25 de outubro de 2014

De que lado está a Turquia? A Batalha por Kobani

Em Kobani, pela primeira vez, o Isis estava lutando contra um inimigo que em aspectos importantes se assemelhava a si mesmo.

Patrick Cockburn

London Review Books

Vol. 36 No. 21 · 6 November 2014

Durante o verão, o Isis — o Estado Islâmico do Iraque e da Síria — derrotou o exército iraquiano, o exército sírio, os rebeldes sírios e os peshmerga curdos iraquianos; estabeleceu um estado que se estendia de Bagdá a Aleppo e da fronteira norte da Síria aos desertos do Iraque no sul. Grupos étnicos e religiosos dos quais o mundo mal tinha ouvido falar — incluindo os yazidis de Sinjar e os cristãos caldeus de Mosul — tornaram-se vítimas da crueldade e do fanatismo sectário do Isis. Em setembro, o Isis voltou sua atenção para os dois milhões e meio de curdos sírios que haviam conquistado autonomia de fato em três cantões ao sul da fronteira turca. Um desses cantões, centrado na cidade de Kobani, tornou-se alvo de um ataque determinado. Em 6 de outubro, os combatentes do Isis abriram caminho até o centro da cidade. Recep Tayyip Erdoğan previu que sua queda era iminente; John Kerry falou da "tragédia" de Kobani, mas afirmou — implausivelmente — que sua captura não seria de grande importância. Uma conhecida combatente curda, Arin Mirkan, explodiu-se enquanto os combatentes do Isis avançavam: parecia um sinal de desespero e derrota iminente.

Com o ataque a Kobani, a liderança do Isis quis provar que ainda pode derrotar seus inimigos, apesar dos ataques aéreos dos EUA contra eles, que começaram em 8 de agosto de 2014 no Iraque e em 23 de outubro de 2014 foram ampliados para invadir também a Síria. No ataque contra Kobani, os milicianos do Isis cantavam: "O Estado Islâmico permanece, o Estado Islâmico cresce." No passado, o Isis optou – foi uma decisão tática – por abandonar batalhas que achasse que não poderia vencer. Mas a batalha de cinco semanas por Kobani tinha durado muito e tinha sido muito informada para o mundo, para que os milicianos pudessem recuar sem perder prestígio. O apelo que tem o Estado Islâmico entre sunitas sírios, iraquianos e por todo o mundo deriva da crença de que suas vitórias são presentes divinos e inevitáveis; qualquer fracasso abala diretamente a crença de que Deus estaria lutando ao lado do Isis.

Mas aquela inevitável vitória do Isis em Kobani não aconteceu. Em 19 de outubro de 2014, revertendo a política na qual os EUA vinham investindo, os aviões americanos passaram a entregar armas, munição e remédio aos que defendiam a cidade. Sob pressão dos EUA, a Turquia anunciou no mesmo dia que garantiria salvo conduto aos guerrilheiros curdos iraquianos da guerrilha peshmerga para saírem do norte do Iraque e se deslocarem para Kobani; hoje, esses guerrilheiros curdos já recapturaram parte da cidade. Washington percebeu que, dada a retórica de Obama sobre um seu plano para “degradar e destruir” o Isis, e com eleições para o Congresso que acontecerão dentro de apenas um mês, os EUA não podiam admitir que os terroristas colhessem mais uma vitória. E nesse caso especial, a vitória muito provavelmente seria comemorada com o massacre, diante de câmeras de televisão, montadas do lado turco da fronteira, de todos os curdos sobreviventes. Quando o sítio começou, o apoio aéreo que os EUA deram aos que defendiam Kobani foi pouco mais que mínimo; com medo de ofender a Turquia, a força aérea dos EUA evitara qualquer associação com combatentes curdos em solo. Em meados de outubro, a política mudou, e os curdos passaram a fornecer aos norte-americanos informações detalhadas sobre alvos em terra, o que possibilitou que os ataques aéreos norte-americanos destruíssem tanques e artilharia do EIIL. Antes, os comandantes do EIIL haviam conseguido esconder com eficácia seu armamento e dispersar as próprias forças terrestres. Até ali, das 6.600 missões de ataques aéreos, só 632 haviam atingido algum alvo em terra. Mas, na campanha para tomar Kobani, os comandantes do EIIL tiveram de concentrar as forças em posições identificáveis, e tornaram-nas vulneráveis. Num período de 48 horas, houve cerca de 40 ataques aéreos americanos, alguns a menos de 50 metros da linha de frente curda.

