Jason Tebbe
Jacobin
Tradução / O adjetivo "vitoriano" tende a evocar ideias fora de moda: mulheres apertadas em espartilhos, papeis estritamente fixados para homens e para mulheres, e a mais feroz suposta pudicícia em tudo que tivesse a ver com sexo. Num mundo no qual reinam o consumismo mais promíscuo e a autopromoção, essas noções do século 19, de autocontenção e negação do próprio desejo, parecem inapelavelmente superadas.
Mas o ethos vitoriano não morreu. Está longe de morrer.
Ele sobrevive e manifesta-se no comportamento social "exterior" da chamada classe média alta. Embora alguns aspectos tenham seguido o destino triste dos coletes e chapéus masculinos, persiste bem viva a crença de que a burguesia goza de marcada superioridade moral sobre o resto da humanidade.
Hoje, aulas de pedalar, comida artesanal e processo vestibular para ingresso nas universidades afamadas substituíram as promenades de domingo, as conferências sobre "atualidades" e os "salões" semanais. Mas que ninguém se iluda: todas essas atividades têm o mesmo propósito: transformar o que é privilégio de classe em virtude individual, e assim demarcar ainda mais firmemente a dominação social.
Valores vitorianos
Ross G. Strachan / Flickr |
Tradução / O adjetivo "vitoriano" tende a evocar ideias fora de moda: mulheres apertadas em espartilhos, papeis estritamente fixados para homens e para mulheres, e a mais feroz suposta pudicícia em tudo que tivesse a ver com sexo. Num mundo no qual reinam o consumismo mais promíscuo e a autopromoção, essas noções do século 19, de autocontenção e negação do próprio desejo, parecem inapelavelmente superadas.
Mas o ethos vitoriano não morreu. Está longe de morrer.
Ele sobrevive e manifesta-se no comportamento social "exterior" da chamada classe média alta. Embora alguns aspectos tenham seguido o destino triste dos coletes e chapéus masculinos, persiste bem viva a crença de que a burguesia goza de marcada superioridade moral sobre o resto da humanidade.
Hoje, aulas de pedalar, comida artesanal e processo vestibular para ingresso nas universidades afamadas substituíram as promenades de domingo, as conferências sobre "atualidades" e os "salões" semanais. Mas que ninguém se iluda: todas essas atividades têm o mesmo propósito: transformar o que é privilégio de classe em virtude individual, e assim demarcar ainda mais firmemente a dominação social.
Valores vitorianos
O historiador Peter Gay usou amplamente o adjetivo "vitoriano" para descrever a cultura da classe média alta educada da Europa Ocidental e dos EUA ao longo do século 19. Claro que todos sempre construíram crenças mais complicadas sobre sexo, diferenças entre homens e mulheres socialmente definidos e família, do que se crê que tenham feito.
Os vitorianos implantaram um rígido código moral, mas falavam sobre sexo dia e noite, sem parar, quase obsessivamente. Como Gay mostrou, casais ricos frequentemente trocavam cartas mais calientes que um Motor a vapor de Newcomen.
Apesar dos estereótipos de homens como pais "durões" e autoritários, esse período viu nascer as noções contemporâneas de paternidade. Burguês rico e homem de verdade não apenas provê o sustento da família como, além disso, participa ativamente do bem-estar emocional e afetivo de suas crianças.
Apesar de a classe média alta no século 19 não ter sido nem de longe o que supomos, em matéria de pudicícia e autodisciplina, mesmo assim aderiram a um estrito código de comportamento social. Esses códigos refletiam as mudanças na estrutura de classe pelas quais passava a sociedade, e o crescente desejo da burguesia, de demarcar uma sua suposta superioridade moral sobre a nobreza; e usava-se a virtude real ou só anunciada, para desafiar o lugar que a velha aristocracia ocupava no centro da vida política, social e cultural. Enquanto os filhos da aristocracia caçavam e jantavam interminavelmente, os filhos dos banqueiros e advogados trabalhavam, criavam famílias, faziam filhos e se autoeducavam.
