Shulamith Firestone
As classes sexuais são tão enraizadas, que se tornam invisíveis. A existência dessas classes pode parecer uma desigualdade superficial, facilmente solucionável com algumas reformas, ou talvez com a integração plena das mulheres na força de trabalho. Mas a reação do homem, da mulher e da criança comum — "O quê? Ora, não se pode mudar isto! Você deve estar louco!" — está mais próxima da verdade. Falamos de algumas coisas tão profundas quanto esta. Essa reação instintiva é honesta, pois mesmo quando o ignoram, as feministas falam de uma mudança na condição biológica básica. O fato de que uma mudança tão profunda não possa se ajustar em categorias tradicionais de pensamento, p.e., o "político", ocorre não porque essas categorias não se usem, mas porque não são suficientemente amplas: um feminismo radical as perpassa. Se houvesse um outro termo mais abrangente, do que revolução, nós o usaríamos.
Até que fosse atingido um certo nível de evolução e que a tecnologia chegasse à sofisticação atual, questionar condições biológicas básicas era loucura. Por que deveria uma mulher trocar seu precioso lugar no curral, por uma luta sangrenta e sem esperança? Entretanto, pela primeira vez em alguns países, as pré-condições para a revolução feminista existem — na verdade, a situação começa a exigir essa revolução.
As primeiras mulheres estão conseguindo escapar ao massacre, e, inseguras e vacilantes, começam a descobrir-se umas às outras. Seu primeiro passo é uma observação cuidadosa, em conjunto, para ressensibilizar uma consciência partida. Isto penoso. Não importa quantos níveis de consciência sejam atingidos, o problema sempre se aprofunda. Ele se acha em todo lugar. A divisão Yin e Yang penetra toda a cultura, a história, a economia, e a própria natureza; as versões ocidentais modernas da discriminação sexual integram apenas o substrato mais superficial e recente. Intensificar assim nossa sensibilidade em relação ao sexísmo traz problemas muito piores do que os que a nova consciência do racismo trouxe para os militares negros. As feministas têm que questionar não só toda a cultura ocidental, como a própria organização da cultura; e, mais, até a própria organização da natureza. Muitas mulheres desistem, desesperadas. Se é necessário ir tão longe, elas preferem desconhecer o assunto. Outras continuam fortalecendo e expandindo o movimento, sua dolorosa sensibilidade em relação à opressão da mulher existe com um único propósito: eliminá-la finalmente.
Contudo, antes que possamos agir para mudar a situação, precisamos saber como ela surgiu e evoluiu. e através de que instituições ela opera hoje. Citando Engels: "[Devemos] examinar a sucessão dos fatos, a partir dos quais o antagonismo brotou, de modo a descobrir. nas condições assim criadas, os meios de pôr fim ao conflito.". Para a revolução feminista, precisamos de uma análise da dinâmica da guerra dos sexos tão completa — quanto para a revolução — econômica foi a análise de, Marx e Engels sobre o antagonismo das classes. Mais completa ainda. 'Porque lidamos com um problema mais amplo, com uma opressão que remonta além da história — escrita, até o próprio reino-animal.
"Ao criar esta análise, podemos recorrer ao método analítico de Marx e Engels, mas não a suas opiniões sobre as mulheres — eles não sabiam quase nada sobre a condição das mulheres' enquanto classe oprimida, reconhecendo-a somente quando isso coincidia com a economia.
Marx e Engels superaram seus precursores socialistas, porque desenvolveram um método de análise ao mesmo tempo dialética e materialista. Os primeiros a compreender a História dialeticamente, viram o mundo como um processo, como um fluxo natural de ação e reação, de elementos opostos, porém inseparáveis e interpenetrantes. Por terem sido capazes de perceber a História mais como um filme do que como fotos instantâneas, tentaram evitar cair na visão "metafísica" estagnada, que aprisionou tantas outras grandes mentes. Até mesmo este tipo de análise pode ser um produto da divisão sexual, como discutiremos no Capítulo 9. Combinaram esta visão da interação dinâmica das forças históricas com uma visão materialista, i.e., tentaram pela primeira vez dar uma base real à mudança histórica e cultural, traçar o desenvolvimento das classes econômicas, a partir de causas orgânicas. Compreendendo integralmente os mecanismos da História, esperavam mostrar ao homem como dominá-la.
