28 de maio de 2015

Os aprendizes de feiticeiro

Não há um avanço relevante contra o Estado Islâmico no Iraque ou na Síria que possa ser posto na conta da coalizão montada pelos EUA

Salem H. Nasser

Folha de S.Paulo

O Oriente Médio é um eterno desafio à nossa capacidade de compreensão. Talvez nunca o tenha sido como agora. As conflagrações são tantas, os atores, os interesses, as chaves de leitura, que mentirá quem disser que pode tudo explicar. A não ser que, por querer ou sem querer, minta na explicação.

Um dos elementos incontornáveis desse complexo emaranhado é o chamado Estado Islâmico (EI). Esse grupo, e com ele os seus vários similares, aliados ou concorrentes, aparece como espectro a assombrar desde a Nigéria até o Iraque, passando pela Líbia e o restante do norte da África, pelo Levante Árabe e pelo Golfo, incluído aí o Iêmen, hoje sob ataque saudita.

Em todos os lugares se multiplicam os relatos de sua extraordinária violência e causam impressão os seus números, a sua força e a sua capacidade de ação. Esse perigo gigantesco, que não pode ter sido fruto de geração instantânea, parece ter surgido no nosso radar de repente e apenas muito recentemente.

É verdade que antes disso, sob o nome genérico de Al Qaeda, e no contexto da chamada guerra contra o terror, muito se falava dos portadores da mesma visão torta do islã e da violência por eles perpetrada.

Mas aquilo que era uma rede difusa de células voltadas a ações pontuais transformou­se em legiões de homens bem treinados, bem armados, com acesso a abundantes recursos materiais. E, por alguma razão, aqui no Ocidente se decidiu, por um bom tempo, que não era o caso de prestar muita atenção.

A metamorfose se deu originalmente no Iraque e na Síria e o seu momento mais relevante foi a entrada do EI e outros grupos similares, como a Jabhat Al Nusra, no combate ao governo sírio.

Essa questão temporal serve de pista para explicar, ao menos em parte, tanto o nosso silêncio quanto o fenomenal crescimento em força desses exércitos de ocasião.

Calou­se sobre aquilo que se estava alimentando, direta ou indiretamente, na esperança de mudar a balança de poder na região, derrubando o regime sírio e enfraquecendo os seus aliados mais evidentes, o Irã e o Hizbollah libanês.

O Estado Islâmico e seus similares aparecem assim como instrumentos, tão perigosos para quem os manuseia quanto para suas vítimas imediatas, no jogo que opõe esses atores a que me referi às potências ocidentais e seus clientes regionais, incluídos aí os países do Golfo e também Israel.

Mas, mesmo enquanto ainda não escapam totalmente ao controle de quem os apoia, esses grupos são como aqueles parceiros com quem se tem vergonha de aparecer em público. Por isso ninguém confessa as ligações perigosas que mantém.

Somos, portanto, convidados a ultrapassar os discursos e observar o comportamento dos vários atores.

Mesmo após o avanço do Estado Islâmico sobre o Curdistão iraquiano e a difusão de imagens de vítimas ocidentais executadas, ou seja, depois de violada a linha do que era permitido e a opinião pública ocidental ter sido de tal modo provocada, a resposta veio tímida.

Não há qualquer avanço relevante contra o EI no Iraque ou na Síria que possa ser posto na conta das ações da coalizão montada pelos Estados Unidos, ações que de resto aparecem ao observador como meramente cosméticas.

Tampouco há qualquer ação visível por parte dos parceiros e clientes dos Estados Unidos voltada a efetivamente estancar as fontes de financiamento, fechar os campos de treinamento, impedir a chegada dos combatentes etc.

Do mesmo modo, a mesma Arábia Saudita que hoje bombardeia o Iêmen, em violação flagrante do direito internacional, sob o pretexto de proteger a legalidade institucional do avanço dos Houtis, não pensou ser necessária qualquer ação contra a Al Qaeda e seus filhotes naquele país.

Os aprendizes de feiticeiros continuam a brincar com fogo.

SALEM H. NASSER, 47, é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais ­- GR-­RI

26 de maio de 2015

Alexandre e o país das finanças

Leda Paulani

Folha de S.Paulo

Alexandre tem séria dificuldade em compreender o que é substantivo (Leda e o País das Maravilhas, Schwartsman, Folha, 20/5/2015). Vendo adjetivos por toda parte, não distingue o que realmente conta. Tentemos despertá-lo do sono dogmático.

Sugere ele que o que deveria me inquietar é a evolução da dívida pública em relação ao PIB, não seu valor absoluto, pois em cinco anos, de 2010 a 2015, passou ela de 52% para 62% (acréscimo de dez pontos percentuais).

A quem tanto aprecia história, lembro que, entre 1997 e 2002 (intervalo igual de cinco anos), a dívida passou de 31,8% para 50,5% do PIB, acréscimo portanto de quase 20 pontos, sem que se percebesse então qualquer sinal de desespero dos analistas. É exagero falar em terrorismo econômico?

Mais dados: nos 12 meses encerrados em março último, as necessidades de financiamento do setor público bateram os 7,8% do PIB, cerca de R$ 436 bilhões. Desse valor, porém, apenas R$ 39 bilhões (0,7%) devem-se a despesas governamentais acima das receitas. O restante, por assim dizer, a bagatela de R$ 397 bilhões, deve-se ao pagamento de juros da dívida, um "serviço" cujo "preço" (a "taxa de juros") é o governo quem determina. Onde está a gordura?

E não venham dizer ele e seus pares que a estratosférica taxa de juros é necessária para conter a inflação. Concedendo algum crédito à tese de que a taxa de juros é variável incontornável na determinação do comportamento dos preços, o que importa aí é a evolução das expectativas –a qual, independente da direção, pode ser a mesma no nível dos 5% ao ano, dos 8%, dos 12%, dos 15%, ou outro número qualquer.

Por que 13% é pergunta que deve responder o Copom, o mercado que avaliza a taxa e os colunistas que aplaudem tamanha aberração.

Nem venham dizer ele e seus pares que a absurda taxa é necessária para garantir a atratividade dos capitais externos.

Em primeiro lugar porque, faz anos, as taxas nominais nos principais mercados do mundo são extremamente baixas, quando não negativas em termos reais. Em segundo lugar porque esse capital cigano, que não esquenta assento, não ajuda o país, antes o contrário.

Ninguém é contra o governo ajustar suas contas, racionalizar despesas, otimizar recursos etc. O ajuste fiscal, porém, em bases sempre conservadoras, punindo o trabalho e os mais pobres, enquanto eleva despudoradamente a renda mínima do capital, interessa exatamente a quem?

Infelizmente para a maioria esmagadora e esmagada da população, o país de Alexandre e seus pares tem triunfado e tripudiado, minando os esforços, mesmo mínimos, de engendrar uma nação.

Eis por que, entre o país das finanças de Alexandre e as maravilhas de ter um país digno do nome, nunca hesitei um instante em minha vida, um sonho do qual ainda não podemos acordar, sob pena de se perder o sentido substantivo de estudar economia.

Sobre a autora
LEDA PAULANI, 60, é professora titular do Departamento de Economia da FEA-USP

21 de maio de 2015

O assassinato de Osama bin Laden

Será que Bin Laden, alvo de uma enorme caçada internacional, realmente decidiria que uma cidade turística a 64 quilômetros de Islamabad seria o lugar mais seguro para se viver?

Seymour M. Hersh

London Review of Books


Tradução / Passaram quatro anos desde que um grupo de operações especiais da Marinha dos EUA assassinou Osama bin Laden num assalto noturno a um complexo de altas paredes em Abbottabad, no Paquistão. O assassinato constituiu o ponto alto do primeiro mandato de Obama e foi um fator preponderante na sua reeleição. A Casa Branca ainda afirma que a missão foi inteiramente levada a cabo pelos EUA, e que as altas patentes do exército paquistanês e a agência dos Serviços de Informação (ISI) não foram informados da incursão antecipadamente. Isto é falso, como são também muitos outros elementos do relato da administração Obama. A versão da Casa Branca poderia ter sido escrita por Lewis Carroll: poderia bin Laden, alvo de uma massiva caça ao homem a nível internacional, decidir realmente que uma estância a 60 km de Islamabad seria o local mais seguro para viver e comandar as operações da al-Qaida? Escondia-se num sítio onde poderia ser visto. Isto foi o que disseram os EUA.

A mais flagrante mentira foi a afirmação de que as duas mais altas patentes militares do Paquistão, o General Ashfaq Parvez Kayani, chefe do exército, e o General Ahmed Shuja Pasha, diretor geral do ISI, nunca foram informados da missão. Esta continua a ser a posição da Casa Branca, apesar de um rol de relatórios que levantaram questões, incluindo o de Carlotta Gall, publicado no New York Times Magazine de 19 de março de 2014. Gall, que foi durante 12 anos correspondente do Times no Afeganistão, escreveu que lhe fora dito por um “funcionário paquistanês” que Pasha conhecera antes da incursão, que bin Laden estava em Abbottabad. A história foi desmentida por funcionários dos EUA e do Paquistão e ficou por ali. No seu livro Paquistão: Antes e Depois de Osama (2012), Imtiaz Gul, diretor executivo do Centre for Research and Security Studies, um grupo de reflexão em Islamabad, escreveu que falara com quatro agentes secretos de informações que (refletindo uma visão local muito difundida) asseveraram que os militares paquistaneses deveriam com certeza estar ao corrente da operação. O assunto foi trazido novamente em fevereiro, quando um general na reforma, Assad Durrani, que foi chefe do ISI no princípio dos anos 1990, disse a um repórter da al-Jazeera que era “bem possível” que as altas patentes do ISI não soubessem onde bin Laden se escondia, “mas era mais provável que soubessem. E a ideia era que, na altura certa, a sua localização seria revelada. E a altura certa seria quando se conseguisse o necessário quid pro quo; se deténs em teu poder alguém como Osama bin Laden, não vais simplesmente entregá-lo aos EUA.”

Nesta Primavera, contactei Durrani e disse-lhe, em pormenor, o que soubera sobre o assalto, de fontes norte-americanas: que bin Laden fora prisioneiro do ISI no complexo de Abbottabad desde 2006; que Kayani e Pasha haviam sabido da incursão antecipadamente e haviam-se certificado de que os dois helicópteros que traziam os SEALs a Abbottabad poderiam atravessar o espaço aéreo do Paquistão sem despoletar alarmes; de que a CIA não soubera da localização de bin Laden interceptando o seu correio, o que a Casa Branca afirma desde 2011, mas através de um antigo agente de informação paquistanês que revelou o segredo em troca de grande parte dos 25 milhões de dólares oferecidos pelos EUA, e que, enquanto Obama deu ordens para o assalto e os SEALs o levaram a cabo, muitos outros aspectos da versão da administração Obama eram falsos.

“Quando a sua versão for publicada, se decidir fazê-lo, as pessoas no Paquistão ficarão tremendamente gratas”, disse-me Durrani. “Há muito tempo que as pessoas deixaram de confiar no que se publica sobre bin Laden vindo das fontes oficiais. Haverá comentário político negativo e algum ressentimento, mas as pessoas gostam que a verdade lhes seja dita, e o que me disse é essencialmente o que tenho ouvido de antigos colegas que estão numa missão para descobrir os fatos desde que ocorreu este episódio.” Enquanto antigo chefe do ISI, afirmou, fora-lhe dito, pouco depois do assalto, por “pessoas na ‘comunidade estratégica’ que deveriam saber” que houvera um informador que alertara os EUA da presença de bin Laden em Abbottabad, e que depois do seu assassinato as promessas incumpridas dos EUA deixaram Kayani e Pasha a descoberto.

A principal fonte norte-americana para o relato que se segue é um funcionário dos serviços de informação na reforma que tinha conhecimento da informação inicial de que bin Laden estaria em Abbottabad. Também ele foi muito reservado em relação a muitos aspectos do treino dos SEALs para o assalto e a vários relatos posteriores. Duas outras fontes dos EUA, com acesso a informação que confirmava o que aqui é avançado, são de há muito consultores do Comando de Operações Especiais. Também recebi informação do Paquistão sobre o desagrado generalizado entre as altas patentes do ISI e os chefes militares (de que Durrani mais tarde fez eco) por causa da decisão de Obama de trazer a público imediatamente notícias sobre a morte de bin Laden. A Casa Branca não respondeu a pedidos de comentário.

***

Tudo começou com uma denúncia. Em agosto de 2010, um antigo agente dos serviços de informação do Paquistão abordou Jonathan Bank, então chefe do departamento da CIA na embaixada dos EUA em Islamabad. Ofereceu-se para dizer à CIA onde poderia encontrar bin Laden, em troca da recompensa que Washington oferecera em 2001. Geralmente, a CIA não confia nestas denúncias, e a resposta da agência foi enviar por avião uma equipe com um polígrafo. O denunciante passou no teste. Segundo o agente de informações norte-americano reformado, a preocupação da CIA na altura foi: “Portanto agora temos uma história que diz que bin Laden está a viver num complexo em Abbottabad, mas como haveremos realmente de saber de quem se trata?”

Os EUA inicialmente mantiveram o que sabiam dos paquistaneses. “O receio era que, caso a existência da fonte fosse conhecida, os próprios paquistaneses mudariam bin Laden para outra localização. Portanto apenas um pequeno número de pessoas ficou a conhecer a fonte e a sua história”, afirmou o agente. “O primeiro objetivo da CIA era verificar a qualidade da informação”. O complexo foi posto sob vigilância de satélite. A CIA alugou uma casa em Abbottabad para usar como base de observação avançada e aí colocou funcionários paquistaneses e cidadãos estrangeiros. Depois, a base serviria de ponto de contato com o ISI; atraiu pouca atenção porque Abbottabad é uma cidade de veraneio cheia de casas para locações de curto prazo. Foi preparado um perfil psicológico do informador. (O informador e a sua família foram retirados do Paquistão e colocados na área de Washington. É agora consultor da CIA.)

