4 de julho de 2019

Incautos da periferia

Não estamos diante de um acordo de livre-comércio

Paulo Nogueira Batista Jr.


Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo (ao centro) com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o secretário de Comércio Exterior, Marcos Troyjo, em BruxelasDivulgação/Itamaraty Brasil/

Transcorreu de forma opaca a negociação entre União Europeia e Mercosul, concluída na semana passada. Ainda são muito incompletas as informações sobre diversas questões que costumam estar em jogo em acordos desse tipo. Como o acordo depende de aprovação parlamentar, é da maior importância que deputados e senadores peçam desde logo o seu envio ao Congresso e convoquem os negociadores para prestar contas em audiências públicas.

Apesar da falta de transparência, é possível antecipar os contornos do que foi negociado, pois as tentativas de chegar a um acordo entre os dois blocos remontam aos tempos de Fernando H. Cardoso e alguns dos resultados da negociação já foram divulgados. Os sinais não são positivos para nós.

Não estamos diante de um acordo de “livre-comércio”, como se divulga na imprensa. Essa designação enganosa sugere que removeremos por completo as barreiras ao comércio de bens entre os dois blocos. Algumas barreiras serão, de fato, eliminadas ou reduzidas, principalmente, ao que parece, do lado do Mercosul. Mas os europeus fizeram questão de preservar, em caráter permanente, importantes proteções à sua agricultura, área onde o Mercosul tem capacidade de competição.

As vantagens para nós parecem ser em grande parte ilusórias. Afirma-se, por exemplo, que quase todas as nossas exportações industriais ficarão livres de tarifas, sem dizer, porém, que as tarifas aplicadas sobre esse tipo de produto já são muito baixas na Europa.

Além disso, o acordo vai muito além da liberalização do comércio de bens, pois abarca uma série de outros temas estratégicos, como serviços, investimentos, licitações públicas e compras governamentais, patentes e propriedade intelectual, questões sanitárias, entre diversas outras.

O risco que corremos é o de amarrar em acordo internacional, de forma irreversível ou difícil de reverter, toda uma série de políticas públicas essenciais para nosso desenvolvimento. Se o acordo for ratificado, o resultado será uma grande perda de soberania em troca de acesso adicional modesto a mercados europeus.

O acordo Mercosul-União Europeia segue, em larga medida, o modelo geral da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), lançada pelos Estados Unidos nos anos 90, que incluía todo um conjunto de normas detalhadas, nas áreas acima citadas, em troca de poucas vantagens comerciais nos Estados Unidos.

Outro risco agora é que os EUA e demais países desenvolvidos queiram fazer acordos semelhantes com o Mercosul para evitar que os europeus levem vantagem nos mercados do bloco sul-americano. À medida que isso ocorrer, ficará agravada a perda de autonomia na definição das políticas de desenvolvimento.

O leitor poderá perguntar, perplexo: europeus e americanos pensam, então, que somos idiotas? Talvez. Eles contam, provavelmente, com o nosso fascínio atávico por aspectos intangíveis, etéreos desse tipo de negociação, entre eles o “prestígio” de fechar acordos com os principais países, a inserção no mundo “globalizado”, o sinal de “confiança” para os mercados e investidores internacionais etc.

Portanto, não será motivo de surpresa se, após examinar o acordo, chegarmos à conclusão de que ele interessa muito mais aos europeus do que a nós. Nesta fase final da negociação, tínhamos um governo fraco na Argentina e um governo despreparado no Brasil, presas fáceis para os engôdos que os desenvolvidos armam para consumo na periferia incauta.

Estamos reproduzindo, tudo indica, um padrão de “negociação” (nem sei se o termo cabe) encontradiço na América Latina. Desde os tempos em que caravelas chegavam às nossas praias, indígenas deslumbrados trocavam suas terras, riquezas, liberdades por espelhinhos e outras novidades.

Museu de grandes novidades.

Sobre o autor

Economista, ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (estabelecido pelos Brics em Xangai) e ex-diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

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