Os pensadores socialistas anteriores a Marx e Engels, como Fourier, Owen e Bebel, não foram capazes de fazer mais do que interpretar moralmente as desigualdades sociais existentes, postulando um mundo ideal, onde os privilégios de classe e a exploração não deveriam existir, simplesmente graças à boa vontade, do mesmo modo como as primeiras pensadoras feministas postularam um mundo onde o privilégio do homem e a exploração não deveriam existir, simplesmente graças à boa vontade. Em ambos os casos — por não terem os pensadores primitivos compreendido realmente como a injustiça social tinha evoluído, mantido a si mesma, ou poderia ser eliminada suas idéias caíram num vazio cultural, utópico. Marx e Engels, por outro lado, tentaram um enfoque científico da História. Trouxeram o conflito das classes as suas origens econômicas reais, projetando uma solução econômica, baseada em pré-condições econômicas já existentes: a tomada dos meios de produção pelo proletariado levaria a um comunismo, onde o governo se retrairia, não precisando mais reprimir a classe baixa em benefício da classe mais alta. Na sociedade sem classe, os interesses de todos os indivíduos seriam sinônimos dos da sociedade.
Mas a doutrina do materialismo histórico, por mais que tenha representado um avanço significativo em relação à análise histórica anterior, não foi a resposta completa, como os fatos posteriores o confirmaram. Porque, apesar de Marx e Engels fundamentarem sua teoria na realidade, era ela apenas uma realidade parcial. Esta é a definição estritamente econômica do materialismo histórico, tirada de Socialismo: Utópico ou Científico, de Engels:
Até que fosse atingido um certo nível de evolução e que a tecnologia chegasse à sofisticação atual, questionar condições biológicas básicas era loucura. Por que deveria uma mulher trocar seu precioso lugar no curral, por uma luta sangrenta e sem esperança? Entretanto, pela primeira vez em alguns países, as pré-condições para a revolução feminista existem — na verdade, a situação começa a exigir essa revolução.
As primeiras mulheres estão conseguindo escapar ao massacre, e, inseguras e vacilantes, começam a descobrir-se umas às outras. Seu primeiro passo é uma observação cuidadosa, em conjunto, para ressensibilizar uma consciência partida. Isto penoso. Não importa quantos níveis de consciência sejam atingidos, o problema sempre se aprofunda. Ele se acha em todo lugar. A divisão Yin e Yang penetra toda a cultura, a história, a economia, e a própria natureza; as versões ocidentais modernas da discriminação sexual integram apenas o substrato mais superficial e recente. Intensificar assim nossa sensibilidade em relação ao sexísmo traz problemas muito piores do que os que a nova consciência do racismo trouxe para os militares negros. As feministas têm que questionar não só toda a cultura ocidental, como a própria organização da cultura; e, mais, até a própria organização da natureza. Muitas mulheres desistem, desesperadas. Se é necessário ir tão longe, elas preferem desconhecer o assunto. Outras continuam fortalecendo e expandindo o movimento, sua dolorosa sensibilidade em relação à opressão da mulher existe com um único propósito: eliminá-la finalmente.
Contudo, antes que possamos agir para mudar a situação, precisamos saber como ela surgiu e evoluiu. e através de que instituições ela opera hoje. Citando Engels: "[Devemos] examinar a sucessão dos fatos, a partir dos quais o antagonismo brotou, de modo a descobrir. nas condições assim criadas, os meios de pôr fim ao conflito.". Para a revolução feminista, precisamos de uma análise da dinâmica da guerra dos sexos tão completa — quanto para a revolução — econômica foi a análise de, Marx e Engels sobre o antagonismo das classes. Mais completa ainda. 'Porque lidamos com um problema mais amplo, com uma opressão que remonta além da história — escrita, até o próprio reino-animal.
"Ao criar esta análise, podemos recorrer ao método analítico de Marx e Engels, mas não a suas opiniões sobre as mulheres — eles não sabiam quase nada sobre a condição das mulheres' enquanto classe oprimida, reconhecendo-a somente quando isso coincidia com a economia.
Marx e Engels superaram seus precursores socialistas, porque desenvolveram um método de análise ao mesmo tempo dialética e materialista. Os primeiros a compreender a História dialeticamente, viram o mundo como um processo, como um fluxo natural de ação e reação, de elementos opostos, porém inseparáveis e interpenetrantes. Por terem sido capazes de perceber a História mais como um filme do que como fotos instantâneas, tentaram evitar cair na visão "metafísica" estagnada, que aprisionou tantas outras grandes mentes. Até mesmo este tipo de análise pode ser um produto da divisão sexual, como discutiremos no Capítulo 9. Combinaram esta visão da interação dinâmica das forças históricas com uma visão materialista, i.e., tentaram pela primeira vez dar uma base real à mudança histórica e cultural, traçar o desenvolvimento das classes econômicas, a partir de causas orgânicas. Compreendendo integralmente os mecanismos da História, esperavam mostrar ao homem como dominá-la.