“Em outubro, a comunidade militar e dos serviços de informação discutiam as possíveis opções militares. Bombardeamos o complexo, ou tiramo-lo dali com um ataque de drones? Talvez enviar alguém para o assassinar, um único assassino? Mas assim não teremos provas”, afirmou o agente. “Podemos ver que alguém se movimenta de noite, mas não podemos interceptar ninguém, não detectamos movimentos suspeitos.”

Em outubro, Obama recebeu notícias dos serviços de informação. A sua resposta foi cautelosa, disse o agente na reforma: "Não faz sentido a informação de que bin Laden estava a viver em Abbottabad. Era de loucos. O Presidente foi claro: 'Não me falem mais disto a não ser que tenham provas de que é realmente bin Laden.'" O objetivo imediato do comando da CIA e do Comando de Operações Especiais era obter o apoio de Obama. Pensavam obter este apoio se tivessem a prova do DNA, e se pudessem assegurá-lo de que um assalto noturno ao complexo não traria riscos. A única maneira de conseguir estas duas coisas, disse o agente, “era envolver os paquistaneses”.

No final do outono de 2010, os EUA mantiveram silêncio sobre a denúncia, e Kayani e Pasha continuaram a insistir junto das suas contrapartes norte-americanas que não tinham informação sobre o paradeiro de bin Laden. “O próximo passo seria arranjar uma maneira de envolver Kayani e Pasha; dizer-lhes que temos informação que mostra que há um alvo de grande importância no complexo e perguntar-lhes o que sabem sobre ele”, disse o agente. “O complexo não era um enclave armado; não havia metralhadoras, porque estava sob controle do ISI”. O informador tinha dito aos EUA que bin Laden vivera sem ser detectado desde 2001 a 2006 com algumas das suas mulheres e filhos nas montanhas Hindu Kush, e que o “ISI chegou até ele pagando a pessoas da tribo local para o traírem”. (Relatórios posteriores ao assalto situavam-no noutros locais do Paquistão durante este período.) Bank foi também avisado pelo informador de que bin Laden estava muito doente e que, no princípio do seu confinamento em Abbottabad, o ISI mandara Amir Aziz, médico e major no exército do Paquistão, para ir até lá para providenciar tratamento. “A verdade é que bin Laden era um inválido, mas não podemos dizer isso’, referiu o agente na reforma. “‘Quer dizer que vocês alvejaram um aleijado? Que se preparava para pegar na sua AK-47?’”

“Não demorou muito para conseguir a cooperação que queríamos, porque os paquistaneses queriam garantir a entrega contínua de ajuda militar norte-americana, da qual uma boa percentagem era financiamento antiterrorismo que paga a segurança pessoal, como limusines à prova de bala e seguranças privados e casas para os chefes do ISI”, disse o agente. Acrescentou que também houve “incentivos” pessoais por baixo da mesa pagos por fundos de contingência do Pentágono, não registados. “A comunidade de informação conhecia o ponto em que tinha de haver acordo dos paquistaneses – era esse o isco. E eles morderam-no. Ambos os lados ficariam a ganhar. Também fizemos um pouco de chantagem. Dissemos-lhes que revelaríamos a notícia de que eles tinham bin Laden perto de si. Sabemos quem são os seus amigos e inimigos”; os Talibã e os grupos jihadistas no Paquistão e no Afeganistão “não iriam gostar”.

Um fator de preocupação nesta fase inicial, de acordo com o agente, era a Arábia Saudita, que havia financiado bin Laden desde a sua ruptura com os paquistaneses. “Os sauditas não queriam que a sua presença nos fosse revelada porque ele era saudita, e portanto disseram-lhes para o manterem fora da jogada. Os sauditas receavam que, caso soubéssemos, faríamos pressão sobre os paquistaneses para deixar bin Laden dizer-nos o que os sauditas haviam feito com a al-Qaeda. E deram dinheiro. Muito. Os paquistaneses, por seu turno, estavam preocupados com a possibilidade dos sauditas denunciarem o fato de eles terem bin Laden em seu poder. O receio era de que, caso os EUA soubessem de bin Laden através de Riade, fosse um pandemônio. Saberem da prisão de bin Laden a partir de um informador não foi o pior dos cenários.”

Apesar da oposição constante em público, os exércitos e serviços de informação norte-americano e paquistanês trabalharam juntos e em proximidade durante décadas, em contraterrorismo, no Sul da Ásia. É útil para ambos os serviços a oposição em público, para “protegerem o couro”, como referiu o agente, mas partilham constantemente informação usada para os ataques com drones, e colaboram em operações secretas. Por outro lado, Washington sabe que há elementos do ISI que acreditam que manter uma relação com a liderança talibã é essencial para a segurança nacional. O objetivo estratégico do ISI é equilibrar a influência indiana em Cabul. Os talibã são também vistos no Paquistão como fonte de tropas de choque jihadistas que apoiariam o Paquistão contra a Índia num confronto por Cachemira.

A juntar a esta tensão, estava o arsenal nuclear paquistanês, muitas vezes representado na imprensa ocidental como uma “bomba islâmica”, que poderia ser transferida pelo Paquistão para um país em guerra no Oriente Médio se acontecesse uma crise com Israel. Os EUA olharam para o lado quando o Paquistão começou a construir o seu armamento nos anos 1970 e acredita-se agora em Washington que a segurança dos EUA depende de manter fortes laços militares e de troca de informação com o Paquistão. Esta crença é partilhada com o Paquistão.

“O exército paquistanês vê-se a si mesmo como uma família”, disse o agente reformado. “Os oficiais chamam aos soldados filhos e todos os oficiais são ‘irmãos’. A atitude é diferente no exército norte-americano. As altas patentes paquistanesas acreditam que são uma elite e tem de ter cuidado com todos, enquanto guardiães da chama contra o fundamentalismo islâmico. Os paquistaneses também sabem que o seu trunfo contra a agressão indiana é uma forte relação com os EUA. Nunca irão eliminar os seus laços interpessoais connosco.”

Como todos os chefes de base da CIA, Bank trabalhava em segredo, mas isso acabou no começo de dezembro de 2010, quando foi publicamente acusado de assassinato, numa queixa criminal feita em Islamabad por Karim Khan, jornalista paquistanês cujo filho e irmão, de acordo com notícias locais, foram mortos por um ataque com drones. Permitir que Bank fosse nomeado constituiu uma violação do protocolo diplomático por parte das autoridades paquistanesas e provocou uma onda de publicidade indesejada. Bank recebeu ordens da CIA para abandonar o Paquistão e os agentes da CIA subsequentemente disseram à Associated Press que ele fora transferido por preocupações pela sua segurança. O New York Times relatou que havia a “forte suspeita” de que o ISI desempenhara um papel ao revelar o nome de Bank a Khan. Houve suspeita de que ele fora excluído como pagamento para publicação, numa ação legal, em Nova Iorque, um mês antes, dos nomes dos chefes do ISI em ligação com os ataques terroristas de Mumbai em 2008. Mas houve uma razão colateral, refere o nosso agente, para a CIA querer enviar Bank de regresso aos EUA. Os paquistaneses precisavam de apoio caso a sua cooperação com os norte-americanos para se livrarem de bin Laden se tornasse conhecida. Os paquistaneses poderiam dizer: “Falam de mim? Acabamos de bater no vosso chefe de estação.”

***

O complexo de bin Laden ficava a menos de três quilômetros da Academia Militar do Paquistão, e havia uma base de um batalhão de combate do exército paquistanês a cerca de um quilômetro de distância. Abbottabad fica a menos de 15 minutos de helicóptero de Tarbela Ghazi, uma base importante para operações secretas e a instalação onde os homens que vigiam o arsenal nuclear paquistanês são treinados. “Ghazi é a razão pela qual o ISI pôs bin Laden em Abbottabad”, refere o agente aposentado, “para estar sob vigilância constante.”

O risco era alto para Obama nesta fase inicial, especialmente porque havia um precedente problemático: a tentativa fracassado de resgatar os reféns norte-americanos em Teerã, em 1980. Essa falha representou um fator na derrota de Jimmy Carter para Ronald Reagan. As preocupações de Obama eram realistas, referiu o agente. “Bin Laden esteve alguma vez ali? Seria toda a história uma mentira dos paquistaneses? Quais seriam as implicações políticas deste fracasso?” Afinal de contas, como referiu o agente, “se a missão falhar, Obama será apenas um Jimmy Carter negro, adeus reeleição.”

Obama estava ansioso pela confirmação de que os EUA conseguiriam o homem certo. A prova seria o DNA de bin Laden. Os autores do plano pediram ajuda a Kayani e Pasha, que pediram a Aziz para obter as amostras. Pouco depois do assalto, a imprensa descobriu que Aziz vivera numa casa próximo do complexo de bin Laden: repórteres locais descobriram o seu nome em Urdu numa placa na porta. Funcionários paquistaneses negaram qualquer ligação de Aziz a bin Laden, mas o agente aposentado disse-me que Aziz fora recompensado com uma parte dos 25 milhões de dólares de recompensa dos EUA, porque a amostra de DNA foi conclusiva, era mesmo bin Laden quem estava em Abbottabad (no seu testemunho subsequente a uma comissão paquistanesa que investigava o assalto a bin Laden, Aziz afirmou que testemunhara o ataque a Abbottabad, mas não tivera conhecimento de quem estava a viver no complexo, e que lhe fora ordenado por um superior que se mantivesse afastado da cena).

Continuaram as negociações sobre o modo como a missão seria conduzida. “Kayani acabou por nos dizer que sim, mas afirma que não podem usar uma grande força de ataque. Têm que vir à bruta. E tem de O matar, senão não há acordo”, referiu o agente. O acordo foi selado por fins de janeiro de 2011, e o Comando de Operações Especiais Conjuntas preparou uma lista de perguntas para os paquistaneses responderem: “Como poderemos ter a certeza de que não há intervenções externas? Quais são as defesas dentro do complexo e quais as suas dimensões? Onde são os quartos de bin Laden e quais são exatamente as suas dimensões? Quantos degraus tem a escada? Onde se localizam as portas dos seus quartos? São reforçadas com ferro? Qual a espessura?” Os paquistaneses concordaram em formar uma célula de quatro homens, norte-americanos, um membro dos SEAL, um diretor de casos da CIA e dois especialistas em comunicações, para estabelecer um gabinete de ligação em Tarbela Ghazi para o assalto. Nesse momento, o exército construíra um modelo do complexo em Abbottabad num antigo lugar de testes nucleares no Nevada, e uma equipa de elite dos SEAL começara a ensaiar para o ataque.

Os EUA haviam começado a cortar nos apoios ao Paquistão; a fechar a torneira, nas palavras do nosso agente. A provisão de 18 novos caças F-16 foi atrasada e os pagamentos em dinheiro por baixo da mesa aos líderes de topo foram suspensos. Em abril de 2011, Pasha reuniu-se com o diretor da CIA, Leon Panetta, na sede da agência. “Pasha obteve um compromisso de que os EUA retomariam os pagamentos, e nós obtivemos uma garantia de que não haveria oposição por parte do Paquistão durante a missão”, referiu o agente. “Pasha também insistiu para que Washington parasse de acusar a falta de cooperação do Paquistão na guerra norte-americana contra o terrorismo.” Numa altura dessa Primavera, Pasha deu aos norte-americanos uma explicação cabal da razão pela qual o Paquistão mantinha em segredo a captura de bin Laden, e por que razão era imperativo que o papel do ISI permanecesse um segredo: “precisávamos de um refém para manter o controle sobre a al-Qaida e os Talibã”, referiu Pasha, de acordo com o agente. “O ISI estava a usar bin Laden como alavanca contra atividades dos Talibã e da al-Qaida dentro do Afeganistão e Paquistão. Deixaram os líderes dos Talibã e da al-Qaida saber que, caso levassem a cabo operações que colidissem com os interesses do ISI, entregariam bin Laden aos EUA. Assim, se se soubesse que os paquistaneses haviam trabalhado connosco para apanhar bin Laden em Abbottabad, teríamos sérios problemas”.

Numa das suas reuniões com Panetta, de acordo com o agente aposentado e uma fonte da CIA, um alto funcionário desta agência perguntou a Pasha se ele se veria a si mesmo agindo essencialmente como agente a trabalhar para a al-Qaida e os Talibã. “Ele respondeu que não, mas disse que o ISI precisaria de ter algum controle”. Esta mensagem, como a CIA a viu, de acordo com o agente aposentado, significava que Kayani e Pasha viam bin Laden “como um recurso, e estavam mais interessados na sua [própria] sobrevivência do que estavam nos EUA”.

Um paquistanês com ligações próximas com os líderes do ISI disse-me que “havia um acordo com as vossas altas patentes. Estávamos muito relutantes, mas tinha de ser feito; não devido a enriquecimento pessoal, mas porque todos os programas de ajuda norte-americana seriam cortados. Os vossos disseram-nos que nos fariam passar fome se não cumpríssemos, e o OK foi dado quando Pasha esteve em Washington. O acordo era não apenas para manter os pagamentos, mas também foi dito a Pasha que haveria mais recompensas para nós.” Os paquistaneses disseram que a visita de Pasha também resultou num compromisso dos EUA de dar ao Paquistão mais liberdade no Afeganistão, à medida que este começou a reduzir o seu armamento aqui. “E assim as nossas altas patentes justificaram o acordo dizendo isto é pelo nosso país.”