Na Alemanha, a palavra chave é quase intraduzível: Bildung, que significa educação sob a forma de autoformação, formação cultural e contínuo aprimoramento. Essa ideia, manifesta em diferentes idiomas em diferentes nações, aproximou e como que ‘unificou’ toda a classe burguesa internacional em ascensão, quase sem ver fronteiras nacionais. A atenção à autoformação e ao autoaprimoramento demarcava a classe burguesa em ascensão, diferenciando-a do 1% aristocrático decadente.
Por exemplo, ouvir e fazer música passou a ser experiência educacional – não mais simples entretenimento. A música de câmera clássica do século 18 funcionara como agradável trilha sonora para soirées aristocráticas. Nos teatros e salas de concertos, a nobreza exibia-se para ela mesma nos camarotes, e só parcialmente ouvia os cantores e instrumentistas.
Mas quando a classe capitalista rampante assistia a concertos, os burgueses não se comportavam como se assistissem a um desfile de modas: sentavam-se de costas e pescoços eretos, não falavam e exigiam silêncio, para se concentrarem na música.
Vitorianos alemães cunharam o termo Sitzfleisch - "carne sentada" - para descrever o controle muscular necessário para manter-se sentado e absolutamente imóvel durante um concerto. Tosses e espirros tinham de ser contidos, para que não interrompessem a concentração de alguém e pusessem a perder um autoaprimoramento.
A procura pelo Bildung saturava também a vida diária. Mulheres jovens ricas, que não podiam esperar ter alguma carreira além das de mãe e esposa, aprendiam no mínimo um outro idioma e tinham aulas de piano e canto. Os homens usavam os fins de tarde e início da noite para assistir a palestras ou participavam em organizações civis.
Mas para que toda essa dedicação gerasse lucros, esses vitorianos recém-enriquecidos tinham de ostentá-la, marcar, tornar óbvia, a diferença que os separava simultaneamente dos mais ricos e dos mais pobres que eles.
Gastavam porcentagem assustadora das próprias rendas para decorar a casa de modo a que o mobiliário mostrasse o enriquecimento em curso, bom gosto e modéstia, tudo ao mesmo tempo. Sabiam que tinham ‘chegado lá’ quando afinal tinham um salon - uma peça da casa inteiramente devotada a entreter convidados, na qual os moradores jamais punham os pés quando estivessem sós. Aos domingos, toda a família saía a passear pelo parque.
De fato, em toda a Europa e nos EUA, famílias ricas propugnaram pela criação de mais e mais parques públicos. Mas, alinhados com os valores de classe, esses espaços não visavam ao lazer de alguma comunidade e não eram lugar para os muitos: eram como palcos nos quais os burgueses se apresentavam na melhor forma possível aos domingos.
O Central Park de New York, por exemplo, proibia o público de andar sobre a grama ou praticar esportes. Crianças, só entravam nos playgrounds se exibissem um "certificado de bom comportamento" emitido pelos respectivos professores. Proibido vender cerveja aos domingos.
O parque não servia ao lazer da classe trabalhadora: era espaço para discipliná-la. Lá os trabalhadores aprenderam o modo correto de usufruir do parque: caminhando sem parar. O primeiro parque de Fredrick Law Olmsted serviu como templo monstro da noção vitoriana da natureza como espaço de aprimoramento.
Fitness Moral
Os vitorianos implantaram um rígido código moral, mas falavam sobre sexo dia e noite, sem parar, quase obsessivamente. Como Gay mostrou, casais ricos frequentemente trocavam cartas mais calientes que um Motor a vapor de Newcomen.
Apesar dos estereótipos de homens como pais "durões" e autoritários, esse período viu nascer as noções contemporâneas de paternidade. Burguês rico e homem de verdade não apenas provê o sustento da família como, além disso, participa ativamente do bem-estar emocional e afetivo de suas crianças.
