8 de junho de 2016

Por dentro da rebelião

Os metalúrgicos chineses do setor automotivo têm se tornado cada vez mais militantes, mas carecem de organizações de massas independentes.

Herman Rosenfeld


Uma fábrica Mazda na China em 2014. John Lloyd / Flickr

Tradução / Uma grande e crescente onda de greves operárias e protestos tem varrido a China. Só no ano de 2015, houve cerca de 2700 ações de massas — o dobro do total de 2014. E mais de mil já ocorreram, antes do fim do primeiro semestre de 2016.

Os trabalhadores encaram uma dura batalha. O Partido Comunista Chinês — indiferente às invocações, pelos trabalhadores, dos valores declarados pelo partido, como o compromisso com a libertação da classe trabalhadora — está se desmantelando durante os conflitos. Foram ordenadas prisões de ativistas e fechados importantes centros autônomos dos trabalhadores.

Mas a turbulência política que engolfa o partido criou, também, o potencial de uma abertura para os trabalhadores.

As autoridades chinesas caminham na corda bamba, combinando uma resposta severa que busca limitar o escopo dos protestos com concessões estratégicas quanto a demandas por secessão, pagamento de pensões e salários.

Neste período turbulento, explicar a continuidade da resistência da classe trabalhadora na China, – suas formas, expressões, potenciais e limites – ao lado de uma abordagem particular do PCC e do Estado é um esforço importante e desafiador. A socióloga Lu Zhang abraça esse projeto em seu novo livro, “Por dentro das fábricas automotivas da China: A política do trabalho e a resistência operária”, fornecendo uma análise brilhante que floresce de um estudo exaustivo do setor automotivo chinês.

Alavancagem da legitimidade

Durante vinte meses entre 2004 e 2011, Zhang conduziu uma pesquisa etnográfica em sete grandes fábricas de montagem de automóveis (ambos empreendimentos estatais e joint ventures) em seis cidades chinesas. Em cada instalação, ela conversou com os trabalhadores (incluindo permanentes, temporários, e estudantes trabalhadores) no chão de fábrica, em reuniões de grupos de trabalho, e fora da fábrica durante o tempo livre dos trabalhadores. Zhang também entrevistou gerentes, membros do partido e do sindicato, árbitros, funcionários do governo e especialistas da indústria.

O resultado é um olhar amplo sobre a transformação industrial, que se estende desde o início do período da reforma da década de oitenta e início dos anos noventa período de reforma até hoje. Zhang mostra como o contexto da mudança política e econômica — sobretudo a trajetória do desenvolvimento do país pós-Mao — catalisou mudanças dramáticas na organização da produção e da estrutura da força de trabalho. No processo, os trabalhadores e a administração forjaram uma nova relação preocupante.

Para Zhang, o setor automotivo é fundamental para explicar as maiores mudanças estruturais da economia chinesa, particularmente no que diz respeito à classe trabalhadora. Na China, como em muitos outros países, a indústria automobilística ocupa um lugar especial na economia. O Estado a vê como uma ponte para a construção de uma mais profunda (e, finalmente, mais rentável) capacidade industrial e fabricação.

No entanto, a experiência dos trabalhadores da indústria automobilística mudou substancialmente desde o período do socialismo de Estado.

Os desafios enfrentados pelo Estado chinês em um ambiente de mercado capitalista — na China e na economia mundial que escolheu para entrar — alteraram radicalmente a capacidade dos trabalhadores da indústria automobilística da China para defender os seus direitos e atuar como protagonistas.

Enquanto as tendências políticas e ideológicas do projeto revolucionário da China ainda têm um peso entre classe trabalhadora do país - e afetam as relações entre trabalhadores, o partido no poder, e o Estado - os requisitos do desenvolvimento capitalista criaram intensa competição na indústria automobilística da China. A lucratividade exige a constante redução de custos, muitas vezes através de práticas de exploração e produção enxuta ou just-in-time e a segmentação da força de trabalho, salário, status de trabalho, e assim por diante.

Estas tendências estão presentes em todo o mundo. Mas o que torna o livro de Zhang tão atraente é que ela funde uma análise dos processos de trabalho e da indústria com as mudanças políticas mais amplas do país. Em particular, após Beverly Silver, ela examina a interação entre legitimidade e lucro. O declínio das taxas de retorno, escreve Zhang, muitas vezes levam a crises políticas enraizadas em questões de legitimidade social.

O regime tenta polir sua legitimidade por meio de várias formas.

Uma delas é apelando ao passado. O povo trabalhador ainda celebra a transformação revolucionária do PCC na China, que impulsionou o país do Estado semi-feudal, de status dominado, e prometeu construir uma sociedade que favorecesse a classe trabalhadora. O sistema de socialismo de Estado desde então garantiu trabalho, benefícios sociais e de saúde, e a perspectiva de uma vida melhor.

Quando o PCC adotou uma estratégia de desenvolvimento capitalista — o que necessariamente envolve os novos processos de mercantilização do trabalho — foi obrigado a rever os seus apelos.

Hoje, o PCC assegura a sua legitimidade sobretudo através das promessas de manutenção do crescimento econômico e da estabilidade social. Com efeito, o crescimento econômico é um meio para manter o monopólio do partido no poder político — não necessariamente o objetivo em si mesmo.

Os trabalhadores chineses não são objetos inanimados nesse processo de legitimação. Em um ambiente sem organização e negociação coletiva autônoma, os trabalhadores usam a necessidade do PCC justificar suas regras para obter ganhos no chão de fábrica (uma tática que Zhang chama de “alavancagem da legitimidade”).