Os pensadores socialistas anteriores a Marx e Engels, como Fourier, Owen e Bebel, não foram capazes de fazer mais do que interpretar moralmente as desigualdades sociais existentes, postulando um mundo ideal, onde os privilégios de classe e a exploração não deveriam existir, simplesmente graças à boa vontade, do mesmo modo como as primeiras pensadoras feministas postularam um mundo onde o privilégio do homem e a exploração não deveriam existir, simplesmente graças à boa vontade. Em ambos os casos — por não terem os pensadores primitivos compreendido realmente como a injustiça social tinha evoluído, mantido a si mesma, ou poderia ser eliminada suas idéias caíram num vazio cultural, utópico. Marx e Engels, por outro lado, tentaram um enfoque científico da História. Trouxeram o conflito das classes as suas origens econômicas reais, projetando uma solução econômica, baseada em pré-condições econômicas já existentes: a tomada dos meios de produção pelo proletariado levaria a um comunismo, onde o governo se retrairia, não precisando mais reprimir a classe baixa em benefício da classe mais alta. Na sociedade sem classe, os interesses de todos os indivíduos seriam sinônimos dos da sociedade.
Mas a doutrina do materialismo histórico, por mais que tenha representado um avanço significativo em relação à análise histórica anterior, não foi a resposta completa, como os fatos posteriores o confirmaram. Porque, apesar de Marx e Engels fundamentarem sua teoria na realidade, era ela apenas uma realidade parcial. Esta é a definição estritamente econômica do materialismo histórico, tirada de Socialismo: Utópico ou Científico, de Engels:
O materialismo histórico é aquela visão do curso da História que busca a causa última e a grande energia móvel de todos os fatos históricos no desenvolvimento econômico da sociedade, nas mudanças dos modos de produção e troca, na conseqüente divisão da sociedade em classes distintas, e nas lutas entre essas classes. (Grifos da autora)
Mais adiante, ele afirma:
... que toda a história do passado, com exceção dos estágios primitivos, foi a história de lutas de classes; que essas classes conflitantes da sociedade são sempre os resultados dos modos de produção e troca — numa palavra, das condições econômicas de sua época; que a estrutura econômica da sociedade sempre fornece a base real, exclusivamente a partir da qual podemos formular tanto a explicação última de toda a superestrutura das instituições políticas e jurídicas, quanto a das idéias religiosas, filosóficas e demais idéias de um período histórico dado. (Grifos da autora).
Seria um erro tentar explicar a opressão das mulheres, a partir desta interpretação estritamente econômica. A análise de classes é um belo instrumento de trabalho, mas é limitada. Apesar de correta num sentido linear, ela não se aprofunda o suficiente. Há todo um substrato sexual da dialética histórica que Engels algumas vezes percebe obscuramente. Mas, por ver a sexualidade somente através de um filtro econômico, reduzindo tudo a isto, não é capaz de avaliá-la por si mesma.
Engels observou que a divisão original do trabalho entre o homem e a mulher estabeleceu-se para fins de reprodução; que dentro da família o homem era o proprietário, a mulher os meios de produção, o filho o trabalhador, e que a reprodução da espécie humana era um sistema econômico importante, distinto dos meios de produção.
Mas Engels deu crédito demais a esses reconhecimentos dispersos da opressão das mulheres como uma classe. Na verdade, só admitiu o sistema sexual de classes quanto ele se sobrepunha ou iluminava sua estrutura econômica. Engels não foi bem sucedido nesse aspecto. Contudo, Marx foi pior. Há um reconhecimento crescente dos preconceitos de Marx com relação às mulheres (um preconceito cultural partilhado por Freud, bem como por todos os homens de cultura), perigoso, se tentarmos forçar o feminismo a entrar numa estrutura marxista ortodoxa — congelando em dogmas o que eram apenas insights incidentais de Marx e Engels sobre as classes sexuais. Em vez disso, precisamos ampliar o materialismo histórico para incluir o que é estritamente marxista, do mesmo modo como a física da relatividade não invalidou a física newtoniana, apenas traçou um círculo a sua volta, limitando sua aplicação — por comparação apenas — a uma esfera menor. Pois um diagnóstico econômico que remonta à propriedade dos meios de produção, e até dos meios de reprodução, não explica tudo. Existe um nível da realidade que não deriva diretamente da economia.
A suposição de que, antes de ser econômica, a realidade é psicossexual, é geralmente acusada de aistórica pelos que aceitam uma visão materialista dialética da História, porque ela parece nos situar antes do ponto em que Marx começou: tateando através de um nevoeiro de hipóteses utópicas, de sistemas filosóficos que podem ser certos ou errados (não há como dizer), sistemas que explicam desenvolvimentos históricos concretos por categorias a priori de pensamento. O materialismo histórico, ao contrário, tentou explicar o "conhecer" pelo "ser", e não vice-versa.