Apesar de a classe média alta no século 19 não ter sido nem de longe o que supomos, em matéria de pudicícia e autodisciplina, mesmo assim aderiram a um estrito código de comportamento social. Esses códigos refletiam as mudanças na estrutura de classe pelas quais passava a sociedade, e o crescente desejo da burguesia, de demarcar uma sua suposta superioridade moral sobre a nobreza; e usava-se a virtude real ou só anunciada, para desafiar o lugar que a velha aristocracia ocupava no centro da vida política, social e cultural. Enquanto os filhos da aristocracia caçavam e jantavam interminavelmente, os filhos dos banqueiros e advogados trabalhavam, criavam famílias, faziam filhos e se autoeducavam.
Na Alemanha, a palavra chave é quase intraduzível: Bildung, que significa educação sob a forma de autoformação, formação cultural e contínuo aprimoramento. Essa ideia, manifesta em diferentes idiomas em diferentes nações, aproximou e como que ‘unificou’ toda a classe burguesa internacional em ascensão, quase sem ver fronteiras nacionais. A atenção à autoformação e ao autoaprimoramento demarcava a classe burguesa em ascensão, diferenciando-a do 1% aristocrático decadente.
Por exemplo, ouvir e fazer música passou a ser experiência educacional – não mais simples entretenimento. A música de câmera clássica do século 18 funcionara como agradável trilha sonora para soirées aristocráticas. Nos teatros e salas de concertos, a nobreza exibia-se para ela mesma nos camarotes, e só parcialmente ouvia os cantores e instrumentistas.
Mas quando a classe capitalista rampante assistia a concertos, os burgueses não se comportavam como se assistissem a um desfile de modas: sentavam-se de costas e pescoços eretos, não falavam e exigiam silêncio, para se concentrarem na música.
Vitorianos alemães cunharam o termo Sitzfleisch - "carne sentada" - para descrever o controle muscular necessário para manter-se sentado e absolutamente imóvel durante um concerto. Tosses e espirros tinham de ser contidos, para que não interrompessem a concentração de alguém e pusessem a perder um autoaprimoramento.
A procura pelo Bildung saturava também a vida diária. Mulheres jovens ricas, que não podiam esperar ter alguma carreira além das de mãe e esposa, aprendiam no mínimo um outro idioma e tinham aulas de piano e canto. Os homens usavam os fins de tarde e início da noite para assistir a palestras ou participavam em organizações civis.
Mas para que toda essa dedicação gerasse lucros, esses vitorianos recém-enriquecidos tinham de ostentá-la, marcar, tornar óbvia, a diferença que os separava simultaneamente dos mais ricos e dos mais pobres que eles.
Gastavam porcentagem assustadora das próprias rendas para decorar a casa de modo a que o mobiliário mostrasse o enriquecimento em curso, bom gosto e modéstia, tudo ao mesmo tempo. Sabiam que tinham ‘chegado lá’ quando afinal tinham um salon - uma peça da casa inteiramente devotada a entreter convidados, na qual os moradores jamais punham os pés quando estivessem sós. Aos domingos, toda a família saía a passear pelo parque.
De fato, em toda a Europa e nos EUA, famílias ricas propugnaram pela criação de mais e mais parques públicos. Mas, alinhados com os valores de classe, esses espaços não visavam ao lazer de alguma comunidade e não eram lugar para os muitos: eram como palcos nos quais os burgueses se apresentavam na melhor forma possível aos domingos.
O Central Park de New York, por exemplo, proibia o público de andar sobre a grama ou praticar esportes. Crianças, só entravam nos playgrounds se exibissem um "certificado de bom comportamento" emitido pelos respectivos professores. Proibido vender cerveja aos domingos.
O parque não servia ao lazer da classe trabalhadora: era espaço para discipliná-la. Lá os trabalhadores aprenderam o modo correto de usufruir do parque: caminhando sem parar. O primeiro parque de Fredrick Law Olmsted serviu como templo monstro da noção vitoriana da natureza como espaço de aprimoramento.
Fitness Moral
Embora não se vejam hoje muito homens de cartola e mulheres de anquinhas desfilando as crianças aos domingos, os parques continuam a ser locais para ostentação de virtude e disciplina: a cultura fitness contemporânea repete à perfeição o ethos do século 19, de aprimoramento e disciplina.