Não foi só o apoio aéreo que fez a diferença. Em Kobani, pela primeira vez o Isis enfrentou inimigo declarado – as Unidades de Defesa Popular (YPG) e seu braço político, o Partido da União Democrática (PYD) – os quais, sob aspectos importantes, assemelham-se. O PYD é o ramo sírio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que desde 1984 luta por autodeterminação para os 15 milhões de curdos turcos. Como o Isis, o PKK combina comprometimento ideológico fanatizado com expertise e talento militares, acumulados ao longo de muitos anos de guerra de guerrilhas. Originalmente de ideologia marxista-leninista, o PKK tem comando vertical e busca monopolizar o poder dentro da comunidade curda, tanto na Turquia como na Síria. O líder do partido, que está preso, Abdullah Ocalan, é objeto de um poderoso culto à personalidade, e distribui instruções de comando da prisão onde é mantido, numa ilha turca no Mar de Marmara. A liderança militar do PKK opera de uma fortaleza nas Montanhas Qandil, no norte do Iraque, uma das maiores fortalezas naturais que há no planeta. A maioria dos combatentes, estimados em 7 mil, retiraram-se da Turquia, nos termos de um acordo de cessar-fogo em 2013, e hoje se movimentam de acampamento em acampamento nos vales e gargantas profundas das Qandil. São fortemente disciplinados e apaixonadamente dedicados à causa do nacionalismo curdo. Graças a isso conseguiram manter-se vivos ao longo de 30 anos de guerra contra o gigantesco exército turco, sempre capazes de se recompor apesar das perdas devastadoras que têm sofrido. Como o EIIL, o PKK, também enfatiza o martírio: combatentes mortos são enterrados em cemitérios protegidos e bem cuidados, sempre no alto das montanhas, as sepulturas marcadas por pedras tumulares elaboradas. Lá há imagens de Ocalan por todas as paredes: há seis, sete anos, visitei um abrigo do PKK nas Qandil e vi, na encosta da montanha, uma enorme imagem de Ocalan construída com pedras coloridas. É uma das poucas bases de guerrilheiros, em todo o planeta, que pode ser vista do espaço.

Síria e Iraque estão cheios de exércitos e milícias que não combatem contra ninguém que possa responder ao fogo, mas o PKK e seus afiliados, o PYD e as YPG, são diferentes. Frequentemente criticados por outros curdos como grupo stalinista e antidemocrático, eles pelo menos construíram e mantêm capacidades para defender as próprias comunidades. A sequência de vitórias do Estado Islâmico contra forças superiores, no início desse ano, só aconteceu porque combatiam contra soldados, como os do exército iraquiano, absolutamente desmoralizados, mal armados, sem munição e, até, sem comida, resultado da ação de comandantes corruptos e incompetentes; aqueles soldados, ou muitos deles, estão sempre prontos a desertar. Quando alguns milhares de milicianos do Isis invadiram Mosul em junho, estariam, em teoria, desafiando 60 mil soldados e policiais iraquianos. O verdadeiro número provavelmente mal alcança 1/3 disso: os demais não passavam de nomes em listas, com os oficiais embolsando os soldos; ou existiam mesmo, mas só porque pagam metade de seus soldos aos comandantes, em troca de jamais terem de aparecer nem por perto de acampamentos militares. A situação pouco melhorou nos quatro meses seguintes, depois da queda de Mosul em 9 de junho de 2014. De acordo com um político iraquiano, recente inspeção de uma divisão blindada do exército iraquiano mostrou “que onde devia haver 120 tanques e 10 mil soldados, só havia 68 tanques e apenas 2 mil soldados”. A guerrilha peshmerga – literalmente “aqueles que desafiam a morte” – dos curdos iraquianos, tampouco é muito efetiva. São vistos frequentemente como soldados melhores que os do exército iraquiano, mas essa é reputação que conquistaram há 30 anos, quando combatiam contra Saddam; depois daquilo pouco combateram, exceto nas guerras civis curdas. Mesmo antes de serem expulsos pelo EIIL em Sinjar em agosto, observador atento da guerrilha peshmerga referiu-se a eles, depreciativamente, como “pêche melba”, que “só prestam para emboscadas nas montanhas”.