Mas existe uma terceira alternativa ainda não tentada; podemos desenvolver uma visão materialista da História, baseada no próprio sexo.
As primeiras teóricas feministas foram, para uma visão materialista do sexo, o que Fourier, Bebel e Owen foram para uma visão materialista das classes. De modo geral, a teoria feminista tem sido tão inadequada quanto as primeiras tentativas feministas de corrigir o sexismo. Era de esperar que isso ocorresse. O problema é tão vasto que, na primeira tentativa, só a superfície poderia ser examinada, descrevendo-se apenas as desigualdades mais gritantes. Simone de Beauvoir foi a única que chegou perto de uma análise definitiva — que talvez a tenha realizado. Sua penetrante obra O Segundo Sexo — que apareceu recentemente, no início da década de cinqüenta, para um mundo convencido de que o feminismo estava morto — pela primeira vez tentou assentar o feminismo em bases históricas. De todas as teóricas feministas, Simone de Beauvoir é a mais completa e abrangente, ao relacionar o feminismo com as melhores idéias da nossa cultura.
Pode ser que esta virtude também seja seu único defeito. Ela é quase que sofisticada demais, culta demais. Onde isto se torna uma deficiência — o que certamente é ainda discutível — é na sua interpretação rigidamente existencialista do feminismo (perguntamo-nos o quanto Sartre teve que ver com isso). E fazemos isso em vista do fato de que todos os sistemas culturais, inclusive o existencialismo, são eles próprios determinados pelo dualismo sexual. Diz ela:
Antes de admitir essas categorias, tentemos primeiro desenvolver uma análise, na qual a própria biologia — a procriação — se encontra na base do dualismo. A suposição imediata do leigo, de que a divisão desigual dos sexos é "natural", pode ser bem fundada. Nós não precisamos, de imediato, enxergar além disso. Ao contrário das classes econômicas, as classes sexuais brotaram diretamente de uma realidade biológica: os homens e as mulheres foram criados diferentes, e não igualmente privilegiados. Contudo, como Simone de Beauvoir salientou, essa diferença propriamente dita não necessitou do mesmo desenvolvimento de um sistema de classes — a dominação de um grupo por outro — e que necessitaram as funções reprodutoras dessas diferenças. A família biológica e um poder de distribuição inerentemente desigual. A necessidade do poder que leva ao desenvolvimento de classes origina-se da formação psicossexual de cada individuo, de acordo com este desequilíbrio básico, e não, como Freud, Norman O. Brown e outros postularam — mais uma vez se excedendo — de um conflito irredutível da Vida contra a Morte, de Eros versus Tanatos.
A família biológica — a unidade básica de reprodução homem/mulher/criança, em qualquer forma e organização social — se caracteriza por estes atos, não imutáveis, pelo menos fundamentais:
Estas contingências biológicas da família humana não podem ser entendidas como sofismas antropológicos. Qualquer um que observe os animais cruzando, reproduzindo-se e cuidando de seus filhotes terá dificuldade em aceitar a linha da "relatividade cultural". Porque, não importa quantas tribos se possam encontrar na Oceania nas quais a conexão do pai com a fertilidade seja desconhecida, não importa quantos matrilineariados, quantos casos de inversão do papel sexual, de homens assumindo afazeres domésticos, ou de dores do parto empáticas, fatos que provam somente uma coisa: a surpreendente flexibilidade na natureza humana. Mas a natureza humana é adaptável a alguma coisa, i.e., determinada, sim, por suas condições ambientais. E a família biológica que nós descrevemos existiu em todos os lugares através dos tempos. Mesmo nos matriarcados onde a fertilidade da mulher é cultuada e o papel do pai é desconhecido ou sem importância, embora talvez não o pai genético, existe ainda alguma dependência da mulher e da criança com relação ao homem. E, apesar de ser verdade que o núcleo familiar é apenas um desenvolvimento recente, o qual, como tentarei mostrar, apenas intensifica os castigos psicológicos da família biológica, apesar de ser verdade que através da História houve muitas variações nesta família biológica, as contingências que descrevi existiram em todas elas, gerando distorções psicossexuais específicas na personalidade humana.