Os vitorianos tinham aversão que se tornou histórica a qualquer atividade física - não por acaso foi quando entrou em circulação a expressão "trabalho braçal", dos pobres - e consideravam o sobrepeso como marcador social de classe e respeitabilidade. A obsessão Fitness e com esportes começou a se infiltrar na vida das classes médias no século 20. Hoje cumpre a mesma função que a promenade.
Percebi isso há nove anos. Estava morando em Grand Rapids, Michigan, e gostava de usar minha bicicleta para explorar locais pouco conhecidos. Um dia, decidi visitar Grand Rapids Leste, subúrbio de gente muito rica, porque ali há uma ciclovia em torno do Lago Reeds.
Ao chegar, dei-me conta imediatamente que eu era a única pessoa que não trajava "roupa de ginástica". Não implica dizer que os demais estivessem fazendo ginástica - a maioria caminhava, passeando, exatamente como os burgueses primitivos -, mas todos vestiam roupa de ginástica. Os demais ciclistas vestiam calças e tops justíssimos, de material expansível, como se se estivessem na linha de partida do Tour de France.
As roupas repassavam a mensagem: "Preste atenção: não estamos caminhando para fazer algum serviço, não vamos a lugar algum e não usamos as bicicletas para entregas. Aqui é exercício (melhor dizendo: treino)." Os ricos moradores de Grand Rapids Leste haviam convertido um passeio no parque, em rotina de fitness; os trajes de "lazercício" proclamavam que ali estava em curso um ato de aprimoramento de classe.
Tendências atuais de exercício, tipo hot yoga, pedal e CrossFit, demonstram, todas elas, um compromisso com a autonegação e com a autodisciplina, valores muito prezados pelos vitorianos. Correr maratonas converteu-se no significante mais radical: maratonistas postam autorretratos nas mídias sociais para provar a todos que, sim, torturaram o próprio corpo de modo altamente virtuoso – não como porra-locas.
A mesma determinação espalha-se também para todas as atividades da vida. Trader Joe's [restaurante de comida fresca] e Whole Foods [de comida integral] vivem cheios de gente em trajes de ginástica, sem uma gota de suor no corpo. Esse traje marca quem se enfie neles como gente que respeita o próprio corpo, também quando não está fazendo exercício. Calças de yoga e sapatos de corrida ostentam virtude, tanto quanto os espartilhos expostos mesmo que escondidos por baixo dos vestidos das esposas do século 19 ostentavam.
Ser "sarado" hoje é índice de classe, uma síntese de fitness e cultura da boa comida. Calorias ficaram mais baratas, obesidade deixou de ser sinal de riqueza e passou a ser sinal de fracasso moral. Hoje, não ser saudável funciona como etiqueta para marcar a cupidez dos pobres, vista hoje precisamente como, no século 19, era vista a vitalidade sexual prolífica da classe trabalhadora.
As duas linhas de pensamento afirmam que as classes pobres não se autocontrolam e, por isso, merecem exatamente o que têm e não precisam de coisa alguma a mais. Absolutamente portanto não há qualquer necessidade de melhores salários nem de assistência pública à saúde. Afinal de contas, os pobres sempre desperdiçam em cigarros e cheeseburgers, tudo o que ganham.
Antes, como hoje, essas ostentadas diferenças de saúde manifestam desgosto com os corpos da classe trabalhadora. Em The Road To Wigan Pier (port. Caminho para Wigan Pier) George Orwell discutiu a própria criação vitoriana; conta que foi treinado para crer que haveria "alguma coisa sutilmente repulsiva, num corpo da classe trabalhadora." No tempo de Orwell, água e sabão - não algum fitness - marcava aquela distinção crucial. Ensinaram a Orwell, palavras dele, que "as classes baixas fedem."
Os vitorianos tinham aversão que se tornou histórica a qualquer atividade física - não por acaso foi quando entrou em circulação a expressão "trabalho braçal", dos pobres - e consideravam o sobrepeso como marcador social de classe e respeitabilidade. A obsessão Fitness e com esportes começou a se infiltrar na vida das classes médias no século 20. Hoje cumpre a mesma função que a promenade.