***

Pasha e Kayani foram responsáveis por garantir que o exército paquistanês e comando de defesa aérea não seguiriam ou interfeririam com os helicópteros norte-americanos utilizados na missão. A célula norte-americana em Tarbela Ghazi foi encarregada da coordenação das comunicações entre o ISI, as altas patentes dos EUA e o seu posto de comando no Afeganistão, e os dois helicópteros Black Hawk; o objetivo era garantir que nenhum caça paquistanês na patrulha de fronteira interceptasse os invasores e entrasse em ação para os parar. O plano inicial dizia que as notícias do assalto não deveriam ser logo divulgadas. Todas as unidades no Comando de Operações Especiais operam sob estrita confidencialidade e a sua liderança acreditava, como Kayani e Pasha, que o assassinato de bin Laden não seria tornado público durante cerca de sete dias, ou talvez mais. Nessa altura, seria lançada uma notícia de primeira página fabricada: Obama anunciaria que a análise do DNA confirmara que bin Laden fora morto num assalto com drones em Hindu Kush, no lado afegão da fronteira. Os norte-americanos que haviam planejado a missão asseguraram Kayani e Pasha que a sua cooperação nunca viria a público. Foi compreendido por todas as partes que, caso o papel do Paquistão fosse conhecido, haveria protestos violentos; bin Laden era considerado um herói por muitos paquistaneses, e Pasha, Kayani e as suas famílias correriam perigo, e o exército paquistanês cairia em desgraça.

Era claro para todos neste momento, referiu o agente aposentado, que bin Laden não sobreviveria: “Pasha disse-nos num encontro em abril que não poderia arriscar deixar bin Laden no complexo quando já se sabia que ele ali estava. Demasiadas pessoas na cadeia de comando do Paquistão têm conhecimento da missão. Ele e Kayani tiveram de contar toda a história aos diretores do comando de defesa aérea e alguns comandantes locais.”

“Claro que eles sabiam que o alvo era bin Laden e que ele estava sob controle do Paquistão”, disse o agente aposentado. “De outro modo, não teriam levado a cabo a missão sem apoio aéreo. Foi clara e inequivocamente um assassinato premeditado”. Um antigo comandante dos SEAL, que dirigiu e participou em dezenas de missões similares na última década, assegurou-me que “não iam manter bin Laden vivo; não permitiriam ao terrorista viver. De acordo com a lei, sabemos que o que estamos a fazer dentro do Paquistão é um homicídio. Aceitamos isso. Cada um de nós, quando levamos a cabo estas missões, diz a si mesmo: ‘vamos encarar a realidade, isto é um assassinato’”. O relato inicial da Casa Branca dizia que bin Laden exibira uma arma; a história tinha como público-alvo aqueles que questionavam a legalidade do programa da administração dos EUA que visava assassinar bin Laden. Os EUA mantêm, apesar dos relatos amplamente difundidos das pessoas envolvidas na missão, que bin Laden teria sido capturado vivo, se se tivesse rendido imediatamente.

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No complexo de Abbottabad os guardas do ISI vigiavam bin Laden e as suas mulheres e crianças 24 horas por dia. Tinham ordens para abandonar o local logo que ouvissem os helicópteros dos EUA. A cidade estava escura; a eletricidade tinha sido cortada sob ordens do ISI horas antes de o assalto começar. Um dos Black Hawk embateu numa das paredes dentro do complexo, ferindo vários elementos a bordo. “Eles sabiam que o tempo de que dispunham para a operação era curto, porque acordariam a cidade inteira no assalto”, referiu o agente aposentado. A cabine do Black Hawk acidentado, com o seu equipamento de comunicação e navegação, tinha de ser destruída por granadas de concussão, e isto criaria uma série de explosões e um incêndio visível por quilômetros. Dois helicópteros Chinook voaram desde o Afeganistão até uma base paquistanesa de informações próxima, para apoio logístico, e um deles foi imediatamente enviado para Abbottabad. Mas, porque o helicóptero fora equipado com um depósito com combustível extra para os dois Black Hawk, teve primeiro que ser reconfigurado como transportador das tropas. O acidente com o Black Hawk e a necessidade de arranjar um substituto representaram revezes que consumiram tempo e provocaram desgaste emocional, mas os SEAL continuaram a sua missão. Não houve combate aéreo quando chegaram ao complexo; os guardas do ISI tinham partido. “Toda a gente no Paquistão que tem uma posição de relevo tem uma arma, tipos ricos como aqueles que vivem em Abbottabad têm guarda-costas armados, e no entanto não havia armas no complexo”, apontou o agente aposentado. Se tivesse havido alguma oposição a equipe teria ficado muito vulnerável. Em vez disso, referiu o nosso agente, o funcionário conectado com o ISI que voava com os SEALs levou-os à casa escurecida e, subindo umas escadas, à base onde estava bin Laden. Os SEAL haviam sido avisados pelos paquistaneses que havia portas pesadas de ferro a bloquear o acesso às escadas nos patamares do primeiro e segundo andar; os quartos de bin Laden eram no terceiro andar. O esquadrão dos SEAL usou explosivos para abrir as portas, sem magoar ninguém. Uma das mulheres de bin Laden gritava histericamente, e uma bala, talvez uma bala perdida, atingiu-a num joelho. Para além daquelas que atingiram bin Laden, não se dispararam mais (a administração Obama tem outra versão).

“Eles sabiam onde estava o alvo; terceiro andar, segunda porta à direita”, referiu o agente. “Foram lá diretos. Osama estava escondido no quarto. Dois atiradores seguiram-no e abriram fogo. Muito simples, sem obstáculos, muito profissional.” Alguns dos SEAL mostraram-se mais tarde indignados perante a insistência inicial da Casa Branca de que teriam assassinado bin Laden em legítima defesa, referiu o agente. “Seis dos melhores e mais experientes oficiais dos SEAL, face a um civil desarmado teriam de o assassinar em legítima defesa? A casa era frágil e bin Laden vivia numa cela com barras na janela e arame farpado no telhado. As regras de empenhamento diziam que, caso bin Laden oferecesse alguma resistência, estavam autorizados a atirar para matar. Mas, caso suspeitassem que ele poderia ter qualquer espécie de arma escondida, como explosivos por baixo da roupa, também poderiam matá-lo. Portanto, ele aparece numas vestes misteriosas e eles atingem-no. Não que ele estivesse à procura duma arma. As regras davam-lhes absoluta legitimidade para assassinarem o caras.” A versão posterior da Casa Branca, de que apenas uma ou duas balas lhe acertaram na cabeça era “uma besteira”, referiu o agente. “O esquadrão entrou pela porta e perfurou-o. Como dizem os SEAL, ‘limpamos-lhe o sebo.’”

Depois de matarem bin Laden, “os SEAL ficaram ali, alguns com ferimentos do acidente, à espera do helicóptero de socorro”, referiu o agente. “Vinte minutos de tensão. O Black Hawk ainda a arder. Não há luzes na cidade. Não há eletricidade. Não há polícia. Não há carros dos bombeiros. Não têm prisioneiros.” As mulheres e os filhos de bin Laden foram entregues ao ISI para interrogatório e para serem realojados. “Apesar de tudo o que se dizia”, menciona o agente, não havia “sacos de lixo cheios de computadores e dispositivos de armazenamento. Os caras encheram as mochilas com livros e papeis que encontraram no seu quarto. Os SEAL não estavam lá porque pensaram que bin Laden estava à frente dum centro de comando para as operações da al-Qaida, como diria mais tarde a Casa Branca à mídia. E não havia naquela casa especialistas a reunir informação.”

Numa missão normal de assalto, refere o agente, não se esperaria caso um helicóptero fosse abatido. “Os SEAL teriam terminado a missão, guardado as armas e material, corrido para o Black Hawk que restava e đi đi mau (gíria vietnamita para sair com pressa) de lá, com caras pendurados nas portas. Não teriam explodido o helicóptero. Nenhum equipamento vale uma dezena de vidas. A não ser que soubessem que estavam a salvo. Em vez disso, ficaram por ali, no exterior do complexo, à espera que chegasse a camioneta.” Pasha e Kayani tinham cumprido as promessas.

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A discussão no interior da Casa Branca começou assim que se tornou claro que a missão tinha tido sucesso. O corpo de bin Laden estaria supostamente a caminho do Afeganistão. Deveria Obama manter o acordo com Kayani e Pasha e pretender, cerca de uma semana mais tarde, que bin Laden fora morto num ataque com drones nas montanhas, ou deveria falar ao público imediatamente? O helicóptero abatido facilitou a vida aos conselheiros políticos de Obama para apressarem a segunda opção. A explosão e bola de fogo seriam impossíveis de esconder, e seria provável haver uma fuga de informação. Obama tinha de “adiantar-se em relação à história”, antes que alguém no Pentágono o fizesse; esperar diminuiria o impacto político.

Nem todos estavam de acordo. Robert Gates, secretário da defesa, foi o que mais falou, de quantos insistiram que os acordos com o Paquistão tinham de ser cumpridos. No seu livro de memórias, Duty, Gates não disfarçou a sua revolta:

Antes de a informação vir a público, antes do Presidente subir as escadas para dizer ao público norte-americano o que tinha acontecido, relembrei a todos que as técnicas, táticas e procedimentos que os SEAL tinham utilizado na operação bin Laden, eram utilizadas todas as noites no Afeganistão... era, portanto, essencial, que concordássemos em não revelar quaisquer pormenores do assalto. Só precisamos dizer que o matamos. Todos naquela sala concordaram em não revelar detalhes. Esse compromisso durou cinco horas. As primeiras fugas de informação vieram da Casa Branca e da CIA. Não podiam esperar para começar a dar nas vistas e a reclamar mérito. Os fatos estavam muitas vezes errados... De qualquer modo, a informação continuou a vir cá para fora. Fiquei furioso e às tantas disse a Donilon [Tom Donilon, conselheiro para a segurança nacional], "Porque raio é que não estão calados?" Mas foi em vão.

O discurso de Obama foi escrito às pressas, referiu o agente, e foi encarado pelos seus conselheiros como um documento político, não uma mensagem que precisava de ser submetida para aprovação à burocracia da segurança nacional. Esta série de declarações de interesse próprio e inexatas iriam criar o caos nas semanas seguintes. Obama afirmou que a sua administração descobrira que bin Laden estava no Paquistão através de uma “possível fuga de informação” em agosto passado; para muitos na CIA, a declaração sugeria um acontecimento específico, por exemplo, uma denúncia. Esta nota levou a uma reportagem de capa afirmando que os brilhantes analistas da CIA haviam desmascarado uma rede que lidava com o fluxo de comandos operacionais de bin Laden para a al Qaida. Obama também elogiou “uma pequena equipe de norte-americanos” pela sua preocupação em evitar mortes de civis e disse: “Depois de um tiroteio, mataram bin Laden e mantiveram consigo o cadáver.” Mais dois detalhes tinham de ser fornecidos para a reportagem: a descrição do tiroteio que nunca aconteceu e uma história sobre o que aconteceu ao cadáver. Obama prosseguiu elogiando os paquistaneses: “é importante notar que a nossa cooperação com o Paquistão na luta contra o terrorismo ajudou a levar-nos até bin Laden e ao complexo onde ele se escondia.” Esta afirmação trouxe o risco de expor Kayani e Pasha. A solução da Casa Branca foi ignorar o que Obama dissera e dar ordens a quem falasse com a imprensa para insistir que os paquistaneses não haviam desempenhado nenhum papel no assassínio de bin Laden. Obama deixou a impressão clara de que ele e os seus conselheiros não haviam tido a certeza de que bin Laden estivera em Abbottabad, mas apenas haviam tido informação “acerca da possibilidade”. Isto levou, em primeiro lugar, à história de que os SEAL tinham concluído que haviam assassinado o homem certo, pondo um homem de 1,80 m ao lado do cadáver para comparar (sabia-se bin Laden tinha cerca de um 1,90 m); e depois afirmar que um teste de DNA fora feito ao cadáver e demonstrara conclusivamente que os SEALs haviam morto bin Laden. Mas, de acordo com o nosso agente, não era claro, a partir dos primeiros relatórios dos SEAL, se o corpo de bin Laden, ou parte dele, regressara ao Afeganistão.

Gates não era o único responsável contrariado pela decisão de Obama de falar sem esclarecer antecipadamente o que iria dizer, disse o agente, “mas ele foi o único que protestou. Obama não traiu apenas Gates, mas s todos. Não se tratava de um cenário de guerra. O fato de haver um acordo com os paquistaneses e não haver análise de contingência do que deveria ser tornado público caso alguma coisa corresse mal, nada disso foi discutido. E quando de fato correu mal, tiveram que arranjar outra reportagem de capa em cima do joelho.” Houve uma razão legítima para alguma desilusão: o papel do informador dos paquistaneses tinha de ser protegido.

Foi dito ao grupo de imprensa da Casa Branca, num comunicado pouco depois do anúncio de Obama, que a morte de bin Laden fora “o culminar de anos de trabalho de informação minucioso e altamente avançado” que se concentrou em seguir um grupo de mensageiros, incluindo um que se sabia estar próximo de bin Laden. Foi dito aos repórteres que uma equipe de analistas da CIA e da Agência Nacional de Segurança especialmente reunido tinha localizado o mensageiro num complexo em Abbottabad altamente seguro. Depois de meses de observação, a comunidade de informação norte-americana tinha “confiança elevada” de que um alvo muito valioso estava a viver no complexo, e foi “confirmado que havia uma forte probabilidade de se tratar de Osama bin Laden.” A equipe de assalto norte-americana envolveu-se num tiroteio ao entrar num complexo e três adultos (pensa-se que dois deles eram os mensageiros) foram mortos, com bin Laden. Quando lhe perguntaram se bin Laden se tinha defendido, um dos homens deste grupo de imprensa disse que sim: “Ele resistiu à força de assalto. E foi morto num tiroteio.”