Mas, admitir que o desequilíbrio sexual do poder está baseado biologicamente, não significa perder nossa causa. Nós não somos mais animais há muito tempo. E o Reino da Natureza não reina absolutamente. Como a própria Simone de Beauvoir diz:
Nos capítulos seguintes analisaremos esta definição do materialismo histórico, examinando as instituições culturais que mantêm e reforçam a família biológica (especialmente sua manifestação atual, a família nuclear) e seu resultado, a psicologia do poder, um chauvinismo agressivo, hoje desenvolvido a ponto de nos destruir. Integraremos isto com uma análise feminista do freudismo: porque o preconceito cultural de Freud, tanto quanto o de Marx e Engels, não invalida inteiramente sua percepção. Na verdade, Freud teve insights de valor até maior do que os dos teóricos socialistas, pela construção de um novo materialismo dialético, baseado no sexo. Tentaremos, então, correlacionar o melhor de Engels a Marx (o enfoque materialista histórico) com o melhor de Freud (a compreensão do interior do homem e da mulher e do que os forma) para chegar a uma solução ao mesmo tempo política e pessoal, baseada contudo em condições reais. Veremos que Freud observou corretamente a dinâmica da psicologia, no seu contexto social imediato, mas, pelo fato da estrutura fundamental desse contexto social ser básica para toda a humanidade — em diferentes graus — ela aparentava ser nada menos do que uma condição existencial absoluta, que seria insensato questionar. Ela forçou Freud e muitos de seus seguidores a postular construtos a priori, como O Desejo de Morte, para explicar as origens desses impulsos psicológicos universais. Isto, por sua vez, tomou as doenças da humanidade irredutíveis e incuráveis — motivo pelo qual a solução por ele proposta (a terapia psicanalítica), uma contradição em termos, foi tão pobre, comparada com o resto de seu trabalho, e um fracasso tão retumbante na prática — levando os que tinham alguma sensibilidade social e política a rejeitar não só sua solução terapêutica, como também suas descobertas mais profundas.
Engels observou que a divisão original do trabalho entre o homem e a mulher estabeleceu-se para fins de reprodução; que dentro da família o homem era o proprietário, a mulher os meios de produção, o filho o trabalhador, e que a reprodução da espécie humana era um sistema econômico importante, distinto dos meios de produção.
Mas Engels deu crédito demais a esses reconhecimentos dispersos da opressão das mulheres como uma classe. Na verdade, só admitiu o sistema sexual de classes quanto ele se sobrepunha ou iluminava sua estrutura econômica. Engels não foi bem sucedido nesse aspecto. Contudo, Marx foi pior. Há um reconhecimento crescente dos preconceitos de Marx com relação às mulheres (um preconceito cultural partilhado por Freud, bem como por todos os homens de cultura), perigoso, se tentarmos forçar o feminismo a entrar numa estrutura marxista ortodoxa — congelando em dogmas o que eram apenas insights incidentais de Marx e Engels sobre as classes sexuais. Em vez disso, precisamos ampliar o materialismo histórico para incluir o que é estritamente marxista, do mesmo modo como a física da relatividade não invalidou a física newtoniana, apenas traçou um círculo a sua volta, limitando sua aplicação — por comparação apenas — a uma esfera menor. Pois um diagnóstico econômico que remonta à propriedade dos meios de produção, e até dos meios de reprodução, não explica tudo. Existe um nível da realidade que não deriva diretamente da economia.
A suposição de que, antes de ser econômica, a realidade é psicossexual, é geralmente acusada de aistórica pelos que aceitam uma visão materialista dialética da História, porque ela parece nos situar antes do ponto em que Marx começou: tateando através de um nevoeiro de hipóteses utópicas, de sistemas filosóficos que podem ser certos ou errados (não há como dizer), sistemas que explicam desenvolvimentos históricos concretos por categorias a priori de pensamento. O materialismo histórico, ao contrário, tentou explicar o "conhecer" pelo "ser", e não vice-versa.
Mas existe uma terceira alternativa ainda não tentada; podemos desenvolver uma visão materialista da História, baseada no próprio sexo.
As primeiras teóricas feministas foram, para uma visão materialista do sexo, o que Fourier, Bebel e Owen foram para uma visão materialista das classes. De modo geral, a teoria feminista tem sido tão inadequada quanto as primeiras tentativas feministas de corrigir o sexismo. Era de esperar que isso ocorresse. O problema é tão vasto que, na primeira tentativa, só a superfície poderia ser examinada, descrevendo-se apenas as desigualdades mais gritantes. Simone de Beauvoir foi a única que chegou perto de uma análise definitiva — que talvez a tenha realizado. Sua penetrante obra O Segundo Sexo — que apareceu recentemente, no início da década de cinqüenta, para um mundo convencido de que o feminismo estava morto — pela primeira vez tentou assentar o feminismo em bases históricas. De todas as teóricas feministas, Simone de Beauvoir é a mais completa e abrangente, ao relacionar o feminismo com as melhores idéias da nossa cultura.