Percebi isso há nove anos. Estava morando em Grand Rapids, Michigan, e gostava de usar minha bicicleta para explorar locais pouco conhecidos. Um dia, decidi visitar Grand Rapids Leste, subúrbio de gente muito rica, porque ali há uma ciclovia em torno do Lago Reeds.
Ao chegar, dei-me conta imediatamente que eu era a única pessoa que não trajava "roupa de ginástica". Não implica dizer que os demais estivessem fazendo ginástica - a maioria caminhava, passeando, exatamente como os burgueses primitivos -, mas todos vestiam roupa de ginástica. Os demais ciclistas vestiam calças e tops justíssimos, de material expansível, como se se estivessem na linha de partida do Tour de France.
As roupas repassavam a mensagem: "Preste atenção: não estamos caminhando para fazer algum serviço, não vamos a lugar algum e não usamos as bicicletas para entregas. Aqui é exercício (melhor dizendo: treino)." Os ricos moradores de Grand Rapids Leste haviam convertido um passeio no parque, em rotina de fitness; os trajes de "lazercício" proclamavam que ali estava em curso um ato de aprimoramento de classe.
Tendências atuais de exercício, tipo hot yoga, pedal e CrossFit, demonstram, todas elas, um compromisso com a autonegação e com a autodisciplina, valores muito prezados pelos vitorianos. Correr maratonas converteu-se no significante mais radical: maratonistas postam autorretratos nas mídias sociais para provar a todos que, sim, torturaram o próprio corpo de modo altamente virtuoso – não como porra-locas.
A mesma determinação espalha-se também para todas as atividades da vida. Trader Joe's [restaurante de comida fresca] e Whole Foods [de comida integral] vivem cheios de gente em trajes de ginástica, sem uma gota de suor no corpo. Esse traje marca quem se enfie neles como gente que respeita o próprio corpo, também quando não está fazendo exercício. Calças de yoga e sapatos de corrida ostentam virtude, tanto quanto os espartilhos expostos mesmo que escondidos por baixo dos vestidos das esposas do século 19 ostentavam.
Ser "sarado" hoje é índice de classe, uma síntese de fitness e cultura da boa comida. Calorias ficaram mais baratas, obesidade deixou de ser sinal de riqueza e passou a ser sinal de fracasso moral. Hoje, não ser saudável funciona como etiqueta para marcar a cupidez dos pobres, vista hoje precisamente como, no século 19, era vista a vitalidade sexual prolífica da classe trabalhadora.
As duas linhas de pensamento afirmam que as classes pobres não se autocontrolam e, por isso, merecem exatamente o que têm e não precisam de coisa alguma a mais. Absolutamente portanto não há qualquer necessidade de melhores salários nem de assistência pública à saúde. Afinal de contas, os pobres sempre desperdiçam em cigarros e cheeseburgers, tudo o que ganham.
Antes, como hoje, essas ostentadas diferenças de saúde manifestam desgosto com os corpos da classe trabalhadora. Em The Road To Wigan Pier (port. Caminho para Wigan Pier) George Orwell discutiu a própria criação vitoriana; conta que foi treinado para crer que haveria "alguma coisa sutilmente repulsiva, num corpo da classe trabalhadora." No tempo de Orwell, água e sabão - não algum fitness - marcava aquela distinção crucial. Ensinaram a Orwell, palavras dele, que "as classes baixas fedem."
Atualmente, a Internet registra esse horror de classe, antipobres, em websites como People of Wal-Mart. Em vez de se distanciarem com repulsa dos "grandes fedidos", os vitorianos modernos "branquearam" os "grandes supernutridos".
Enquanto a burguesia do século 19 viu corpos volumosos não como embaraço a ser erradicado, mas como marca confortadora da própria prosperidade, seus herdeiros espirituais vivem obcecados com comer comidas "certas". Nos últimos 15 anos, comida orgânica foi, de fenômeno marginal, a item de primeira necessidade.