No dia seguinte coube a John Brennan, então assessor principal de Obama para o contra-terrorismo, a tarefa de falar sobre o mérito de Obama, enquanto tentava suavizar os erros no seu discurso. Ele forneceu um relatório mais detalhado mas também com erros sobre a incursão e o seu planejamento. Falando para registo, o que raramente faz, Brennan disse que a missão foi levada a cabo por um grupo de SEAL a quem haviam sido dadas instruções para capturar bin Laden vivo, se possível. Ele disse que os EUA não tinham informação que sugerisse que alguém no governo ou no exército do Paquistão sabia onde estava bin Laden: “Não contactamos os paquistaneses até todos os nossos homens e todos os nossos aviões abandonarem o espaço aéreo paquistanês.” Realçou a coragem da decisão de Obama em ordenar o ataque, e disse que a Casa Branca não tinha informações que confirmassem que bin Laden estava no complexo antes de o assalto começar. Obama, referiu, “fez aquilo que eu considero um dos mais arrojados atos de qualquer presidente nos últimos tempos.” Brennan também aumentou o número de assassinatos levados a cabo pelos SEAL no complexo para cinco: bin Laden, um mensageiro, o seu irmão, um dos seus filhos, e uma das mulheres que se disse terem servido de escudo a bin Laden.

Interrogado sobre se bin Laden tinha disparado sobre os SEAL, como a alguns repórteres havia sido dito, Brennan repetiu o que se tornaria um mantra da Casa Branca: “Envolveu-se num tiroteio com aqueles que entraram na área da casa onde estava. E se realmente houve baixas, muito francamente não sei... Aqui temos bin Laden, que tem reclamado estes ataques... vivendo numa área distante da frente, usando mulheres como escudo para se proteger... Acho que isto demonstra a natureza do indivíduo. ”

Gates também rejeitou a ideia, empurrada por Brennan e Leon Panetta, de que os serviços de informação norte-americanos haviam sabido onde estava bin Laden a partir de informação obtida mediante simulação de afogamento e outras formas de tortura. “Tudo isto acontece à medida que os SEALs regressam a casa da sua missão. Os caras da agência conhecem a história toda”, disse o nosso agente. “Foi um grupo de agentes da CIA aposentados novamente contratados. Haviam sido chamados por alguns dos que haviam planejado a missão na Agência para ajudar a compor a notícia. Nesse momento, os da velha guarda chegam e dizem: ‘porque não admitimos que obtivemos alguma informação sobre bin Laden a partir de interrogatórios sob tortura?’” Na altura, ainda se falava em Washington na possibilidade de se processar os agentes da CIA que haviam sido responsáveis pela tortura.

“Gates disse-lhes que isto não funcionaria”, disse o agente. “Ele nunca fez parte da equipe. Ele soube, na fase final da sua carreira, não fazer parte deste disparate. Mas o Estado, a Agência e o Pentágono tinham comprado a reportagem de capa. Nenhum dos SEAL pensou que Obama iria à televisão anunciar o assalto. O comando de forças especiais ficou apoplético. Orgulhavam-se de manter a segurança operacional. Nas Operações Especiais, referiu o agente, receou-se que, caso a verdadeira história das missões se tornasse conhecida, a burocracia da Casa Branca iria culpar os SEAL.”

A solução da Casa Branca foi manter os SEAL em silêncio. A 5 de maio, cada membro do hit team (eles haviam regressado à base no Sul da Virgínia) e alguns membros da liderança do Comando de Operações Especiais receberam um termo de não divulgação emitido pelo departamento jurídico; garantia penas civis e um processo para quem discutisse a missão, em público ou em privado. “Os SEAL não gostaram”, referiu o agente. Mas a maioria ficou em silêncio, tal como o Almirante William McRaven, que estava então à frente do Comando de Operações Especiais Conjuntas. “McRaven estava apoplético. Ele sabia que tinha sido fodido pela Casa Branca, mas é um SEAL convicto, e não um político, e sabia que do ato de denunciar o presidente não advém qualquer glória. Quando Obama tornou pública a morte de bin Laden, toda a gente teve de procurar uma nova história que tivesse sentido, e os responsáveis pelo plano foram mantidos em silêncio.”

Numa questão de dias, alguns dos exageros e distorções haviam-se tornado óbvios e o Pentágono emitiu uma série de declarações muito claras. Não, bin Laden não estava armado quando foi atingido e assassinado. E não, não usou uma das suas mulheres como escudo. A imprensa aceitou genericamente a explicação de que os erros foram o inevitável efeito colateral do desejo da Casa Branca acalmar os repórteres ansiosos por detalhes da missão.

Uma mentira que persistiu é a de que os SEAL tiveram de lutar até chegar ao alvo. Apenas dois SEAL fizeram declarações públicas: No Easy Day é um relato em primeira mão do assalto por Matt Bissonnette, publicado em setembro de 2012; e dois anos mais tarde, Rob O’Neill foi entrevistado pela Fox News. Ambos se tinham demitido da Marinha; ambos tinham disparado sobre bin Laden. Os seus relatos tinham várias contradições, mas as suas histórias corroboravam a versão da Casa Branca, especialmente no tocante à necessidade de matar ou ser morto, à medida que os SEAL combatiam para chegar a bin Laden. O’Neill disse mesmo à Fox News que ele e os seus companheiros SEAL pensaram “vamos morrer”. “Quanto mais treinávamos, mais pensávamos... esta vai ser uma missão de apenas um sentido.”

Mas o agente disse-me que, nas suas declarações iniciais, os SEAL não fizeram referência a um tiroteio, ou mesmo de qualquer oposição. O drama e o perigo de que falam Bissonnette e O’Neill vem de encontro a uma necessidade vital: “Os SEAL não suportam o fato de que mataram bin Laden sem terem tido oposição, tinha que haver um relato da sua coragem face aos perigos. Então os tipos iam sentar-se à mesa do bar e dizer que foi fácil? Nem pensar.”

Havia outra razão para afirmar que houvera um tiroteio dentro do complexo, disse o nosso agente: evitar a pergunta inevitável que se colocaria perante um assalto sem reposta. Onde estavam os guardas de bin Laden? Certamente, o mais procurado terrorista do mundo teria proteção 24 horas por dia. “E um dos que morreram tinha de ser o mensageiro, porque não existia e tínhamos de o inventar. Os paquistaneses não tiveram escolha senão alinhar.” (Dois dias depois do assalto, a Reuters publicou fotografias dos três mortos que disse ter adquirido de um agente do ISI. Dois dos homens foram mais tarde identificados por um porta-voz do ISI como sendo o alegado mensageiro e o seu irmão.)

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Cinco dias depois do assalto, foi entregue ao grupo de imprensa do Pentágono uma série de vídeos que agentes dos EUA disseram pertencer a um grande conjunto que os SEAL teriam retirado do complexo, junto com cerca de 15 computadores. Trechos de um dos vídeos mostravam um bin Laden solitário, de aparência pálida, embrulhado num cobertor, a ver o que parecia ser um vídeo dele mesmo na televisão. Um agente não identificado disse aos repórteres que o assalto revelara “um tesouro... a maior coleção de materiais ligados ao terrorismo”, que traria valiosas informações sobre os planos da al-Qaida. O agente disse que o material mostrava que bin Laden “era ainda um líder ativo na al-Qaida, fornecendo instruções estratégicas, operacionais e táticas ao grupo... estava longe de ser um testa-de-ferro e continua a fornecer detalhes sobre a orientação do grupo mesmo do ponto de vista tático e a encorajar a conspiração”, a partir do que foi descrito como um centro de comando e controle em Abbottabad. “Era um membro ativo, o que tornava a operação ainda mais essencial para a segurança do nosso país”, referiu o agente. A informação era tão vital, acrescentou, que a administração estava a preparar um grupo de trabalho entre agências para o levar a cabo: “Ele não era apenas alguém que traçava a estratégia da al-Qaida, mas dava ideias operacionais no terreno e também dirigia especificamente outros membros da al-Qaida.”

Estas afirmações eram fabricadas: não havia muita atividade para bin Laden poder comandar e controlar. O agente de informação aposentado disse que os relatórios internos da CIA mostram que, desde que bin Laden se mudou para Abbottabad em 2006, apenas alguns ataques terroristas podiam ser ligados ao que restava da al-Qaida. “Foi-nos dito ao princípio”, disse o agente, “que os SEALs trouxeram sacos de coisas e que a comunidade gera relatórios de informação diários disto. E depois foi-nos dito que a comunidade está a juntar tudo e precisa de o traduzir. Mas ainda nada resultou daí. Acontece que cada coisa que criaram não corresponde à verdade. É um grande embuste; como o homem de Piltdown.” O agente aposentado afirmou que a maioria dos materiais de Abbottabad foram entregues aos EUA pelos paquistaneses, que mais tarde arrasaram o edifício. O ISI assumiu responsabilidade pelas mulheres e filhos de bin Laden, nenhum deles foi disponibilizado aos EUA para interrogatório.

“Porquê criar a história do tesouro?”, perguntou o nosso oficial? “A Casa Branca tinha de dar a impressão de que bin Laden ainda era importante nas operações. Porque, se assim não fosse, porquê assassiná-lo? Uma reportagem de capa foi criada; dizendo que havia uma corrente de mensageiros que iam e vinham com pen drives e instruções. Tudo para mostrar que bin Laden permanecia importante.”

Em julho de 2011, o Washington Post publicou o que pretendia ser uma súmula dalguns destes materiais. As contradições da história eram evidentes. Referia que os documentos haviam resultado em mais de quatrocentos relatórios de informação em seis semanas; deixou um aviso sobre enredos da al-Qaida não especificados; e mencionou a detenção de suspeitos “que são designados ou descritos em e-mails que bin-Laden recebeu.” O jornal não identificou os suspeitos nem esclareceu a contradição das anteriores declarações da administração, de acordo com as quais o complexo de Abbottabad não tinha ligação à Internet. Apesar das suas declarações dizendo que os documentos haviam gerado centenas de relatórios, o jornal também citou agentes dizendo que o seu principal valor não era a informação que continham, mas o fato de permitirem aos analistas “reconstruir um retrato mais global da al-Qaida.”

Em maio de 2012, o Combating Terrorism Centre, em West Point, um grupo de investigação privado, divulgou traduções que fez ao abrigo de um contrato com o Governo Federal, de 175 páginas de documentos de bin Laden. Os repórteres não encontraram nada do drama que havia sido referido logo a seguir ao assalto. Patrick Cockburn escreveu sobre o contraste entre as afirmações iniciais da administração de que bin Laden era a “aranha no centro de uma teia de conspiração” e o que as traduções mostravam na realidade: que bin Laden fora uma “ilusão” e tinha na verdade “contatos limitados com o mundo exterior ao seu complexo”.

O agente aposentado questionou a autenticidade dos materiais de West Point: “Não há ligação entre estes dois documentos e o centro de contraterrorismo na agência. Não havia análise da informação da comunidade. Quando foi a última vez que a CIA 1) anunciou que tivera uma descoberta significante no que toca a informação relevante; 2) revelou a fonte; 3) descreveu o método para processar os materiais; 4) revelou o cronograma para produção; 5) descreveu quem fazia a análise e onde esta era feita, e; 6) publicou os resultados antes da informação ser utilizada? Nenhum profissional da agência poderia corroborar este conto de fadas.”

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Em junho de 2011, foi relatado no New York Times, no Washington Post e por todo o lado na imprensa paquistanesa que Amir Aziz tinha sido mantido para interrogatório no Paquistão; ele era, segundo se disse, um informador da CIA que espionara as idas e vindas no complexo de bin Laden. Aziz foi libertado, mas o nosso agente afirma que a espionagem dos EUA não conseguiu saber quem revelou a informação altamente secreta sobre o seu envolvimento na missão. Agentes em Washington decidiram que “não poderiam arriscar tornar conhecido o papel de Aziz na obtenção do DNA de bin Laden.” Era preciso um cordeiro para sacrificar, e o escolhido foi Shakil Afridi, um médico paquistanês de 48 anos e ocasionalmente colaborador da CIA, que fora detido pelos paquistaneses em maio passado e acusado de colaborar com a Agência. “Dissemos aos paquistaneses para irem atrás de Afridi”, disse o agente aposentado. “Tivemos de tratar todo o problema de como obtivemos o DNA.” Foi rapidamente reportado que a CIA organizara um programa de vacinação em Abbottabad com a ajuda de Afridi numa tentativa fracassada de obter o DNA de bin Laden. A operação médica legítima foi feita independentemente das autoridades de saúde locais, foi financiada e oferecia vacinas gratuitas contra a Hepatite B. Posters a anunciar o programa foram afixados pela área. Afridi foi mais tarde acusado de traição e condenado a 33 anos de prisão devido às suas ligações a um extremista.

Notícias do programa financiado pela CIA originaram uma vasta animosidade no Paquistão e conduziram ao cancelamento de outros programas internacionais de vacinação que eram agora vistos como cobertura de espionagem norte-americana.

O nosso agente afirmou que Afridi fora recrutado muito antes da missão de bin Laden como parte de um esforço de espionagem separado para obter informação sobre terroristas suspeitos em Abbottabad e cercanias. “O plano era usar as vacinas como meio para obter o sangue de suspeitos de terrorismo nas aldeias.” Afridi não tentou obter DNA dos residentes do complexo de bin Laden. A informação de que fora ele a fazê-lo foi uma “reportagem de capa da CIA que criava ‘fatos’” numa tentativa atabalhoada de proteger Aziz e a sua verdadeira missão. “Agora temos as consequências”, referiu o agente. “Um grande projeto humanitário para fazer alguma coisa significativa pelos camponeses foi comprometida e passou a ser um cínico embuste.” A condenação de Afridi foi anulada, mas ele continua na prisão, acusado de assassinato.