Pode ser que esta virtude também seja seu único defeito. Ela é quase que sofisticada demais, culta demais. Onde isto se torna uma deficiência — o que certamente é ainda discutível — é na sua interpretação rigidamente existencialista do feminismo (perguntamo-nos o quanto Sartre teve que ver com isso). E fazemos isso em vista do fato de que todos os sistemas culturais, inclusive o existencialismo, são eles próprios determinados pelo dualismo sexual. Diz ela:
O homem nunca pensa sobre si mesmo sem pensar no Outro; ele vê o mundo sob o signo da dualidade, que não é, em primeira instância, de caráter sexual. Mas, sendo diferente do homem, que se constrói como Mesmo, é certamente à categoria do Outro que a mulher pertence; o Outro inclui a mulher. (Grifos da autora.)
Talvez ela tenha ido longe demais. Por que postular como explicação final o conceito básico hegeliano da alteridade, e então cuidadosamente documentar as circunstâncias biológicas e históricas que empurraram a classe das "mulheres" em tal categoria, sem levar em conta uma possibilidade muito mais simples e mais provável, ou seja, que o dualismo básico brotava do próprio sexo? Não é necessário postular categorias a priori do pensamento e da existência — como alteridade, transcendência, imanência — nas quais a História passa então a ser moldada. Marx e Engels descobriram que essas próprias categorias filosóficas originavam-se da História.
Antes de admitir essas categorias, tentemos primeiro desenvolver uma análise, na qual a própria biologia — a procriação — se encontra na base do dualismo. A suposição imediata do leigo, de que a divisão desigual dos sexos é "natural", pode ser bem fundada. Nós não precisamos, de imediato, enxergar além disso. Ao contrário das classes econômicas, as classes sexuais brotaram diretamente de uma realidade biológica: os homens e as mulheres foram criados diferentes, e não igualmente privilegiados. Contudo, como Simone de Beauvoir salientou, essa diferença propriamente dita não necessitou do mesmo desenvolvimento de um sistema de classes — a dominação de um grupo por outro — e que necessitaram as funções reprodutoras dessas diferenças. A família biológica e um poder de distribuição inerentemente desigual. A necessidade do poder que leva ao desenvolvimento de classes origina-se da formação psicossexual de cada individuo, de acordo com este desequilíbrio básico, e não, como Freud, Norman O. Brown e outros postularam — mais uma vez se excedendo — de um conflito irredutível da Vida contra a Morte, de Eros versus Tanatos.
A família biológica — a unidade básica de reprodução homem/mulher/criança, em qualquer forma e organização social — se caracteriza por estes atos, não imutáveis, pelo menos fundamentais:
- que as mulheres, através de toda a Historia, antes do advento do controle da natalidade, estavam à mercê constante de sua biologia — menstruação, menopausa e "males femininos", de contínuos partos dolorosos, amamentação e cuidado com as crianças, todos os quais fizeram-nas dependentes dos homens (seja irmão, pai, marido, amante, ou clã, governo, comunidade em geral) para a sobrevivência física.
- que os filhos do homem exigem um tempo ainda maior para crescer do que os dos animais, sendo portanto indefesos e, pelo menos por um pequeno período, dependentes dos adultos para a sobrevivência física.
- que a interdependência básica mãe/filho existiu de alguma forma em todas as sociedades passadas ou presentes, e consequentemente moldou a psicologia de toda mulher madura e de toda criança.
- que a diferença natural da reprodução entre os sexos levou diretamente a primeira divisão do trabalho baseada no sexo, que esta nas origens de toda divisão posterior em classes econômicas e culturais e possivelmente se encontra ainda na raiz de todas as castas (discriminação baseada no sexo e outras características biologicamente determinadas, como a raça, a idade, etc.).
Estas contingências biológicas da família humana não podem ser entendidas como sofismas antropológicos. Qualquer um que observe os animais cruzando, reproduzindo-se e cuidando de seus filhotes terá dificuldade em aceitar a linha da "relatividade cultural". Porque, não importa quantas tribos se possam encontrar na Oceania nas quais a conexão do pai com a fertilidade seja desconhecida, não importa quantos matrilineariados, quantos casos de inversão do papel sexual, de homens assumindo afazeres domésticos, ou de dores do parto empáticas, fatos que provam somente uma coisa: a surpreendente flexibilidade na natureza humana. Mas a natureza humana é adaptável a alguma coisa, i.e., determinada, sim, por suas condições ambientais. E a família biológica que nós descrevemos existiu em todos os lugares através dos tempos. Mesmo nos matriarcados onde a fertilidade da mulher é cultuada e o papel do pai é desconhecido ou sem importância, embora talvez não o pai genético, existe ainda alguma dependência da mulher e da criança com relação ao homem. E, apesar de ser verdade que o núcleo familiar é apenas um desenvolvimento recente, o qual, como tentarei mostrar, apenas intensifica os castigos psicológicos da família biológica, apesar de ser verdade que através da História houve muitas variações nesta família biológica, as contingências que descrevi existiram em todas elas, gerando distorções psicossexuais específicas na personalidade humana.