Considerem o movimento "não contém glúten" - os que escolhem eliminar o glúten da própria dieta, não os que sofrem de doença celíaca e têm de evitar completamente o trigo. Há poucos anos, brinquei que encontrar um morador que não contivesse glúten, na minha cidade natal, rural, interior do Nebraska, seria equivalente a encontrar Obras Completas de Peter Kropotkin na biblioteca local. Hoje, já há alimentos tipo ‘não contém glúten’ em praticamente todas as prateleiras do supermercado de lá.
Essa disciplina alimentária é uma modalidade de autonegação virtuosa que encheria de orgulho qualquer burguês vitoriano. Se pelo menos meus avós tivessem vivido o suficiente para alcançar o tempo em que já basta plantar batatas e pepinos nos próprios vasos, para deixar de ser matuto e virar rico...
Enquanto a burguesia do século 19 viu corpos volumosos não como embaraço a ser erradicado, mas como marca confortadora da própria prosperidade, seus herdeiros espirituais vivem obcecados com comer comidas "certas". Nos últimos 15 anos, comida orgânica foi, de fenômeno marginal, a item de primeira necessidade.
Considerem o movimento "não contém glúten" - os que escolhem eliminar o glúten da própria dieta, não os que sofrem de doença celíaca e têm de evitar completamente o trigo. Há poucos anos, brinquei que encontrar um morador que não contivesse glúten, na minha cidade natal, rural, interior do Nebraska, seria equivalente a encontrar Obras Completas de Peter Kropotkin na biblioteca local. Hoje, já há alimentos tipo ‘não contém glúten’ em praticamente todas as prateleiras do supermercado de lá.
Essa disciplina alimentária é uma modalidade de autonegação virtuosa que encheria de orgulho qualquer burguês vitoriano. Se pelo menos meus avós tivessem vivido o suficiente para alcançar o tempo em que já basta plantar batatas e pepinos nos próprios vasos, para deixar de ser matuto e virar rico...
Guerras de Mamãe e admissão na universidade
Dinâmica similar infecta a vida familiar hoje. Como seus ancestrais, as classes médias contemporâneas dão grande ênfase à família. Embora o autoritarismo do século 19 tenha caído de moda, foi ali que a humanidade começou a ver a infância como período específico e especial da vida. Pai e mãe agiam coerentemente, e nas casas burguesas apareceram os primeiros quartos de crianças.
A cada ano que passa, mais cara a empreitada de criar filhos, o que exige dos pais forte disciplina e muita autonegação. Livro recente - All Joy And No Fun [Só sorrisos e nenhuma graça] soa como música a ouvidos vitorianos. O que seria mais frívolo e menos educativo que sorrisos? Não há tempo para gracinhas, entre as exigências da paternidade/maternidade contemporânea.
As mães têm de amamentar por longo período, só fornecer alimentos orgânicos aos filhos, com televisão ou videogames reduzidos ao mínimo imaginável. Escorregadelas sinalizam fracasso. Esse talvez seja o elo mais claro entre valores vitorianos de então e de hoje: simultaneamente limitar a autonomia das mulheres e reforçar a hierarquia a favor dos homens.
Não há de ser por coincidência que essas novas expectativas demandam tempo e dinheiro. Uma mãe trabalhadora que tenha de enfrentar longa jornada de múltiplos empregos no setor de serviços descobrirá que é muito mais difícil extrair leite no serviço, do que outra mãe que tenha só um emprego fixo. (Para nem falar na disparidade de direitos entre trabalhadoras de alto nível na hierarquia empresarial, e as outras.)
Os imperativos moralistas hoje associados à amamentação levam as mulheres trabalhadoras - que enfrentam várias ordens de dificuldades para amamentar os filhos - a serem definidas como fracassos morais. De fato, as batalhas públicas em torno do direito de amamentar em público raramente incluem reivindicação de liberdade para amamentar (seja onde for) para mulheres proletárias.
