4 de julho de 2019

Em defesa da revolução americana

1776 começou como uma disputa mesquinha entre elites poderosas que se odiavam. E logo uniu os movimentos emancipatórios em todo canto nas colônias inglesas da América do Norte.

Tom Cutterham

Jacobin

Uma ilustração colorida que representa os motins da Lei do Selo em Boston em 1765, publicado originalmente no Historical Scrap Book (Cassell e Companhia, 1880).

Tradução / O 4 de julho celebra a declaração de guerra entre duas facções de uma classe dominante capitalista. Em 1763, decisivamente vitorioso em sua mais recente guerra contra a França, o Império Britânico ficou no limiar de uma série de possibilidades: quem controlaria os lucros dessa vitória e como o estado imperial reuniria seus recursos? O caminho preferido pela coalizão de fazendeiros, comerciantes e advogados que assinaram a Declaração de Independência em 1776 foi o investimento sobre a contenção, a conquista da paz e, na maior parte, a defesa da escravidão contra qualquer coisa que a ameaçasse. No horizonte, viram a terra apenas esperando para ser tomada, vendida e transformada em "um poderoso império".

Mas a Revolução Americana nunca poderia ser apenas uma guerra entre capitalistas. Desnecessário dizer que a maioria daqueles que lutaram e morreram - para não mencionar aqueles que trabalharam para possibilitar a guerra - eram trabalhadores e pequenos proprietários. Mobilizar esses homens e mulheres numa guerra em escala até então desconhecida nas colônias, exigiu necessariamente a promulgação de ideias e instituições abrangentes e transformadoras. Dependia não apenas do consentimento, mas também do compromisso ativo, às vezes fervoroso, de muitos colonos comuns. Ganhar esse compromisso significava manter a promessa de uma “nova ordem”, uma república participativa na qual os direitos do “povo” - na prática, homens brancos - seriam assegurados para sempre.

Uma amarga guerra civil se alastrou pelas treze colônias e se estendeu ao longo de suas fronteiras, estimulando uma política de emancipação e autogoverno coletivo - e não apenas para os proprietários brancos e masculinos. Essa guerra criou condições para o levante em massa entre os povos escravizados e novos alinhamentos e coalizões entre os povos indígenas no âmbito da violência imperial. Isso levou esposas, filhas, servos, escravos e aprendizes a questionar suas posições subordinadas na sociedade colonial. Através de sua participação na ação coletiva, homens e mulheres reforçaram antigas relações e geraram novas identidades que ressoaram com a possibilidade de liberdade, dentro e além dos Estados Unidos. Por mais fraturadas e contraditórias, essas lutas pela emancipação ajudaram a moldar a nova nação e seus vizinhos.

Por mais que tentassem aniquilar o fermento assustadoramente radical, a nova classe dominante americana foi pega na contradição entre seu apelo à revolução e sua necessidade de uma hierarquia estável. Capitalistas como o governador Morris entenderam desde o início que o processo de declarar independência implicaria no despertar da "multidão", como um réptil no calor de uma manhã de primavera. "Antes do meio-dia eles vão morder", alertou ele em 1774. Com certeza, na Pensilvânia e em outros lugares, os colonos comuns chegaram perto de tomar o poder. Criaram novas instituições democráticas para redistribuir a riqueza, empreendiam revoltas armadas contra governantes republicanos intransigentes.

A Revolução animou uma tradição de dissidência rebelde que remontava ao tumultuado século XVII na Inglaterra, um legado que seria entrelaçado na mitologia fundadora da emergente nacionalidade americana. Inspirou homens como William Manning, um fazendeiro e taverneiro que escreveu sua Chave da Liberdade em 1799, a vislumbrar uma política de muitos que derrotaria a “astúcia e corrupção” de poucos - incluindo “o adúltero Hamilton”. A declaração veio a ser um modelo para a expressão de demandas emancipatórias que ele próprio menosprezou, incluindo o mais famoso apelo à liberdade das mulheres feito em Seneca Falls, em 1848.

Ao mesmo tempo, a revolução trouxe a construção de um sistema estatal - federal e local - que ajudou os capitalistas americanos a organizar investimentos, explorar trabalhadores e expropriar terras e recursos em uma escala fantástica. Durante as décadas de 1780 e 1790, os interesses de comerciantes, latifundiários e escravistas derrotaram movimentos democráticos incipientes, impondo uma constituição destinada a proteger seu acesso privilegiado ao poder, impedindo o potencial radical do momento revolucionário. Dentro de uma geração, eles expandiram dramaticamente a economia da escravidão, fortalecendo ainda mais a supremacia branca e revertendo os ganhos obtidos pelas mulheres revolucionárias.

Não é de admirar que Frederick Douglass condenasse a hipocrisia de celebrar a liberdade em 4 de julho, enquanto seu antigo colega William Lloyd Garrison declarou a Constituição “uma aliança com a morte”. Contudo, seu movimento abolicionista também tirou força da tradição revolucionária, que considerou “mais glorioso morrer instantaneamente como homem livre do que viver uma hora como escravo.” Em nenhum outro lugar, mais do que na causa da abolição, estavam as contradições mais agudamente sentidas da revolução. Para pôr fim à escravidão, o movimento invocou os princípios dos senhores de escravos como Jefferson e Washington. Para efetuar uma expropriação histórica da riqueza, mobilizou um Estado concebido e dedicado à proteção da propriedade.

A promessa de liberdade na igualdade ainda está no cerne da Declaração, mesmo quando as celebrações da nacionalidade americana em 4 de julho significam cada vez mais um projeto político totalmente incompatível. No século XVIII, a luta revolucionária envolveu a construção de instituições e alianças que permitiram a um grande número de pessoas repudiar a legitimidade da ordem jurídica existente. Um novo mundo nasceu dentro do antigo, moldado e marcado pela sua luta para emergir. Não existe pureza na política ou movimentos sem contradições. É sob essa luz que devemos entender a tradição revolucionária e fazer um brinde ao Dia da Independência.

Colaborador

Tom Cutterham é professor de História na Universidade de Birmingham (Reino Unido). Seu último livro é "Gentlemen Revolutionaries: Power and Justice na New American Republic" ("Cavalheiros Revolucionários: Poder e Justiça na Nova República Americana").

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