Mas, admitir que o desequilíbrio sexual do poder está baseado biologicamente, não significa perder nossa causa. Nós não somos mais animais há muito tempo. E o Reino da Natureza não reina absolutamente. Como a própria Simone de Beauvoir diz:
A teoria do materialismo histórico revelou algumas verdades importantes. A humanidade não é uma espécie animal; é uma realidade histórica. A sociedade humana é uma antiphysis — no sentido de que ela é contra a natureza; ela não se submete passivamente à presença da natureza, mas antes assume o controle da natureza em seu próprio benefício. Essa usurpação não é uma operação interna, subjetiva; ela é realizada objetivamente na prática.
Assim, o "natural" não é necessariamente um valor "humano". À humanidade começou a superar a natureza. Não podemos mais justificar a conservação do sistema discriminatório de classes sexuais, sob o pretexto de que se originou na natureza. Parece que, exclusivamente por causas pragmáticas, nós precisamos, na verdade, nos desfazer dele (ver o Capítulo 10).
O problema se torna político, exigindo mais do que uma análise histórica abrangente, pois nos damos conta de que, apesar do homem ser cada vez mais capaz de libertar-se das condições biológicas que criaram a tirania dele sobre as mulheres e crianças, ele tem poucas razões para renunciar a essa tirania. Como Engels diz, no contexto da revolução econômica:
O problema se torna político, exigindo mais do que uma análise histórica abrangente, pois nos damos conta de que, apesar do homem ser cada vez mais capaz de libertar-se das condições biológicas que criaram a tirania dele sobre as mulheres e crianças, ele tem poucas razões para renunciar a essa tirania. Como Engels diz, no contexto da revolução econômica:
O que se encontra na base da divisão de classes é a lei da divisão do trabalho." [Note-se que esta própria divisão originou-se de uma divisão biológica básica.] "Mas isto não impede a classe dominante, uma vez predominando, de consolidar o poder, à custa da classe trabalhadora, de transformar sua liderança social numa intensificada exploração das massas.
Apesar de o sistema de classes sexuais ter-se originado em condições biológicas básicas, isto não garante que, uma vez tendo sido varridas as bases biológicas de sua opressão, as mulheres serão livres. Ao contrário, a nova tecnologia, especialmente o controle da fertilidade, pode ser usada contra elas, para reforçar o sistema de exploração estabelecido.
De modo que, assim como para assegurar a eliminação das classes econômicas, é preciso a revolta da classe baixa (o proletariado) e, numa ditadura temporária, a tomada dos meios de produção, assim também, para assegurar a eliminação das classes sexuais, é preciso a revolta da classe baixa (as mulheres) e a tomada do controle da reprodução: a restituição às mulheres da propriedade de seus próprios corpos, bem como do controle feminino da fertilidade humana, incluindo tanto a nova tecnologia quanto todas as instituições sociais da nutrição e da educação das crianças. E, assim como a meta final da revolução socialista não era apenas a eliminação do privilégio da classe econômica, mas também da própria distinção da classe econômica, assim também a meta final da revolução feminista deve ser, ao contrário da meta do primeiro movimento feminista, não apenas a eliminação do privilégio do homem. mas também da própria distinção sexual: as diferenças genitais não mais significariam culturalmente. (Uma volta a uma pansexualidade livre — a "perversão polimorfa" de Freud — provavelmente substituiria a hétero, a homo e a bissexualidade.) A reprodução da espécie por um sexo em benefício dos dois seria substituída pela reprodução artificial (ou pelo menos por uma opção entre as espécies): a forma do nascimento das crianças seria idêntica para o homem e a mulher, ou então, encarando-se de um outro ponto de vista, ambos se sentiriam independentes em relação ao nascimento; a dependência que a criança tem da mãe (e vice-versa) daria lugar a uma dependência muito reduzida de um pequeno grupo mais genérico, e qualquer vestígio de inferioridade com relação aos adultos referente às força física seria compensado culturalmente. A divisão do trabalho acabaria junto com a eliminação total do trabalho (cibernética). A tirania da família biológica seria quebrada.