As altas expectativas em torno da paternidade/maternidade continuam até bem depois da infância dos filhos. Desde pequenas, as crianças são estimuladas a participar de clubes e academias sempre caras; e pais e mães têm de desistir das horas de descanso para apoiar os filhos. São atividades que demandam tempo e dinheiro: dois recursos que sempre faltam às classes trabalhadoras.
Essa proliferação de atividades organizadas é uma modalidade de aprimoramento: o tempo livre que a criança antes tinha está hoje totalmente tomado pelo Bildung. E a capacidade para prover essas oportunidades aos filhos é pintada como reflexo (gratuito) da moralidade familiar, não da situação econômica (de riqueza) da família. Assim como as mulheres vitorianas tinham de aprender piano e italiano - para ostentar refinamento inalcançável para outros níveis sociais - as crianças modernas jogam futebol, aprendem mandarim e fazem trabalho voluntário em organizações de caridade no condomínio que habitam.
Mas o ápice da luta contemporânea pela Bildung é sem dúvida o processo de admissão às universidades. Não há análogo do século 19 desse moderno ridículo ritual. Dickens com certeza saberia encontrar meio para satirizar o absurdo inerente: milhões agem como se um sistema que pende fortemente a favor do privilégio fosse realmente alguma espécie de "meritocracia", e como se o valor de alguém pudesse ser aferido pelo prestígio pressuposto da escola que aceite o/a cara.
Muitos dos norte-americanos que chegam à universidade só se candidatam a uma, duas universidades. Mas os filhos das classes privilegiadas cursam cursos preparatórios, fazem exames como "treineiros", fazem "imersão" em grupos supostos de estudo nos EUA ou viajam durante o verão, para ter ‘assunto’ para os trabalhos de admissão, e de modo geral candidatam-se a uma dúzia de universidades, sempre para maximizar as próprias chances de ser aceito na universidade mais "prestigiada". Pais e mães - não importa quais sejam as reais capacidades intelectuais dos filhos - podem então relaxar, certos de que seus rebentos têm melhor futuro que os plebeus que cursem a universidade Directional State (sempre estaduais) mais próxima.
Bildung para todos!
As mães têm de amamentar por longo período, só fornecer alimentos orgânicos aos filhos, com televisão ou videogames reduzidos ao mínimo imaginável. Escorregadelas sinalizam fracasso. Esse talvez seja o elo mais claro entre valores vitorianos de então e de hoje: simultaneamente limitar a autonomia das mulheres e reforçar a hierarquia a favor dos homens.
Não há de ser por coincidência que essas novas expectativas demandam tempo e dinheiro. Uma mãe trabalhadora que tenha de enfrentar longa jornada de múltiplos empregos no setor de serviços descobrirá que é muito mais difícil extrair leite no serviço, do que outra mãe que tenha só um emprego fixo. (Para nem falar na disparidade de direitos entre trabalhadoras de alto nível na hierarquia empresarial, e as outras.)
Os imperativos moralistas hoje associados à amamentação levam as mulheres trabalhadoras - que enfrentam várias ordens de dificuldades para amamentar os filhos - a serem definidas como fracassos morais. De fato, as batalhas públicas em torno do direito de amamentar em público raramente incluem reivindicação de liberdade para amamentar (seja onde for) para mulheres proletárias.
As altas expectativas em torno da paternidade/maternidade continuam até bem depois da infância dos filhos. Desde pequenas, as crianças são estimuladas a participar de clubes e academias sempre caras; e pais e mães têm de desistir das horas de descanso para apoiar os filhos. São atividades que demandam tempo e dinheiro: dois recursos que sempre faltam às classes trabalhadoras.
Essa proliferação de atividades organizadas é uma modalidade de aprimoramento: o tempo livre que a criança antes tinha está hoje totalmente tomado pelo Bildung. E a capacidade para prover essas oportunidades aos filhos é pintada como reflexo (gratuito) da moralidade familiar, não da situação econômica (de riqueza) da família. Assim como as mulheres vitorianas tinham de aprender piano e italiano - para ostentar refinamento inalcançável para outros níveis sociais - as crianças modernas jogam futebol, aprendem mandarim e fazem trabalho voluntário em organizações de caridade no condomínio que habitam.