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No discurso em anunciava o assalto, Obama disse que, depois de matar bin Laden, os SEAL “mantiveram o cadáver em seu poder”. A declaração causou um problema. No plano inicial deveria ser anunciado, cerca de uma semana depois do acontecimento, que bin Laden fora morto num ataque com drones algures nas montanhas na fronteira Paquistão / Afeganistão e que os seus restos mortais haviam sido identificados com recurso a testes de DNA. Mas com o anúncio de Obama do seu assassinato pelos SEALs, todos agora esperava que fosse revelado um cadáver. Em vez disso, foi dito aos repórteres que o corpo de bin Laden fora levado pelos SEAL para uma base aérea militar em Jalalabad, no Afeganistão, e depois para o USS Carl Vinson, um super porta-aviões em patrulha de rotina no Mar da Arábia. Bin Laden fora enterrado no mar, horas depois da sua morte. O grupo de imprensa mostrara-se cético apenas durante a comunicação de John Brennan em 2 de maio, que tinha que ver com o funeral. As perguntas foram curtas, diretas, e raramente tiveram resposta. “Quando é que foi decidido que ele seria enterrado no mar se fosse morto?”; “Isto fazia parte do plano desde o início?”; “Será que podem dizer-nos porque é que isso foi uma boa ideia?”; “John, consultou um perito em assuntos islâmicos para essa questão?”; “Existe uma gravação de vídeo deste funeral?” Quando esta última questão foi colocada, Jay Carney, Secretário de Imprensa de Obama, veio em socorro de Brennan. “Temos de dar aos outros uma hipótese.”

“Achamos que a melhor maneira de ter a certeza de que o seu cadáver teria um funeral islâmico apropriado”, disse Brennan, “era fazer o que nos permitisse realizar esse funeral no mar.” Ele disse que “foram consultados especialistas e peritos”, e que o exército dos EUA era perfeitamente capaz de levar a cabo o funeral “de acordo com a lei islâmica”. Brennan não mencionou que a lei islâmica diz que o serviço fúnebre deve ser conduzido na presença de um imã, e não houve nota de que estivesse algum a bordo do Carl Vinson.

Numa reconstituição da operação bin Laden para a Vanity Fair, Mark Bowden, que falou com vários altos funcionários da administração, escreveu que o cadáver de bin Laden foi limpo e fotografado em Jalalabad. Mais procedimentos necessários para um funeral muçulmano foram levados a cabo no porta-aviões, escreveu ele, “com o cadáver de bin Laden sendo lavado novamente, e enrolado num lençol branco. Um fotógrafo da marinha registrou o funeral em plena luz do sol, segunda-feira, dia 2 de maio”. Bowden descreveu as fotos:

Uma foto mostra o corpo enrolado num lençol espesso. Outra mostra-o de lado numa rampa, com os pés para fora. Noutra, vemos o corpo a entrar na água. Noutra, vemos-lo logo abaixo da superfície, com bolhas à volta. Os restos mortais de Osama bin Laden despareceram de vez.

Bowden foi cauteloso ao não afirmar que tinha visto realmente as fotografias que descreveu, e recentemente disse-me que não as vira: “Fico sempre desiludido quando não consigo ver as coisas com os meus próprios olhos, mas falei com alguém em quem confio, que disse que as vira e as descreveu em pormenor.” A declaração de Bowden acrescenta-se às questões em aberto sobre o alegado funeral no mar, que provocou uma avalanche de pedidos de informação ao abrigo da Lei de Liberdade de Informação, a muitos dos quais nada foi respondido. Um deles pedia acesso às fotografias. O Pentágono respondeu que uma pesquisa por todos os registos disponíveis não encontrara provas de que quaisquer fotografias haviam sido tiradas no funeral. Pedidos sobre outros assuntos relacionados com o assalto foram igualmente improdutivos. A razão para a ausência de resposta tornou-se clara depois do Pentágono ter feito um inquérito face a alegações de que a administração Obama tinha dado acesso a materiais secretos aos realizadores do filme Zero Dark Thirty. O relatório do Pentágono, que foi posto online em junho de 2013, observava que o Almirante McRaven tinha dado ordens para que os arquivos sobre o assalto fossem apagados de todos os computadores do Exército e movidos para a CIA, onde estariam protegidos de pedidos ao abrigo da Lei de Liberdade de Informação, devido à “isenção operacional” de que a Agência goza.

A ação de McRaven significava que os de fora não poderiam ter acesso à informação proveniente do Carl Vinson. Estes registos são sacrossantos na Marinha, e alguns em separado são mantidos para todas as operações por ar, para o convés, o departamento de engenharia, o gabinete médico, e o comando de informação e controle. Eles mostram a sequência de acontecimentos dia a dia a bordo do navio; se tivesse havido um funeral no mar a bordo do Carl Vinson, teria sido gravado.

Não havia rumores de um funeral entre os marinheiros do Carl Vinson. O navio concluiu o seu destacamento de seis meses em junho de 2011. Quando o navio atracou na sua base em Coronado, na Califórnia, o Contra-almirante Samuel Perez, comandante do grupo de ataque do Carl Vinson, disse aos repórteres que a tripulação recebera ordens para não falar do funeral. O Capitão Bruce Lindsey, comandante do Carl Vinson, disse aos repórteres que não poderia discutir o assunto. Cameron Short, membro da tripulação do Carl Vinson, disse ao Commercial-News de Danville, no Illinois, que nada fora dito à tripulação sobre o funeral. “Tudo o que ele sabe é o que viu nas notícias”, relatou o jornal.

O Pentágono divulgou uma série de e-mails à Associated Press. Num deles, o Contra-almirante Charles Gaouette relatou que o serviço seguiu os “procedimentos habituais dum funeral islâmico” e disse que nenhum dos homens a bordo tinha autorização para observar os procedimentos. Mas não havia indicação de quem lavou e embrulhou o cadáver, ou de que pessoa, de fala árabe, conduziu o serviço.

Semanas depois do assalto, dois consultores de longa data do Comando de Operações Especiais, que têm acesso à informação corrente, disseram-me que não houve nenhum funeral a bordo do Carl Vinson. Um deles disse-me que os restos mortais de bin Laden foram fotografados e identificados depois de terem sido levados de volta para o Afeganistão. O consultor acrescentou: “Nesse momento, o cadáver ficou sob controle da CIA. A reportagem dizia que fora levado para o Carl Vinson.” O segundo consultor concordou que não tivera lugar “nenhum funeral no mar“. Acrescentou que “o assassinato de bin Laden foi teatro político concebido para polir o prestígio de Obama enquanto chefe militar... Os SEAL deveriam ter esperado este aparato político. É irresistível para um político. Bin Laden tornou-se crédito.” No começo deste ano, falando outra vez com o segundo consultor, voltei a mencionar o funeral no mar. Ele riu-se e perguntou: “Quer dizer, ele não chegou à água?”

O nosso agente disse que houve outra complicação: alguns membros dos SEALs gabaram-se aos colegas e a outros de que tinham feito o corpo de bin Laden em bocados com os tiros. Os restos mortais, incluindo a cabeça, que tinha apenas alguns buracos de bala, foram depostos num saco e, durante o voo de helicóptero de regresso a Jalalabad, algumas partes foram atiradas para fora, sobre as montanhas do Hindu Kush, ou pelo menos foi isso que os SEAL disseram. Na altura, referiu o agente, os SEAL não pensaram que a sua missão seria tornada pública por Obama num espaço de poucas horas. “Se o Presidente tivesse avançado com a reportagem, não teria sido necessário um funeral poucas horas depois do assassinato. Depois de a reportagem ter sido queimada, e a morte ter sido tornada pública, a Casa Branca tinha em mãos um problema sério, o paradeiro do corpo. O mundo sabia que as forças dos EUA tinham assassinado bin Laden em Abbottabad. Foi o pânico. Que fazer? Era preciso um “corpo funcional”, porque temos de poder dizer que identificamos bin Laden por meio de uma análise ao DNA. Teriam sido oficiais da Marinha a ter a ideia do “funeral no mar”. Perfeito. Não havia corpo. Um funeral com honras de acordo com a Sharia. O funeral torna-se público em grande pormenor, mas documentos produzidos ao abrigo da Lei da Liberdade de Informação que confirmavam o funeral foram negados por razões de “segurança nacional”. É a desmontagem clássica de uma história mal contada, que resolve um problema imediato, mas, à primeira inspeção, verifica-se que não há provas. Nunca houve um plano, desde o início, para levar o corpo para o mar, e não teve lugar nenhum funeral de bin Laden no mar.” O nosso agente disse que, a acreditar nos primeiros relatos dos SEALs, não sobraria muito de bin Laden para enterrar, em qualquer dos casos.

***

Era inevitável que as mentiras, contradições e traições da administração Obama criassem um efeito de ricochete. “Tivemos um lapso de quatro anos na cooperação”, referiu o agente. “Demorou aos paquistaneses esse tempo para confiarem em nós outra vez na cooperação entre os exércitos contra o terrorismo; enquanto isso, o terrorismo escalava por todo o mundo... eles sentiram que Obama os atraiçoou. Agora estão a regressar porque a ameaça do ISIS, que agora está a aparecer por aqui, é muito maior e bin Laden está suficientemente longe para permitir a alguém como o General Durrani vir a público e falar sobre o assunto.” Os generais Pasha e Kayani reformaram-se e há relatos segundo os quais ambos estão a ser investigados por corrupção pelo tempo que estiveram em funções.

O relatório do Comitê de Informação do Senado sobre tortura da CIA que saiu em dezembro passado, depois de adiado por tanto tempo, atesta instâncias repetidas de mentiras oficiais, e sugere que o conhecimento da CIA sobre os mensageiros de bin Laden não passava de um esboço, na melhor das hipóteses, e era anterior ao uso de tortura por simulação de afogamento e outras formas de tortura. O relatório originou manchetes internacionais sobre brutalidade e simulação de afogamento, com pormenores sórdidos, como tubos de alimentação por via retal, banhos gelados e ameaças de violar ou assassinar membros da família dos detidos que se acreditava estarem na posse de informações. Apesar da má publicidade, o relatório foi uma vitória para a CIA. A sua principal descoberta (que o recurso à tortura não levou ao apuramento da verdade) fora já objeto de debate público ao longo de mais de uma década. Outra descoberta essencial (de que a tortura executada tinha sido mais violenta do que fora comunicado ao Congresso) era risível, considerando a quantidade de relatos e exposições públicas por antigos interrogadores e agentes da CIA aposentados. O relatório descreveu torturas que eram obviamente contrárias à Lei Internacional como violações das normas ou “atividades impróprias”, ou, nalguns casos, “erros de gestão”. Se as ações descritas constituem crimes de guerra ou não, não foi discutido, e o relatório não sugeriu que qualquer dos agentes da CIA ou os seus superiores deveriam ser investigados por atividade criminosa. A Agência não enfrentou consequências significativas como resultado do relatório.

O agente disse-me que as chefias da CIA se tornaram peritas em desviar de si ameaças sérias do Congresso: “Eles arranjam uma coisa horrível, mas não assim tão má quanto isso. ‘Ó meu Deus, estamos a enfiar comida pelo cu de um prisioneiro adentro!’ Entretanto, não falam ao comitê de assassinatos, e outros crimes de guerra, e prisões secretas como as que ainda temos em Diego Garcia. O objetivo era também atrasar o processo o mais possível, o que foi conseguido.”

O tema principal do sumário executivo de 499 páginas é que a CIA mentiu sistematicamente sobre a eficiência do seu programa de tortura para obter informação que impedisse futuros ataques terroristas nos EUA. As mentiras incluíram alguns detalhes essenciais sobre o desmascarar de um operacional da al-Qaida chamado Abu Ahmed al-Kuwaiti, que se disse ser o mensageiro chave da al-Qaida, e a consequente vigilância sobre este último até Abbottabad, no princípio de 2011. A alegada informação da agência, a paciência e perícia para descobrir onde estava al-Kuwaiti tornou-se lendária, depois da dramatização no filme Zero Dark Thirty.

O relatório do Senado levantou repetidamente questões sobre a qualidade e fiabilidade da informação da CIA sobre al-Kuwaiti. Em 2005, um relatório interno da CIA sobre a perseguição a bin Laden observou que os “detidos fornecem poucas ligações funcionais, e nós temos de considerar a possibilidade de que eles estão a criar personagens fictícios para nos distraírem ou se absolverem de conhecimento direto sobre bin Ladin [sic].” Um telegrama da CIA um ano mais tarde dizia que “não tivemos sucesso em extrair informação útil sobre o paradeiro de bin Laden de nenhum dos detidos.” O relatório também destacou várias instâncias em que agentes da CIA, incluindo Panetta, prestaram declarações falsas perante o Congresso e o público sobre o valor das “técnicas de interrogatório forçadas” na procura pelos mensageiros de bin Laden.

Hoje, Obama não encara a reeleição como na primavera de 2011. A sua posição de princípio a favor do acordo nuclear proposto com o Irã diz muita coisa, bem como a decisão de atuar sem o apoio dos republicanos conservadores do Congresso. A mentira de alto escalão mantém-se no entanto o modus operandi da política dos EUA, com prisões secretas, ataques com drones, incursões noturnas de Forças Especiais, sem passar por toda a cadeia de comando, e passando por cima de quem possa dizer que não.

Kobayashi e a luta de classes

As histórias do comunista japonês Takiji Kobayashi representam o melhor da literatura proletária.

Doug Enaa Greene


Trabalhadores ferroviários em greve, liderados pelo Partido Comunista do Japão. Tim Shorrock

Em 2008, um dos romances mais vendidos no Japão foi um romance de oitenta anos: Kanikosen (Crab Cannery Ship) do autor comunista Takiji Kobayashi. O livro é a história de uma tripulação de pescadores que se rebelou contra as péssimas condições de trabalho em um navio de pesca japonês, entrando em greve e tentando assumir o controle do navio.