Os sucessos do Estado Islâmico foram muito facilitados não só pela incompetência dos inimigos, mas também pelas muitas divisões que se veem entre eles. John Kerry vangloria-se de ter montado uma coalizão de 60 países, todos comprometidos com lutar contra o Isis, mas desde o início já estava muito visível que muitos importantes membros da tal "coalizão" não estavam lá muito preocupados com a ameaça-Isis. Quando começou o bombardeio contra a Síria, em setembro, Obama anunciou, com orgulho, que Arábia Saudita, Jordânia, Emirados Árabes Unidos, Qatar, Bahrain e Turquia tinham se unido como parceiros militares dos EUA contra o Isis. Mas, como os americanos sabiam, todos esses são estados sunitas, que tiveram papel crucial no processo de arregimentar jihadistas para lutar contra governos eleitos na Síria e no Iraque. Foi um problema político para os EUA, como Joe Biden (vice-presidente dos EUA) confessou, para grande embaraço de todo o governo, em uma conversa em Harvard em 2 de outubro de 2014. Biden disse que Turquia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos haviam promovido uma "guerra por procuração entre sunitas e xiitas" na Síria e "colocaram lá milhões de dólares e dezenas de milhares de toneladas de armas", para qualquer um que se interessasse em lutar contra Assad. O problema aí é que armas e dinheiro estão chegando diretamente às mãos da Frente al-Nusra e da al-Qaeda, e a situação está atraindo para lá jihadistas extremistas vindos de todos os cantos do mundo. Admitiu que: "... os rebeldes sírios moderados, que se supunha que fossem elemento central e efetivo para a política dos EUA na Síria, não passam de força militar mínima, de fato, desprezível." Adiante, Biden desculpou-se pelo que havia dito, mas o que disse é verdade e manifesta aquilo em que Washington realmente acredita. Depois de se mostrarem ofendidos pela franqueza de Biden, os aliados sunitas dos EUA rapidamente confirmaram os parâmetros da cooperação. O príncipe al-Waleed bin Talal al-Saud, magnata e membro da família real saudita, disse que "... a Arábia Saudita não se envolverá diretamente na luta contra o EIIL no Iraque ou na Síria, porque o grupo não afeta explicitamente nosso país." Na Turquia, Erdoğan declarou que "... no que lhe diz respeito, o PKK é tão ruim quanto o EIIL."

