básicas; e, inclusive, porque começaram a dar conta de serviços públicos simples, como organizar e controlar a distribuição de números de chapa para veículos automotores. Gasolina e comida gratuita – sempre em embalagens com a grife ISIL – são frequentemente distribuídas aos necessitados. Por hora, essas tentativas de conquistar as populações locais têm sido derrotadas não só pelos métodos violentos de Baghdadi, mas, também, pela insistência dele em regras impopulares, de inspiração religiosa, sobre uso de bebidas alcoólicas, de cigarros, de roupas femininas e da música. Mas tão logo o Estado Islâmico aprenda a governar tão bem como luta e vence batalhas, o apoio popular com que conta com certeza aumentará muito. No momento, as suas possibilidades têm sido comprometidas pelo muito que o Estado Islâmico ainda confia no medo. Mas há outra razão pela qual se deve crer que, no longo prazo, o Estado Islâmico não é tão perigoso quanto muitos creem. Depois da queda de Mosul, o governo de Nouri al-Maliki declarou que o ISIL teria de 4 a 6 mil combatentes no Iraque. Outros entendem que esse número é muito maior. Seja como for, é claro que exército tão diminuto não poderia ter ocupado superfície tão extensa e tão depressa, sem ajuda. O fato é que o ISIL não é o monólito de pensamento único que parece ser. É só a face pública de uma coalizão de ex-jihadistas, oficiais militares baathistas e vários líderes tribais desiludidos com o governo de Maliki. Várias diferentes milícias lutaram ao lado do ISIL, inclusive o Exército Islâmico do Iraque, liderado pelo Xeique Ahmad al-Dabash, homem que não partilha as ideias de Baghdadi sobre um califado. "O Iraque pode permanecer sob sistema único,mas com três regiões – curdos, sunitas e xiitas – separadas. Não há melhor solução que essa", disse al-Dabash recentemente. Os eventos estão andando nesse rumo.

O Iraque já está mais perto de ser três estados, que um. Dada a profundidade da desconfiança entre as comunidades, é provável que as divisões se tornem mais agudas: pode acontecer de a própria Bagdá ser esquartejada. Os curdos, que reagiram contra a tomada de Mosul, tomando o controle de Kirkuk, não cederão facilmente. Alguns xiitas estão começando a achar que um estado xiita pode ser preferível a um estado iraquiano, e há sunitas, também, que começam a achar que preferem tomar conta, eles mesmos, da própria vida. A desintegração do Iraque encaixa-se em tendências maiores que desafiam a ordem estabelecida no Oriente Médio; não são só os jihadistas a comandar todas as mudanças. Num desenvolvimento que seria inimaginável há alguns anos, empresas ocidentais estão comprando petróleo dos curdos, apesar da oposição do governo central em Bagdá. Na Síria, o ISIL controla alguns poços de petróleo, mas muito petróleo continua a chegar ao mercado. Quanto às fronteiras, já não é fora de propósito pensar na possibilidade de um reduto alawita no oeste da Síria e de autogoverno dos curdos: uma independência de fato, que mudaria, não só o Iraque, mas também Turquia, Síria e Irã. Israel e as potências ocidentais já estão mostrando preocupação sobre o que possa vir a acontecer na Jordânia. Não há dúvidas de que resistirão contra qualquer demanda de que reconheçam mudanças tentadas em limites nacionais. Mas isso pode levar a crescente divergência entre os sistemas que regulam as relações nacionais entre estados, e a realidade em campo.

*

A promessa da Primavera Árabe está extinta, em grande medida. Esperanças de mudança democrática foram substituídas por medos de ditaduras e califatos. O principal desapontamento é a região do Egito, onde os ideais da Praça Tahrir terminaram em governo de ditador militar, ainda mais autoritário que Mubarak. A Fraternidade Muçulmana – que venceu todas as eleições às quais concorreu depois da Primavera Árabe – foi declarada organização terrorista, com centenas dos seus principais líderes já condenados à morte. E tudo isso aconteceu com apoio do ocidente: o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, entregou recentemente mais de meio bilhão de dólares ao regime golpista do general Sisi. E a situação na Síria tem levado alguns a pensar se, comparado aos jihadistas, o regime do presidente Assad não será, afinal, a melhor opção. O ocidente dá sinais de estar mais do que apenas tentado a apoiar qualquer ditador que apareça no Iraque, se der sinais de que conseguirá manter sob controle o Estado Islâmico. Em outras palavras, o Ocidente já está revertendo à sua tradicional política para o Oriente Médio, de apoiar regimes autoritários que mantenham sob rédea curta sejam os islamistas radicais sejam os democratas liberais.