Em meio à crise financeira global, o romance, que antes vendia moderados cinco mil exemplares por ano, atingiu vendas de quinhentos mil. Quatro novas versões de mangá também foram produzidas e, em 2009, o diretor japonês Hiroyuki Tanaka (Sabu) fez um filme baseado no romance. O trabalho de Kobayashi colocou o dedo na ferida do Japão contemporâneo, atormentado pela crescente desigualdade, insegurança e os efeitos de uma crise econômica de duas décadas. Kanikosen revelou não apenas a dura realidade do capitalismo, mas também a possibilidade de resistência unida dos trabalhadores.

Embora o Crab Cannery Ship de Kobayashi tenha sido traduzido para o inglês desde 1933 (embora seja um texto incompleto), ele está esgotado há muito tempo. Mas, há dois anos, uma nova coleção, traduzida por Zeljko Cipris para uma prosa nítida e vívida, foi publicada pela University of Hawaii Press. O volume contém não apenas o Crab Cannery Ship completo, mas também Yasuko e Life of a Party Member (ambos em inglês pela primeira vez).

Kobayashi e a esquerda japonesa

Takiji Kobayashi nasceu em 1903 na vila de Shimokawazoi, no norte do Japão. Seu pai era um pequeno proprietário de terras, mas um tio havia perdido a fortuna da família em um empreendimento fracassado. Em 1907, Kobayashi e sua família mudaram-se para Otaru, na ilha norte de Hokkaido. Kobayashi trabalhou na padaria de seu tio durante o ensino fundamental, passando para a Escola Comercial municipal e mais tarde para a Escola Superior de Comércio Otaru, onde se formou em 1924.

Na universidade, Kobayashi percebeu a posição de classe contraditória de sua família como ex-proprietários de terras e fazendeiros, e passou a se identificar com os operários e fazendeiros oprimidos. As lutas de classes estimuladas pela Restauração Meiji e os efeitos negativos da modernização capitalista influenciariam as mais importantes histórias de Kobayashi.

A Restauração Meiji de 1868 - uma revolução vinda de cima que acabou com o isolamento feudal do xogunato Tokugawa e transformou o Japão em uma potência mundial - teve profundas implicações para a sociedade japonesa. O governo aboliu o antigo sistema feudal de castas, subsidiou o desenvolvimento industrial e tornou os proprietários de terras dependentes do Estado. A produção industrial aumentou drasticamente nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, à medida que os trabalhadores saíam da agricultura e da silvicultura para pequenas fábricas rurais. O aumento do trabalho na fábrica trouxe mudanças sociais - as mulheres foram empregadas em grandes quantidades pela primeira vez no trabalho assalariado - mas também a miséria.

As mulheres japonesas empregadas nas indústrias de algodão, seda e tecelagem sofreram severa discriminação e opressão de seus empregadores homens, e o trabalho na fábrica exigia longas horas de trabalho e baixos salários para homens e mulheres. Embora as cidades tenham assistido ao crescimento econômico e à disseminação do trabalho assalariado, o campo continuou marcado por altos níveis de desemprego e profunda pobreza.

Os trabalhadores japoneses tentaram obstinadamente melhorar suas condições de trabalho. As primeiras lutas dos trabalhadores aconteceram nas minas nas décadas de 1870 e 1880, e riquixás e impressores formaram sindicatos em 1883-84. Nos dois anos que se seguiram ao acordo de paz entre o Japão em 1905 e a Rússia, greves eclodiram em setores-chave da economia, como transporte marítimo e mineração.

A sindicalização foi obstaculizada por uma severa repressão governamental e leis trabalhistas desdentadas. Sindicatos como o dos riquixás eram destruídos rotineiramente e, em 1910, vinte e quatro socialistas e anarquistas japoneses foram acusados ​​de conspirar para matar o imperador. Onze foram executados. O estado japonês também era extremamente antidemocrático. A Dieta, o órgão parlamentar do país, era eleita por apenas 2% da população e atendia aos interesses das classes ricas. O sufrágio universal masculino não foi instituído até 1925, e as mulheres não passaram a votar até 1945.

Apesar desses obstáculos, a esquerda ganhou destaque durante a primeira metade do século XX. Os primeiros movimentos de esquerda japoneses eram diversos - humanistas cristãos e sindicalistas empresariais gomperitas juntaram-se a anarquistas e marxistas. Depois de 1917, o marxismo tornou-se a força predominante na esquerda e exerceu significativo apelo entre os radicais japoneses.

A primeira tradução japonesa do Manifesto Comunista veio em 1904, seguida por partes de Das Kapital em 1907, que vendeu trezentas mil cópias em seu primeiro lançamento em Tóquio. Após a Primeira Guerra Mundial, as obras marxistas foram traduzidas em um ritmo febril no Japão: entre 1927 e 1933, as obras completas de Marx e Engels (27 volumes) e uma coleção de dez volumes das obras de Lenin foram publicadas no país.

A fome por literatura marxista no Japão coincidiu com um intenso período de organização e repressão estatal. Durante os motins do arroz de 1918 - desencadeados pela queda dos salários e aumento dos custos dos alimentos - cerca de dez milhões de pessoas participaram de 636 revoltas separadas. Grandes greves (que foram esmagadas pelo exército) ocorreram em 1920-21, e estudantes inspirados pela Revolução Bolchevique começaram a construir laços organizacionais com operários e camponeses.

Também houve grande agitação no campo - 7.115 greves de arrendatários ocorreram entre 1920 e 1924, e esse número saltou para mais de 19.000 entre 1930 e 1934. O devastador terremoto de Tóquio em 1923 exacerbou o clima de agitação e incerteza, e desencadeou pogroms contra os imigrantes coreanos e chineses.

Em uma tentativa de reprimir a agitação e a organização trabalhista, o Governo Imperial introduziu a Lei de Preservação da Segurança Pública, que afirmava: "Qualquer pessoa que tenha formado uma associação [com o objetivo de] alterar o kokutai, ou o sistema de propriedade privada, e qualquer um que tenha aderido a tal associação com pleno conhecimento de seu objeto, será passível de pena de prisão, com ou sem trabalhos forçados, por um período não superior a dez anos.”

O governo estava especialmente preocupado com a crescente influência do Partido Comunista Japonês (JCP), originalmente formado em 1922, imediatamente banido e reformado em 1924. O JCP estava envolvido em lutas populares, como organização sindical, greves de arrendatários e Farmer-Labor Parties. Opôs-se à expansão imperialista e promoveu uma vida política e cultural rica e vibrante entre seus membros.

Kobayashi estava no centro dessa atividade, equilibrando a escrita, a organização e o seu trabalho no Banco Colonial de Hokkaido. No final da década de 1920, ele participou de greves, desenhou cartazes, participou de aulas de estudos com fazendeiros e trabalhadores e se envolveu em campanhas eleitorais para o Farmer-Labour Party (que inspirou sua história Journey to East Kutchan).

Em março de 1928, a polícia prendeu aproximadamente 1.600 reais e supostos comunistas. Após as prisões, Kobayashi escreveu um conto baseado no evento intitulado 15 de março de 1928, que detalhava vividamente a prisão e tortura de comunistas e ativistas trabalhistas nas mãos da polícia. A história, publicada no final de 1928, vendeu oito mil exemplares antes de ser proibida - trazendo aclamação da crítica a Kobayashi, mas também a atenção da polícia.

Kobayashi foi eleito em 1929 para o Comitê Central da Liga dos Escritores do Proletariado Japonês, onde escreveu o Crab Cannery Ship. A história o levou a ser demitido do banco em que trabalhava porque ele nomeou vários dos melhores clientes do banco, vinculando-os à exploração dos fazendeiros. Ele foi forçado à clandestinidade e preso pela polícia em maio e agosto de 1930; durante o último encarceramento foi torturado pela Polícia Imperial.

Além de dar palestras, arrecadar fundos e contribuir para a Liga dos Escritores e outros periódicos da esquerda, Kobayashi escreveu prolificamente durante este período, apesar de ser constantemente perseguido pelas autoridades. Em 1931, ele escreveu o conto Yasuko, que conta a história de duas irmãs que são atraídas para o ativismo político e o movimento trabalhista, e em 1932 ele completou uma história semiautobiográfica sobre seu trabalho no JCP intitulada Vida de um Membro do Partido.

No ano seguinte, em fevereiro de 1933, Kobayashi e um camarada foram presos, torturados e brutalmente assassinados pela Polícia Imperial.

Kanikosen

O Crab Cannery Ship é baseado em um motim de 1926 em um navio de pesca japonês. O romance não tem protagonista central, em vez disso segue um grupo de trabalhadores desorganizados e sem nome.

Na história, o navio de pesca está pescando perto das águas territoriais soviéticas, onde o estado de direito normal foi suspenso. Kobayashi descreve em detalhes excruciantes as condições de trabalho no navio, que é administrado por uma empresa gigante interessada apenas em lucros e expansão imperial ao invés da vida da tripulação, composta por estudantes e fazendeiros anônimos:

E desse jeito vinham escavando "lucros" e mais "lucros". E ainda por cima, sabiamente associavam àquilo ao desenvolvimento das riquezas "nacionais", dando, de maneira bem-sucedida, uma lógica ao que faziam. Eram muito astuciosos. E assim, pelo bem da "nação" os trabalhadores "morriam de fome" e eram "espancados à morte".

O navio é um reflexo da guerra de classes que envolve a sociedade - a busca pelo lucro e a “glória do Imperador” são tão importantes que o capataz da empresa (a verdadeira autoridade do navio) se recusa a suspender as operações de resgate de outro navio em perigo, permitindo que o navio afunde. Ele consola o capitão, dizendo que pelo menos o outro navio estava segurado, e quando alguns membros da tripulação se perdem no mar, ele se mantem igualmente impertubável.

No entanto, os membros da tripulação perdidos não morrem - eles são resgatados por um navio soviético. Os trabalhadores resgatados, inicialmente desconfiados da tripulação soviética e do comunismo, fazem amizade com um comunista chinês a bordo que os ajuda a se comunicarem com os soviéticos. Eles continuam explicando a natureza da exploração do capitalismo e a necessidade de se organizar contra ela:

"... não tem pessoa que não trabalha. Não tem pessoa desonesta. Não tem pessoa que enforca pessoa. Entende?... Eles vagamente se questionaram se aquilo era o "perigo vermelho". Porém, se aquilo era considerado como "vermelho", eles estavam certos, então, que se trataria nada mais e nada memos que o "natural". Aquela ideia, porém, cativava-os mais e mais.

Os tripulantes acabam voltando ao navio de pesca japonês, onde convencem seus colegas de trabalho a entrar em greve: "O mais importante de tudo, irmãos, é unir forças e manter nosso poder unido. Aconteça o que acontecer, nunca devemos trair um camarada. Se nos agarrarmos a isso, eles serão esmagados mais facilmente do que minhocas."

Embora a paralisação inicial seja bem-sucedida, a Marinha Imperial chega e, para desespero dos pescadores, os líderes da greve são presos e levados embora. O romance termina com a tripulação prometendo lutar em face de probabilidades impossíveis, declarando: "Francamente, não faz sentido esperar por alguma vitória futura. É uma questão de vida ou morte agora... vamos fazer de novo, mais uma vez!"

The Crab Cannery Ship, apesar de sua natureza inacabada (termina assim que o segundo ataque começa) e do assassinato brutal de seu autor, rapidamente se tornou a principal obra literária da esquerda revolucionária japonesa. Embora o romance tenha sido banido pelo Império até depois da Segunda Guerra Mundial, o estilo experimental de Kobayashi foi amplamente adotado e Kanikosen foi traduzido para o russo, inglês e alemão.

As histórias de Kobayashi não são obras de reprodução do realismo socialista ou "propaganda partidária". Eles contêm as melhores qualidades da literatura proletária - narrativas cativantes, imagens nítidas e personagens memoráveis, tanto individuais quanto coletivos. Suas obras iluminam a vida de trabalhadores comuns, camponeses, mulheres e quadros do partido de um período fascinante da história japonesa caracterizado por intensa luta de classes.

Sobre o autor

Doug Enaa Greene é membro do Projeto Kasama e historiador independente que mora na área metropolitana de Boston. Ele é o autor do livro Specters of Communism, sobre o comunista francês Louis-Auguste Blanqui.

13 de maio de 2015

Raciocinação ideológica

Leda Maria Paulani

Folha de S.Paulo

Frank Hahn, nome dentre os maiores no desenvolvimento da teoria que busca demonstrar o virtuosismo dos mercados em sua vocação para o equilíbrio, asseverou nos anos 1990 que a ciência econômica que se compraz com teoremas e axiomas está com os dias contados.

Ademais, afirmou que quem insiste em ladainhas age como adepto de religião, tanto mais ortodoxo ficando quanto mais visíveis são os sinais do declínio de sua igreja.

A surpreendente afirmação me veio à mente ao ler, em suas colunas nesta Folha, as críticas de Samuel Pessôa e Alexandre Schwartsman à entrevista que dei ao "Valor Econômico" em 23 de abril. Dentre afirmar que desconheço os dados, sugerir irracionalidade em minha argumentação e perguntar em que mundo vivo, todos os estratagemas foram utilizados para desqualificá-la.

A reação não é despropositada: atingindo o coração dos dogmas que sustentam a macroeconomia nossa de cada dia, essa que a mídia repercute à exaustão e se tornou a bíblia dos mercados, questionei o furor ortodoxo com o resultado primário negativo ocorrido em 2014.

Dado que o superavit primário integra a santíssima trindade da crença, a par do regime de metas de inflação e do câmbio flutuante, natural a indignação.

Como não rezo pela cartilha ortodoxa, penso que o Estado deve ter poder e liberdade para agir de maneira contracíclica, que macroeconomicamente a poupança não é precondição do investimento, que a inflação não é sempre resultado de excesso de demanda, que a doença holandesa é praga que afeta os países periféricos.