Ficaram excluídas dessa bizarra coalizão quase todas as forças que realmente dão combate ao Isis, incluindo o Irã, o exército sírio, os curdos sírios e as milícias xiitas no Iraque. A grande confusão gerada pelas “políticas” de Obama-Kerry-Biden muito beneficiou o Estado Islâmico, como se viu num incidente no norte do Iraque, no início de agosto, quando Obama enviou forças especiais para o Monte Sinjar para monitorar o perigo que ameaçava milhares de iazidis emboscados naquele local. Etnicamente curdos, mas com religião não islamista própria, os iazidis haviam fugido de suas cidades e vilas para escapar de serem massacrados ou escravizados pelo Isis. Os soldados dos EUA chegaram por helicóptero e permaneceram sempre escoltados e eficazmente protegidos por milicianos curdos uniformizados. Mas, de repente, voltaram a embarcar rapidamente nos helicópteros e partiram em disparada. O motivo para a partida precipitada, como depois se revelou em Washington, foi que o oficial encarregado do destacamento norte-americano havia conversado com sua escolta curda, e descobrira que não eram os peshmerga amigos dos EUA do Governo Regional do Curdistão, mas combatentes do PKK – ainda listados como “terroristas” pelos EUA, inobstante o papel crucialmente importante que tiveram no socorro aos iazidis e em obrigar o EIIL a retroceder. Só quando Kobani já estava à beira de ser tomada é que Washington afinal aceitou que não lhe restava alternativa, senão cooperar com o PYD: afinal de contas, o PYD era praticamente a única força efetiva que continuava a combater em solo, contra o EIIL.

E há também o problema turco. Os aviões dos EUA que atacam forças do Isis em Kobani tinham de voar quase 2 mil km a partir da base no Golfo, porque a Turquia não autorizava que usassem a base turca em Incirlik, a apenas poucos quilômetros de Kobani. Ao não impedir que reforços, armas e munições chegassem ao Isis em Kobani, Ankara mostrava que preferia ter o ISIL no comando da cidade: qualquer coisa lhe pareceria melhor que o PYD. A posição da Turquia já estava clara desde julho de 2012, quando o exército sírio, pressionado por rebeldes por todos os lados, abandonou as principais áreas curdas. Os curdos sírios perceberam que, de repente, haviam obtido uma autonomia de facto e que aumentava a autoridade do PKK. Localizados quase que ao longo da fronteira com a Turquia, área estrategicamente importante para o Isis, os curdos inesperadamente foram convertidos e atores na luta pelo poder na Síria. Não foi desenvolvimento que pudesse agradar aos turcos. As principais organizações políticas e militares dos curdos sírios eram ramos do PKK, seguindo ordens de Ocalan e da liderança militar em Qandil. Os insurgentes do PKK, que haviam por tanto tempo combatido por alguma forma de autonomia na Turquia, agora governavam um quase-estado na Síria, centrado nas cidades de Qamishli, Kobani e Afrin. Grande parte da região síria de fronteira permaneceria provavelmente em mãos dos curdos, dado que o governo sírio e seus oponentes eram ambos fracos demais para mudar esse quadro. Ancara pode não jogar como grande-mestre de xadrez na colaboração com o EIIL para quebrar o poder dos curdos, como entendem os teóricos da conspiração, mas viu a vantagem que poderia obter se deixasse o EIIL enfraquecer os curdos sírios. Essa política jamais foi exatamente muito prudente: se o EIIL conseguisse tomar Kobani, o que humilharia também os EUA, a Turquia, pressuposta aliada dos EUA seria vista como parcialmente responsável pelo desastre, depois de ter bloqueado a cidade. De qualquer modo, a mudança de curso dos turcos aconteceu em velocidade escandalosa. Poucas horas depois de Erdoğan dizer que a Turquia não ajudaria os terroristas do PYD, já estava autorizando os curdos iraquianos a reforçar as trincheiras do PYD em Kobani.