E, com isto, a psicologia do poder. Como Engels reivindicou para a revolução rigorosamente socialista: "A existência não simplesmente dessa ou daquela classe dominante, mas de qualquer classe dominante, terá se tomado um anacronismo obsoleto." O fato de o socialismo nunca ter chegado ao ponto de realizar esse objetivo declarado não é conseqüência de pré-condições econômicas não realizadas ou falhas, mas também de que a própria analise marxista foi insuficiente: Ela não pesquisou suficientemente fundo as raízes psicossexuais das classes. Marx estava ciente de alguma coisa mais profunda do que ele conhecia quando observou que a família continha dentro de si mesma em miniatura todos os antagonismos que mais tarde se desenvolvem em larga escala dentro da sociedade e do estado. Porque, a não ser que a revolução transtorne a organização social básica e a família biológica — o germe da exploração nunca será aniquilado. Precisamos de uma revolução sexual mais ampla do que revolução socialista — que a inclua 'para verdadeiramente erradicar todos os sistemas de classes.
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Tentamos conduzir a análise de classe um passo à frente, na direção de suas raízes na divisão biológica dos sexos. Não dispensamos os insights dos socialistas; ao contrário, o feminismo radical amplia suas análises, dando a elas uma base ainda mais profunda em condições objetivas, explicando com isso muitas das suas questões insolúveis. Como fundamento de nossa própria analise, devemos expandir a definição do materialismo histórico de Engels. A seguir a definição já citada anteriormente, reescrita de modo a incluir a divisão biológica dos sexos, em função da reprodução, que se encontra na ordem das classes:
O materialismo histórico é aquela visão do curso da História que busca a causa última e a grande energia móvel de todos os fatos históricos na dialética do sexo: a divisão da sociedade em duas classes biológicas distintas, em função da procriação, e as lutas dessas classes entre si; nas mudanças dos modos de casamento, reprodução e educação das crianças; no desenvolvimento análogo de outras classes [castas] fisicamente diferenciadas; e na primeira divisão do trabalho baseada no sexo, que se desenvolveu no sistema econômico de classes.
A seguir, a superestrutura cultural, bem como a econômica, que não se reportam apenas às classes (econômicas), mas sim a toda a problemática do sexo:
Toda a história do passado [observe-se que agora podemos eliminar "com exceção dos estágios primitivos"] foi a história de lutas de classes. Essas classes conflitantes da sociedade são sempre o produto de modos de organização da unidade da família biológica, em função da reprodução da espécie, bem como dos modos de produção e troca de bens e serviços estritamente econômicos. A organização sexual reprodutora da sociedade sempre fornece a base real, exclusivamente a partir da qual podemos formular a explicação última de toda a superestrutura das instituições econômicas, jurídicas e demais idéias de um período histórico dado.
E agora a visão de Engels dos resultados da aplicação de um enfoque materialista à História fica mais realista:
A esfera total das condições de vida que rodeiam o homem e que até agora o regeram passa para o domínio e o controle do homem, que pela primeira vez se torna o verdadeiro e consciente Senhor da Natureza, dono de sua própria organização social.
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Nos capítulos seguintes analisaremos esta definição do materialismo histórico, examinando as instituições culturais que mantêm e reforçam a família biológica (especialmente sua manifestação atual, a família nuclear) e seu resultado, a psicologia do poder, um chauvinismo agressivo, hoje desenvolvido a ponto de nos destruir. Integraremos isto com uma análise feminista do freudismo: porque o preconceito cultural de Freud, tanto quanto o de Marx e Engels, não invalida inteiramente sua percepção. Na verdade, Freud teve insights de valor até maior do que os dos teóricos socialistas, pela construção de um novo materialismo dialético, baseado no sexo. Tentaremos, então, correlacionar o melhor de Engels a Marx (o enfoque materialista histórico) com o melhor de Freud (a compreensão do interior do homem e da mulher e do que os forma) para chegar a uma solução ao mesmo tempo política e pessoal, baseada contudo em condições reais. Veremos que Freud observou corretamente a dinâmica da psicologia, no seu contexto social imediato, mas, pelo fato da estrutura fundamental desse contexto social ser básica para toda a humanidade — em diferentes graus — ela aparentava ser nada menos do que uma condição existencial absoluta, que seria insensato questionar. Ela forçou Freud e muitos de seus seguidores a postular construtos a priori, como O Desejo de Morte, para explicar as origens desses impulsos psicológicos universais. Isto, por sua vez, tomou as doenças da humanidade irredutíveis e incuráveis — motivo pelo qual a solução por ele proposta (a terapia psicanalítica), uma contradição em termos, foi tão pobre, comparada com o resto de seu trabalho, e um fracasso tão retumbante na prática — levando os que tinham alguma sensibilidade social e política a rejeitar não só sua solução terapêutica, como também suas descobertas mais profundas.
Colaborador
Shulamith Firestone, que morreu em 2012, foi a autora de The Dialectics of Sex: The Case for Feminist Revolution.
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