Quando George Bush e Tony Blair invadiram o Iraque, promoveram a ideia de que o ocidente estaria enfrentando ameaça jihadista global comandada pela al-Qaeda. Toda a Guerra Global ao Terror foi feita contra um único inimigo: o Islã radical. De início, cada manifestação dessa ameaça foi atacada com força massiva, a começar no Afeganistão. Mais recentemente, as ofensivas do ocidente têm sido menos consistentes. Os jihadistas no Mali foram atacados, mas al-Shabaab não foi incomodada na Somália. Para alguns, o não agir em alguns casos sinalizaria fraqueza ocidental. “O ponto de partida é identificar a natureza da batalha: é batalha contra o extremismo islamista. A batalha é essa” – escreveu Tony Blair em ensaio publicado em sua página internet, redigido como resposta aos avanços do ISIL no Iraque. Na sequência, recomendou outra – possivelmente ilegal – intervenção militar. Outros, menos comprometidos com o passado, fazem análise diferente: ao mesmo tempo em que os jihadistas estão envolvidos em várias lutas contemporâneas, os vários conflitos envolvem teia complicada de muitos outros fatores. Já não há um único inimigo – se é que algum dia houve inimigo único – dedicado a atacar o ocidente. Há várias forças separadas, cada uma com agenda própria e seus próprios motivos, que têm a ver, principalmente, com inimigos locais. Cada conflito tem sua própria história e sua própria dinâmica. No Iraque, a atual rebelião é movida, não por antiamericanismo ou hostilidade contra o ocidente em geral, mas, mais, pelo sectarismo, a corrupção e a incompetência do governo Maliki. Os xiitas iraquianos e seus apoiadores iranianos, ao lado dos sunitas moderados e até de curdos, todos têm agora um interesse comum em se opor a al-Baghdadi – o que eles mesmos podem fazer com muito maior eficácia que o exército dos EUA. De fato, tropas dos EUA deslocadas para lá serão como fantoches nas mãos de al-Baghdadi e Zawahiri.

Em fins de junho, David Cameron disse à Casa dos Comuns do Parlamento que o ISIL poderia tomar o controle do norte do Iraque e instalar lá um governo: “O pessoal que chefia aquele governo, além de aspirar a tomar território, também planeja nos atacar aqui em nossa casa, no Reino Unido”. É declaração temerária, altamente belicosa, que ultrapassa em muito o que o governo de Obama tem dito. Nos últimos meses, os Republicanos desenvolveram com sucesso uma narrativa segundo a qual a relutância de Obama em usar a força na região teria dado lugar a uma percepção de fraqueza dos EUA. A pressão doméstica sobre Obama, para que seja mais agressivo no uso da força militar tem sido considerável. Apesar disso, o presidente dos EUA parece tem conseguido conter as demandas – que agora estão partindo de uma improvável aliança entre Maliki e a direita norte-americana – de que envie tropas dos EUA para o Iraque. “Os sunitas que tomaram cidades iraquianas”, disse Obama, representam “ameaça de médio e longo prazo” para os EUA. Mas, acrescentou ele, “não podemos pensar que estamos brincando de pega-pega e mandar soldados dos EUA para ocupar vários países, cada vez que essas organizações aparecem no mundo”. “E seja como for”, disse ele, “as populações locais rejeitam o ISIL por causa da violência deles”. É um evento muito raro: Downing Street, Londres, ainda mais falcão-linha-dura que a Casa Branca, Washington; mas talvez seja um evento sem consequências. Em uma frase na qual articula de modo excepcionalmente claro a subserviência de Londres a Washington, William Hague disse, em resposta aos avanços do ISIL: "Apoiaremos os EUA em qualquer coisa que resolvam fazer."

A relutância de Obama, que não interveio na Síria pode parecer fracassada. Mas estaria por acaso garantido que mais dinheiro do ocidente entregue ao Exército Sírio Livre teria resultado na emergência de alguma espécie de estado liberal democrático? O fracasso da Primavera Árabe em outros pontos não sugere que essa possibilidade se concretizaria. Políticos ocidentais estão tendo de reajustar-se à novidade de sua própria crescente incapacidade para dominar o mundo. Se se consideram as alternativas, a inação de Obama parece boa ideia, que é criticado pela direita e pela esquerda, pelos seus muitos erros e fracassos. Mas o mais provável é que dentro de alguns anos, quando ele já não estiver na Casa Branca, tenhamos muitas saudades de Obama.

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