Por viver em país que ainda não se construiu como nação, penso que não há razão que justifique o nível atual da taxa de juros; que falar em excesso de demanda com a economia patinhando há quatro anos beira o nonsense; que não há razão que justifique sermos sempre culpados de "não fazer a lição de casa" em razão de uma relação dívida/PIB de 34% (fora reservas), quando a do Reino Unido é 100% e a do Japão é 230%!

Por viver em país que padece de fratura social vexatória, penso que não se pode abrir mão de um Estado interventor e com mão forte para taxar capitais e tributar fortunas, não apenas para fazer políticas públicas; para introduzir progressividade em nosso sistema tributário, não apenas para fazer políticas compensatórias; para investir em infraestrutura, não para fazer política de campeões globais; para alavancar o mercado interno, não para desonerar folha de pagamento.

Tem lá sua graça ver ideólogos falando em realidade, gregoriando cantochões ortodoxos à moda de verdades científicas, verdades tão sagradas que questioná-las passa por coisa de doidivanas. Mas eles nunca se lembram de mencionar os pressupostos de que partem.

Assim, dizer que o país não pode ter deficit de 6,7% do PIB em razão de nossa reduzida taxa de poupança pressupõe que a poupança precede o investimento –isso é verdade, mas no orçamento doméstico! E crer que se governa um país como se governa uma casa, francamente.

Se magicamente os brasileiros dobrassem sua poupança, a situação poderia ser antes pior do que melhor, porque se deprimiriam as expectativas. Foi para ficar com os pés fincados na realidade que me imunizei contra esse tipo de raciocinação, como diria Hegel.

A diferença entre quem repete os manuais de economia americanos e um francês que pensa, está aí à vista de todos, nas livrarias: "O Capital no Século 21". Ou seriam também ambos, Thomas Piketty e Hahn, radicais insensatos?

Sobre a autora


Leda Maria Paulani, 60, professora titular de economia da FEA-USP, foi secretária municipal do Planejamento de São Paulo (gestão Haddad). É autora de "Modernidade e Discurso Econômico" e de "Brasil Delivery" (editora Boitempo).

11 de maio de 2015

Política por outros meios

Arundhati Roy sobre o motivo de estar devolvendo seu Prêmio Nacional à principal instituição literária da Índia.

Por Arundhati Roy


Arundhati Roy em 2011. Francesco Alesi

Embora eu não acredite que prêmios sejam uma medida do trabalho que fazemos, gostaria de adicionar o Prêmio Nacional de Melhor Roteiro que ganhei em 1989 à crescente pilha de prêmios devolvidos. Além disso, quero deixar claro que não estou devolvendo este prêmio porque estou "chocado" com o que está sendo chamado de "crescente intolerância" fomentada pelo atual governo.

Primeiro de tudo, "intolerância" é a palavra errada para usar para o linchamento, tiro, queima e assassinato em massa de outros seres humanos. Segundo, tivemos bastante aviso prévio do que nos aguardava — então não posso dizer que estou chocado com o que aconteceu depois que este governo foi entusiasticamente eleito com uma maioria esmagadora*. Terceiro, esses assassinatos horríveis são apenas um sintoma de um mal-estar mais profundo. A vida é um inferno para os vivos também. Populações inteiras — milhões de dalits, adivasis, muçulmanos e cristãos — estão sendo forçadas a viver em terror, sem saber quando e de onde o ataque virá.

Hoje vivemos em um país em que, quando os bandidos e apparatchiks da Nova Ordem falam de "abate ilegal", eles querem dizer a vaca imaginária que foi morta — não o homem real que foi assassinado. Quando falam em tirar "evidências para exame forense" da cena do crime, querem dizer a comida na geladeira, não o corpo do homem linchado.

Dizemos que "progredimos" — mas quando os dalits são massacrados e seus filhos queimados vivos, qual escritor hoje pode dizer livremente, como Babasaheb Ambedkar disse uma vez, que "Para os intocáveis, o hinduísmo é uma verdadeira câmara de horrores", sem ser atacado, linchado, baleado ou preso? Qual escritor pode escrever o que Saadat Hassan Manto escreveu em sua "Carta ao Tio Sam"?

Não importa se concordamos ou discordamos do que está sendo dito. Se não tivermos o direito de falar livremente, nos transformaremos em uma sociedade que sofre de desnutrição intelectual, uma nação de tolos. Em todo o subcontinente, tornou-se uma corrida para o fundo do poço — uma corrida à qual a Nova Índia se juntou entusiasticamente. Aqui também, agora, a censura foi terceirizada para a máfia.

Estou muito satisfeito por ter encontrado (em algum lugar no meu passado) um Prêmio Nacional que posso devolver, porque me permite fazer parte de um movimento político iniciado por escritores, cineastas e acadêmicos neste país que se levantaram contra um tipo de crueldade ideológica e um ataque ao nosso QI coletivo que nos destruirá e nos enterrará profundamente se não o enfrentarmos agora.

Acredito que o que artistas e intelectuais estão fazendo agora é sem precedentes e não tem paralelo histórico. É política por outros meios. Estou muito orgulhoso de fazer parte disso. E muito envergonhado do que está acontecendo neste país hoje.

*Para registro, recusei o Prêmio Sahitya Akademi em 2005, quando o Congresso estava no poder. Então, por favor, me poupe daquele velho debate Congresso vs BJP. Foi muito além de tudo isso. Obrigado.

Colaborador

Arundhati Roy é autora de muitos livros, incluindo Field Notes on Democracy. Seu último livro, The End of Imagination, será publicado em abril pela Haymarket Books.

7 de maio de 2015

Quatro mitos sobre a “classe freelancer”

Os freelancers têm mais em comum com outros trabalhadores do que com pequenos empreendedores.

Sarah Grey

Jacobin

Ashley Barron / Open Book Toronto

Tradução / Eu recebi uma estranha ligação no ano passado vinda de Duane Morris, uma firma internacional de direito baseada na Filadélfia. A mulher no telefone disse que a Duane Morris estava trabalhando com o ex-senador Blanche Lincoln e algumas das maiores corporações do mundo, como a Microsoft e o Google, para construírem juntos um “movimento popular” para auxiliar freelancers.

Eu então perguntei como esse movimento faria isso e ela respondeu que as leis trabalhistas tornam os empregadores vulneráveis a processos legais e multas por intencionalmente priorizarem diferentes tipos de trabalhadores – ou seja, contratarem trabalhadores autônomos ao invés de optarem por empregados permanentes (que, por sua vez, teriam acesso à benefícios legais). Essa “vulnerabilidade” cria um desincentivo para que se contratem freelancers e, de acordo com os organizadores desse “movimento”, esse é o maior problema – maior até mesmo que conseguir um seguro saúde, pagar as contas, conseguir sanar o esmagador problema dos empréstimos estudantis ou até mesmo ter acesso a capital – que os freelancers enfrentam nos dias de hoje.

E já que eu sou uma escritora e editora freelancer, ela então me perguntou se eu não queria me unir a essa luta pela minha liberdade de operar meu próprio negócio.

A mulher no telefone me conduziu ao website do movimento – que estava cheio de infotretenimento sobre como defender o direito dos freelancers conduzirem seus próprios negócios – isso sem mencionar palavras cruzadas, fotos felizes de pequenos empresários e um incrível jogo em Flash onde o jogador pode lançar bolas de neve em zumbis com dentes afiados e de terno, supostamente representando os políticos.

O website avisava que leis como a Payroll Fraud Prevention Act (ou Lei da Prevenção de Fraude na Folha de Pagamento) e a Employee Misclassification Prevention Act (ou Lei de Prevenção para Classificação Incorreta dos Empregados) “poderiam forçar milhares de pessoas a fechar seus negócios e demitir seus funcionários. Se isso acontecer, haverá desastrosas consequências para a economia”.

Estava bastante claro que essa tentativa de assustar desse “movimento popular” para tornar mais fácil para as corporações classificarem os trabalhadores como temporários era, de fato, uma tentativa de negar benefícios a uma enorme parcela dos trabalhadores. A presença da Microsoft aqui era uma pista bastante óbvia – a gigante dos softwares é notória por tais práticas e foi processada várias vezes por operários.

Em um contexto econômico onde há uma enorme variedade, nunca antes vista, de trabalhadores como motoristas de táxi, médicos plantonistas e cabelereiros, todos eles estão sendo forçados a trabalhar como “autônomos” ao invés de serem empregados com algum grau de estabilidade. O problema, então, não é que os pequenos negócios precisem de liberdade para operar, mas sim que o que antes era considerado um emprego hoje é considerado um pequeno negócio.

Apagar os limites entre a classe trabalhadora e a pequena-burguesia é algo que beneficia o grande capital – e não pessoas como eu. E eu decidi não me juntar ao “movimento”.

Freelancers que não compram o argumento de que eles são uma parte pequena dos grandes negócios geralmente argumentam que eles são parte daquilo que se chama hoje de “precariado”. O termo emergiu por volta de 2001, diante dos protestos anti-globalização contra o G8 em Genova – ele seria uma mistura entre proletariado e precário, visando com isso descrever a tendência global que se afastava dos empregos formais e ia em direção a um trabalho fragmentado, não-sindicalizado (especialmente em países desenvolvidos) e um enorme crescimento do setor informal (particularmente em economias em desenvolvimento).

Desde então tem havido um considerável debate acerca do termo. O economista Guy Standing escreveu um livro sobre essa nova classe (The precariat: the new dangerous class), composta por “trabalhadores temporários e parciais, sub-contratados, empregados de call centers, e muitos presidiários”, argumentando então que esses trabalhadores não eram parte do proletariado – que ele define de forma bastante precisa como “trabalhadores de longo prazo, com estabilidade, jornada de trabalho fixa, com rotas promocionais definidas, sujeitos à sindicalização e acordos coletivos, com empregos que seus pais e mães podem compreender, lidando com empregadores locais cujos nomes e características eles estariam familiarizados.”

Outros estudiosos questionam as implicações desse termo. Charlie Post argumenta que, antes da Primeira Guerra Mundial, “a vasta maioria dos trabalhadores viviam em condições incrivelmente precárias”, com pouco acesso aos empregos que Standing qualifica como típicos da “classe trabalhadora”; Jan Breman, em sua resenha sobre o livro de Standing, destaca que no Manifesto Comunista Marx e Engels argumentavam que uma das condições que definiam a “proletarização” era a precariedade: “Extirpados dos meios de subsistência da terra, os trabalhadores só podiam sobreviver vendendo sua própria força de trabalho.”

Compondo essa confusão sobre como entender e identificar classes no capitalismo moderno está o fato de que os freelancers, cujos números dispararam nas últimas décadas, são construídos ideologicamente como parte da pequena-burguesia, ainda que da sua parte mais baixa, apesar de terem que vender seu trabalho por salários e, geralmente, viverem receosos, sem acesso a seguro saúde ou outros benefícios – uma espécie de “precari-burguesia”.

Argumentos vindos de cima e de baixo sobre a existência dessa pseudo-classe acabaram popularizando uma série de mitos sobre ela e seus membros. Vamos analisar alguns dos mais comuns para ver se esse conceito de “precari-burguesia” consegue se sustentar.

Mito 1: A extremamente pequena burguesia

A designação de freelancers como uma nova classe empreendedora – um grupo de extremamente pequeno-burgueses e mini-CEOs controlando pequenos negócios que estariam destinados a se tornar verdadeiras corporações – é um dos mitos centrais conectados ao trabalho precário na atualidade.

Eu me tornei uma escritora e editora freelancer em tempo integral em 2011 e, como a maioria dos novos freelancers, me deparei com a penetrante ideologia do empreendedorismo. Há toda uma indústria de livros que propagam esse mito, incluindo The wealthy freelancer, The well-fed writer e – o meu favorito – The Hell Yeah Diaries: Uncensored outbursts on the path to 7 figures. Seja um freelancer com uma renda de seis dígitos! Tome conta de seu destino! Você não é um freelancer, você é o CEO da Você S.A.!

A ideologia é clara: adote uma mentalidade de CEO e em pouco tempo você estará contratando empregados, mudando-se para um lindo escritório e comprando Ferraris. Dúzias de redes de café promovem essa narrativa. Caso você escolha por uma, precisará praticar seus discursos de elevador e trocar cartões de visita com outros trabalhadores de terno. O networking não faz com que você fique mais rico, é claro – é mais provável que você fique agonizando ao perceber que está perdendo uma hora de trabalho produtivo, ao invés de passar semanas lidando com vendedores autônomos de seguro de vida.

A sede de Nova York do Sindicato dos Freelancers (cuidado: não é um sindicato de verdade) define os freelancers como “indivíduos que encararam um contrato de trabalho suplementar, temporário ou projetado nos últimos 12 meses”. Isso, por si só, define 53 milhões de americanos – 34% do total da força de trabalho nacional. De acordo com a fundadora do Sindicato, Sara Horowitz, durante a “Grande Recessão após 2008, o número de americanos que começaram seus próprios negócios atingiu a marca mais alta nos últimos quinze anos – e a maioria deles tinham apenas um proprietário.”

O Sindicato dos Freelancers recentemente fez um levantamento com 5 mil auto-identificados contratantes e descobriu que 40% da força de trabalho independente – 21.1 milhões de pessoas – tem como ocupação seu trabalho autônomo. Outros 14.3 milhões fazem “bicos” enquanto possuem um trabalho permanente. Outros 9.3 milhões têm um trabalho temporário para dar conta de seu trabalho como freelancer e 5.5 milhões são considerados apenas temporários. Apenas 5%, 2.8 milhões, podem ser classificados como freelancers donos de negócios, empregando de uma a cinco pessoas.