Essas lutas de chão de fábrica se multiplicaram. O próprio governo chinês observou que o número de conflitos laborais aumentou de 48.121 em 1996 para mais de 350.182 em 2007. Em 2010, trabalhadores de uma de fábrica de transmissão e motor da Honda pararam, atingindo quatro fábricas de montagem chinesas da empresa. Ações locais também proliferam: recusas coletivas para participar de rituais de gestão; sit-downs exigindo aumentos salariais; protestos individuais, como absenteísmo, sabotagem, e lentidão.

Trabalhadores divididos

Um dos elementos cruciais do desenvolvimento da indústria automobilística chinesa — e indústrias deste tipo em todo o mundo — é a emergência de uma força de trabalho “dual”.

Na China, fábricas de propriedade estatal passaram a empregar, no lugar de uma força de trabalho relativamente segura, uma força de trabalho segmentada, ou dual. Os “quadros” trabalhadores – que incluem trabalhadores gerenciais e técnicos, bem como uma camada permanente de trabalhadores semi ou pouco qualificados – são, amplamente, aqueles que costumavam ser beneficiários do sistema danwei (o qual garantia empregos e benefícios) e que agora trabalham em um sistema de contratos de trabalho. Eles labutam ao lado de uma força de trabalho secundária ou temporária, muitos dos quais vindos do interior.

Mas, enquanto os empregados formais trabalham lado a lado com suas contrapartes temporárias, realizando inclusive funções similares, eles o fazem em condições bastante diferentes. Os quadros recebem salários maiores, benefícios e gozam de maior segurança em seus empregos; temporários sofrem as consequências da busca pela lucratividade e esforços de redução de custos.

Diferenças sociais adicionais abundam; eles são posteriormente separados de acordo com níveis educacionais e de treinamento, residência urbana ou rural e por idade.

As autoridades assumiam que essas múltiplas fissuras — acompanhadas da aceitação pelos trabalhadores formais de que a sua segurança era parcialmente baseada na insegurança de seus colegas temporários – seriam suficientes para assegurar a permanente lealdade dos trabalhadores. Mas, ainda que os quadros trabalhadores tenham benefícios preferenciais e opções de promoções, eles ainda seguem sofrendo constantes ataques a seus pagamentos, condições de trabalhos e quanto à duração e estabilidade de seus contratos.

Enquanto isso, a força de trabalho secundária tem evoluído, ao longo do tempo, em um grupo mais jovem, mais altamente educado e urbanizado. E eles estão crescentemente lutando em resposta às extremas violações de seus direitos, às vezes contando mesmo com o apoio dos quadros trabalhadores.

Em um local de trabalho, temporários trabalhavam de dez a doze horas diárias por dois meses sem sequer descanso semanal — apenas para descobrir que a companhia não pagaria os seus salários e bônus. Então entraram em greve. A paralisação do trabalho ganhou o apoio dos trabalhadores formais e, após alguns turnos, os gestores cederam e prometeram o pagamento.

Outras greves têm sido menos bem-sucedidas em atrair o apoio dos trabalhadores formais, mas muitas delas ainda sim resultaram em aumento dos salários. E, escreve Zhang, greves e protestos nas indústrias ajudaram a pressionar o Estado a aprovar importantes leis trabalhistas, estabelecer novas regras para contratos de trabalho escritos e impor regulamentações sobre as agências de trabalho temporário.

Os movimentos das populações pobres

Zhang olha para o redemoinho da agitação laboral na China e conclui que a classe trabalhadora pode “barganhar sem sindicatos” – isso dado o balanço de forças particulares, o papel do Estado e a natureza das organizações laborais no setor, “o descontentamento operário na base e as pressões de baixo são as forças genuínas que trazem mudanças significativas aos locais de trabalho e as reformas vindas de cima”.

A ruptura que tais movimentos causam — mesmo quando eles carecem de organizações e partidos classistas e independentes — pode fornecer o ímpeto por reformas, não apenas na China mas em todo o planeta.

“Muitos dos ganhos feitos pelos “movimentos das ‘populações pobres’” não vêm do estabelecimento de organizações formais orientadas para a captura do poder estatal”, escreve Zhang, resumindo o trabalho dos sociólogos estadunidenses France Fox Piven e Richard Cloward, “mas são o resultado de concessões arrancadas aos poderosos em reposta às alastradas, intensas e espontâneas irrupções vinda de baixo, em resposta à ameaça da ‘ingovernabilidade’”.

Em verdade, a forma e o escopo da resistência operária que Zhang esmiúça forçou o Estado chinês a, ao menos, oscilar entre a repressão e a acomodação. O PCC não pode simplesmente agir impunemente.

Ainda assim, sem um cenário mais amplo de oposição – suportado por organizações de classe conscientes – é impossível que surja a capacidade de fazer mais do que limitar os danos e indiretamente modelar o capitalismo contemporâneo. Na China ou em qualquer outro lugar, partidos políticos classistas e outros órgãos populares permanecem essenciais para fazer frente aos desafios mais amplos e profundos do sistema.

Como podem tais desafios serem lançados na China, em face de uma liderança estatal autoritária é algo que ativistas e estudiosos ainda precisarão ponderar. Mas “Por dentro das fábricas automotivas da China” é uma valiosa contribuição para essa discussão vital.

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