A virada total da Turquia foi o último de uma série de erros de cálculo cometidos sobre os desenvolvimentos na Síria desde o início dos tumultos de rua, em 2011. O governo de Erdoğan deveria ter se posicionado a favor do equilíbrio de poder entre Assad e a oposição. Em vez disso, convenceu-se de que Assad − como se fosse Gaddafi na Líbia – seria inevitavelmente derrubado do poder. Não aconteceu. E Ancara passou a apoiar grupos jihadistas pagos pelas monarquias do Golfo, entre os quais a Frente al-Nusra, afiliado sírio da al-Qaeda, e o Isis. A Turquia teve praticamente o mesmo papel, como força de apoio aos jihadistas na Síria, que coube ao Paquistão, que apoiou os Talibã no Afeganistão. Os estimados 12 mil jihadistas estrangeiros que hoje combatem na Síria, e que são motivo de graves preocupações na Europa e nos EUA, entraram, praticamente todos, por uma trilha que se tornou conhecida como “a rodovia dos jihadis”, que se serve dos pontos de passagem da fronteira turca, nos quais os guardas se fazem de cegos. Na segunda metade de 2013, por pressão dos EUA sobre a Turquia, essas vias tornaram-se mais difíceis para militantes do Isis, os quais contudo ainda atravessam a fronteira sem grande dificuldade. Ainda não se conhece muito bem a exata natureza das relações entre os serviços de inteligência turcos e o Isis e al-Nusra, mas há fortes evidências de que, sim, há grau considerável de cooperação entre eles. Quando rebeldes sírios liderados pela frente al-Nusra capturaram a cidade armênia de Kassab em território controlado pelo exército sírio, no início desse ano, parecia que os turcos os tivessem autorizado a operar a partir do território turco. Também foi muito misterioso o caso dos 49 membros do Corpo Consular da Turquia em Mosul que permaneceram na cidade enquanto era tomada pelo EIIL; foram mantidos como reféns em Raqqa, capital síria do Estado Islâmico, depois inexplicavelmente libertados, depois de quatro meses, em troca de membros do EIIL mantidos presos na Turquia.

*

Se Erdoğan tivesse optado por ajudar os curdos encurralados em Kobani, em vez de traí-los, poderia ter fortalecido o processo de paz entre seu próprio governo e os curdos turcos. Em vez disso, suas ações só geraram protestos e tumultos de rua, entre os curdos, por toda a Turquia; cidades e vilas do interior do país nas quais nunca tinha havido manifestações de curdos ao longo de toda a história moderna foram queimadas e morreram 44 pessoas. Pela primeira vez em dois anos a aviação militar turca atacou posições do PKK no sudeste do país. Parece que Erdoğan jogou no lixo uma das principais realizações de seus anos de governo: ter dado início a uma solução negociada com a guerrilha armada curda. Hostilidade étnica e violência entre turcos e curdos aumentaram imediatamente. A polícia reprimiu manifestações populares anti-Isis, mas não interferiu em manifestações pró-Isis. 72 refugiados que fugiram de Kobani para a Turquia, foram mandados de volta para a cidade. Cinco membros do PYD que foram capturados pelo exército turco, foram descritos como “terroristas separatistas”. Houve surto de manifestações histéricas de apoiadores de Erdoğan: o prefeito de Ancara, Melih Gökçek, tuitou que “há gente no leste que se faz passar por curdo, mas são, na verdade, armênios ateus”. A imprensa-empresa turca, cada vez mais subserviente ou intimidada pelo governo reduziu muito a gravidade das manifestações de rua. A CNN turca, famosa por exibir um documentário sobre a vida dos pinguins, no auge das manifestações no Gezi Park, ano passado, optou por exibir, dessa vez, durante os protestos curdos, um documentário sobre a vida das abelhas.