Mas o ápice da luta contemporânea pela Bildung é sem dúvida o processo de admissão às universidades. Não há análogo do século 19 desse moderno ridículo ritual. Dickens com certeza saberia encontrar meio para satirizar o absurdo inerente: milhões agem como se um sistema que pende fortemente a favor do privilégio fosse realmente alguma espécie de "meritocracia", e como se o valor de alguém pudesse ser aferido pelo prestígio pressuposto da escola que aceite o/a cara.
Muitos dos norte-americanos que chegam à universidade só se candidatam a uma, duas universidades. Mas os filhos das classes privilegiadas cursam cursos preparatórios, fazem exames como "treineiros", fazem "imersão" em grupos supostos de estudo nos EUA ou viajam durante o verão, para ter ‘assunto’ para os trabalhos de admissão, e de modo geral candidatam-se a uma dúzia de universidades, sempre para maximizar as próprias chances de ser aceito na universidade mais "prestigiada". Pais e mães - não importa quais sejam as reais capacidades intelectuais dos filhos - podem então relaxar, certos de que seus rebentos têm melhor futuro que os plebeus que cursem a universidade Directional State (sempre estaduais) mais próxima.
Bildung para todos!
As classes médias altas mantêm hoje a ficção de que todos viveríamos numa sociedade da meritocracia - exatamente como faziam os vitorianos. Essa ficção permite àquelas classes médias altas "blindar" a própria posição econômica, pelas costas dos trabalhadores, os quais são ensinados que seus problemas de atendimento à saúde e miseráveis chances de fazer carreira são efeito de erros individuais, não alguma espécie de disfunção sistêmica.
Claro, muita malhação, ingestão de comida orgânica e obrigar os filhos a empregar o próprio tempo de descanso em atividades "que prestem", não são coisas inerentemente prejudiciais. Mas mesmo assim se tornam marcadores ostensivos de valores burgueses, que em seguida são mobilizados para "provar" a superioridade moral de uma classe sobre a outra e justificar a desigualdade social - movimento que era tão desprezível no século 19 quando é hoje.
Todos temos de pensar em saúde, comida e educação. Mas, em vez de vê-las como meios para promover e aprofundar a dominação de uma classe sobre a outra, temos de cuidar de melhorar as condição nessas três frentes, para todos.
Imaginem se toda a energia hoje mobilizada para meter nas melhores universidades os filhos medíocres das classes privilegiadas... fosse redirecionada para tornar a educação superior mais acessível e menos cara para todos.
Imaginem se garantir para todos o acesso a comida saudável fosse movimento tornado mais urgente e mais necessário que preservar alguma falsa limpeza&virtude considerada mérito ‘natural’ dos ricos.
Claro, muita malhação, ingestão de comida orgânica e obrigar os filhos a empregar o próprio tempo de descanso em atividades "que prestem", não são coisas inerentemente prejudiciais. Mas mesmo assim se tornam marcadores ostensivos de valores burgueses, que em seguida são mobilizados para "provar" a superioridade moral de uma classe sobre a outra e justificar a desigualdade social - movimento que era tão desprezível no século 19 quando é hoje.
Todos temos de pensar em saúde, comida e educação. Mas, em vez de vê-las como meios para promover e aprofundar a dominação de uma classe sobre a outra, temos de cuidar de melhorar as condição nessas três frentes, para todos.
Imaginem se toda a energia hoje mobilizada para meter nas melhores universidades os filhos medíocres das classes privilegiadas... fosse redirecionada para tornar a educação superior mais acessível e menos cara para todos.
Imaginem se garantir para todos o acesso a comida saudável fosse movimento tornado mais urgente e mais necessário que preservar alguma falsa limpeza&virtude considerada mérito ‘natural’ dos ricos.
Imaginem, em resumo, que cara teria nosso mundo contemporâneo se se orientasse por valores socialistas - não, como se guia hoje, por valores puritanos vitorianos.
Colaborador