30 de julho de 2014

Nada não intencional

Nadia Abu El-Haj

LRB Blog


Já são mais de mil mortos palestinos, com mais de 5 mil feridos. Mais de 70% das baixas são civis, mais de 200, crianças. Famílias inteiras foram dizimadas. Meninos que jogavam bola numa praia foram mortos por barcos de guerra de Israel. Mais de 2 mil residências foram danificadas ou destruídas. Segundo um porta-voz do exército de Israel, 120 bombas de uma tonelada foram lançadas só contra os arredores de Shaja’yya. Mesmo assim, porque morreram três civis israelenses e 40 soldados, os israelenses e seus aliados nos EUA insistem em descrever a carnificina como guerra de autodefesa.

Eles também dizem que o exército israelense empreende a guerra com integridade moral. Não alveja civis. Nunca pretende matá-los. Que até alerta os habitantes de Gaza sobre futuros ataques, para que possam sair do caminho do perigo.

O massacre “não intencional” de civis não é ilegal nos termos da lei internacional. Se os civis não são deliberadamente “alvejados”, se são mortos na tentativa de alcançar um objetivo militar legítimo e o número de mortos é “proporcional” àquele objetivo, nesse caso as baixas civis são definidas como “dano colateral”. Contudo, como ensina Neta Crawford em Accountability for Killing: Moral Responsibility for Collateral Damage in America's Post-9/11 Wars, vale a pena pensar mais criticamente sobre a categoria das mortes não intencionais de civis. Muitas mortes de civis em guerra de guerrilha urbana podem ser “não intencionais”, mas também são previsíveis.

Gaza é um território densamente povoado cercado por terra, mar e ar, do qual não há saída possível. O exército israelense está fazendo chover bombas naquele território com poder de fogo suficiente para demolirem prédios de apartamentos de oito andares; para fazerem voar pelos ares enormes portões de ferro. Há drones que disparam contra áreas onde se acumulam dezenas de milhares de pessoas, e até contra abrigos; e, também, contra pontos em que se aglomeram pessoas que tentam fugir.

O exército de Israel está bombardeando áreas densamente povoadas e campos de refugiados usando tanques Merkava e a respectiva munição, e mísseis disparados de helicópteros Apache, inclusive em áreas que, antes, o exército israelense havia indicado como um local onde os civis poderiam escapar.

Não há lugar seguro em Gaza. Não há para onde fugir. E nada há de “não intencional”, muito menos há algo de moral, se o que se vê são civis mortos em circunstâncias nas quais se pode prever com 100% de probabilidade que serão mortos; se se ataca à bala de canhão um campo de refugiados superlotado ou uma área superlotada de qualquer cidade, ou rua superlotada, não há dúvida alguma de que haverá mortes de civis em massa. Nessas circunstâncias, a distinção entre assassinato premeditado e morte não intencional já perdeu completamente qualquer significado.

E se as mortes de civis ali não forem não intencionais? O estado israelense é hábil na arte de mostrar-se sempre alinhado com os interesses e valores proclamados dos EUA. Depois do 11/9, Ariel Sharon trabalhou muito para igualar a guerra dos EUA contra “terroristas muçulmanos” no Afeganistão e no Iraque, com a luta de Israel contra o povo palestino. Mas a guerra de Israel é absolutamente diferente da guerra dos EUA. Não porque os militares americanos sejam mais morais, ou mais sensíveis às leis da guerra, mas porque os EUA operam com uma fantasia ideológica diferente. Os militares dos EUA foram libertar iraquianos e afegãos de regimes dos quais esses povos queriam libertar-se – ou, pelo menos, acreditaram que queriam, quando lhes foi dito que queriam. Sempre seria preciso conquistar corações e mentes, mas os civis iraquianos e afegãos facilmente abraçariam a causa dos EUA e sua missão “libertadora”.

A guerra de Israel contra Gaza não é uma guerra que visa a conquistar corações e mentes palestinos. Israel não se apresenta como protetora ou libertadora dos habitantes de Gaza, de algum governo opressor. Em vez disso, as táticas do exército de Israel fazem lembrar a lógica dos bombardeios de britânicos e americanos contra cidades alemãs e japonesas durante a II Guerra Mundial: atirar para matar contra a população civil. Que sofram além do imaginável. Então, os próprios civis levantar-se-ão contra o governo deles.

Quando Israel ataca hospitais em Gaza, quando assassina famílias inteiras, quando reduz a pedaços irreconhecíveis quatro meninos que jogavam bola numa praia, todos esses são assassinatos premeditados e cuidadosamente planejados. A guerra é uma extensão do castigo coletivo aplicado aos palestinos da Cisjordânia depois que três jovens colonos israelenses foram sequestrados e mortos em junho. É proporcional? Comparem-se essa resposta e a reação israelense contra os três israelenses que queimaram vivo um adolescente palestino, como vingança pela morte dos três colonos. Imaginem o exército israelense pondo-se a bombardear as colônias nas quais vivessem os colonos assassinos, responsabilizando colônias israelenses inteiras, pelo crime dos três assassinos; imaginem o exército israelense a demolir colônias de israelenses, a tiros de canhão.

Ou imaginem se o Hamas tivesse acesso a foguetes melhores, que pudessem ser mais eficazmente dirigidos contra os seus alvos. Imaginem se o Hamas começasse a atacar exatamente os pontos onde estivessem os altos comandantes e governantes israelenses, as casas deles, que matassem mulher e filhos deles, sobrinhos, sobrinhas, junto com a família, também dos vizinhos deles, da casa ao lado, numa explosão só. Imaginem que essas mortes fossem apresentadas ao mundo como “danos colaterais” pelas quais o Hamas não teria qualquer responsabilidade legal ou moral.

O bombardeio, pelo exército de Israel, contra casas, escolas e hospitais, indiscriminadamente posto no chão, reduzido a escombros, matando sem parar o povo de Gaza, tem de ser chamado pelo que é: crime de guerra.

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