Quanto aqueles freelancers que teriam renda de seis dígitos, eles não estão conseguindo esse dinheiro vendendo seu trabalho por hora. A maioria deles vende produtos – como e-books ou videoaulas sobre o que um freelancer deve fazer para ganhar uma renda de seis dígitos (por módicos $49,95). Eles também conseguem isso ao contratarem empregados, ou (mais provável) contratarem vendedores e explorar o trabalho deles – em outras palavras, por adentrarem nas fileiras da verdadeira pequena-burguesia. E, em muitos desses casos, fazer essa transição exige ter acesso a algum capital.

Na verdade, as divisões de classe entre os freelancers é um reflexo das divisões de classe do restante da sociedade – os freelancers são, em sua grande maioria, membros restantes da classe que eles pertenciam antes de se tornarem autônomos. Os 99%, por assim dizer, do mundo freelancer permanecem dentro da classe trabalhadora, vendendo seu trabalho, presos na constante luta contra a classe capitalista pela taxa de exploração do trabalho – mas agora esses capitalistas aparecem como clientes e não mais como chefes.

Rotular os freelancers como empreendedores ao invés de trabalhadores acaba poupando fortunas aos capitalistas em termos de salários, benefícios e tributos trabalhistas. E não é surpreendente, então, que classificar trabalhadores como “contratados independentes” seja uma forma extremamente comum de fraude corporativa – precisamente o tipo de fraude que as companhias que contrataram a Duane Morris querem legalizar.

Além disso, enquanto já é difícil para os trabalhadores que trabalham no mesmo espaço, são pagos salários padronizados e têm contato diário uns com os outros – algo que poucos freelancers experienciam – os trabalhadores autônomos também têm de lidar com a Sherman Antitrust Act (ou Lei Antitrustes Sherman), que serve como mecanismo para definir a padronização salarial como intervenção no mercado e, portanto, ilegal.

Enquanto é certo que as estruturas de classe podem e mudam de fato com o tempo (como Bertell Ollman apontou em Marx’s uses of class, Marx foi rápido em perceber isso, especialmente em relação aos Estados Unidos), é importante definir elas não com uma lista de atributos em comum, mas em termos de relações de produção – o conflito que está presente no cerne da luta de classes.

Alinhar ideologicamente freelancers com os objetivos de uma pequena-burguesia (algo que até mesmo alguns marxistas fazem, como Eric Olin Wright afirma em sua obra Classes), ainda que eles tenham muito mais em comum com a classe trabalhadora, acaba construindo uma barreira para preveni-los de se organizar e lutar por direitos enquanto trabalhadores. Como Richard Seymour afirma: “a tentativa de obscurecer, ou desaparecer com o conceito de classe é uma missão política deliberada”.

Mito 2: A classe criativa

E que tal a “classe criativa” de freelancers que veem o trabalho como uma tarefa prazerosa, que colocam muitas horas nele por puro amor pelo jogo? Como diz o ditado, “faça o que você ame e você nunca trabalhará um dia sequer em sua vida”.

Por esse ponto de vista, o trabalho criativo seria a “antítese da alienação” – tal como Nicole Cohen situa –, já que trabalhadores culturais que lidam com ideias ou expressão de si recebem “relativa autonomia no processo do trabalho”, com um grau de controle e direcionamento em sua própria obra. Trabalhar em casa, em particular, é algo que liberta o trabalhador do rígido controle do empregador – códigos de vestimentas, filtros de internet, restrições nas pausas; capitalistas perceberam que, como Cohen descreve, “o controle sobre a produção pode ser abandonado desde que isso não seja um empecilho para a exploração”. Se o trabalhador não for assalariado, tudo o que importa é se o trabalho ficará pronto.

Freelancers são comumente tomados como trabalhadores criativos, de colarinho branco e em áreas como mídia, publicidade e tecnologia. Mas a categoria é bastante expansiva e inclui pessoas tão variadas quanto marceneiros, babás, trabalhadoras do sexo, agentes de seguros, assistentes administrativos, artistas, tradutores e intérpretes (e até mesmo a minha própria ocupação que é a de editora).

Algumas dessas ocupações, tais como artistas e escritores, são criativas; algumas ultrapassam a linha entre criatividade e a (mais frequentemente) produção mecânica corporativa (tais como tradutores, editores e redatores); outros trabalham em tarefas “não-criativas” como cuidar de crianças, trabalhos sexuais, trabalhar de babá ou fazer faxina.

A razão pela qual os setores de criatividade, mídia e tecnologia estão tão frequentemente identificados com atividades de freelancer é que essas indústrias adotaram um modelo casuístico para essa posição muito antes de outros ramos industriais adotarem. Como Cohen destaca, a indústria cultural foi pioneira na mudança para formas precárias de emprego, que por sua vez, “serviram como um modelo de trabalho flexível e baseado em projetos, adotado então por outras indústrias”.

Esse modelo agora é reproduzido em toda parte, de universidades à hospitais, até mesmo em salões de beleza. Mas trabalhar como freelancer não significa uma “fuga da exploração existente no antagonismo capital-trabalho”, como percebe a autora – “corporações que dependem do trabalho do freelancer desenvolveram métodos alternativos de extração de mais-valia dos trabalhadores... incluindo aí um aumento no trabalho não-remunerado e na busca agressiva por direitos autorais”. Esse tempo não-remunerado inclui tudo desde pesquisar e pinçar artigos para citação, gerenciamento de projetos, marketing e vendas, trabalho administrativo, tudo que antes era responsabilidade do empregador.

Mas há um pouco de verdade aqui: o trabalho criativo pode, de fato, ser realizador. Pessoalmente, eu gosto de trabalhar em casa, editando para clientes como Haymarket Books e Historical Materialism, certamente bem mais do que quando eu editava materiais para treinamento corporativo em um escritório sem janelas. Eu realmente acabo trabalhando por muitas horas somente para levar adiante projetos que eu realmente amo.

Mas a “carreira de portfólio”, onde os trabalhadores criativos têm que fazer malabarismo com múltiplos clientes e projetos simultâneos para conseguir fazer valer a pena, ao mesmo tempo que usam esses projetos para divulgar suas habilidades no mercado e conseguirem um próximo projeto, é um ato de equilíbrio.

Para cada incrível biografia de Franz Fanon, há muitas horas de ilegíveis relatórios corporativos, produção de websites para corretores imobiliários para conseguir pagar o aluguel, as dívidas estudantis e os planos de saúde.

Os jornalistas freelancers entrevistados por Cohen tratam o jornalismo tradicional como uma certa luxúria, algo que eles fazem durante vários entediantes “bicos” que tomam a grande parte de seu tempo. Enquanto freelancers conseguem aproveitar mais “individualidade... liberdade, independência e auto-controle” (como Marx uma vez disse) do que trabalhadores tradicionais, isso é restringido pela necessidade de vender a sua força de trabalho em uma atmosfera de intensa competição e resiliente pressão para achatar seus pagamentos.

Mito 3: Mas é voluntário!

Os freelancers são empurrados abismo abaixo, ou eles se jogam? Faz alguma diferença?

As pessoas resolvem trabalhar como autônomas por inúmeras razões. Alguns realmente estão em busca de fortuna e glória, tal como se mostram nos estereótipos dos despreocupados millenials; a pesquisa do Sindicato dos Freelancers descobriu que muitos dos freelancers estão felizes com sua escolha de carreira.

E não há dúvidas que não ter um chefe é algo realmente incrível: sem políticas de escritório, sem meias-calças, sem assédio sexual de supervisores sanguessugas, sem ter que pegar café para ninguém, sem ter que viajar à trabalho. E os freelancers também têm o direito de recusar tarefas, ainda que essa liberdade esteja contingenciada à quantidade de trabalho.

Mas por mais interessante que sejam essas coisas, elas não são necessariamente os principais impulsos que orientam a decisão de trabalhar como freelancer.

Uma grande quantidade de trabalhadores autônomos trabalha através de contratos independentes porque suas indústrias foram reestruturadas, eliminando com isso empregos fixos e seguridade empregatícia. Na mídia editorial e de publicidade, por exemplo, escritores, editores, designers e outros profissionais do ramo midiático agora trabalham como freelancers porque a indústria é estruturada em volta de uma equipe-esqueleto que é intensamente explorada nos escritórios, tendo então um exército de reserva de freelancers prestes a serem subcontratados.

Outros recorrem ao trabalho como freelancer porque suas indústrias foram reestruturadas antes mesmo deles chegarem lá, ou até mesmo porque elas foram criadas já dentro desse modelo de exército de reserva. Esse é o caso particular dos trabalhadores mais jovens nas mídias tecnológicas e digitais, onde os tipos de trabalho estável que Guy Standing consideraria como “verdadeiramente proletários” praticamente nunca existiram.

E finalmente, há uma categoria, geralmente subestimada, de trabalhadores que são forçados à condição de freelancer porque as condições tradicionais de emprego acabaram pressionando eles cada vez mais a medida que elas limitaram direitos básicos, como abonar faltas por motivo de saúde, ou licenças para cuidar dos filhos.

A Lei do Abono Saúde Familiar (Family Medical Leave Act), que permite que as trabalhadoras possam tirar licenças-maternidade, se aplica a 10% da força de trabalho; os Estados Unidos e a Papua Nova Guiné são os únicos países no mundo que não garantem legalmente a licença-maternidade.

De acordo com o Escritório de Estatísticas do Trabalho, aproximadamente 75% dos trabalhadores estáveis e 27% dos trabalhadores temporários americanos receberam por ausências ligadas à motivo de saúde. Um trabalhador estável médio, que consiga estabilidade de cinco anos, recebe de oito a nove dias de ausência por saúde anualmente. E esse período pode, ou não, incluir feriados, já que muitos empregadores preferem adotar uma política de “pagar pelo tempo livre” tanto em casos de saúde como em casos de férias.

Já os pais (principalmente os solteiros) e pessoas lidando com doenças crônicas ou lesões, geralmente lidam com uma escolha: trabalhar doente e não tomar cuidados médicos, ou ser demitido por conta da política de seu empregador. Se você não consegue dispensa médica ou não pode ficar em casa cuidando de seu filho, a única saída resta é trabalhar como freelancer. Mais de 40% dos entrevistados pelo Sindicato marcaram que a flexibilidade seria sua primeira motivação para trabalhar como autônomo.

Dado que os fardos de cuidar das crianças e dos idosos geralmente recaem sobre as mulheres, a balança de gênero da força de trabalho dos freelancers é bastante desequilibrada. Eu recentemente participei de uma conferência de editores freelancers onde mais de 75% dos presentes eram mulheres.

Surpreendentemente, as pesquisas recentes do Escritório de Estatísticas do Trabalho apontam que a diferença salarial para as mulheres (que é de 77 cents por dólar nas mulheres brancas e chega a 51 cents nas mulheres negras e latinas) aparece reduzida e quase inexistente no mundo dos freelancers, dependendo claro, de outros fatores como raça. Isso sugere que algumas dessas trabalhadoras podem calcular que a discriminação no mercado de trabalho torna essa situação praticamente impossível, fazendo com que elas abandonem a ideia de estabilidade dos empregos formais tradicionais.

Então, fica a dúvida: podemos dizer que essas trabalhadoras se jogaram no abismo, ou foram empurradas para ele?

Mito 4: A classe impossível

Já nos disseram muitas e muitas vezes, em tons entristecidos, mas firmes, que o setor freelancer é praticamente impossível de se organizar. A verdade dessa afirmação ainda está para ser confirmada, ainda que seja verdade que as tentativas de organizar esse setor não se mostraram bem-sucedidas.

Há alguns poucos sindicatos independentes de faz-de-conta que os trabalhadores podem participar: por exemplo, o Sindicato dos Freelancers, que garante aos trabalhadores conselhos, networking, descontos em negócios e serviços e, em algumas partes do país, a oportunidade de comprar planos de saúde coletivos. Ainda que a instituição advogue pelos interesses dos freelancers, ela não organiza ou se envolve em conflitos salariais ou qualquer tipo de luta de classes. De fato, Atossa Abrahamiam argumentou que ao pacificar os freelancers, o Sindicato dos Freelancers presta um serviço valioso ao capital.

Outros freelancers (inclusive eu) fazem parte do Sindicato Nacional de Escritores (Registro Local 1981 do Sindicato Nacional de Autônomos), que foi criado como uma organização independente de escritores freelancers em 1983 e se tornou parte do Sindicato Nacional de Autônomos em 1991.

O nosso sindicato intervém em disputas salariais e em casos onde há exploração flagrante e coletiva o suficiente para a organização dos trabalhadores – como por exemplo, ao ir atrás de revistas que cotidianamente enganam escritores e os deixam sem receber. Ele também oferece oficinas educacionais e conselhos legais para seus membros.

Mas nenhuma dessas organizações podem ser chamadas de sindicatos no sentido mais tradicional do termo e nem sequer possuem força suficiente para definir salários. Esses métodos de organização ainda exigem algum tipo de concentração dos próprios trabalhadores para serem eficientes.

Freelancers talvez precisem de novas formas de organização. Uma possibilidade pode ser juntar-se a empregados domiciliares em suas atividades – algo que os recentes esforços organizacionais ocorridos na empresa Gawker Media podem nos ensinar muito.

Mas se uma parte daquilo que definimos como classe é a própria consciência de classe, fica cada vez mais claro que enquanto trabalhadores mal remunerados lutam por um salário de 15 dólares a hora e que estudantes se recusam a pagar suas dívidas universitárias, os freelancers não podem mais se alinhar ideologicamente à pequena-burguesia. Essa categoria cada vez mais vem das fileiras da classe trabalhadora, labutando por salários baixos e compartilhando os interesses mais primários – além de toda sua precariedade – com a grande maioria dos trabalhadores.

Nós não somos uma "precari-burguesia" – nós somos o futuro da luta de classes.

Colaborador

Sarah Grey é uma escritora freelancer e editor. Ela vive em Fishtown, Filadélfia.

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