Que efeito negativo haverá contra o Isis, se não conseguir tomar Kobani? A reputação de sempre derrotar os inimigos sofrerá um pouco, mas já demonstraram que podem sobreviver a ataques aéreos dos EUA, mesmo no caso de estarem com suas forças concentradas num só ponto. O califado declarado por Abu Bakr al-Baghdadi dia 29 de junho de 2014 continua a expandir-se: as maiores vitórias na Província Anbar asseguraram ao califado mais um quarto do Iraque. Uma série de ataques bem planejados em setembro garantiram ao Isis o controle de terras em torno de Fallujah, cerca de 60 km a oeste de Bagdá. Um acampamento do exército iraquiano em Saqlawiyah foi cercado durante uma semana e invadido: 300 soldados do exército iraquiano foram mortos. Como no passado, o exército mostrou-se incapaz para qualquer contraofensiva efetiva, mesmo com todo o apoio dos ataques aéreos norte-americanos. Em 2 de outubro de 2014, o Isis lançou uma série de ataque bem-sucedidos para capturar Hit, cidade ao norte de Ramadi, deixando o governo com apenas uma única base do exército na área. Há hoje forças do Isis muito próximas dos enclaves sunitas no oeste de Bagdá: até agora, permanecem paradas, embora todas as demais áreas sunitas do país tenham estado em torvelinho. Segundo prisioneiros do Isis, as células do Isis na cidade estão à espera de ordem, para entrar em ação coordenada com ataque que virá de fora da capital. É possível que o Isis não consiga tomar toda a cidade de Bagdá, onde vivem sete milhões de pessoas (a maioria, xiitas), mas poderia tomar as áreas sunitas e gerar pânico na capital. Nos bairros ricos, onde convivem várias religiões, como em al-Mansour, no setor oeste de Bagdá, metade dos habitantes já partiram rumo à Jordânia ou Golfo, porque não têm dúvidas de que o EIIL atacará a cidade. "Acho que o ISIL atacará Bagdá, no mínimo para ocupar os enclaves sunitas,disse um morador. Se conseguirem manter pelo menos parte da capital do Iraque, aumentará a credibilidade do que dizem, que criaram um novo estado." Enquanto isso, o governo e as empresas locais de imprensa dedicam-se empenhadamente em reduzir a gravidade da situação e da possibilidade real de o ISIL invadir a capital, tentando conter a corrida rumo a áreas sunitas mais seguras no sul.

A substituição do governo corrupto e disfuncional de Nouri al-Maliki por Haider al-Abadi não fez tanta diferença quanto seus apoiadores estrangeiros gostariam de ver. Porque o desempenho do exército absolutamente não melhorou, as principais forças que estão enfrentando o Isis são milícias xiitas. Fortemente sectárias e frequentemente criminalizadas, são elas que lutam furiosamente em torno de Bagdá para forçar o Isis a retroceder e para expulsar a população sunita das áreas mistas. Sunitas são frequentemente aprisionados nos pontos de passagem, trocados por resgates de dezenas de milhares de dólares, mas mais frequentemente assassinados depois que o resgate é pago. A Anistia Internacional diz que os milicianos, inclusive a Brigada Badr e o grupo Asaib Ahl al Haq, operam sob total imunidade; ela acusou o governo dominado pelos xiitas de estar “acobertando crimes de guerra”. Com o governo do Iraque e os EUA pagando grandes somas de dinheiro a empresários, comerciantes, líderes tribais e a qualquer um que diga que combaterá contra o Isis, os senhores-da-guerra locais estão novamente em alta: desde o mês de junho, foram criadas de 20 a 30 novas milícias. Tudo isso significa que os sunitas iraquianos não têm escolha, a não ser manter-se ao lado do Isis. A alternativa seria a volta dos ferozes milicianos xiitas, que desconfiam de que todos os sunitas sempre apoiam o Estado Islâmico. Precariamente recuperado da mais recente guerra, o Iraque já está sendo devastado por nova guerra. Aconteça o que acontecer em Kobani, o Isis não implodirá. Qualquer intervenção estrangeira só fará aumentar o nível de violência, e oposição entre sunitas e xiitas ganhará novo impulso, sem fim à vista.

Patrick Cockburn é correspondente do Oriente Médio para o Independent desde 1990. Seus livros incluem um livro de memórias, The Broken Boy, bem como vários estudos sobre o conflito no Iraque e Behind Enemy Lies: War, News and Chaos in the Middle East.

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