Não há um avanço relevante contra o Estado Islâmico no Iraque ou na Síria que possa ser posto na conta da coalizão montada pelos EUA
Folha de S.Paulo
O Oriente Médio é um eterno desafio à nossa capacidade de compreensão. Talvez nunca o tenha sido como agora. As conflagrações são tantas, os atores, os interesses, as chaves de leitura, que mentirá quem disser que pode tudo explicar. A não ser que, por querer ou sem querer, minta na explicação.
Um dos elementos incontornáveis desse complexo emaranhado é o chamado Estado Islâmico (EI). Esse grupo, e com ele os seus vários similares, aliados ou concorrentes, aparece como espectro a assombrar desde a Nigéria até o Iraque, passando pela Líbia e o restante do norte da África, pelo Levante Árabe e pelo Golfo, incluído aí o Iêmen, hoje sob ataque saudita.
Em todos os lugares se multiplicam os relatos de sua extraordinária violência e causam impressão os seus números, a sua força e a sua capacidade de ação. Esse perigo gigantesco, que não pode ter sido fruto de geração instantânea, parece ter surgido no nosso radar de repente e apenas muito recentemente.
É verdade que antes disso, sob o nome genérico de Al Qaeda, e no contexto da chamada guerra contra o terror, muito se falava dos portadores da mesma visão torta do islã e da violência por eles perpetrada.
Mas aquilo que era uma rede difusa de células voltadas a ações pontuais transformouse em legiões de homens bem treinados, bem armados, com acesso a abundantes recursos materiais. E, por alguma razão, aqui no Ocidente se decidiu, por um bom tempo, que não era o caso de prestar muita atenção.
A metamorfose se deu originalmente no Iraque e na Síria e o seu momento mais relevante foi a entrada do EI e outros grupos similares, como a Jabhat Al Nusra, no combate ao governo sírio.
Essa questão temporal serve de pista para explicar, ao menos em parte, tanto o nosso silêncio quanto o fenomenal crescimento em força desses exércitos de ocasião.
Calouse sobre aquilo que se estava alimentando, direta ou indiretamente, na esperança de mudar a balança de poder na região, derrubando o regime sírio e enfraquecendo os seus aliados mais evidentes, o Irã e o Hizbollah libanês.
O Estado Islâmico e seus similares aparecem assim como instrumentos, tão perigosos para quem os manuseia quanto para suas vítimas imediatas, no jogo que opõe esses atores a que me referi às potências ocidentais e seus clientes regionais, incluídos aí os países do Golfo e também Israel.
Mas, mesmo enquanto ainda não escapam totalmente ao controle de quem os apoia, esses grupos são como aqueles parceiros com quem se tem vergonha de aparecer em público. Por isso ninguém confessa as ligações perigosas que mantém.
Somos, portanto, convidados a ultrapassar os discursos e observar o comportamento dos vários atores.
Mesmo após o avanço do Estado Islâmico sobre o Curdistão iraquiano e a difusão de imagens de vítimas ocidentais executadas, ou seja, depois de violada a linha do que era permitido e a opinião pública ocidental ter sido de tal modo provocada, a resposta veio tímida.
Não há qualquer avanço relevante contra o EI no Iraque ou na Síria que possa ser posto na conta das ações da coalizão montada pelos Estados Unidos, ações que de resto aparecem ao observador como meramente cosméticas.
Tampouco há qualquer ação visível por parte dos parceiros e clientes dos Estados Unidos voltada a efetivamente estancar as fontes de financiamento, fechar os campos de treinamento, impedir a chegada dos combatentes etc.
Do mesmo modo, a mesma Arábia Saudita que hoje bombardeia o Iêmen, em violação flagrante do direito internacional, sob o pretexto de proteger a legalidade institucional do avanço dos Houtis, não pensou ser necessária qualquer ação contra a Al Qaeda e seus filhotes naquele país.
Os aprendizes de feiticeiros continuam a brincar com fogo.
SALEM H. NASSER, 47, é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais - GR-RI
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